Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
120724/15.0YIPRT.1.G1-A
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
EFEITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Não padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, previsto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, a decisão que não aprecia o mérito de questões suscitadas pela parte com fundamento no esgotamento do poder jurisdicional relativamente a tais questões por via da prolação de anterior decisão.
II - Da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar”.
III - A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e BB vieram instaurar contra CC ação executiva com vista a obter o cumprimento coercivo das obras que o executado se comprometeu a realizar no âmbito de transação efetuada entre as partes e devidamente homologada, as quais se encontram descritas nos nºs 1 a 7 do ponto 5 do requerimento executivo.
Alegaram que as obras referidas em 1 a 6 do no nº 5 do requerimento executivo deveriam ter sido realizadas até 31.7.2016. Quanto à obra referida em 7, relativa à reparação das fissuras existentes no barbecue, uma vez que não foi fixado prazo para a sua realização, reputam como suficiente para tal efeito o prazo de 15 dias.
Pediram ainda o pagamento da indemnização e a fixação de sanção pecuniária compulsória.
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Foi determinada a citação do executado, nos termos do art. 874º, nºs 1 e 2, do CPC, a qual se concretizou, não tendo o executado deduzido oposição.
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Em 9.8.2019 foi proferido despacho (ref. citius ...57) que:

a) fixou em 15 dias o prazo para reparação das fissuras existentes no barbecue;
b) fixou a sanção pecuniária compulsória em € 50 por cada dia de incumprimento relativamente a todos os trabalhos, a contar do final do prazo a fixar relativamente às fissuras do barbecue.
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Em 7.11.2019, o executado, através de mail enviado pelo seu mandatário, comunicou à Sr.ª agente de execução que, no prazo indicado, procedeu à prestação de facto em causa (requerimento de 12.11.2019 ref. Citius ...57).
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Notificados do aludido mail, vieram os exequentes, em 3.1.2020, (requerimento ref. Citius ...87) dizer que, apesar de o executado ter efetuado uma pequena intervenção no barbecue, não cumpriu a ordem judicial de reparação das fissuras.
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Em 13.1.2020, (requerimento ref. Citius ...68) o executado veio insistir que já efetuou a reparação das fissuras do barbecue tendo requerido, para o caso de assim não se entender, que seja efetuada uma peritagem à reparação efetuada, por perito a nomear pelo tribunal.
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Em 12.2.2020 foi proferido despacho (ref. Citius ...37) que, perante a discordância das partes quanto ao cumprimento da prestação de facto, determinou que se procedesse a perícia com vista a esclarecer se as fissuras no barbecue foram reparadas de acordo com as normas técnicas e gerais da arte de construção corrente, por forma a assegurar o bom desempenho e durabilidade da churrasqueira.
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O Sr. Perito foi notificado para realizar a perícia em 12.3.2020.
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Em 9.9.2020, o Sr. Perito juntou aos autos o relatório de peritagem datado de 20.8.2020.
Previamente esclareceu que devido à pandemia Covid-19 não pôde entregar o relatório mais cedo devido à impossibilidade de contacto e visitas ao local para verificação dos trabalhos e posterior elaboração do relatório pericial.
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O relatório foi notificado às partes, na sequência do que:

a) em 4.12.2020, o executado apresentou requerimento (ref. Citius ...41) no qual pediu que o perito atestasse se as obras que realizou foram ou não efetuadas em conformidade com as normas técnicas da arte de construção civil.
b) em 5.1.2021, os exequentes apresentaram requerimento (ref. Citius ...01) no qual declararam estar de acordo com o requerido pelo executado.
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Em 29.4.2021, foi proferido despacho (ref. Citius ...35) que deferiu o requerido, tendo o senhor perito sido notificado em 24.5.2021 (ref. Citius ...45).
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Em 4.11.2021 (requerimento ref. Citius ...59), o perito nomeado juntou relatório de peritagem datado de 10.10.2021 na qual concluiu que os trabalhos de reparação foram efetuados e que a churrasqueira está reparada tendo os reforços necessários ao seu bom funcionamento.
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Em 8.2.2022 foi proferido despacho (ref. Citius ...96) com o seguinte teor:

