Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
126/10.2TBPCR-C.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: REGISTO PREDIAL
INSCRIÇÃO REGISTRAL
TERCEIROS PARA EFEITOS DE REGISTO
PREVALÊNCIA CRONOLÓGICA DO REGISTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- O artº 5º, nº 1 do Código de Registo Predial não tem por objectivo fazer depender a oponibilidade do direito real da prévia inscrição registral da aquisição a favor do seu titular, mas sim o de proteger o terceiro que, confiando na aparência de uma situação registral desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista a sua aquisição.

II - Essa protecção só é disponibilizada aos terceiros que, de harmonia com a concepção restrita, para efeitos de registo são os que do mesmo autor ou transmitente recebam sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes entre si - artº 5º, nº 4 do Código de Registo Predial.

III- Assim, a aquisição efectuada pelo Recorrente, sendo anterior, mas registada posteriormente ao registo da hipoteca voluntária, não é oponível ao credor hipotecário.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrente: AA.

Recorrido: BB.

Tribunal Judicial de Valença – Juízo Local de Competência Genérica.

BB veio, ao abrigo do disposto no artigo 840.º do CPC, protestar pela reivindicação do imóvel penhorado na execução e cuja venda esteve agendada para o passado dia 30 de Setembro, sendo que para tanto alegou que, por sentença proferida nos autos que neste Tribunal correm termos sob n.º 91/13.4TBPCR em 25.05.2016, já transitada em julgado, se declarou ser ela a proprietária do supra referido bem, mais tendo sido ordenado o cancelamento de quaisquer registos operados com base na escritura pública de justificação notarial de posse que a requerente ali impugnou.

Alega ainda que na dita sentença foi declarado que a requerente é proprietária do imóvel penhorado há não menos de 22 anos, ou seja, bem antes do registo de hipoteca voluntária constituída a favor da exequente, o que sucedeu e, 29.04.2008.

Conclui pedindo, ao abrigo daquela norma, que se lavre termo de protesto e que, devendo ser cancelada a penhora do imóvel, seja dada sem efeito a venda deste último.

Pronunciou-se a exequente AA (ref.ª 1226131) alegando que a questão em apreço já foi decidida no sentido de que a decisão a proferir na supra identificada acção declarativa em nada interfere com a que se discute nestes autos de execução, já que mesmo sendo ela favorável à requerente não decorre que a hipoteca constituída – antes de registada aquela acção – sobre o imóvel penhorado seja dada sem efeito e que, bem assim, seja determinado o levantamento da penhora, tanto mais que a exequente nem sequer é parte naquele processo.

Conclui pugnando pelo indeferimento da pretensão formulada.

Foi proferida decisão que, tendo considerado não serem os executados os legítimos proprietários do imóvel apreendido nos autos, determinou o levantamento da penhora que sobre ele incide.

Inconformado com tal decisão, apela o Autor, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões:

1 - Estamos no âmbito de um processo executivo, no qual a BB é executada, portanto, parte no processo.

2 - A exequente deu à execução uma escritura de mútuo com hipoteca, celebrada em 10/04/2008 entre a exequente e os executados CC (entretanto falecido) e mulher DD.

3 - A exequente sempre actuou de boa-fé, com base no registo do acto de aquisição e na presunção de certeza e fidedignidade que do mesmo dimana.

4 - À data do mútuo com hipoteca, a aquisição deste imóvel já se encontrava registada a favor dos mutuários/executados CC e DD desde há pelo menos seis anos, situação registral que faz supor, para além do mais, uma estabilidade que não pode ser ignorada perante olhares de terceiros, como é o caso da exequente.

5 - Já antes, concretamente no ano de 2002, o mesmo prédio havia sido dado de hipoteca à exequente, para garantia de um outro financiamento, como decore da certidão dos ónus e encargos junta com a petição de execução.

6 - Nesta sequência, este prédio foi penhorado na presente execução.

7 - No início da execução, a BB, filha dos executados veio a ser habilitada como executada nesta execução, na sequência do falecimento do executado CC em 06/11/2009, por decisão proferida em 03/05/2012 no apenso nº 126/10.2TBPCR-A.

8 - Desta decisão, a BB foi notificada em 04/05/2012 e só em 04/01/2013 a habilitada/executada BB veio deduzir Oposição à Execução e à Penhora (cfr. apenso nº 126/10.2TBPCR-B).

9 - Na oposição à execução, a executada BB alegava, entre outras coisas, que era dona do imóvel hipotecado.

10 - Esta oposição foi contestada pela exequente, que pugnou pela titularidade do bem pertencente aos executados seus pais.

11 - Designada data para a audiência final para o dia 23/10/2013, por requerimento apresentado em 18/10/2013, a oponente BB veio a desistir da instância (à qual a exequente não se opôs), desistência essa que foi homologada por decisão de 21/10/2013.

12 - A oposição à execução intentada pela BB é um meio processual suficiente para dirimir a titularidade do imóvel e ali fazer convencer a exequente e o Tribunal, tanto mais que continha todos os factos para que o tribunal pudesse decidir sobre a questão ou questões por ela suscitada.

13 - Desistindo, como desistiu, da oposição, a executada/oponente desistiu de discutir com a exequente a titularidade do imóvel de que se arrogava, abandonando um campo em que a exequente tinha a possibilidade de esgrimir os seus argumentos e contraditar a sua versão, para o Tribunal poder decidir.

14 - A consequência desta desistência é a total e absoluta ineficácia em relação à exequente da decisão invocada no despacho recorrido (decisão proferida em 25.05.2016 nos autos de acção nº 91/13.4TBPCR).

