Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
149/15.5PBCHC.G1
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
OMISSÃO DE FACTOS
NULIDADE DE CONHECIMENTO OFICIOSO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECRUSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães
Relatório

No âmbito dos autos com o NUIPC nº149/15.5PBCHV, por decisão de 5 de Setembro de 2016, foi decidido declarar nula a acusação particular deduzida, nos termos do art.º 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP, determinando-se a sua rejeição, por ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) e c) do CPP e não admitir o pedido de indemnização civil deduzido.

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Inconformado com o assim decidido, recorreu o assistente Duarte Manuel Nogueira Sousa, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

- O Recorrente acusou particularmente MARGARIDA AFONSO SOUSA pela prática de um crime furto simples P. e P. pelo artigo 203.º do Código Penal.

- Sucede porém que o Meritíssimo Juiz A Quo rejeitou a acusação particular declarado-a nula nos termos do Artigo 283.º n.º 3 al. a) do C.P.P. e tendo sido determinado pelo Meritíssimo Juiz A Quo a sua rejeição por ser manifestamente infundada nos termos do Artigo 311.º n.º 2 al. a) e n.º 3 al. b) e c. do C.P.P..

- E fundamentou essa nulidade na falta de preenchimento do elemento subjetivo do crime mais concretamente por a sobredita acusação particular ser omissa “quanto ao facto de a arguida ter agido com intenção de fazer suas as quantias monetárias que levantou da conta titulada pelo Recorrente e que agia contra a vontade deste, representando-o como consequência necessária ou eventual da sua conduta e neste ultimo caso se tivesse conformado com tal resultado” .

- Por não concordar com a decisão do Meritíssima Juiz A Quo veio o Recorrente interpor o presente recurso.

- Entende o Recorrente, que não é indispensável alegar na acusação o elemento específico do dolo, se está em causa um facto que todos sabem constituir um crime, facto esse que atualmente, no seio de uma sociedade civilizada e moderna é absolutamente básico.

Todavia,

- Quando o recorrente menciona que a Arguida agiu “ contra a vontade do Assistente, a Arguida subtraiu o cartão multibanco do Recorrente, apoderou-se de somas em dinheiro, sem para tal estar autorizada, A arguida sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei, no entanto, não se coibiu de levá-la a cabo de forma deliberada, livre e consciente” preencheu de forma manifestamente suficiente o elementos subjetivo do tipo legal de crime em causa.

- Não podem restar dúvidas de que se encontram preenchidos, na acusação particular, os elementos subjetivos do crime de furto alegadamente em falta.

- Ao rejeitar a acusação deduzida nestes autos por a considerar manifestamente infundada, violou o Meritíssima Juiz A Quo o disposto no Art.º 311º, n.º 2, e 3, do C. P. Penal.

- Outra deveria ter sido a decisão do Meritíssimo Juiz A quo, no sentido de aceitar a acusação particular do Recorrente e respetivo pedido indemnizatório.

Nestes termos requer-se a V.ª Exas. que concluam pela procedência do presente recurso e, em consequência, pela revogação do despacho recorrido na parte em que rejeitou a acusação particular e pedido de indemnização deduzido, decidindo, em substituição, que não se verifica fundamento para a rejeição da mesma, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos até final pois só assim farão V.ª Exas. sua tão acostumada JUSTIÇA.

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Foi admitido o recurso e fixado o respetivo regime de subida e efeito.

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Ao recurso respondeu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

A) Num processo penal de estrutura acusatória, é a acusação que define o âmbito da vinculação temática do tribunal, bem como o âmbito do exercício do direito de defesa pelo acusado;

B) A acusação, in casu, particular, tem e deve descrever os elementos objetivos da ação típica e a sua imputação dolosa ao acusado;

C) Vista a acusação particular deduzida pelo assistente, constatamos, salvo melhor entendimento, que a mesma apenas procede à imputação objetiva de factos susceptíveis de integrarem o crime de furto, sem referência, específica, à representação e vontade da arguida;

D) A acusação particular deduzida é omissa quanto à arguida ter agido com a intenção de fazer suas as quantias monetárias que levantou da conta bancária titulada pelo assistente, seu pai, e que agia contra a vontade deste, representando-o como consequência necessária ou eventual da sua conduta e neste último caso se tivesse conformado com tal resultado;

E) Sucede que, no crime de furto de que nos ocupamos, para além de um dolo genérico, exige-se um dolo específico;

F) O agente tem de atuar com ilegítima intenção de apropriação da coisa móvel alheia, para si ou para terceiro, integrando-a na sua esfera patrimonial, sabendo que a coisa é alheia, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada;

G) Não é admissível a presunção do dolo com recurso à factualidade objetiva, nem pode proceder a alegação do recorrente de que toda a sociedade civilizada sabe que é proibido furtar e, nesta decorrência, a arguida também o sabia;

H) A acusação particular apresentada pelo assistente é nula, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 283.º, n.º3, al. b) e 285.º, n.º3, ambos do C.P.P., pelo que deverá manter-se, in totum, o despacho judicial recorrido, de rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, com o consequente arquivamento dos autos.

Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se, in totum, o despacho recorrido.

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A arguida não respondeu ao recurso interposto.

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No Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não houve resposta ao Parecer.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos à conferência.

Cumpre decidir.

-

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

No caso sub judice a questão suscitada pela recorrente e que, ora, cumpre apreciar, traduz-se em saber se deve ser revogado “o despacho recorrido na parte em que rejeitou a acusação particular e pedido de indemnização deduzido.

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No Processo acima identificado foi proferido, em 5 de Setembro de 2016, o seguinte despacho, que se transcreve:

(…)

Autue como processo comum, com intervenção do Tribunal Singular.

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O Tribunal é competente.

O processo é o próprio.

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Oportunamente notificado para o efeito, nos presentes autos, deduziu o assistente DUARTE MANUEL NOGUEIRA SOUSA contra a arguida MARGARIDA AFONSO SOUSA, sua filha, acusação particular, a fls. 82 e ss.

Importa, uma vez que os presentes autos não foram sujeitos a instrução, verificar se a acusação aqui deduzida contra a arguida deve ou não considerar-se manifestamente infundada.

Nos termos do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), «[r]ecebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer» (n.º 1). No caso de o processo ter sido «remetido para julgamento sem ter havido instrução», despacha, ainda, no sentido: «a) [d]e rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada» ou «b) [d]e não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos dos artigos 284.º, n.º 1, e 285.º, n.º 3, respectivamente» (n.º 2). Para tanto, «a acusação considera-se manifestamente infundada: a) [q]uando não contenha a identificação do arguido; b) [q]uando não contenha a narração dos factos; c) [s]e não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) [s]e os factos não constituírem crime» (n.º 3).

In casu, entendemos que a referida acusação particular é omissa relativamente a alguns factos atinentes ao elemento subjectivo do imputado crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1 do Código Penal.

No que concerne ao princípio do acusatório, e assumindo este especial relevância, cumpre atender ao estatuído no n.º 5 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, que remete para o princípio do acusatório ao determinar que “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do acusatório”.

Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada ( 3ª Edição, pág. 205-206) “O princípio do acusatório na sua essência significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também um órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição, pág. 205-206)”.

Na realidade, o que perpassa da redacção da al. b) do n.º 3 do art. 283.º do CPP é que a acusação tem de conter expressamente os factos relevantes para a imputação do crime e a determinação da espécie e da medida da sanção.

Relativamente aos elementos do tipo subjectivo, este tipo legal de crime (furto) é punível apenas a título de dolo, tal como resulta do disposto no artigo 13º do Código Penal.

Porém, para além do dolo genérico, nas suas modalidades de dolo directo, necessário ou eventual consagradas no artigo 14º do Código Penal, exige-se um dolo específico, ou seja, que o agente actue com ilegítima intenção de apropriação da coisa móvel alheia. para si ou para terceiro, integrando-a na sua esfera patrimonial, sabendo que a coisa é alheia contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada.

Destarte, como bem nota o Ministério Público, a presente acusação particular deduzida é omissa quanto ao facto de a arguida ter agido com intenção de fazer suas as quantias monetárias que levantou da conta bancária titulada pelo assistente e que agia contra a vontade deste, representado-o como consequência necessária ou eventual da sua conduta e neste último caso se tivesse conformado com tal resultado.

Seguimos o entendimento expresso no recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 1/2015 – D.R. n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27.

«A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

No mesmo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência refere-se ainda que:

“Em conclusão: a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.

O problema da relevância ou pouco significativa relevância axiológica da conduta, aflorado no acórdão recorrido, tem relevo, como vimos atrás, em sede de conhecimento da proibição, ou seja, dos elementos do tipo legal, quando seja razoavelmente de exigir o seu conhecimento para uma correcta orientação da consciência ética do agente no sentido do desvalor do facto.

De forma alguma será admissível que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objectivos, com «recurso á lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum» (Acórdão recorrido).