Atento o teor do relatório de peritagem apresentado e datado 10/10/2021, atestando a conformidade dos trabalhos executados e cumprido que se mostra o contraditório, tem-se por concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021).
Assim, por necessária deriva, declara-se extinta a sanção pecuniária compulsória a que o executado se encontra adstrito desde a decisão sob a referência citius ...57, de 9/8/2019.
Notifique.
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Este despacho foi notificado às partes com data de 10.2.2022.
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Em 2.3.2022 o executado apresentou requerimento (ref. Citius ...28) dizendo que informou o tribunal da conclusão das obras em 4.12.2020.
Não pode ser responsabilizado pelo facto de o senhor perito só ter verificado a conformidade dos trabalhos quase um ano após a sua conclusão. Assim, requereu que seja declarada extinta a sanção pecuniária à data de 4.12.2020, data de conclusão das obras, e que sejam descontados os três meses de declaração do estado de emergência nos quais o executado não pôde efetuar qualquer trabalho.
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Em 28.3.2022, os exequentes apresentaram requerimento (ref. Citius ...08) opondo-se à pretensão do executado.
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Em 17.5.2022 foi proferido despacho (ref. Citius ...01) com o seguinte teor:

Requerimento sob a ref.ª ...28:
Com a decisão proferida em 08/02/2022, ref.ª Citius ...96, que declarou concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021), bem com a sanção pecuniária compulsória, e considerando que o mecanismo processual adequado a ver alteradas decisões judiciais encontra um regime próprio na lei processual civil, não tendo o mesmo sido utilizado, mostra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal, razão por que nada há a determinar.
Notifique.
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O executado não se conformou e interpôs recurso deste despacho, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
(…)
Termina pedindo que se considere nula a decisão recorrida, por omissão de pronúncia, e, em qualquer caso, que a mesma seja substituída por outra que, em complemento do despacho de 8.02.2022, especifique que a extinção da sanção pecuniária compulsória se considera reportada à data de 4.12.2020, correspondente à data do cumprimento pelo executado da prestação de facto a que estava adstrito e bem assim que ao período de incumprimento da prestação de facto exequenda deve ser descontado o prazo de três meses correspondentes ao período legal do estado de emergência que vigorou entre março e junho de 2020.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foi fixado à causa o valor de € 8 000.
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A 1ª instância pronunciou-se sobre a nulidade invocada, tendo considerado que  a mesma não se verifica.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, tendo o modo de subida sido alterado, por despacho proferido pela relatora em 1.2.2023 (ref. Citius...58), que considerou que o recurso devia subir em separado.
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Foi organizado o apenso de recurso, nos termos previstos no art. 853º, nº 2, após o que os autos principais baixaram à 1ª instância.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia quanto às questões suscitadas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022;
II - saber se com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido quanto às questões suscitadas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022;
III - em caso de resposta negativa à questão anterior, saber se devem ser julgadas procedentes as pretensões deduzidas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022, no sentido de a produção de efeitos da extinção da sanção pecuniária compulsória se reportar a 4.12.2020 e de ser efetuado o desconto dos três meses de declaração do estado de emergência.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que se encontram descritos no relatório os quais resultam da consulta dos atos praticados no processo.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Nulidade da decisão por omissão de pronúncia

O recorrente invoca que a decisão recorrida é nula, por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, em virtude de o tribunal a quo ter omitido pronúncia sobre as questões por si suscitadas no requerimento de 2.3.3022. Tais questões consistiam em a produção de efeitos da extinção da sanção pecuniária compulsória se reportar a 4.12.2020 e ser efetuado o desconto dos três meses de declaração do estado de emergência.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, (diploma ao qual se referem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Este normativo é aplicável aos despachos proferidos em ação executiva, por força das disposições conjugadas dos arts. 613º, nº 3 e 551º, nº 1.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).
O vício da decisão decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º, designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença, havendo, assim, de por ele ser integrado.
Desta conjugação de normativos resulta que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.