15 - E não se diga que se trata de um assunto alheio à exequente, porquanto também estava em causa um contrato de mútuo reconhecido pela BB e a hipoteca de um imóvel (portanto, um ónus, um encargo) cujo direito de propriedade pedia que lhe fosse reconhecida.

16 - Mas ainda que se considere que a BB, como habilitada, não assume a figura de executada, sempre teria de ser considerada um terceiro para efeitos de legitimidade de intentar os respectivos embargos.

17 - Os embargos de terceiro são um meio especial limitado à defesa da posse ofendida por diligência judicialmente ordenada, designadamente a penhora... visando neutralizar um acto judicialmente ordenado com a virtualidade de ofender o direito patrimonial do impetrante.

18 - A BB, enquanto terceiro, também deveria ter usado deste meio para convencer a exequente e o Tribunal da justeza da sua posição.

19 - Não o tendo feito, não o poderia exercitar fora do âmbito desta execução, em termos de poder vincular a exequente, quanto mais que esta não foi tida nem achada na acção de que o Tribunal se sustenta para proferir o despacho em crise.

20 - O direito da BB encontrava-se, assim precludido, quando veio suscitar a questão ao abrigo do disposto no artº 840º do CPC.

21 - Contrariamente ao sustentado pelo Tribunal “a quo”, é imprescindível que a exequente tivesse sido parte na acção, por ter um interesse directo no seu desfecho.

22 - Dificilmente se percebe que o Tribunal entenda que “a improcedência da acção salvaguardaria a possibilidade da exequente ser ressarcida do seu crédito pelo valor do bem hipotecado” e depois, deduza ou conclua contraditoriamente que apenas os justificantes, aqui executados, tinham interesse directo em contradizer...

23 - O Tribunal não pode esquecer que a garantia hipotecária foi celebrada com os executados com base e no pressuposto da existência de um registo de aquisição do imóvel por usucapião, registo esse lavrado mais de seis anos após esse registo, um registo imaculado nunca antes posto em causa por quem quer que fosse.

24 - Como se sabe, a usucapião é um meio legítimo de adquirir a propriedade de imóveis e, portanto, à luz de qualquer cidadão normal, não era expectável que alguém colocasse esses factos em causa.

25 - Ora, uma acção, seja de reivindicação ou de apreciação negativa, deve ser intentada, antes ou depois de efectuada a venda, mas sempre contra quem promove a penhora ou a diligência ofensiva da posse, no caso a exequente, aqui recorrente.

26 - A exequente, nomeando o bem à penhora, é que provocou a diligência contra a qual o proprietário se propõe reagir por meio da acção de reivindicação.

27 - A necessidade de intervenção da exequente e a sua legitimidade passiva para qualquer acção em que se discuta a titularidade dos bens penhorados, nomeadamente para a acção de reivindicação, é básica e manifesta, pois só assim pode constituir e formar caso julgado em relação ao exequente.

28 - De resto, a executada BB não reivindicou a titularidade do imóvel, como a lei exige (840º do CPC), limitando-se a solicitar que o Tribunal declarasse que os executados seus pais, não são os donos do imóvel penhorado.

29 - A decisão proferida na acção nº 91/13.4TBPCR é inoponível à exequente, enquanto credora hipotecária, por não ter sido parte nesta demandada, tanto mais que não há notícia de que haja sido intentada a acção a que se refere o artº 840º, nº 2 do CPC.

30 - Ao longo do processo executivo, o Tribunal tomou posições diferentes daquela que agora caucionou.

31 - Algumas vezes a BB invocou a propriedade do imóvel hipotecado para travar a execução ou a venda ou a suspensão dos embargos de executado.

32 - Em todos as decisões proferidas - em 19/07/2013, no apenso de oposição à execução, em 09/03/2016 e em 31/03/2016 nesta execução, o Tribunal foi claro que a decisão a proferir naquela identificada acção ordinária em nada interfere com a questão que se discute nestes autos.

33 - Todas essas decisões transitaram em julgado, pois a executada BB jamais reagiu contra estes despachos e foi assim que os autos e execução se foram desenvolvendo.

34 - A clareza dessas decisões e abordagem feita pelo Tribunal à posição da exequente, como credora hipotecária, não deixou quaisquer dúvidas sobre o carácter inócuo e inoperante de uma decisão a sair da referida acção nº 91/13, a qual nunca poderia afectar quem nem sequer é parte naquela acção ordinária.

35 - A posição e a boa-fé da exequente, que sempre se mostrou evidente, estavam, assim, em salvaguarda, por força dessas decisões judiciais.

36 - Ao longo de todo este tempo estabeleceu-se o “caso julgado formal”, com força obrigatória dentro deste processo, quanto à questão em apreço (artº 620º do CPC).

37 - O despacho recorrido também ofende o caso julgado ora invocado.

38 - A hipoteca, o negócio jurídico constitutivo da hipoteca, é um acto sujeito a registo.

39 - Ao invocar uma doação verbal do imóvel feita pelos seus pais (em 1993, em 1991...), a BB admite que eles eram os seus anteriores donos.

40 - Se a escritura de justificação levada a efeito pelos pais da BB ocorreu em 08 de Janeiro de 2002, tal significa que consideravam que pelo menos desde 1982 (ou seja, 20 anos antes) eram já dele donos...

41 - Saliente-se que já em Abril de 2002, os pais da executada BB haviam dado de hipoteca a favor da Caixa exequente o mesmo imóvel, como se pode constatar pela certidão respectiva dos ónus e encargos (ver Ap. 3 de 2002/04/30).