Tal equivaleria a conceptualizar o dolo como emanação da própria factualidade objectiva, ou como inerente a essa factualidade, um dolus in re ipsa, que o mesmo Autor que se vem citando repudia vivamente como ultrapassado, nos moldes das antigas “presunções do dolo”. Isto, porém, não é impeditivo de «o juiz comprovar a existência do dolo através depresunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência» (FIGUEIREDO DIAS, «Ónus De Alegar E De Provar Em Processo Penal?», Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3474. P. 142).”

Como doutamente se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 6.06.2012, Relator: à altura Desembargador Melo Lima, in www.dgsi.pt:

“I - A estrutura acusatória do processo penal obriga a que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados, seja na acusação, seja no requerimento de abertura da instrução equivalente a acusação.

II - Para se afirmar o elemento intelectual do dolo, não basta que o agente tenha conhecido ou representado todos os elementos do tipo legal de crime, mas é ainda necessário que tenha tido conhecimento do seu sentido ou significado, isto é, que tenha actuado com consciência da ilicitude.

III - A partir do momento em que a lei deixou de presumir o conhecimento da lei incriminadora, e sendo a consciência da ilicitude essencial para a punibilidade do facto, a existência dessa consciência tem de ser objecto de acusação e de prova e, portanto, faz parte também do objecto do processo.”

Segundo o disposto no artigo 283.º, n.º 3, b), do CPP, a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

“A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo” 1.

Pelo que, se conclui que a acusação deduzida, enferma das nulidades previstas no artigo 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP.

A omissão de alguma das formalidades impostas no art. 283.º n.º 3 do CPP é cominada com a nulidade.

Face ao aditamento do n.º 3 do art. 311.º do CPP operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no art. 283.º, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do Tribunal , não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.

Estatui o art.º 311.º, n.º 2, al. a), que a acusação é rejeitada se for considerada manifestamente infundada, concretizando o n.º 3 do mesmo preceito, na parte que releva para o caso concreto, que a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a narração de todos os factos.

Assim, os vícios apontados terão como consequência, não a anulação do acto inválido e de todos os subsequentes que dele dependem, nos termos do art. 122.º do CPP, mas sim a rejeição da acusação, com o consequente arquivamento do processo.

Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 30/01/2007, proc. n.º 10221/2006-5, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º n.º 5 do CRP), o tribunal – leia-se o juiz – na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido”.

Face ao exposto, declara-se nula a acusação particular deduzida, nos termos do art.º 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP, determinando-se a sua rejeição, por ser manifestamente infundada, nos termos do disposto no art.º 311.º n.º 2, al. a) e n.º 3, al. b) e c) do CPP e não se admite o pedido de indemnização civil deduzido.

Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça pelo assistente, no mínimo legal, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário, nos termos do art.º 515.º, n.º 1, al. f) do CPP.

Notifique.

Dê baixa.

(…)”.

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Apreciando

A fls.82 a 84, o assistente deduziu acusação particular contra a arguida nos seguintes termos (transcrição):

“ 1. O assistente é um homem educado, sensível, recatado, humilde pouco instruído e pastor de profissão.

2. Sem que nada o fizesse prever, e contra a vontade do Assistente, a arguida subtraiu o cartão multibanco do Assistente, cartão esse associado à conta bancária do Assistente no Banco Millennium BCP com o nº5180600031.

3. A Arguida sabia perfeitamente qual o código do referido cartão pois a par do seu pai, Assistente nos autos ninguém mais era conhecedor.

4. Sabia que esse código eram os quatro primeiros dígitos do número de contribuinte do Assistente.

5. Sucede que entre os dias 12 a 20 de Janeiro de 2015 a Arguida, apoderou-se de somas em dinheiro provenientes da conta bancária do Assistente tendo procedido ao seu levantamento nas mais diversas caixas ATM da cidade de Chaves.

6. Contra a vontade do Assistente.

7. Sem para tal estar autorizada, a Arguida procedeu ao levantamento da conta do Assistente €1.340,00,

8. A saber,

a)€150,00 em 12-1-2016;

b) 150,00 em 12-1-2016;

c)40,00 em 11-1-2016;

d)100, em 11-1-2016;

e) 100, em 11-1-2016;

f)150, em 11-1-2016;

g)100, em 14-1-2016;

h)150, em 14-1-2016;

i)150, em 14-1-2016;

j)150, em 20-1-2016;

k)100, em 20-1-2016;

l)€15,00 em 20-1-2016 destinado ao carregamento de uma placa de banda pertencente à Arguida.

9. Todas as quantias retro identificadas somadas ascendem a €1.355,00.

10. É portanto de €1.355,00 o prejuízo causado pela Arguida ao assistente a título de danos patrimoniais.