Ora, assentes nestas premissas e transpondo-as para o caso em análise, relembramos que a decisão recorrida de 17.5.2022 tem o seguinte teor:
Requerimento sob a ref.ª ...28:
Com a decisão proferida em 08/02/2022, ref.ª Citius ...96, que declarou concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021), bem com a sanção pecuniária compulsória, e considerando que o mecanismo processual adequado a ver alteradas decisões judiciais encontra um regime próprio na lei processual civil, não tendo o mesmo sido utilizado, mostra-se esgotado o poder jurisdicional deste Tribunal, razão por que nada há a determinar”(sublinhado nosso).

A circunstância de a decisão recorrida não ter apreciado o mérito de nenhuma das questões suscitadas pelo recorrente/executado no requerimento de 2.3.2022, fazendo apelo ao facto de o poder jurisdicional se encontrar esgotado, não é passível de ser reconduzida a uma omissão de pronúncia. Bem pelo contrário, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre a matéria, simplesmente a pronúncia emitida foi no sentido de que não podia apreciar o mérito das pretensões deduzidas pelo executado no requerimento de 2.3.2022, porque o poder jurisdicional quanto a tal matéria estava esgotado mercê da prolação do despacho de 8.2.2022.
A bondade e o acerto da decisão proferida no sentido de o poder jurisdicional estar ou não estar esgotado apenas releva em sede de erro de direito, podendo justificar a revogação da decisão, mas não gera uma situação de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.

Nestes termos, a decisão recorrida não padece do vício de nulidade por infração do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, improcedendo esta questão recursória.
*
II – Esgotamento do poder jurisdicional

Como já referimos a propósito da questão anterior, as questões que foram suscitadas pelo executado no requerimento de 2.3.2022 consistiam em a produção de efeitos da extinção da sanção pecuniária compulsória se reportar a 4.12.2020 e em ser efetuado o desconto dos três meses de declaração do estado de emergência.
Essas questões não foram efetivamente apreciadas no despacho recorrido de 17.5.2022 porque o mesmo considerou que, com a prolação do despacho de 8.2.2022, ficou esgotado o poder jurisdicional sobre essa matéria, razão pela qual não apreciou o mérito das pretensões deduzidas.
O executado/recorrente discorda deste entendimento e considera que as duas questões suscitadas não estão abrangidas pela decisão proferida em 8.2.2022. Do ponto de vista jurídico, enquadrou esta situação na nulidade da decisão por omissão de pronúncia, vício que, como já analisámos, não se verifica.
O que pode ocorrer é uma diferente situação, a qual se prende com o acerto e correção da decisão recorrida, e que consiste em saber se o poder jurisdicional está ou não esgotado, análise que importa agora efetuar.

Dispõe o art. 613º, nº 1 que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Esta norma é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no nº 3 do art. 613º, sendo aplicável ao processo executivo, de acordo com o princípio geral de aplicação subsidiária das disposições reguladoras do processo de declaração constante do art. 551º, nº 1.

O princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174).

Como já referia Alberto dos Reis em anotação ao anterior art. 666º, correspondente ao atual 613º, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.
Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se lògicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão” (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 127).
Portanto, da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17.4.2012, Relator Henrique Antunes, in www.dgsi.pt).
Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto.

Como tal, podemos afirmar que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762).
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.

Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado (cf. neste sentido, Acórdão do STJ, de 6.5.2010, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt).

Assentes nestas premissas, e aplicando-as ao caso concreto, vejamos, então, se com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou, ou não, esgotado o poder jurisdicional no que toca à data da extinção da sanção pecuniária compulsória e à possibilidade de exclusão dessa sanção do período de três meses da declaração do estado de emergência em que não foi possível realizar qualquer trabalho.
Relembramos que, em 8.2.2022, foi proferido despacho (ref. Citius ...96) com o seguinte teor:
Atento o teor do relatório de peritagem apresentado e datado 10/10/2021, atestando a conformidade dos trabalhos executados e cumprido que se mostra o contraditório, tem-se por concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10/10/2021).
Assim, por necessária deriva, declara-se extinta a sanção pecuniária compulsória a que o executado se encontra adstrito desde a decisão sob a referência citius ...57, de 9/8/2019.”