42 - É assim indubitável que os pais da BB, aqui executados, foram donos do imóvel, na sequência do qual constituíram hipoteca a favor da exequente, numa altura em que podiam fazê-lo, um vez que a aquisição do mesmo não estava posta em causa e nem sequer se imaginava que o pudesse estar.

43 - Na verdade, a constituição de um direito (que é o surgimento desse direito) implica a sua aquisição, uma vez que não há direitos sem sujeito.

44 - Ora, a constituição da hipoteca e a respectiva aceitação desse direito por parte da exequente (portanto, a aquisição desse direito), não deixa de ser um negócio jurídico, que não foi posto em causa por quem quer que fosse, inclusive pela BB.

45 - Mas enquanto o acto não é declarado nulo (no caso, a escritura de justificação), produz os seus efeitos normais como se válido fosse, como é o caso em apreço, quanto à constituição da hipoteca.

46 - Essa hipoteca deve manter-se, como se deve manter, em sede executiva, a penhora desse mesmo bem.

47 - A declaração de nulidade do acto de aquisição do imóvel por usucapião não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa-fé, como é o caso da exequente, uma vez que o registo da aquisição é anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação...

48 - Aqui o “direito adquirido” é a hipoteca, é a garantia real dada pelos executados aquando da concessão do financiamento, um acto ou um negócio que nunca foi posto em causa por quem quer que fosse.

49 - Nem a acção nº 91/13 foi proposta nos três anos posteriores à conclusão do negócio (mutuo com hipoteca) e muito menos registada nesse período.

50 - A declaração de nulidade da escritura de justificação não prejudica a garantia hipotecária e, como tal, o despacho recorrido não pode manter-se, nos termos do disposto nos artºs 291º do C. Civil e 17º do Código de Registo Predial.

51 - A declaração de nulidade ou de anulação da escritura de justificação é inoponível à exequente, por ser um terceiro de boa-fé

52 - Em nome da protecção dos legítimos interesses de terceiros (como é a exequente), dos interesses do tráfico jurídico, da fé pública e da verdade.

53 - Mostram-se violados os preceitos legais acima mencionados.

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A Apelada apresentou contra alegações concluindo pela improcedência da apelação interposta.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas é, no caso, a seguinte:

- Analisar da existência de fundamentos para o protesto da reivindicação do bem penhorado, e, designadamente, da nulidade da escritura de justificação notarial e dos efeitos daí decorrentes para o negócio constitutivo da hipoteca.

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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A- Documentalmente resultam demonstrados nos presentes autos os seguintes factos:

1- Em data não concretamente apurada mas seguramente há não menos de 22 anos, os pais da A., CC (que faleceu no dia 6 de Novembro de 2009) e DD, doaram-lhe verbalmente uma parcela de terreno, sita no lugar LL, que fazia parte dos rossios da casa onde aqueles viviam.

2- Por escritura pública de "Justificação" outorgada no Cartório Notarial de Paredes de Couta em 8 de Janeiro de 2002, a R. DD e o marido CC, declararam o seguinte: "Que são donos, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel: Prédio urbano, composto por casa de habitação, de rés do chão e primeiro andar, com rossios, sito no lugar LL, freguesia e concelho de Paredes de Coura, com a área coberta de cento e dez metros quadrados e descoberta de cento e dez metros quadrados, a confrontar cio Norte com Câmara Municipal, do Sul com caminho público e do Nascente e Poente com os proprietários, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura, inscrito na respectiva matriz, em nome do justificante marido, sob o artigo XXX, sendo que, entraram na posse e fruição deste prédio imediatamente após a doação verbal que, no ano de mil novecentos e setenta e oito, lhes fizeram EE e mulher FF, já falecidos, doação essa que não foi reduzida a escritura pública.

3- A Exequente através de escritura pública efectuada em 10/04/2008, celebrou com os Executados originários CC e mulher DD, um contrato de mútuo com hipoteca constituída sobre o “Prédio urbano, denominado "Casa de Morada", composto por casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação e rossios, sito no lugar LL, freguesia e concelho de Paredes de Coura, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura sob o número setecentos oitenta e seis e registado a seu favor (dos mutuários), conforme inscrição C-Ap. três de dezoito de Fevereiro de dois mil e dois, inscrito na respectiva matriz sob o artigo XXX.”

4- A Requerente/Executada instaurou em 2013 uma acção de processo ordinária, na Instância local de Valença - Sec. Comp. Gen.-J2, sob o n.º 91/13.4TBPCR, com a finalidade de reivindicar a propriedade do bem penhorado nos presentes autos de execução, a qual correu termos nesse Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo.

5- No âmbito dessa acção ordinária foi proferida sentença em 25.05.2016, a qual já transitou em julgado. Na qual se decidiu:

"1. Declarar impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura outorgada no dia 8 de Janeiro de 2002 no Cartório Notarial de Paredes de Coura, identificada no ponto 18 da matéria assente;

2. Ordenar o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura pública;

3. Declarar que a A. BB é dona e legítima possuidora do prédio identificado nessa escritura: "Casa de rés-do-chão e primeiro andar com rossios, sita no lugar de Coteleira, freguesia e concelho de Paredes de Coura, (..) inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXX."

6- Nessa acção foram considerados demonstrados os seguintes factos;

1. Em data não concretamente apurada mas seguramente há não menos de 22 anos, os pais da A., CC (que faleceu no dia 6 de Novembro de 2009) e DD, doaram-lhe verbalmente uma parcela de terreno, sita no lugar LL, que fazia parte dos rossios da casa onde aqueles viviam.

2. Na mesma parcela de terreno existia um anexo que se destinava a arrumos de alfaias agrícolas e guarda de animais, e também um pequeno pátio cimentado.