11. A arguida sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei.

12. No entanto, não se coibiu de levá-la a cabo de forma deliberada, livre e consciente.

13. Com a prática dos factos descritos, cometeu a arguida um crime de furto simples P. e P. pelo artigo 203º do Código Penal.”

O Ministério Público, como resulta de fls.86 a 88, não acompanhou a acusação por esta ser “(…) omissa quanto a o arguido ter agido com intenção de fazer suas as quantias monetárias que levantou da conta bancária titulada pelo assistente e que agia contra a vontade deste, representando-o como consequência necessária ou eventual da sua conduta e neste último caso se tivesse conformado com tal resultado.

É assim patente que a acusação particular não contém qualquer descrição de elementos fácticos susceptíveis de integrar os elementos do tipo subjectivo do crime, os quais tinham de constar da acusação particular sob pena de nulidade e de ser manifestamente infundada.

Acresce que o suprimento de tal omissão pelo Ministério Público, consistindo no aditamento de factos essenciais para se verificar preenchido o tipo de crime, configura uma alteração substancial, estando assim vedada.

Deste modo, por ser a acusação particular apresentada nula, nos termos do disposto no artigo 283º, nº3, al.b) do CPP, deve ser rejeitada e não é acompanhada pelo Ministério Público.”

Vejamos:

Nos termos do artigo 32.º da Constituição Política da República Portuguesa:

1 - O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

(...)

5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

Isto significa que a acusação e o julgamento têm que estar sedeados em órgãos diferentes: em ordem a conciliar o interesse público da perseguição criminal e as exigências da imparcialidade, isenção e objetividade do julgamento, a investigação e acusação, por um lado, e o julgamento, por outro, terão que caber a entidades diferentes. Quem acusa não julga e quem julga não pode acusar.

Deste mesmo princípio decorre outra consequência: a de o poder de cognoscibilidade do juiz estar delimitado pelo conteúdo da acusação, sendo esta que determina o objeto do processo. É o chamado princípio da vinculação temática.

"O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.

O princípio da acusação não dispensa, antes exige, o controlo judicial da acusação de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, já de si, um incómodo muitas vezes oneroso e não raras vezes um vexame. Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)." () J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522).

Nos termos do artigo 285º, nº3 do Código de Processo Penal resulta que é correspondentemente aplicável à acusação particular o disposto no artigo 283º, nºs 3 e 7 do mesmo Código, sendo que nos termos da alínea b), do nº3 do artigo 283º a acusação contem, sob pena de nulidade, os factos relevantes para a imputação do crime.

Desta forma, são lógicas as exigência de conteúdo constantes dos preceitos acima referidos, na medida em que são impostas pela evidente premência, naquele contexto, de demarcar os factos concretos suscetíveis de integrar o ilícito que o assistente pretende indiciado.

“… regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos: - um, inerente ao objectivo imediato (….): a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados); - e, outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a esta a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.” (Ac. RL de 19/10/2006, Rec. 7143.06, 9ª Secção).

Revertendo ao caso dos autos:

Relativamente aos elementos do tipo subjetivo, o tipo legal de crime de furto é punível apenas a título de dolo, exigindo-se, porém, um dolo específico, isto é, que o agente atue com ilegítima intenção de apropriação da coisa móvel alheia, para si ou para terceiro, integrando-a na sua esfera patrimonial, sabendo que a coisa é alheia e contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada.

Ora, atentando na acusação particular deduzida pelo assistente resulta que é imputada à arguida um crime de furto, sendo porém, tal acusação, omissa quanto ao facto de a arguida ter agido com intenção de fazer suas as quantias monetárias que levantou da conta bancária titulada pelo assistente e que agia contra a vontade deste, representando-o como consequência necessária ou eventual da sua conduta e neste último caso se tivesse conformado com tal resultado, o que só por si gera a nulidade da acusação particular nos termos do aludido artigo 283º, nulidade de conhecimento oficioso, porquanto, face ao aditamento do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, operado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, os vícios estruturais da acusação passaram a sobrepor-se às nulidades previstas no artigo 283.º, do mesmo diploma, e converteram-se em matéria sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal, não estando, portanto, dependente de arguição por parte dos sujeitos processuais.

E tal nulidade determina a sua rejeição, por ser manifestamente infundada, atento o disposto no art.311º, nº2, al.a) e nº 3, als.b) e c), do CPP.

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Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em :

- Negar provimento ao recurso interposto pelo assistente Duarte Manuel Nogueira Sousa, mantendo a decisão recorrida.

- Condenar o recorrente em custas, fixando-se em 3 Uc a taxa de justiça.

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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Guimarães, 6 de Fevereiro de 2017

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Laura Goulart Maurício

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Alda Tomé Casimiro