Este despacho apreciou e decidiu que a prestação de facto foi efetuada, que tal ocorre desde a data da verificação, ou seja, 10.10.2021, e, por consequência, declarou extinta a sanção pecuniária compulsória que tinha sido aplicada por despacho de 9.8.2019.
Nas alegações, o recorrente pretende que não foi apreciada a data a que se reporta a extinção da sanção pecuniária, dizendo que “a decisão de 8.2.2022 limita-se a considerar extinta a sanção pecuniária compulsória, não esclarecendo sequer, a que data se reporta tal extinção, nomeadamente, se à data da própria decisão, se também se reporta à data da verificação da conformidade dos trabalhos pelo perito (10/10/2021), se à data em que o executado veio comunicar nos autos a realização integral dos trabalhos a que estava obrigado (4.12.2020)”.

Com o devido respeito por opinião diversa, consideramos que o despacho de 8.2.2022 só pode ser entendido e interpretado no sentido de que a extinção da sanção pecuniária compulsória se reporta a 10.10.2021 e não a nenhuma das outras datas que o executado/recorrente refere.
O despacho em questão não refere em lado algum que os efeitos da extinção da sanção pecuniária compulsória se reportam à data em que o mesmo foi proferido (8.2.2022) ou à data em que o executado veio comunicar a realização integral dos trabalhos (4.12.2020). Por isso, esse sentido interpretativo do despacho nunca teria no texto do mesmo um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso, que pudesse sustentar tal interpretação.
Por outro lado, lendo o despacho recorrido de forma conjugada com o despacho proferido em 9.8.2019, para o qual o mesmo remete expressamente, entendemos que a única interpretação correta e adequada é a de que os efeitos da extinção da sanção pecuniária compulsória se produzem em 10.10.2021, data esta em que se verificou que a prestação de facto foi concluída, sendo que o relatório de peritagem que confirma esse facto tem precisamente essa data.
Ora, relembramos que o despacho de 9.8.2019, depois de ter fixado em 15 dias o prazo para a reparação das fissuras existentes no barbecue, fixou a “sanção pecuniária compulsória em € 50 (cinquenta euros) por cada dia de incumprimento relativamente a todos os trabalhos, a contar do final do prazo a fixar relativamente às fissuras do barbecue”.
Por conseguinte, à luz deste despacho, a sanção pecuniária inicia-se após o decurso do prazo de 15 dias aí fixado e só termina quando o facto for prestado.
Fazendo a decisão de 8.2.2022 referência que é no relatório de peritagem de 10.10.2021 que se atesta a conformidade dos trabalhos executados e que se tem por concluída a prestação de facto a que o executado se achava obrigado desde a data da verificação (10.10.2021) mais dizendo que a sanção pecuniária compulsória fixada pelo despacho de 9.8.2019 se declara extinta, entendemos que a única interpretação razoável e possível deste despacho é a de que a extinção da sanção pecuniária se reporta a 10.10.2021, data em que se confirmou que a prestação de facto relativa à reparação das fissuras do barbecue estava integralmente realizada.

Portanto, e em conclusão, o despacho de 8.2.2022 apreciou e decidiu que a sanção pecuniária compulsória se extinguiu em 10.10.2021. Por assim ser, o poder jurisdicional sobre esta matéria esgotou-se e não é possível, como pretende o recorrente, que o mesmo tribunal venha a proferir uma posterior decisão na qual considere que a sanção pecuniária se extinguiu em 4.12.2020, sob pena de proferir uma decisão juridicamente inexistente.