3. Os pais da A. doaram-lhe a dita parcela de terreno para que ela procedesse às obras necessárias para nela construir a sua moradia.

4. Assim sendo, a A. ocupou o terreno e o referido anexo com materiais e objectos seus, o que fez com o propósito de efectuar as obras necessárias para a construção da sua casa.

5. Nessa medida, como meios materiais e humanos por si custeados e angariados, começou por aumentar o anexo dotando-o de um novo espaço coberto, com a área aproximada de 14 m2, ficando o mesmo dotado de duas divisões.

6. Construiu também uma parede interior para dividir o anexo existente, de modo a construir uma casa de banho, a qual muniu com todos os móveis e louças necessários.

7. Encheu as paredes, que ainda se encontravam em bloco, e procedeu à sua pintura.

8. Passado pouco tempo construiu um andar por cima das referidas divisões, erguendo paredes interiores de modo a construir quatro divisões e um hall,

9. Procedeu também à construção da placa do tecto e do telhado, no qual se inclui o respectivo madeirame e telhas.

10. Tal como no rés-do-chão, fez também a correspondente instalação eléctrica no primeiro piso.

11. Quer no rés-do-chão, quer no primeiro andar, colocou janelas e portas.

12. Colocou o forro de madeira em três quartos e no hall de entrada.

13. Assentou em mosaico o chão dos três quartos do primeiro andar, na sala do rés-do-chão e na cozinha.

14. Procedeu ainda à pintura interior da moradia.

15. A A. despendeu quantia não concretamente apurada na aquisição do material de construção que utilizou nas obras supra descritas.

16. Todo o trabalho de construção civil foi realizado por Jaime Felgueiras, tendo os restantes sido efectuados pela própria A., por si só ou com recurso à ajuda de familiares e amigos, sendo que o valor da mão-de-obra aplicado ascendeu a montante concretamente não apurado

17. A A., desde a data referida em 1, juntamente com os seus três filhos, vem ocupando e habitando o imóvel em questão, aí tomado as suas refeições, recebendo amigos e familiares e efectuando obras de conservação e de melhoramento do mesmo, o que vem fazendo à vista e com conhecimento de todas as pessoas, sem oposição de quem quer que seja, e de forma ininterrupta, convicta de estar a exercer uni direito próprio sem prejudicar ou lesar direitos alheios, em tudo se comportando como sua legitima proprietária.

18. Por escritura pública de "Justificação" outorgada no Cartório Notarial de Paredes de Couta em 8 de Janeiro de 2002, a R. DD e o marido CC, declararam o seguinte: "Que são donos, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel: Prédio urbano, composto por casa de habitação, de rés do chão e primeiro andar, com rossios, sito no lugar LL, freguesia e concelho de Paredes de Coura, com a área coberta de cento e dez metros quadrados e descoberta de cento e dez metros quadrados, a confrontar cio Norte com Câmara Municipal, do Sul com caminho público e do Nascente e Poente com os proprietários, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes de Coura, inscrito na respectiva matriz, em nome do justificante marido, sob o artigo XXX... Que não dispõem de documento que lhes permita proceder ao registo deste prédio na referida conservatória, embora tenham entrado na posse e fruição do mesmo imediatamente após a doação verbal que, no ano de mil novecentos e setenta e oito, lhes fizeram EE e mulher FF, já falecidos,... doação essa que jamais foi reduzida a escritura pública... Que por essa posse e fruição foi adquirida e mantida sem violência e exercida sem interrupção, oposição ou ocultação de quem quer que fosse, de modo a ser conhecida por todo aquele que pudesse ter interesse em contrariá-la. Essa posse, assim mantida e exercida, foi-o sempre em seu próprio nome e interesse e traduziu-se nos actos materiais conducentes ao integral aproveitamento de todas as utilidades do prédio, designadamente habitando-o e nele fazendo obras, quando necessário. Tal posse, em nome próprio, pacífica, pública e contínua e durando há mais de vinte anos, conduziu à aquisição do dito prédio, por usucapião, que invocam, justificando, assim, o seu direito de propriedade."

19. O imóvel descrito na escritura pública antes referida corresponde à parcela de terreno e à habitação referidos em 1 e 17.

B- Foram aduzidos na decisão recorrida os seguintes fundamentos de facto e de direito:

(…)

Compulsados os autos com o n.º 91/13.4TBPCR constata-se que, por sentença já transitada em julgado, se decidiu:

1. Declarar impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura outorgada no dia 8 de Janeiro de 2002 no Cartório Notarial de Paredes de Coura, identificada no ponto em 18 da matéria assente;

2.Ordenar o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura pública;

3. Declarar que a A. BB é a dona e legítima possuidora do prédio identificado nessa escritura: “Casa de rés-do-chão e primeiro andar com rossios, sita no lugar LL, freguesia e concelho de Paredes de Coura, a confrontar do norte com Câmara Municipal, do sul com caminho público, e do nascente e do poente com Herdeiros de CC, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 910”.

O fulcro da questão nos autos é saber se os direitos adquiridos pelo Banco exequente, que decorrem da hipoteca constituída sobre o imóvel penhorado, são prejudicados em consequência do ali decidido, ou seja, por mor de o registo de aquisição desse bem a favor da executada DD e marido CC ter sido lavrado com base num título falso (cfr. artigo 16.º, alínea a), do Código do Registo Predial).

À luz do decidido na sentença proferida no processo n.º 91/13.4TBPCR não restam dúvidas que quando os supra citados executados hipotecaram o imóvel penhorado a favor do Banco exequente não tinham legitimidade para o fazer dado que dele não eram donos. De facto, só tem legitimidade para hipotecar quem possa alienar os bens onerados, de acordo com o disposto pelo artigo 715.º do Código Civil.

Nessa medida, o negócio jurídico de constituição de hipoteca sobre o imóvel em causa nos autos só opera nas relações entre os executados e o banco exequente, titular do direito hipotecário, e já não sobre o dono da coisa, sendo quanto este ineficaz, ou seja, “insusceptível de produzir efeitos sobre o seu património, tudo se passando como se não existisse operando, «ipso iure», e, portanto, aqueles podem reivindicar a coisa, directamente, do poder do «non dominus», enquanto se não operar a usucapião, a favor do mesmo, independentemente da boa fé do beneficiário do direito real de garantia, por não se justificar o sacrifício do proprietário real perante o do credor hipotecário” – cfr. Ac. do STJ de 29.03.2012, processo n.º 2441/05.8TBVIS.C1.S1, sendo que em sentido idêntico se pronunciou o Ac. do TRL de 26.02.2015, processo n.º 1257-09.7TBSCR.L1-6.

Por conseguinte, se estamos perante um caso em que o acto notarial em causa é, mais do que nulo, ineficaz relativamente ao verdadeiro dono, então não tem aplicação, numa perspectiva de eventual salvaguarda dos direitos da exequente – credora hipotecária –, o mecanismo plasmado no artigo 291.º do Código Civil, vocacionado apenas para os vícios da nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. O que aliás bem se percebe uma vez que a justificação notarial de posse nem sequer é um negócio jurídico, pois que dela não resultam obrigações para quem quer que seja.

Na verdade a justificação notarial de posse constitui simplesmente um mecanismo que visa permitir ao adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito obter a primeira inscrição no registo, segundo dispõe o artigo 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial (CRP). Ou seja, ele permite o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial e consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirma, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, sendo certo que quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião – cfr. artigo 89.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Notariado.

A finalizar cumpre destacar que, na senda dos argumentos antes explanados, é irrelevante que a exequente não tenha sido parte na acção de impugnação da justificação notarial outorgada pelos executados e impugnada pela requerente BB. Com efeito, a acção judicial de impugnação de direito justificado é uma acção declarativa de simples apreciação em que se pretende demonstrar a inexistência do direito que se visou registar através da justificação notarial, pelo que apenas tinham interesse directo em contradizer os justificantes, aqui executados, e já não a exequente, apesar de esta ter um interesse indirecto evidente na medida em que a improcedência da acção salvaguardaria a possibilidade de ser ressarcida do seu crédito pelo valor do bem hipotecado.

Em face do exposto, na medida em que os executados não são os legítimos proprietários do imóvel apreendido nos autos e melhor identificado a fls. 40, em consequência do que determino o levantamento da penhora que sobre ele incide.

(…)

Fundamentação de direito.

A propósito da questão suscitada começaremos por salientar que, de facto, como se refere na decisão recorrida, o fulcro da questão nos autos é saber se os direitos adquiridos pelo Banco exequente, que decorrem da hipoteca constituída sobre o imóvel penhorado, são prejudicados em consequência do decidido na acção n.º 91/13.4TBPCR, que anulou a escritura de justificação notarial realizada pelos Executados originários, ou seja, por virtude de o registo de aquisição desse bem a favor da executada DD e marido CC ter sido lavrado com base num título falso (cfr. artigo 16.º, alínea a), do Código do Registo Predial).

Com efeito, como também aí se refere, “à luz do decidido na sentença proferida no processo n.º 91/13.4TBPCR não restam dúvidas que quando os supra citados executados hipotecaram o imóvel penhorado a favor do Banco exequente não tinham legitimidade para o fazer dado que dele não eram donos”, pois que, “só tem legitimidade para hipotecar quem possa alienar os bens onerados, de acordo com o disposto pelo artigo 715.º do Código Civil”.

Como é consabido, a justificação notarial para o estabelecimento do trato sucessivo no registo predial, a que alude o artigo 116, do CRP, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirma, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais, sendo certo, igualmente, que, tendo sido alegada a usucapião, baseada em posse não titulada, devem mencionar-se, expressamente, as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião, em conformidade com o estipulado pelo artigo 89º, nºs 1 e 2, do Código do Notariado.

Contudo, os justificantes viram impugnado em juízo, por parte da Recorrida, o facto justificado, através de uma acção de simples apreciação ou declaração negativa, em que esta pediu a declaração de nenhum efeito da escritura de justificação notarial, em virtude de ser ela própria, e não os justificantes, a dona do prédio.

Ora, tendo-se provado que o registo de aquisição da propriedade do prédio foi lavrado, a favor dos justificantes, com base em título falso, ou seja, um título de aquisição nulo, como foi a escritura de justificação judicial de suporte ajuizada, verifica-se uma das causas da sua nulidade, atento o preceituado pelo artigo 16º, nº 1, a), do CRP, conforme foi decidido.

Em razão desta anulação da mencionada escritura de justificação notarial, considera a decisão recorrida que, atentando em que apenas terá legitimidade para hipotecar quem possa alienar os bens onerados, o negócio jurídico de constituição de hipoteca sobre o imóvel em causa nos autos só opera nas relações entre os executados e o banco exequente, titular do direito hipotecário, e já não sobre o dono da coisa, sendo quanto este ineficaz, ou seja, “insusceptível de produzir efeitos sobre o seu património, tudo se passando como se não existisse operando, «ipso iure», e, portanto, aqueles podem reivindicar a coisa, directamente, do poder do «non dominus», enquanto se não operar a usucapião, a favor do mesmo, independentemente da boa fé do beneficiário do direito real de garantia, por não se justificar o sacrifício do proprietário real perante o do credor hipotecário.

E mais considera que, se estamos perante um caso em que o acto notarial em causa é, mais do que nulo, ineficaz relativamente ao verdadeiro dono, então não tem aplicação, numa perspectiva de eventual salvaguarda dos direitos da exequente – credora hipotecária –, o mecanismo plasmado no artigo 291.º do Código Civil, vocacionado apenas para os vícios da nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico. O que aliás bem se percebe uma vez que a justificação notarial de posse nem sequer é um negócio jurídico, pois que dela não resultam obrigações para quem quer que seja.

Por decorrência destes fundamentos, conclui-se na decisão recorrida que não sendo os Executados originários os legítimos proprietários do imóvel apreendido nos autos e melhor identificado a fls. 40, deverá ser levantada a penhora que sobre ele incide.

Ora, salvo o muito e devido respeito que nos merece, não se nos afigura que este seja este o correcto enquadramento jurídico da questão em apreço nestes autos.

Com efeito a questão em apreço não se soluciona pela indagação da aplicabilidade ou não do disposto no artigo 291, do C. Civil, que tem por escopo definir a protecção do terceiro de boa fé que adquire a sua posição jurídica com base num registo desconforme por invalidade substantiva do negócio jurídico registado, demarcando as condições em que ao pseudo-adquirente pode afinal ser atribuído o direito real, em detrimento do titular verdadeiro, exigindo-se, como condição dessa aquisição pelo registo a existência de uma pseudo-aquisição, a título oneroso, de boa fé, por quem registou, antes do verdadeiro titular.

É certo que, como se afirma na decisão recorrida, se estamos perante um caso em que o acto notarial que, mais do que nulo, é ineficaz relativamente ao verdadeiro dono, não será aplicável o disposto no artigo 291.º do Código Civil, vocacionado apenas para os vícios da nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, em hipóteses de transmissões sucessivas em que o terceiro vê a validade do negócio que celebrou afectada pela invalidade de um negócio anterior.

Na presente situação, contudo, não é esta a situação mas sim, a de uma dupla constituição de direitos sobre o mesmo objecto, ou seja, em que o Exequente e a Recorrente são terceiros para efeitos de registo, ou seja, receberam do mesmo autor e sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes.

Terceiros pra efeitos de registo são assim as pessoas que, relativamente a determinado acto de alienação, adquirem do mesmo autor ou transmitente direitos total ou parcialmente incompatíveis.(1)

Como se refere no Acórdão de 8/03/2013, “Esta noção tradicional de terceiros para efeitos de registo, definida por Manuel de Andrade como «os que do mesmo autor ou transmitente recebem sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente incompatíveis», havia sido contestada por parte da doutrina e da jurisprudência, que pretendeu dar-lhe um sentido mais abrangente ao considerar terceiro aquele que tem a seu favor um direito que não pode ser afectado pela produção dos efeitos de um acto que não está no registo e que com ele seja incompatível.

O que se tornou controverso foi saber se os terceiros eram apenas os titulares de direitos incompatíveis provindos do mesmo transmitente ou todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente, ou ainda numa posição intermédia, apenas os que adquirem a título oneroso e de boa fé, ou seja, com desconhecimento da aquisição conflituante.

Ao conceito restrito de «terceiros» perfilhado por Manuel de Andrade e Orlando de Carvalho ("Terceiros para efeito de Registo", Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LXX, pág. 97 e ss), foi sendo oposto um conceito amplo defendido por Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª Ed., em comentário ao n.º 4 do artigo 819; Anselmo de Castro, A Acção Executiva, Singular, Comum e Especial, 3ª Ed. pág. 161); Carlos Ferreira de Almeida ("Publicidade e Teoria dos Registos", Coimbra, 1966); Oliveira Ascensão ("Direitos Reais", pág. 409 e ss e "Efeitos substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa", pág. 29/30); Menezes Cordeiro (Direitos Reais – Sumários, 1984/1985, pág. 55);

Os Prof.s Antunes Varela e Henrique de Mesquita (in "Revista de Legislação e de Jurisprudência", em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 1992, Anos 126 e 127º, pág. 374 e segs e 19 e segs.), defendem que «terceiros» "são não só aqueles que adquiram do mesmo alienante direitos incompatíveis, mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos jurídicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, etc.) de que tais direitos resultam.".

Entendimento semelhante foi o defendido por Vaz Serra (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103, pág. 105, onde se escreveu que "A noção de terceiro em registo predial é a que resulta da função do registo, do fim tido em vista pela lei ao sujeitar o acto a registo, e, pretendendo a lei assegurar a terceiros que o mesmo autor não dispôs da coisa ou não a onerou senão nos termos que constarem do registo, esta intenção legal é aplicável também ao caso da penhora, já que o credor que fez penhorar a coisa carece de saber se esta se encontra, ou não livre, livre e na propriedade do executado.".

A jurisprudência também acompanhou esta oscilação, adoptando numa primeira fase o conceito restrito de terceiros (cfr. Ac. STJ de 8/12/1988, in B.M.J., n.º 382, pág. 463); numa segunda fase um conceito amplo (cfr. ac. do STJ, de 18/5/1994, in Colectânea de Jurisprudência, Ano II, tomo 2, pág. 1139); e por fim, regressou ao conceito restrito (cfr. ac. do STJ de 30/6/2011, rec. nº 91-G/1990.P1.S1).

As divergências na jurisprudência foram uniformizadas pelo STJ por duas vezes, mas em sentido diferente: (i) no acórdão nº 15/97 de 20 de Maio (publicado no DR I série de 4/7/1997) considerou-se que «terceiros para efeitos de registo predial são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito a ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente»; (ii) no acórdão nº 3/99 de 18/5/99 (publicado no DR I Série, de 10/7/1999, reviu-se a doutrina daquele acórdão e formulou-se um acórdão unificador de jurisprudência do seguinte teor: «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código de Registo Predial, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa».

Este último acórdão uniformizador foi assumido normativamente pelo referido DL nº 533/99 que veio interpretar autenticamente e de forma restritiva o conceito de terceiros para fins de registo, pelo que se exige a sua observância por imposição do disposto nº 1 do artigo 13º do C.Civil(2).

O Código do Registo Predial, influenciado por aquele acórdão de fixação de jurisprudência, apresenta a seguinte definição de terceiros:

São aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Ora, na presente situação, com relevância para o esclarecimento da questão que nos ocupa, resultou demonstrado o seguinte:

- Em data não concretamente apurada mas seguramente há não menos de 22 anos, os pais da A., CC (que faleceu no dia 6 de Novembro de 2009) e DD, doaram-lhe verbalmente uma parcela de terreno, sita no lugar LL, que fazia parte dos rossios da casa onde aqueles viviam.

- Por escritura pública de "Justificação" outorgada no Cartório Notarial de Paredes de Couta em 8 de Janeiro de 2002, a R. DD e o marido CC, declararam o ser donos, com exclusão de outrem, do aludido imóvel, tendo entrado na posse e fruição deste prédio imediatamente após a doação verbal que, no ano de mil novecentos e setenta e oito, lhes fizeram EE e mulher FF, já falecidos, doação essa que não foi reduzida a escritura pública.

- A Exequente através de escritura pública efectuada em 10/04/2008, celebrou com os Executados originários CC e mulher DD, um contrato de mútuo com hipoteca constituída sobre o mesmo prédio, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 910.”

- A Requerente/Executada instaurou em 2013 uma acção de processo ordinária, na Instância local de Valença - Sec. Comp. Gen.-J2, sob o n.º 91/13.4TBPCR, com a finalidade de reivindicar a propriedade do bem penhorado nos presentes autos de execução, a qual correu termos nesse Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo.

- No âmbito dessa acção ordinária foi proferida sentença em 25.05.2016, a qual já transitou em julgado e na qual se decidiu, designadamente, declarar impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura outorgada no dia 8 de Janeiro de 2002 no Cartório Notarial de Paredes de Coura, identificada no ponto 18 da matéria assente e declarar que a A. BB é dona e legítima possuidora do prédio identificado nessa escritura, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 910."

Ora, daqui resulta que, os Executados originários CC e mulher DD, há, pelo menos, 22 anos (com relação à data de instauração da referida acção, ou seja, em 1991, ou em data anterior) doaram verbalmente à Recorrida o prédio penhorado, sendo que, os mesmos Executados, por escritura pública de "Justificação" outorgada em 8/01/2002, declararam ser donos desse prédio, por lhe ter sido doado verbalmente, no ano de 1978, após o que, com fundamento no registo da propriedade efectuado com base nessa escritura de justificação, através de escritura pública celebrada em 10/04/2008, os mesmos Executados, celebraram com o Exequente um contrato de mútuo, tendo constituído hipoteca sobre o prédio penhorado nos autos e que, como se disse, previamente tinham doado verbalmente à Recorrida.

Em 2013, a Requerente/Executada instaurou a acção de processo ordinária, na Instância local de Valença - Sec. Comp. Gen.-J2, sob o n.º 91/13.4TBPCR, com a finalidade de anular a aludida escritura de justificação notarial e reivindicar a propriedade do bem penhorado nos presentes autos, alegando como fundamento a aludida doação verbal dos Executados, a qual veio a ser julgada procedente com a consequente anulação da escritura de justificação.

Ora, como é sabido, o artigo 5, nº 1, do Código de Registo Predial, não tem por escopo fazer depender a oponibilidade do direito real da prévia inscrição registral da aquisição a favor do seu titular, tendo antes por objectivo proteger o terceiro que, confiado na aparência de uma situação registral desconforme à realidade substantiva, celebra um negócio jurídico inválido com o titular inscrito e regista a sua aquisição.

Portanto, aquela norma tem por único campo de aplicação os casos em que um facto sujeito a registo não foi registado, provocando uma desconformidade do registo predial com a ordem ou realidade substantiva subjacente, e a sua finalidade é proteger o terceiro que pratica um negócio jurídico de aquisição de um direito real com aquele que figura no registo como seu titular, embora realmente não o seja.

Este negócio jurídico encontra-se ferido de nulidade, provocada pela ilegitimidade do disponente; no entanto, por força da fé pública que o registo predial inculca, verificados certos pressupostos, protege-se o terceiro que registou a sua aquisição.

Essa protecção só é disponibilizada aos terceiros, que, como se deixou dito, são apenas aqueles que tenham adquirido do autor comum direito total ou parcialmente conflituantes entre si.

Reportando à situação vertente, dúvidas não restam assim de que, quando constituíram a hipoteca, os Executados originários já tinham doado o prédio sobre o qual ela incidiu há, pelo menos, 14 anos, à Recorrida, pelo que, dúvidas se não podem igualmente suscitar de que a hipoteca constituída integra um direito conflituante com o direito de propriedade da Recorrida, pois que, ambos foram constituídos pelo mesmo autor, «causante» ou «transmitente», exigência imprescindível para ser considerado terceiro na acepção referida.

Na verdade, segundo o conceito restrito referido, apenas não são terceiros os adquirentes por causa diversa de um acto dispositivo (alienação ou oneração) do titular anterior da inscrição registral, o que na presente situação assim não sucede, já que é por acto do anterior titular anterior - que adquiriu o prédio por doação verbal no ano de 1978 -, que é transmitida a propriedade do prédio, através de doação verbal, para a Recorrida/Requerente, em 1991 (ou até em data anterior), bem como, que também é constituída a hipoteca em 2008, para garantia do mútuo em referência nos autos.

Destarte, sendo a hipoteca um acto voluntário do Executado, que foi constituído e, logo, também registado, em 2008, ou seja, cerca de cinco anos antes da interposição da acção (instaurada em 2013) que anulou a escritura de justificação notarial, celebrada em 2002, que tinha servido de fundamento ao registo da propriedade do imóvel em nome dos Executados originários, e com fundamento no qual foi constituída a hipoteca, indubitável resulta que o credor hipotecário está abrangido pela protecção conferida pela prioridade registral estabelecida no nº 4, do artigo 5º do CRP, não lhe sendo oponível o facto de ter constituído o seu direito com fundamento num registo que foi anulado, por existência de uma situação registral desconforme com a realidade jurídica subjacente, já que a Recorrida, titular do direito de propriedade, apenas instaurou a acção de anulação em 2013, vindo a anular a aludida escritura de justificação e a registar a sua aquisição posteriormente, ou seja, muitos anos depois de constituída e regista a hipoteca.

E assim sendo, produzindo os factos sujeitos a registo os seus efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, tendo o Recorrente obtido registo da hipoteca sobre o prédio, esse direito não pode ser arredado por um qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente, como sucedeu com a aquisição da propriedade por parte da Requerente.

A inoponibilidade a terceiros do direito não inscrito supõe, pois, como única exigência, que o transmitente ou causante seja o mesmo, pois que, como salienta Orlando de Carvalho, citando Coviello, “quem pretende ser preferido em virtude da transcrição a que procedeu deve encontrar-se em conflito com alguém que adquiriu do mesmo causam dans. Se são diversos os autores, um será proprietário e o outro não. Ora quem não tinha o poder de dispor nada podia transmitir e aquele que com ele contratou nada podia obter, de acordo com o conhecido princípio “nemo plus juris transferre potest quam ipse habet”. O conflito não poderá então decidir-se com base na prioridade da transcrição, mas segundo a pertença ou não do domínio aos respectivos autores”.(3)

E, continua o mesmo autor, o registo tem como características ser um registo de aquisições e não de pessoas, facultativo e declarativo, sendo que, “quem adquiriu a domino, ainda que não tenha transcrito, é sempre preferido a quem adquire a non domino, se bem que o seu título se torne público. O que importa, em suma, é realçar que terceiros são apenas os que estão em conflito entre si, o que só se verifica quando o direito de um é posto em causa pelo outro. Pressupõe isto que o transmitente ou causante é o mesmo, pois, não o sendo, só um dos adquirentes é a domino e o direito do outro, mais do que afectado pelo direito daquele, é afectado pelo não direito do seu tradens”.(4)

Como ensinaram Antunes Varela e Henrique Mesquita, “o registo destina-se a facilitar e a conferir segurança ao tráfico imobiliário, garantindo aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, não existem outros direitos senão os que o registo documento e publicita. Os direitos não inscritos no registo devem ser tratados como direitos 'clandestinos', que não produzem quaisquer efeitos contra terceiros”.(5)

Para os defensores de irrelevância da boa ou má-fé, a segurança, celeridade e fluidez do comércio jurídico sobrepõe-se à ideia da justiça da boa ou má-fé.

Neste sentido, Mota Pinto, afirma que “a segurança que se pretende garantir ao comércio jurídico seria fortemente afectada, se o terceiro, adquirente de quem tem um prédio registado a seu favor, ficasse exposto às delongas, às incertezas, aos gastos, eventualmente manobras inerentes a processos judiciais tendentes a provar que ele conhecia uma alienação anterior”. Além do mais, continua o autor, “só a inoponibilidade de actos não registados a terceiros, mesmo que de má-fé, motivará os interessados a promover o registo”.(6)

Tal como está consagrada a norma do artigo 5º, a boa-fé deve-se considerar irrelevante e proteger aqueles que usam da má-fé para ultrapassar aqueles que, por incúria, negligência, desleixo ou até mesmo desconhecimento não cumpriram o seu dever de registar.

Aplicando esta doutrina ao caso dos autos, verifica-se que, quando a hipoteca foi constituída, embora os Executado originários não fossem donos do imóvel hipotecado, o certo é que a recorrida, adquirente desse imóvel, não pode opor o seu direito de propriedade ao credor hipotecário, uma vez que o seu registo foi efectuado posteriormente ao da hipoteca.

E assim, sendo, na procedência da apelação, decide-se revogar a decisão recorrida, e, em consequência, manter a penhora do imóvel, determinado o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida, mantendo-se a penhora do imóvel e determinando-se o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.

Custas pela Recorrente.

Guimarães, 20/ 04/ 2017.

Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.

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Jorge Alberto Martins Teixeira

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José Fernando Cardoso Amaral.

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Helena Gomes de Melo.

1. Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 19.
2. Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 08/03/2013, proferido no processo nº 0389/13, in www.dgsi.pt.
3. Cfr. Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos do registo», in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXX, 1994, pgs. 98 e 99 e 102.
4. Cfr Orlando de Carvalho, ob cit., pg 102.
5. Cfr. Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.º, p. 23
6. Cfr. Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4º Ed. (reimp.), Coimbra Editora, Coimbra, 2012, pp. 368.