O recorrente afirma ainda que também não ocorre extinção do poder jurisdicional quanto ao desconto dos três meses porque “a decisão de 8/2/2022 também não se pronunciou sobre a pretensão formulada pelo Executado, de ver ser descontado ao período de incumprimento, o prazo de três meses correspondentes ao período do estado de emergência, pretensão que só foi formulada no requerimento de 2/3/2022”.

Do despacho proferido em 8.2.2022, que já analisámos e interpretámos de forma conjugada com o despacho de 9.8.2019, resulta que a sanção pecuniária é devida desde o decurso do prazo de 15 dias fixado no despacho de 9.8.2019 até 10.10.2021, data em que resulta comprovado que o facto foi prestado.
A pretensão manifestada pelo executado de ser descontado a este período os três meses correspondentes ao estado de emergência, por não ter podido prestado qualquer trabalho, é matéria que, se fosse admitida, implicaria a alteração do que foi decidido em 8.2.2022.
É verdade que essa concreta matéria não foi apreciada em 8.2.2022 porque o executado nessa altura não tinha manifestado essa pretensão, o que só veio a fazer no requerimento de 2.3.2022. Mas nem por isso se pode concluir que o poder jurisdicional sobre a questão não esteja esgotado. Na verdade, com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional quanto a todas as matérias que digam respeito ao período em que vigorou a sanção pecuniária compulsória, designadamente quanto às que foram concretamente decididas e quanto às que não foram, unicamente porque não foram suscitadas quando podiam e deviam ter sido deduzidas até esse momento por já se verificarem. Ora, o executado, se entendia que havia qualquer período a descontar na sanção pecuniária compulsória a que sabia que se encontrava sujeito desde a prolação do despacho 9.8.2019, designadamente por ter estado impedido de realizar trabalhos enquanto vigorou o estado de emergência, tinha que ter alegado tal situação em momento anterior, designadamente no requerimento que apresentou em 4.12.2020 em que suscitou a realização da perícia para atestar a realização da prestação de facto. À data em que este requerimento foi apresentado, a situação de facto em que se alicerça a pretensão do executado/recorrente de desconto do período de declaração do estado de emergência já existia, pelo que se impunha que o executado tivesse formulado esse pedido para que o tribunal o pudesse ter apreciado quando foi proferida a decisão de 8.2.2022. Não o tendo feito, por aplicação dos princípios da concentração da defesa, da eventualidade e da preclusão que decorrem do art. 573º, aplicáveis à execução ex vi art. 551º, nº 2, com as necessárias adaptações, fica precludido o direito de o fazer posteriormente. Se assim não se entendesse, o executado/recorrente poderia, de forma enviesada, obter a alteração do decidido em 8.2.2022, invocando factos que já existiam antes dessa data, mas que o mesmo não cuidou de alegar no processo apesar de estar em condições de o fazer pois os factos não são supervenientes.
Deste modo, e pelas razões expostas, entendemos que efetivamente com a prolação do despacho de 8.2.2022 ficou esgotado o poder jurisdicional do tribunal no que concerne ao período temporal durante o qual vigorou a sanção pecuniária compulsória razão pela qual lhe estava vedado apreciar o requerido pelo executado em 2.3.2022, sob pena de proferir uma decisão juridicamente inexistente.
Deste modo, improcede esta questão recursória.
*
III - Procedência das pretensões deduzidas pelo executado/recorrente no requerimento de 2.3.3022

A apreciação desta questão recursória dependia de se ter concluído que o poder jurisdicional não se encontrava esgotado.
Tendo-se chegado à conclusão inversa, ou seja, que se encontra esgotado o poder jurisdicional relativamente às questões suscitadas no requerimento apresentado pelo executado/recorrente em 2.3.2022, fica prejudicada a apreciação desta questão.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido.
Custas da apelação pelo recorrente.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - Não padece do vício de nulidade, por omissão de pronúncia, previsto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, a decisão que não aprecia o mérito de questões suscitadas pela parte com fundamento no esgotamento do poder jurisdicional relativamente a tais questões por via da prolação de anterior decisão.
II - Da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar”.
III - A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
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Guimarães, 2 de março de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas