Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
121/15.5GAVFL.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS DO CRIME
MAUS TRATOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/04/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal, nas suas vertentes física, psíquica e mental, e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.

II) Embora o tipo legal abranja ações típicas que já encontram previsão noutros tipos legais, o seu fundamento deve ser encontrado na proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal, vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas, sendo, pois, o enfoque colocado na situação relacional existente entre agressor e vítima.

III) O verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual, reside no facto de o tipo legal prever e punir condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.

IV) No caso dos autos, a caracterização de uma posição de dominação e de prevalência do arguido sobre a vítima, com a consequente subjugação desta, resulta suficientemente caracterizada em face da reiteração de maus tratos psíquicos, traduzidos em sofrimento moral, derivado das múltiplas injúrias e ameaças de morte, com foros de seriedade, nomeadamente com alusão a armas de fogo, sendo o arguido efetivamente possuidor de quatro armas dessa natureza, proferidas através do telefone e também pessoalmente, tendo-se demonstrado que a ofendida, para além do vexame, humilhação e constante sobressalto sofridos, ficou amedrontada, intimidada, insegura e intranquila, a ponto de ver prejudicada a sua liberdade de decisão e de ação, por recear que o arguido concretizasse as ameaças e atentasse conta a sua vida e integridade física.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em audiência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 121/15.5GAVFL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, no Juízo de Competência Genérica de Vila Flor, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (transcrição [1]):

«VI. Dispositivo

Termos em que:

1. Condeno o arguido L. V. pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º, n.º 1, al.a) e al.c), n.º 4 e n.º 5, todos do Cód. Penal, aplicando-lhe a pena de dois anos e oito meses de prisão;
2. Suspendo a execução da pena de prisão por idêntico período subordinada à seguinte condição:
a. sujeição a um programa específico de prevenção de violência doméstica, o qual deverá incidir especificamente sobre a consciencialização da ilicitude da sua conduta, o controlo da agressividade e o aprender a gerir mais adequadamente as suas emoções em situação familiar (arts. 53º, 54º e 152º, n.º 4 do Cód. Penal;
3. Condeno o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante um período de tempo equivalente ao da suspensão da pena de prisão (art. 152º, n.º 4 do Cód. Penal).
4. Em sede de pedido de indemnização civil, condeno o arguido a indemnizar a ofendida na quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não-patrimoniais ocasionados com a sua conduta.
*
Custas criminais pelo arguido, as quais se fixam em 2UC (art. 513º, n.º1 do Código de Processo Penal).
Custas cíveis pelo arguido (art. 527º, n.º 2 do Código Civil)
*
Remeta boletim à D.S.I.C (art. 6º, al.a) da Lei n.º 37/2015).
*
Registe e deposite (art. 373º, n.º 2 e art. 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal).»

2. Inconformado com essa condenação, o arguido recorreu da sentença, formulando as seguintes conclusões (que embora pela sua excessiva extensão se afastem claramente do que é legalmente previsto e desejável - um resumo das razões do pedido -, ainda assim se opta por transcrever integralmente):

«CONCLUSÕES:

I O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos, que condenou o recorrente:

1. […] pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º, n.º 1, al.a) e al.c), n.º 4 e n.º 5, todos do Cód. Penal, aplicando-lhe a pena de dois anos e oito meses de prisão;
2. Suspen[dendo] a execução da pena de prisão por idêntico período subordinada à seguinte condição:

a. sujeição a um programa específico de prevenção de violência doméstica, o qual deverá incidir especificamente sobre a consciencialização da ilicitude da sua conduta, o controlo da agressividade e o aprender a gerir mais adequadamente as suas emoções em situação familiar (arts. 53º, 54º e 152º, n.º 4 do Cód. Penal;
3. Conden[ando] o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante um período de tempo equivalente ao da suspensão da pena de prisão (art. 152º, n.º 4 do Cód. Penal).
4. Em sede de pedido de indemnização civil, conden[ando] o arguido a indemnizar a ofendida na quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não-patrimoniais ocasionados com a sua conduta.”.

II – Do erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP)

III – Em primeiro lugar, e de acordo com o facto provado n.º 27., constante da sentença ora recorrida, resulta o seguinte: “O arguido pretendeu amedrontar e intimidar J. F. com o anúncio da prática, no futuro, de atos atentatórios da sua vida e integridade física, o que conseguiu e se revelou adequado a provocar-lhe sentimentos de insegurança, intranquilidade e de medo, prejudicando a sua liberdade individual de decisão e de ação.”. (negrito e sublinhado nossos).

IV – Sucede, porém, que do facto não provado n.º 34, decorre exatamente o contrário, atentemos: “Que J. F. tenha passado a evitar locais, trajetos e situações em que previsse a presença do requerido e a evitar comportamentos que previsivelmente o enfurecessem, ficando limitada, de forma continuada, na sua liberdade de agir e de se deslocar.”. (negrito e sublinhado nossos).

V – O erro notório na apreciação da prova é um vício da decisão, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP.

VI – Tal vício verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

VII – Atendendo a que os factos supra transcritos decorrem do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito, o que inviabilizaria a arguição do vício nos termos requeridos, dúvidas não podem subsistir sobre a sua efetiva verificação.

VIII – Isto é, o Tribunal a quo ao dar como provado que a ofendida viu a sua liberdade de decisão e de ação prejudicadas, não pode, ao mesmo tempo, e em flagrante contradição, dar como não provado que a ofendida não ficou limitada na sua liberdade de agir e de se deslocar.

Mais,
IX – O douto Tribunal a quo deu ainda como provado que “[…]o arguido circulou com J. F. no seu veículo automóvel a uma velocidade superior ao limite legal de 50KM/h, na freguesia de F.” – facto provado n.º 11.

X – Contudo, entendeu por provado que a ofendida “J. F. abriu a porta do mencionado veículo automóvel e o arguido agarrou tal porta e fechou-a.”. – facto provado n.º 13.

XI – De acordo com as regras da experiência comum, bem como da lógica inerente, afigura-se-nos manifestamente impossível – para não dizer deveras hollywoodesco – que alguém que conduza uma viatura a alta velocidade consiga alcançar a porta do lado do passageiro – entretanto aberta pela ofendida numa “pseudo” tentativa de se atirar da viatura – fechando-a de seguida.

XII – Não é de todo plausível, credível ou sequer viável que um condutor conseguisse, nas circunstâncias descritas pela ofendida, alcançar a porta do lado do passageiro enquanto conduz desenfreadamente o veículo, desafiando as mais básicas regras da física.

XIII – Ao dar como provada tal factualidade o Tribunal a quo, salvo devido respeito, desafiou as regras de experiência e senso comum, pelo que tal factualidade deverá ser tida como não provada.

XIV – Quanto aos factos INDEVIDAMENTE DADOS COMO PROVADOS, resultam os mesmos do teor das declarações da ofendida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como do teor do depoimento das testemunhas arroladas e inquiridas naquela sede.

XV – A valoração da prova em sentido diverso – fora o caso de erro notório supra invocado – ao pugnado pelo arguido, merece tratamento em sede erro de julgamento, nos termos do artigo 412.º do CPP, através do controlo do erro na apreciação das provas (sobre a sua admissibilidade e valoração dos meios de prova) e a consequência imediata da sua procedência, é a modificação da matéria de facto – ex vi artigo 431.º do CPP.

XVI – Mais se diga a este título que a livre apreciação da prova não significa pura convicção subjetiva.

XVII – Conforme salienta FIGUEIREDO DIAS in “Direito Processual …”, p. 139, está associada ao “... dever de perseguir a chamada “verdade material”-, de tal sorte que a apreciação há de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efetivos).”

XVIII – Nesta senda, não se conforma o arguido com o julgamento efetuado pelo douto Tribunal a quo acerca dos pontos de facto contidos nos n.ºs 8. a 15., 17. e 20. a 28. do elenco dos factos provados, uma vez que, no seu entendimento, deles se não fez prova em sede de audiência de discussão e julgamento!

XIX – Pelo que invoca, para o efeito de demonstrar e defender que se justifica a alteração do sentido do decidido, as declarações da ofendida e os depoimentos das testemunhas inquiridas, que de seguida irá transcrever, observando o ónus imposto pelo disposto no artigo 412.º, n.º 4 do CPP.

XX – De acordo com as declarações da ofendida, o reatar da relação correu bem durante os três meses – Dezembro de 2014 e Março de 2015 –, em que arguido e ofendida viveram na casa desta última em F..

XXI – Contudo, após o arguido ter regressado à Suíça – e encontrando-se este a mais de 1500 km de distância da ofendida –, começaram os episódios “traumáticos” segundo a ofendida, nomeadamente, chamadas telefónicas realizadas pelo arguido para o seu telemóvel e para o número fixo da sua residência – facto provado n.º 8.

XXII – Em tais telefonemas, de acordo a matéria de facto provada, o arguido dizia que a ofendida “Tinha dois amantes, um em Vila Real e outro em Mirandela” e “Vais para a discoteca em Macedo de Cavaleiros” – facto provado n.º 9.

XXIII – Com tais expressões, ademais constantes dos factos provados da sentença ora recorrida, entende o Tribunal a quo que o mesmo pretendeu ofender a sua honra e consideração, atentando contra a sua dignidade pessoal.

XXIV Não podemos, porém, concordar com a interpretação levada a cabo pelo douto Tribunal a quo, sem mais.

XXVO Tribunal a quo, ao decidir em relação ao teor dos telefonemas, acusações de ter amantes e de frequentar discotecas, valorando integralmente as declarações da ofendida, na medida em que a mesma referiu tais factos – não sendo percetível que tivesse desposto com animosidade em relação ao arguido ou com intenção de inventar factos para o incriminar, deixando, bem pelo contrário, no Tribunal a perceção de ter deposto com considerável objetividade – andou mal!

XXVI – Nesta senda, do depoimento da ofendida acerca desta factualidade resulta, saliente-se, a mero título exemplificativo, que a mesma revelou (in)fundadas suspeitas de relacionamentos mantidos pelo arguido com outras mulheres, atribuindo a tais relacionamentos a origem do alegado “tratamento” que o arguido lhe dava.

XXVII – Salvo melhor opinião, do depoimento transcrito nas motivações do presente recurso, e que ora damos por reproduzido para os devidos e legais efeitos, resulta claro que a ofendida enunciou, em diversos momentos do seu depoimento, animosidade para com o arguido por via da imputação de relacionamentos com outras mulheres ao mesmo, revelando desconfiança e ciúme.

XXVIII – Mais resulta que a ofendida nunca se encontrou numa posição de inferioridade em relação ao arguido, pois como admite, sempre confrontou o arguido com tais factos, num verdadeiro e constante desafio.

XXIX Advém, isso sim, que a ofendida, movida por suspeitas que tinha sobre eventuais relacionamentos do arguido com outras mulheres, decidiu, motu propriu, encetar uma autêntica vigilância à residência do arguido.

XXX – Ora, será conforme as regras da experiência comum e os costumes, alguém que reclama ter medo, sentir insegurança, pavor, vigiar e confrontar o alegado agressor, ora recorrente?! Tal comportamento não se coaduna com o medo e insegurança invocados pela ofendida, antes se revelando demonstrativo da relação de paridade e disputa existente entre ambos.

XXXI – Ainda nesta sede, fundamenta o Tribunal a quo com recurso ao depoimento da testemunha A. F., segundo o qual referiu ouvir telefonemas diários para a ofendida e que esta diria que era o arguido.

XXXII Ora, em primeiro lugar, do depoimento prestado pela testemunha indicada, resulta que este afirma que nunca ouviu qualquer telefonema:

GRAVAÇÃO 20171127145243_1619879_2870652 (Depoimento testemunha A. F.):
13.13 – D: Relativamente aqui ao que está a ser julgado, tomou conhecimento em termos direto, de algumas injúrias ou ameaças?
13.15 – AM: Eu já disse que não Dr…
(…)
13.40 – D: Ou seja, tirando isso, tirando o diz que disse, o que é que o Sr. sabe em concreto?
13.45 – AM: O que eu sei e já lhe disse que era o que a minha prima me dizia…

XXXIII – Assevera, isso sim, que ouvia o telefone da ofendida tocar e que esta lhe dizia ser o arguido. Contudo, sempre salientou ao longo do seu depoimento que nunca ouviu qualquer telefonema, apenas sabendo que seria o arguido pelo que a ofendida lhe transmitia.

XXXIV – Assim sendo, não podia o Tribunal a quo recorrer ao depoimento prestado pela testemunha para fundamentar a factualidade dada como provada, uma vez que o mesmo constitui depoimento indireto.

XXXV – Por sua vez, e com maior relevância para o caso sub judice, no que concerne à factualidade reportada ao dia 10 de Agosto de 2015 – dia da festa de F. –, a ofendida refere que o arguido andava visivelmente transtornado e que insultava toda a gente que com ele se cruzava, e após abandonarem a festa este conduziu o veículo a alta velocidade insultando-a durante o mesmo período

XXXVI – Sucede que, uma vez mais, a ofendida, não obstante o episódio traumático vivenciado momentos antes, decidiu pela calada da noite, ao arrepio de qualquer sentimento de medo ou insegurança, aceder ao telemóvel do arguido enquanto este último dormia:

21.21 – JF: Ele dormiu. Eu fiquei acordada como é lógico… sem conseguir dormir, sem conseguir ter sossego. Eu disse não, isto tem que ter um fim e fui… não sei se já referi isto, mas na GNR eu referi… e eu queria perceber o porquê daquela situação. E eu peguei no telemóvel dele, tentando perceber alguma coisa… tinha código. Tentei a primeira vez e não consegui abrir, tento a segunda vez com a data de nascimento dele e o telemóvel abre… o telemóvel abre, no telemóvel dele eu vi sim, realmente tive a confirmação de conversas com mulheres, de encontros com mulheres e tive a certeza de que o problema dele era esse…
XXXVII – Ora, decorre do depoimento da ofendida que a mesma confrontou o arguido na manhã seguinte com o conteúdo das mensagens de outras mulheres que encontrou no telefone, tendo este, de comum acordo com a ofendida, decidido pôr termo ao relacionamento entre ambos.

XXXVIII – Não conseguimos vislumbrar qualquer relação de superioridade, ou dominância, exercida por parte de arguido.

XXXIX – Mais se diga que o Tribunal a quo, no tocante aos acontecimentos do dia 10/08/2015, valorou não só as declarações da ofendida, mas também, parcialmente, da testemunha A. F., tendo desvalorizado por completo as declarações do arguido.

XL – Contudo, o Tribunal a quo decide uma vez mais sustentado em prova que é, de per si, contraditória, pois do depoimento da testemunha A. F. (GRAVAÇÃO 20171127145243_1619879_2870652) resulta que este viu o arguido e a ofendida a sair da festa por volta das onze horas da noite, enquanto a ofendida, no seu depoimento garante a instâncias do MP que saíram após o fogo-de-artifício, seguramente depois da uma da manhã (minuto 17.38 – JF: Talvez uma da manhã… Não sei precisar muito bem… mais ou menos… Já foi depois do fogo-de-artifício, por isso uma da manhã, depois da uma da manhã):
GRAVAÇÃO 20171127145243_1619879_2870652 (Depoimento testemunha A. F.):
“15.48 – D: Relativamente à festa de F., você esteve nessa festa, em Agosto de 2015… e dançou com a sua prima?
15.58 – AF: Dancei sim senhora.
16.00 – D: A que hora é que eles foram embora? Mais ou menos?
16.02 – AF: Dr não faço ideia… Não sei…onze horas. Portanto, a festa estava animada não podia ser muito tarde…”.

XLI – Estamos em crer que não podia o Tribunal a quo ter dado como provada aquela factualidade, uma vez que os depoimentos da ofendida e da testemunha A. F. são flagrantemente contraditórios quanto ao momento em que saíram da festa popular, devendo tais factos ser considerados como não provados!

XLII – Por sua vez, e já no que concerne ao telefonema para M. F., respetiva data e palavras concretamente proferidas, o Tribunal valorou o depoimento da testemunha M. F..

XLIII – Com efeito, o mesmo relatou que o arguido lhe ligou e proferiu as expressões referidas na acusação pública e que foram dadas como provadas.

XLIV – Contudo, na sequência da pretensão retaliatória verbalizada pela ofendida, sua filha, a testemunha M. F., revela ainda uma especial pretensão retaliatória para com o arguido, pois afirma que sempre o aconselhou a pagar o que devia à filha!
GRAVAÇÃO 20171127115714_1619879_2870652 (Depoimento Testemunha M. F.):
“05.15 – MF: Ele telefonava várias vezes, que eu só lhe dizia… Botai a vida para a frente, paga-lhe aquilo que lhe deves e botai a vida para a frente. Disse-lhe eu muitas vezes.”.

XLV – Por fim, importa ainda referir o “acordo” celebrado entre a ofendida e o arguido, no ano de 2013, que surgiu, nas palavras da ofendida, como verdadeira conditio sine qua non para o reatar da relação entre ambos.

XLVI – Porém, e ainda que o douto Tribunal não tenha relevado para efeitos da matéria dada como provada tal factualidade, entendemos que esta é a “pedra de toque” do caso sub judice, inquinando de morte o depoimento da ofendida, caracterizado pelo Tribunal a quo como objetivo, isento e rigoroso.

XLVII – Do longo depoimento prestado pela ofendida em sede de audiência de discussão e julgamento resulta, indubitavelmente, que o seu objetivo reconduziu-se a uma alegada tentativa de “proteção do património”, celebrando um acordo com o arguido tendente ao reatamento da relação entre ambos, com a condição de este colocar os bens que tinha em seu nome ou em nome de familiares, em nome da ofendida! O que veio a suceder!

XLVIII – Contudo, as explicações tecidas pela ofendida a este propósito não são deveras esclarecedoras, uma vez que tanto refere que tal acordo se destinava a ver-se livre do arguido, considerando que “apenas um louco” aceitaria um acordo daqueles, acrescentando contraditoriamente que tal acordo serviria para garantir que o arguido não iria concretizar as ameaças de morte que alegadamente lhe dirigia.

XLIX – Ora, facilmente se infere que as realidades trazidas a julgamento pela ofendida são flagrantemente incompatíveis, pois não é verosímil ou provável que alguém que teme pela sua própria vida proponha um acordo por si caracterizado como sendo um acordo que só alguém louco aceitaria, ficando claro que o seu único objetivo, concretizado, sempre foi o de conseguir transferir a propriedade de bens em nome ou disposição do arguido para o seu património.

L – Mais se diga que, de acordo com as regras de experiência comum, não se nos afigura razoável que a alegada vítima, que reclama sentir medo, pavor, insegurança, em relação ao arguido, consiga, destarte, ditar os termos de um acordo nos exatos termos em que o fez.

LIAlguém que reclama encontrar-se subjugada ou numa verdadeira posição de inferioridade não dita termos de um acordo, e muito menos se acha superior ao fazê-lo!

LII – Temos por certo, assim, que o principal foco da ofendida sempre foi a transferência dos bens propriedade do arguido para seu nome, o que veio a suceder e ainda hoje se mantém.

LIII – Mantendo-se ainda hoje, de igual forma, a dívida que resultou do negócio celebrado entre arguido e ofendida na subsequência do divórcio operado.

LIV – Ademais, tal pretensão resulta não só do depoimento da ofendida, como do depoimento do pai da mesma, como já supra melhor transcrito!

LV – Saliente-se ainda que o facto de a ofendida durante o ano de 2017 se ter deslocado para a Suíça, munida de uma transcrição e tradução da medida de coação imposta ao arguido no âmbito do presente processo, demonstra de forma inequívoca que esta nunca sentiu medo do arguido, desconhecendo-se os reais motivos que levaram a ofendida a deslocar-se para um país onde sabe residir e laborar o alegado agressor!

LVI – Assim sendo, facilmente se infere que o cenário apresentado em tribunal está nos antípodas de uma relação de aterrorizamento, de rebaixamento da dignidade, de domínio e de neutralização da vontade, de um dos membros do casal sobre o outro!

LVII – A ofendida denota ser, isso sim, uma mulher determinada e senhora da sua vontade (vigiando e perseguindo o arguido, imputando-lhe relacionamentos com outras mulheres e conseguindo inclusivamente ditar os termos de acordos).

LVIII – Nestes termos, consideramos que da matéria de facto impugnada resulta claro que os factos dados por provados na sentença de que ora se recorre não o poderiam ter sido, especialmente em função do teor dos depoimentos prestados pela ofendida e pelas testemunhas que supra melhor identificamos.

LIX – Logo, não podia o Tribunal a quo aceitar tudo o que a Ofendida afirmou sem reservas, como veio a suceder, impondo-se, neste âmbito, a modificação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 431.º do CPP.

LX – DO ERRO NA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DA MATÉRIA DADA COMO PROVADA (DA INEXISTÊNCIA DA PRÁTICA DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA)

LXI – O objetivo da incriminação constante do tipo de crime de violência doméstica é a de prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis, quão perniciosas, formas de violência no âmbito da família, quer para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar.

LXII – A necessidade prática desta neocriminalização, emergiu, por um lado, do facto de muitos destes comportamentos não configurarem em si crime de ofensas corporais simples e, por outro, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos, consagrando-se a ideia de que a família não mais podia ser vista como um feudo sagrado, onde o direito penal se tinha de abster de intervir.

LXIII – Assim, a razão de ser deste tipo legal não é a proteção da comunidade familiar ou conjugal, mas antes a proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana!

LXIV – De elementar importância se nos afigura que para uma correta qualificação dos factos há que atentar no respetivo enquadramento e concretas circunstâncias em que o arguido agiu, o que, salvo melhor opinião, não decorre do teor da fundamentação aduzida na sentença recorrida e muito menos da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nos exatos termos alegados supra.

LXV – Neste ponto, discordamos, portanto, da apreciação, qualificação e consequente subsunção jurídica operada pelo douto Tribunal a quo.

LXVI – No seguimento da jurisprudência sobre a matéria – v.g. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 77/14.1TAAVV.G1, de 02-11-2015, da Relatora Manuela Paupério –, subscrevemos o entendimento segundo o qual o tipo legal do artigo 152.º do CP, previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.

LXVII – Constituindo este o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual.

LXVIIIIn casu, e salvo melhor opinião pelo contrário, os factos considerados provados não são suficientes para integrarem o referido ilícito de violência doméstica.

LXIX – Daqui sobressai o que cremos essencial para a caraterização do crime de violência doméstica, que se evidencia da sua génese e evolução, é a existência de uma vítima e de um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência sobre a pessoa daquela.

LXX – Os episódios ocorridos que resultam da matéria de facto provada, não têm, a nosso ver, a virtualidade de se poderem enquadrar na previsão desta norma.

LXXI – Temos por certo que os factos provados não são suficientes para integrarem o crime de violência doméstica. E, na realidade, como acabamos de explicitar, não são.

LXXII – A absolvição do arguido da prática do crime de violência doméstica, que se impõe, importa necessariamente a sua absolvição nas penas acessórias que decorriam da sua condenação pelo crime de violência doméstica.

LXXIII – Mais se repercutindo no pedido de indemnização civil formulado pela ofendida/demandante.

LXXIV – Na verdade ele foi arbitrado em função da condenação pelo crime de violência doméstica que, como se infere, o arguido não cometeu.

LXXV – Acreditamos que a conduta do arguido, no caso em apreço, não integra a prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do CP, uma vez que, quer pela sua imagem global, quer pela gravidade dos seus específicos atos, não é desrespeitadora da pessoa da vítima, nem traduz qualquer desejo de prevalência e de dominação sobre a mesma, sob pena de, caso se entenda o contrário, corrermos o risco, inaceitável, de considerar qualquer disputa, desacordo ou desentendimento entre um casal, como uma situação de violência doméstica.

LXXVI – Ora, em conformidade com o que vem de dizer-se, os factos dados como provados nestes autos são insuficientes para o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica.

LXXVII – A nosso ver, e muito embora se possa considerar que esses factos se situam perto da fronteira da punibilidade, eles não atingem a intensidade exigida pelo referido tipo legal de crime, não sendo, por isso, materialmente ilícitos.

LXXVIII – Na verdade, a conduta do arguido, considerada individualmente e também na sua globalidade complexiva, não configura uma efetiva e relevante situação de expressão de um abuso de poder na relação afetiva com a ofendida, situação que seja suscetível de atingir a integridade pessoal da ofendida nessa relação.

LXXIXId est, os episódios de vida em apreciação são, tão só, reveladores de um quadro de relacionamento deteriorado, que se foi degradando ao longo do tempo.

LXXX – Sobretudo a partir do momento em que o arguido passou a imputar à ofendida o facto de a mesma ter amantes.

LXXXI – Considerando a “situação ambiente”, analisando a “imagem global do facto”, e vistos os concretos atos cometidos pelo arguido, entendemos, pois, não estar preenchido o tipo legal de crime em questão.

LXXXII – Ora, quer a apontada dominância do arguido sobre a ofendida, quer a aludida existência de um qualquer atentado, relevante, à dignidade pessoal da ofendida, não se verificam in casu.

LXXXIII – Basta, para assim considerar, ouvir o longo relato da ofendida, onde esta descreve, com pormenor e desassombro (NÃO CONFESSAVA MEDO), os atos praticados pelo arguido, as motivações dos mesmos e as suas reações perante eles.

LXXXIV – Na verdade, e repetindo o acima já dito, tais factos, quer individualmente considerados, quer relacionados entre si, quer olhados na sua globalidade, não traduzem, a nosso ver, um modo de agir do arguido suficientemente grave, para que se possam, justificadamente, qualificar as atitudes do arguido como condutas maltratantes, seja ao nível físico, seja ao nível psíquico.

LXXXV – Assim sendo, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de última ratio, não devendo o julgador tentar, através de tal intervenção, modelar e ajustar comportamentos (no âmbito das relações de conjugalidade), punindo criminalmente aquilo que, bem vistas as coisas, é apenas merecedor de censura ético-moral.

LXXXVI – É que, a não ser assim, poder-se-ia chegar à absurda situação de existir perseguição criminal de comportamentos que, pura e simplesmente, se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.

LXXXVII – Assim sendo, temos por certo que a ofendida nunca se encontrou numa posição de inferioridade existencial em relação ao ora Recorrente, mas sim numa verdadeira posição de paridade, não só pelas pretensões retaliatórias, bem como na animosidade demonstrada pelo facto de um litígio em sede de partilhas de bens!

LXXXVIII – Pelo exposto, o Tribunal a quo não interpretou, nem aplicou, corretamente o preceituado pelo art. 152.º do Código Penal, devendo, em ultima ratio, caso resulte toda a factualidade como provada, o que apenas a mero título académico se admite, ser considerados preenchidos os pressupostos legais consubstanciados na prática de um crime de injúrias e de um crime ameaças por parte do recorrente.

LXXXIX – Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado o crime em que foi condenado, deve o mesmo ser absolvido do pedido de indemnização civil.

XC – Concluímos, assim, que o Recorrente não praticou o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, do Código Penal.

Nestes Termos, e nos melhores de direito que V. Exa.s mui doutamente irão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser a sentença proferida revogada, devendo o recorrente ser absolvido da prática do crime de violência doméstica, nos exatos termos requeridos, e por consequência ser absolvido DO RESPETIVO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL formulado pela ofendida/demandante,
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E SÃ JUSTIÇA!»

3. O Exmo. Procurador-Adjunto na primeira instância respondeu ao recurso, opinando que:

- O recorrente funda a existência de erro notório na apreciação da prova numa eventual contradição entre o facto dado como provado sob o n.º 27 e o facto dado como não provado sob o n.º 34, a qual, porém, inexiste, porquanto a mera leitura da sentença permite compreender que as situações eram distintas, não resultando daí qualquer contradição e, consequentemente, não se verificando o invocado vício.
- No que tange à propugnada alteração da matéria de facto, após leitura atenta da fundamentação da matéria de facto provada, conclui-se que o Mmº Juiz a quo procedeu a uma avaliação pormenorizada da globalidade da prova produzida, de acordo com as regras da experiência e com a sua livre convicção, a qual resultou da correta interpretação dos depoimentos prestados e de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não podendo ser colocada em causa com as passagens transcritas pelo recorrente, que são seletivas e parciais, não permitindo a análise e compreensão global dos depoimentos prestados pelas testemunhas, pelo que nenhuma censura merece a sentença recorrida.
- É manifestamente desajustado entender que os factos dados como provados não atingem a intensidade exigida pelo crime de violência doméstica, não sendo materialmente ilícitos, porquanto a prática judiciária, as regras da experiência e da normalidade mostram-nos, claramente, que a fronteira do relacionamento degradado é colocada muito antes do apodar a companheira de puta, do ameaçar que lhe tira a vida, das constantes acusações de que tem amantes, da chantagem emocional. Este tipo de comportamentos assumem relevo criminal e não podem ser tolerados, muito menos considerados lícitos e não criminalmente punidos, pelo que os factos praticados pelo arguido e dados como provados, pela sua gravidade individual e reiteração, são suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica.

Assim, conclui o Exmo. Procurador Adjunto que nenhuma razão assiste ao recorrente, não merecendo qualquer censura a sentença recorrida, que não violou os preceitos invocados ou quaisquer outros, devendo manter-se na íntegra.
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto tomou conhecimento do processo, apondo o seu visto, nos termos previstos no art. 416º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por ter sido requerida a realização de audiência nos termos do n.º 5 do art. 411º do mesmo diploma.
5. Efetuado o exame preliminar e completados os vistos, teve lugar a audiência, nos termos do art. 423º do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios decisórios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo diploma [2].

Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

a) - O vício de erro notório na apreciação da prova (conclusões II a XIII).
b) - O erro de julgamento (conclusões XIV a LIX).
c) - O preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica (conclusões LX a XC).

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto constante da sentença recorrida (transcrição):

«a) factos provados
a.1) da acusação pública
a.2) do pedido de indemnização cível

1. O arguido casou com J. F. em 13/08/1983.
2. Desse casamento nasceram dois filhos:
a. C. V., nascido a 05/09/1985;
b. A. C. V., nascida a 08/11/1991;
3. O arguido divorciou-se de J. F. em 18/04/2011.
4. No período compreendido entre data concretamente indeterminada de 2013 e o dia 10/08/2015, o arguido e J. F. reataram a relação amorosa, sendo que até ao dia 25/12/2014 viveram em locais diferentes da Suíça, estando juntos ao fim de semana.
5. No referido período de tempo compreendido entre data concretamente indeterminada de 2013 e o dia 10/08/2015, o arguido transferiu a propriedade dos bens que tinha para J. F..
6. Desde 25/12/2014 até ao mês de Março de 2015, o arguido e J. F. viveram um com o outro, dormindo e tomando refeições juntos numa habitação sita em F., Vila Flor.
7. Em Março de 2015 o arguido regressou à Suíça.
8. Em datas concretamente indeterminadas mas posteriores ao regresso do arguido à Suíça, o arguido, quase diariamente, utilizando o número de telefone …125 telefonou para J. F., nomeadamente para o seu telemóvel com o número …419 e para o telefone fixo da residência daquela com o número …372.
9. Em tais telefonemas, o arguido dizia a J. F.: «Tens dois amantes, um em Vila Real e outro em Mirandela» e «Vais para a discoteca em Macedo de Cavaleiros».
10. No dia 10/08/2015, pelas 2:10, em F., encontrando-se o arguido e J. F. no interior do veículo automóvel que o arguido conduzia, o arguido disse a J. F. «Hoje tenho confirmado que és a maior puta que existe no mundo» e «É hoje que rebento contigo».
11. Após, o arguido circulou com J. F. no seu veículo automóvel a uma velocidade superior ao limite legal de 50KM/h, na freguesia de F..
12. J. F. pediu-lhe para conduzir mais devagar.
13. Ato seguido, J. F. abriu a porta do mencionado veículo automóvel e o arguido agarrou tal porta e fechou-a.
14. No dia 10/08/2015, junto à habitação de J. F., sita na Rua …, F., Vila Flor, o arguido, dirigindo-se a J. F. proferiu as seguintes expressões: «É fácil vir do estrangeiro e matar-te, ninguém sabe que estive cá» e «és a maior puta que conheço».
15. No mencionado dia 10/08/2015, J. F. terminou a relação com o arguido.
16. Desde essa data que vivem em habitações separadas.
17. No mês de Agosto de 2015, em F., Vila Flor, o arguido disse a J. F. «Tenho uma arma tão precisa que do Santuário de F. acerto-te na cabeça sem que ninguém se aperceba».
18. Desde data não concretamente apurada mas seguramente desde o ano de 2015, o arguido possui licença de uso e porte de arma tem quatro armas registadas em seu nome, o que era do conhecimento de J. F..
19. No período compreendido entre o dia 10/08/2015 e o dia 13/08/2015, o arguido telefonou para o telemóvel de M. E. M. F., Pai de J. F., e disse-lhe que J. F. tinha amantes, que tinha ido para a discoteca em Macedo de Cavaleiros, que era uma puta, que a matava e que M. F. iria sofrer um desgosto.
20. No dia 13/08/2015, o arguido, utilizando o número de telefone …125 enviou para o telemóvel de J. F. as seguintes mensagens escritas:

a. A primeira, às 21:29 com o seguinte teor: «Deus te ajude como me desejas a mim»;
b. A segunda, às 21:39 com o seguinte teor: «É só para te avisar tem cuidado»;
c. A terceira às 23:30 com o seguinte teor: «os larápios temem uma sentença»;
d. A quarta, às 23:38 com o seguinte teor: «Só para te informar a ladra vai morrer queimada»;
e. A quinta, às 23:53 com o seguinte teor: «A ladra que vá aproveitando bem os dias a chama pode chegar»;
21. No dia 17/08/2015, pelas 14:51, o arguido, utilizando o número de telefone …125 enviou para o telemóvel de J. F. a seguinte mensagem escrita: «Tu a mim roubasteme os carros e o tractor eu de recompensa voute ficar com o cérebro porque é enteligente».
22. No dia 18/08/2015, pelas 18:06, o arguido, utilizando o número de telefone …125 enviou para o telemóvel de J. F. a seguinte mensagem escrita: «Diz lá ao teu pauzinho que ladrão e ele e ensinoute a ti porque o mutor mandastemo trazer tu e depois não te importaste de mais nada nem quiseste saber quando te falei tende cuidado quem está a roubar sois vos mas não vos vai servir de nada nunca vi nenhum ladrão feliz nem com saúde»
23. No dia 19/08/2015, o arguido, utilizando o número de telefone …125 enviou para o telemóvel de J. F. as seguintes mensagens escritas:

a. A primeira, às 18:14, com o seguinte teor: «Podes me evitar mas quando menos esperares só vais ouvir um olá sabes que não vou ficar a dever nada a ninguém não te digo o dia nem a hora de chegada».
b. A segunda, às 21:28, com o seguinte teor: «não te esqueças encuanto aí tiveres algo teu tu vais pagar o que me roubaste».
c. A terceira, às 21:38, com o seguinte teor: «o teu pai sabe que não demora no caralho em vez de te atiçar para roubares não te ensina a ser uma pessoa onesta e menos aldrabona era bom para ele assim irá para o inferno sim pessoas como ele não merece outra coisa mas ele lá vê como a minha filha é enteligente e o roubou assim ele irá lhe guardar cérebro para recordação Eu concordo».
24. No dia 20/08/2015, pelas 09:57, o arguido, utilizando o número de telefone …125 enviou para o telemóvel de J. F. a seguinte mensagem escrita: «Bondia só para dizer a vida está a perder sentido cada dia mais por isso só há um caminho beijinhos».
25. No dia 22/08/2015, pelas 15:07, o arguido, utilizando o número de telefone …125 enviou para o telemóvel de J. F. a seguinte mensagem escrita: «Desprezado por ti e pela tua filha se esto assim continua só há uma solução».
26. Ao atuar do modo acima descrito, o arguido sujeitou a J. F., conforme quis e previu, a vexames, humilhações e a um ambiente de constante sobressalto, atentatórios da honra, da consideração pessoal e da dignidade da mesma e que lhe eram devidas enquanto ex-mulher e mãe dos seus filhos.
27. O arguido pretendeu amedrontar e intimidar J. F. com o anúncio da prática, no futuro, de atos atentatórios da sua vida e integridade física, o que conseguiu e se revelou adequado a provocar-lhe sentimentos de insegurança, intranquilidade e de medo, prejudicando a sua liberdade individual de decisão e de ação.
28. O arguido previu e quis, com o descrito comportamento, atingir a dignidade pessoal, autoestima e saúde psíquica de J. F., sabendo que, enquanto sua ex-mulher e mãe dos seus filhos, a deveria tratar com respeito e consideração.
29. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que:

30. O arguido exibe os seguintes antecedentes criminais:

a. Proc. n.º 141/11.9GAVFL – condenação pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º do Cód Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de dois anos de prisão, suspensa por igual período. Trânsito em 09/07/2012; a pena foi declarada extinta por cumprimento.

b) factos não-provados

b.1) da acusação pública

31. Que tenha sido no mês de Setembro de 2013 que arguido e ofendida reataram a relação.
32. Que os telefonemas diários tenham ocorrido entre Maio de 2015 e 25/07/2015.
33. Que o arguido tenha dito, enquanto conduzia, «ou te mato ou morremos os dois».

b.2) do pedido de indemnização cível

34. Que J. F. tenha passado a evitar locais, trajetos e situações em que previsse a presença do requerido e a evitar comportamentos que previsivelmente o enfurecessem, ficando limitada, de forma continuada, na sua liberdade de agir e de se deslocar.

c) análise crítica da prova

O Tribunal assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida, tendo valorado – em particular – as declarações da assistente, do arguido, das testemunhas bem como a prova documental constante nos autos.

Em primeiro lugar, a título de nota preliminar, importa realizar algumas considerações sobre o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do Código de Processo Penal), o qual deve ser lido em conjugação com o princípio da imediação. Este princípio – unanimemente reconhecido e consagrado como um dos princípios fundamentais do Processo Penal – regendo a atividade probatória, atribui ao julgador a liberdade de fundar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que realizar sobre o mérito objetivamente concreto do caso, da sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto representativamente no processo (nomeadamente mediante alegações, respostas, meios de prova utilizados, etc). Este princípio tem uma dupla dimensão: negativa, no sentido de ausência de critérios legais predeterminantes do valor a atribuir à prova e um sentido positivo, traduzindo a liberdade de acordo com um dever – o deve de prosseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação haverá de ser reconduzida a critérios objetivos, suscetíveis de motivação e de controlo.

Este princípio encontra-se contemplado no art. 127º do Código de Processo Penal, o qual faz apelo às «regras da experiência» e da «livre convicção» da entidade competente. As «regras da experiência» consistem em definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub-judice, assentes na experiência comum e, por isso, independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam mas para além dos quais têm validade; são regras que se vão sedimentando ao longo dos tempos e colhidas da sucessiva repetição de circunstâncias, factos e acontecimentos. A «livre convicção», por seu turno, constitui um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade; trata-se de uma conclusão livre, subordinada à razão e à lógica, não limitada por prescrições formais exteriores, a qual deverá ser devidamente fundamentada, em termos de razões de facto e de direito, a ponto de ser objetivamente controlável perante um terceiro que leia a sentença. A apreciação haverá de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e suscetíveis de motivação e controlo, não podendo tratar-se de uma convicção puramente subjetiva ou emocional, curando-se sempre de uma convicção pessoal mas necessariamente objetivável e motivável (cfr o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/06/2015, proc. n.º 1340/14.7TAPTM.E1, sobre a possibilidade de atribuir maior relevância às declarações da vítima nos processos de violência doméstica).

Em segundo lugar, como é habitual nas situações de violência doméstica, as situações descritas na acusação pública terão na sua maioria ocorrido na intimidade entre o casal, fora dos olhares de terceiros, frequentemente projetando para o exterior uma imagem de estabilidade, sendo que apenas a ofendida e o arguido terão conhecimento direto dos factos em discussão (cfr, sobre este ponto, o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/03/2017, proc. n.º 696/13.3PDCSC.L1-9); nestes termos, o Tribunal entende que deverá conferir particular relevância às declarações da ofendida.
Em terceiro lugar, na sequência do exposto no parágrafo anterior, a respeito das declarações da ofendida, importa ainda salientar que, tendo a mesma declarado pretender prestar declarações, mesmo após a advertência a que se refere o art. 134º, n.º 2, al.b) do Cód de Proc Penal, não deixou perante o Tribunal a impressão de que tivesse prestado depoimento com animosidade em relação ao arguido ou que procurasse de forma alguma empolar os factos; bem pelo contrário, pese embora algumas imprecisões quanto a datas, a ofendida depôs com conhecimento direto dos factos em discussão e considerável objetividade.
Por último, na medida em que o pedido de indemnização cível repete os factos vertidos na acusação pública, com a exceção de um, os mesmos foram integrados no mesmo capítulo e a fundamentação abaixo exposta aplicável a um considera-se aplicável in totum a outro.

Assim no tocante aos factos provados:

- no que diz respeito ao casamento e divórcio entre arguido e assistente, datas, descendência e respetivas datas de nascimento, o Tribunal valorou aqui os assentos de nascimento de fls 20/21, 244 e 245.
- sobre o reatar de relações entre arguido e ofendida, respetivas datas, residência em locais diferentes na Suíça até ao Natal de 2014, convivência pelo menos ao fim de semana durante esse período, transferência dos bens para nome da ofendida, residência em comum em Vila Flor desde o Natal de 2014 até Março de 2015 e regresso à Suíça, o Tribunal valorou aqui as declarações da ofendida e do arguido, as quais foram consideravelmente congruentes entre si nestes pontos; com efeito, com a exceção da data de início do reatar da relação (que nem arguido nem ofendida souberam precisar, tendo somente indicado que foi no ano de 2013), no demais foram consideravelmente precisos quanto a estes factos e respetivas datas, tendo ambos indicado que até ao Natal de 2014 viveriam em casas separadas na Suíça e que se veriam pelo menos ao fim de semana (se bem que o arguido tenha alegado que se viam com mais frequência; independentemente da veracidade desta alegação, poderemos dar como certo que, pelo menos, se veriam ao fim de semana), ocorreu um reatar de relações com residência em comum em F. desde o Natal de 2014 até ao mês de Março de 2015, data em que regressou à Suíça e que a rutura definitiva da relação terá ocorrido em 10/08/2015 (data facilmente memorizável por referência a uma festa de cariz religioso na aldeia onde habitam na qual ambos estiveram presentes); muito embora conste da acusação pública que o regresso do arguido à Suíça teria ocorrido em Abril de 2015, na medida em que tanto o arguido como a ofendida coincidiram que o regresso foi no mês de Março de 2015, o Tribunal decide fazer uma alteração não-substancial dos factos contidos na acusação pública sem necessidade de comunicação por se tratar de factos alegados pela defesa (art. 358º, n.º 1 e n.º 2 do Cód de Proc Penal); as declarações de um e outro mais foram valoradas nestes pontos por terem deposto com conhecimento direto dos factos, de uma forma congruente entre si e tendo sido precisos quanto a datas por referência a festas de cariz religioso, o Tribunal ficou persuadido da veracidade dos factos alegados.
- em relação aos números de telemóvel e telefone do arguido e ofendida, o Tribunal valorou aqui as declarações dos próprios, na medida em que um e outro indicaram perante o Tribunal quais os respetivos números que usam para as suas comunicações; em relação ao teor dos telefonemas, acusações de ter amantes e de frequentar discotecas, o Tribunal valorou aqui integralmente as declarações da ofendida na medida em que a mesma referiu esses factos e não foi percetível que tivesse desposto com animosidade em relação ao arguido ou com intenção de inventar factos para o incriminar; bem pelo contrário, deixou no Tribunal a perceção de ter deposto com considerável objetividade; já o arguido limitou-se a negar perentoriamente as chamadas sem que oferecesse uma explicação do motivo pelo qual a ofendida o estaria a incriminar, tendo deixado ao Tribunal a impressão que estaria a faltar à verdade; por outro lado, muito embora não se refira diretamente a este facto, os telefonemas diários e o tipo de acusações e de linguagem usados pelo arguido foram percecionados por terceiros, em concreto, o progenitor da ofendida, o qual relatou que o arguido lhe teria feito uma chamada e acusado a ofendida de ser uma «puta» e de «andar em discotecas», bem como pela testemunha A. F., a qual referiu ouvir telefonemas diários para a ofendida e que esta diria que era o arguido, facto confirmado pelo teor das declarações desta; daí que esse tipo de chamadas, acusações e de linguagem foram percecionados por terceiros, exteriores ao casal, o que reforça o teor das declarações da ofendida e leva o Tribunal a dar esse facto como provado.
- no tocante aos acontecimentos do dia 10/08/2015, o Tribunal valorou aqui as declarações da ofendida e parcialmente da testemunha A. F., tendo desvalorizado por completo as declarações do arguido. A este respeito, a ofendida referiu que após ter dançado com o primo (testemunha A. F.) saíram da festa a conduzir a alta velocidade, que o arguido lhe terá chamado «puta» várias vezes por esse facto, que a iria «matar», que tentou ligar ao filho e que o arguido lhe tirou o telemóvel da mão, impedindo-a de fazer isso, que tentou abrir a porta e não conseguiu, por ter sido impedida pelo arguido e que terminaram definitivamente o relacionamento nessa data, cessando a coabitação entre ambos. Já a testemunha A. F. confirmou ter dançado com a ofendida e que visualizou o casal a sair junto da festa, estando o automóvel a circular em alta velocidade. Já o arguido nega ter havido discussão.

Em primeiro lugar, importa começar por salientar que a data é facilmente localizável no tempo em virtude de se tratar de uma festividade popular, no mês de Agosto, numa zona marcada por elevados índices de emigração pelo que habitualmente estas festividades são altamente frequentadas pela comunidade e são facilmente recordáveis.

Em segundo lugar, no que diz respeito aos factos em questão, existe pelo menos um no qual existiu uma testemunha direta que corroborou as declarações da ofendida – a testemunha A. F. – a qual referiu ter visto o casal a sair na viatura do arguido e esta a circular em grande velocidade, pelo que o Tribunal pôde dar como provado que, de facto, o arguido saiu com a ofendida da festa a grande velocidade.

Em terceiro lugar, no que diz respeito às expressões concretamente imputadas ao arguido, o Tribunal relevou aqui as declarações da ofendida, tendo desvalorizado as declarações do arguido; com efeito, muito embora a mesma não tenha sido inteiramente precisa quanto ao teor das declarações em causa, a mesma referiu que o arguido lhe disse reiteradamente «que a matava» e que a chamou reiteradamente de «puta», pelo que não obstante alguma falta de rigor em relação às expressões concretamente imputadas, o Tribunal considerou-as como provadas na medida em que a ofendida relatou perante o Tribunal o teor das mesmas, o que tem mais relevância do que as palavras especificamente proferidas; a isto acresce que estando a ofendida numa situação de tensão (devido à condução a alta velocidade do arguido, em relação à qual, conforme vimos supra, existe pelo menos uma testemunha com conhecimento direto), afigura-se perfeitamente compreensível alguma falta de rigor em relação às palavras concretamente ditas e que a ofendida tenha ficado marcada sobretudo pelo teor das mesmas.

Em quarto lugar, em relação aos demais factos sobre o dia 10/08/2015 considerados provados (tentativa de ligar ao filho, retirada do telemóvel, fim da relação e residência em habitações separadas desde então), o Tribunal valorou aqui as declarações da ofendida, a qual relatou estes factos em concreto com considerável objetividade e precisão, afigurando-se perfeitamente compreensível que a mesma os recorde até pelo grau de violência que implicam.

Por último, o Tribunal desvalorizou as declarações do arguido quanto a este segmento da acusação pública na medida em que o mesmo se limitou a dizer que nada tinha ocorrido, não fornecendo mais nenhuma explicação, não apresentando nenhuma versão alternativa dos factos nem sendo percetível ao Tribunal por que motivo é que a assistente invocaria aqueles factos em concreto, pelo que deixou ao Tribunal a impressão de que estaria a faltar à verdade (art. 127º do Cód de Proc Penal).

- em relação à detenção de armas e ao facto de ter dito que era capaz de ameaçar acertar na cabeça da ofendida a partir do Santuário com uma arma, atendendo à sua precisão, o Tribunal valorou aqui as declarações da ofendida bem como da informação de fls 68, o registo de armas de fls 69/72, o auto de busca domiciliária e de apreensão de fls 125/126, 149/150, as fotografias de fls 127/129, 132, 134, 13, 138, 151, 152 162, o auto de apreensão de fls 130, 153/155, o auto de exame e de avaliação de fls 131, 133, 135, 157 e 161, a licença de fls 156, o livreto de manifesto de fls 157/160, a lista de fls 166/169 e o termo de entrega de fls 171/174. As declarações da ofendida foram valoradas nos mesmos termos atrás referidos, ou seja, depôs com conhecimento direto dos factos, objetividade e de uma forma que não deixou ao Tribunal a impressão que o seu relato estivesse de alguma forma tingido com animosidade em relação ao arguido, logrando convencer o Tribunal da veracidade do facto relatado.
- em relação ao telefonema para M. F., respetiva data e palavras concretamente proferidas, o Tribunal valorou aqui o depoimento da testemunha M. F.; com efeito, o mesmo relatou que o arguido lhe ligou e proferiu as expressões referidas na acusação pública e que foram dadas como provadas; a testemunha mais referiu que o telefonema ocorreu em Agosto de 2015 já depois de o arguido e a ofendida se separarem pelo que, tendo os mesmos terminado a relação em 10/08/2015 (pelos motivos acima indicados) e tendo o arguido referido que partiu para a Suíça em 13/08/2015, o Tribunal ficou persuadido de que, de facto, o telefonema ocorreu nesse período temporal.
- sobre as mensagens de telemóvel, o Tribunal valorou aqui os autos de transcrição de fls 7, 8, 54 e 55. Convém dizer que não as declarações do arguido que imputa o envio dos sms à filha A. F. S. não mereceram a mínima credibilidade na medida em que habitualmente os telemóveis estão bloqueados ao toque e terceiros não têm acesso ao mesmo, a filha A. S. foi ouvida como testemunha e negou perentoriamente essa acusação sendo que a sua versão dos factos merece mais credibilidade em virtude de atendendo ao teor dos sms e ao sucedido anteriormente entre arguido e ofendida, devidamente reproduzido nos factos considerados provados, afigura-se muito mais conforme à normalidade das situações que o remetente fosse, de facto, o arguido e não a filha (art. 127º do Cód de Proc Penal).
- em relação ao elemento subjetivo, o Tribunal considera-o provado com fundamento no conjunto da prova produzida na medida em que quem age da forma descrita nos factos considerados provados habitualmente agirá com o animus devidamente descrito no elemento subjetivo (intenção de sujeitar a vexames, humilhações, sentimentos de insegurança atentatórios da honra do visado, etc; por exemplo, quando se considerou provado que o arguido disse que iria disparar com uma arma para a cabeça da ofendida, agiu com intenção de amedrontar a ofendida com a ameaça da prática de atos atentatórios da sua vida, de forma perfeitamente adequada a provocar-lhe sentimentos de insegurança) pelo que o mesmo foi considerado integralmente provado – art. 127º do Cód de Proc Penal.
- sobre os antecedentes criminais, o Tribunal valorou aqui o CRC de fls 444/446.
*
Em relação aos factos não-provados, o Tribunal considerou-os nessa qualidade em virtude de, em relação aos mesmos, nenhuma prova se ter produzido.

- os factos não-provados circunscreveram-se sobretudo a datas de alguns dos factos na medida em que, com a exceção dos factos ocorridos por referência a festividades (e.g: o Natal ou a festa da aldeia), a ofendida – em quem o Tribunal se baseou, nos termos e pelos motivos acima referidos, para dar a factualidade assente como provada – revelou com o seu depoimento recordar-se com razoável grau de precisão de diversos factos mas tendo uma certa dificuldade em localizá-los no tempo, o que se afigura perfeitamente normal e razoável atendendo ao período de tempo entretanto decorrido (cerca de dois anos, à data do julgamento).
- também não se deu como provado que a ofendida tenha alterado as suas rotinas com fundamento no depoimento da testemunha A. F. S., E. S. e M. F., as quais salientaram que embora a ofendida andasse nervosa com a situação, nunca alterou as suas rotinas.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 - Do erro notório na apreciação da prova

3.1.1 – O recorrente começa por invocar a existência, na sentença recorrida, de erro notório na apreciação da prova (conclusões II a XIII), vício esse previsto na al. c) do n.º 2 do art. 410º do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem menção quanto à origem.

Adiante-se desde já que uma das situações por ele invocadas para demonstrar a existência de tal erro é antes reconduzível ao vício de contradição insanável da fundamentação, previsto na al. b) do citado normativo.

Consagrando, a par da impugnação (ampla) a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, uma segunda e distinta forma de impugnar a matéria de facto (através da chamada revista alargada), dispõe o art. 410º, n.º 2, que "Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova."

Como consta expressamente desse texto legal, qualquer dos vícios aí mencionados, que são de conhecimento oficioso [3], tem que emergir da própria decisão recorrida, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [4]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, quanto a eles, esta terá que ser autossuficiente, não se podendo recorrer à prova documentada.

No âmbito da revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).

3.1.2 - Especificamente quanto ao vício a que alude a al. b) do n.º 2 do art. 410º, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2015 [5], que «o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».

Nas palavras de Simas Santos e Leal-Henriques [6], «por contradição entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade»
.
Tal vício consiste, pois, numa incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre a fundamentação ou entre esta e a decisão.

Uma das formas de contradição insanável da fundamentação respeita à contradição na própria matéria de facto, isto é, entre os factos provados ou entre estes e os não provados, sendo precisamente essa a situação invocada pelo recorrente embora, como referimos, indevidamente sob a capa de erro notório na apreciação da prova.

Tal ocorrerá quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados ou entre estes e os não provados, podendo, pois, a contradição da fundamentação consistir numa incompatibilidade entre a matéria de facto provada (dão-se, por exemplo, como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis, excluindo-se mutuamente), entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada (dá-se, por exemplo, como provado e como não provado o mesmo facto).

Como também consta expressamente do texto da al. b) do citado preceito legal, tal vício só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que se incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, ou seja, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.

3.1.3 – No caso dos autos, o recorrente localiza a contradição insanável da fundamentação que assaca à sentença recorrida, embora sob a qualificação incorreta de erro notório na apreciação da prova, no conflito entre, por um lado, o ponto 27º dos factos provados, do qual consta que «o arguido pretendeu amedrontar e intimidar J. F. com o anúncio da prática, no futuro, de atos atentatórios da sua vida e integridade física, o que conseguiu e se revelou adequado a provocar-lhe sentimentos de insegurança, intranquilidade e de medo, prejudicando a sua liberdade individual de decisão e de ação», e, por outro lado, o ponto 34º da matéria não provada, segundo o qual não se provou «que J. F. tenha passado a evitar locais, trajetos e situações em que previsse a presença do requerido e a evitar comportamentos que previsivelmente o enfurecessem, ficando limitada, de forma continuada, na sua liberdade de agir e de se deslocar» (sublinhados do recorrente).
Sustenta este último que o tribunal a quo, ao dar como provado que a ofendida viu a sua liberdade de decisão e de ação prejudicada, não pode, ao mesmo tempo, e em flagrante contradição, dar como não provado que ficou limitada na sua liberdade de agir e de se deslocar.
Sem razão, porém, uma vez que o Mm.º Juiz não deu como provado e como não provado o mesmo facto, o que constituiria pressuposto da apontada contradição insanável da fundamentação, mas sim realidades não inteiramente coincidentes.

Em primeiro lugar, refira-se que, contrariamente ao que seria desejável, por estar em causa a descrição de factos integrantes do elemento subjetivo do tipo de crime, a redação do ponto 27º não é totalmente cristalina, por misturar o “resultado” da conduta do arguido com a “adequação” da mesma para o alcançar, sendo certo que esta adequação não encerra propriamente um facto, mas mais uma conclusão a extrair das circunstâncias concretas do caso e das características da pessoa visada.
Não obstante, o que resulta desse ponto de facto é que o arguido, com os seus comportamentos descritos nos pontos anteriores, traduzidos no anúncio da prática, no futuro, de atos atentatórios da vida e da integridade física da ofendida, quis amedrontá-la e intimidá-la, o que conseguiu. O acrescento de que isso “se revelou adequado a provocar-lhe sentimentos de insegurança, intranquilidade e de medo, prejudicando a sua liberdade de decisão e de ação”, não pode deixar de significar que também este resultado foi conseguido, ou seja, que a ofendida deixou de se determinar e de agir livremente, sendo, pois condicionada pelo receio, insegurança e intranquilidade em si provocados pelos comportamentos ameaçadores do arguido.

Porém, o que, por seu turno, foi dado como não provado no ponto 34º é que a ofendida tenha ficado limitada, de forma continuada, na sua liberdade de agir e de se deslocar (sublinhado nosso), ou seja, que tenha visto permanentemente afetada a sua liberdade de ação.

No entanto, a limitação desta liberdade de ação, que foi dada como não provada, porque caracterizada por uma continuidade ou permanência no tempo, tem necessariamente um âmbito mais amplo ou abrangente que a liberdade de ação da ofendida cujo prejuízo foi dado como provado no ponto 27º, a qual não é reportada a qualquer período temporal, podendo, pois, ter sido temporária, passageira ou intermitente.

Consequentemente, os factos em confronto não revelam uma incompatibilidade de sentido, por não terem um significado inteiramente coincidente, pelo que não colidem entre si nem se excluem mutuamente.
Não é, pois, correta a alegação de que são contraditórios, não tendo sido simultaneamente dado como provado e como não provado o mesmo facto, o que afasta a existência do vício de contradição insanável da fundamentação.

3.1.4 - No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, verifica-se tal vício quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, bem como quando se violam as regras sobre prova vinculada ou as leges artis.

Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente [7].

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou em dar-se como provado o que não pode ter acontecido [8]. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova. No âmbito do controlo ínsito na identificação desses vícios, o que releva é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

3.1.5 - O recorrente centra o erro notório na apreciação da prova no teor dos pontos 11º e 13º da matéria assente, alegando ser manifestamente impossível “que alguém que conduza uma viatura a alta velocidade consiga alcançar a porta do lado do passageiro”, bem como que “não é de todo plausível, credível ou sequer viável que um condutor conseguisse alcançar a porta do lado do passageiro enquanto conduz desenfreadamente o veículo, desafiando as mais básicas regras da física”.

Atentemos, porém, no teor desses pontos, bem como no intermédio ponto 12º, nos quais foi dado como provado o seguinte:

«11. Após, o arguido circulou com J. F. no seu veículo automóvel a uma velocidade superior ao limite legal de 50KM/h, na freguesia de F..
12. J. F. pediu-lhe para conduzir mais devagar.
13. Ato seguido, J. F. abriu a porta do mencionado veículo automóvel e o arguido agarrou tal porta e fechou-a.»

A alegação do recorrente de que o arguido conduzia a “alta velocidade” e “desenfreadamente”, para além de ser perfeitamente conclusiva, não tem respaldo na matéria de facto provada, da qual apenas consta que o mesmo imprimia ao veículo uma velocidade superior a 50 kms/h, o que comporta valores situados imediatamente a seguir ou próximos desse.

Ora, de modo algum afronta as regras da experiência comum e muito menos as leis da física que um condutor, embora imprimindo ao veículo automóvel uma velocidade dessa ordem de grandeza, consiga alcançar a porta do passageiro da frente, a fim de a agarrar e fechar.
Desde logo porque a largura de um veículo normal o permite, não necessitando sequer o condutor de retirar a mão esquerda do volante. Mas também porque se trata de um ato cuja execução não demora mais que dois ou três segundos, pelo que, mesmo a velocidades bastante superiores a 50 kms/g e, sobretudo em trajetória reta, é perfeitamente possível fazê-lo sem perder o controlo da viatura, naturalmente que com maior ou menor facilidade em função da concreta destreza que se tenha na condução.

De todo o modo, note-se que não resulta da matéria provada que o arguido, antes de agarrar e fechar a porta do lado do passageiro, não tenha reduzido a velocidade a que seguia, de modo a fazê-lo em melhores condições de segurança, tanto mais que, no antecedente ponto 12º é dado como provado que a ofendida lhe pediu para conduzir mais devagar.

Pelo exposto, do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, como seria necessário que sucedesse, não resulta a verificação do erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente, porquanto não se deteta ostensivamente qualquer equívoco resultante de factos do conhecimento geral ou do funcionamento das leis da lógica, da física e da mecânica, o que afasta a existência de um vício de raciocínio na apreciação da prova, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que se traduza em ter-se dado como provado algo que não se provou ou que não pode ter acontecido.
Improcede, pois, este segmento do recurso.

3.2 - Do erro de julgamento

Ainda em sede de recurso sobre a matéria de facto, sustenta o recorrente (conclusões XIV a LIX) que o tribunal a quo não apreciou corretamente a prova produzida em audiência, impondo-se decisão diversa quanto aos factos descritos nos pontos 8º a 15º, 17º e 20º a 28º do elenco da matéria provada, que deverão ser dados como não provados por não se ter feito prova dos mesmos.

3.2.1 – Nos termos do art. 428º, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, sendo que uma das vertentes aqui admitida é a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento.
Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.

Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).

Todavia, conforme jurisprudência constante [9], esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

Como é salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010 [10], «(…) o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação.
A decisão do recurso sobre a matéria de facto exige que aprecie se, no caso concreto, a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, tem efetivo suporte, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem «decisão diversa». (…)
Mas a convicção autónoma sobre o sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar em juízo e ponderação autónomos; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. (…)

Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto tem como pressuposto que o princípio da livre apreciação da prova (e a livre convicção, no sentido materialmente adequado do conceito) não esteja deferido, ou seja passível de aplicação, apenas ao tribunal de 1ª instância, mas também à instância de recurso no limite dos poderes de cognição definidos pela delimitação do recorrente.
A livre convicção do tribunal de recurso substitui-se, nos limites da cognição, à convicção do tribunal recorrido, aceitando-a na identidade de apreciação, ou sobrepondo-lhe, se for o caso, a sua própria convicção

Assim, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Daí a exigência feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar, respetivamente, os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas.

3.2.2 – No caso em apreço, cumprindo os ónus de especificação previstos nessas duas primeiras alíneas, o recorrente indicou nas conclusões, conforme exige o art. 417º, n.º 3, os factos individualizados que constam na sentença recorrida e que considera terem sido incorretamente julgados (pontos 8º a 15º, 17º e 20º a 28º da matéria de facto provada), bem como procedeu à indicação das concretas provas que, em seu entender, impõem decisão diversa (as declarações da ofendida e os depoimentos das testemunhas A. F. e M. F., conjugados com as regras da experiência comum e os costumes), com explicitação, em relação à generalidade dos factos impugnados, do conteúdo específico desses meios de prova e das razões da imperatividade de decisão diferente da recorrida em relação a eles. E, em obediência ao disposto no art. 412º, n.º 4, fê-lo por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do art. 364º, isto é, aos suportes onde se encontra gravada a prova, indicando concretamente os minutos e segundos do início e do termo da gravação das passagens dos depoimentos que suportam a sua tese, que inclusivamente transcreve, permitindo, assim, ao tribunal da relação proceder à fácil localização e audição das mesmas, para além, naturalmente, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 412º, n.º 6).

Entrando na apreciação da impugnação da matéria de facto, importa começar por referir que o recorrente, em termos gerais, faz assentar as razões da discordância relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu a factualidade em apreço na circunstância de o julgador ter atribuído inteira credibilidade aos depoimentos da ofendida e das mencionadas testemunhas, que valorou em detrimento das suas próprias declarações, assentando, pois, a convicção sobre a decisão fática em elementos probatórios que, no seu entender, não permitem dar como provados os factos impugnados.

Não alega, pois, que a descrição que a sentença recorrida, na motivação da decisão, faz do conteúdo desses depoimentos não corresponde ou contraria o que, na realidade, disseram as testemunhas, antes se limitando a sustentar que, ao contrário do que sucedeu, não deveriam ter merecido credibilidade por parte do tribunal a quo ou que não poderiam ser valorados nos termos em que o foram.

Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, bem como por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária dos meios de prova, impondo-lhe a lei que extraia deles um convencimento lógico e motivado, avaliando-os com sentido de responsabilidade e bom senso.

Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Se a decisão factual se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível, optando o julgador por uma das soluções permitidas pelas regras de experiência comum e da lógica, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, havendo antes que demonstrar que as provas indicadas a impõem, conforme resulta expressamente do art. 412º, n.º 3, al. b). Dito de outro modo, é necessária a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que se demonstre não só a possível incorreção decisória, mas a imperatividade de uma diferente convicção.

Ao tribunal de recurso cabe, sem esquecer as limitações decorrentes da falta da imediação, analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.

Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão [11].

3.2.3 - Da leitura da motivação da decisão de facto acima transcrita resulta que, como se impunha, o Exmo. Juiz a quo norteou-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedendo à avaliação global da prova produzida, numa perspetiva crítica, expondo de forma clara, segura e cuidadosa as razões que fundamentam a sua opção decisória.
Em relação aos concretos pontos de facto impugnados pelo recorrente, ou seja, o conjunto dos seus comportamentos que vieram a ser considerandos como integrantes dos elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, a convicção do julgador assentou essencialmente no depoimento da ofendida, considerado como credível.

Com efeito, conforme expressamente consignou na referida motivação, o Exmo. Juiz a quo considerou que a ofendida não deixou a impressão de estar a prestar declarações com animosidade em relação ao arguido ou que procurasse de forma alguma inventar ou empolar os factos para o incriminar, antes depondo com conhecimento direto dos mesmos e considerável objetividade e precisão, sendo perfeitamente compreensível alguma falta de rigor em relação a certas palavras concretamente proferidas.
Para além disso, ponderou a circunstância de o valor desse depoimento ter sido reforçado por terceiros exteriores ao casal, concretamente as testemunhas A. F. e M. F., que percecionaram chamadas telefónicas, o tipo de acusações e de linguagem do arguido, bem como um determinado comportamento deste.
O tribunal a quo fundamentou de forma clara e sustentada as razões de ter decidido a matéria de facto como decidiu, esclarecendo que o depoimento da ofendida lhe mereceu total acolhimento, não apenas pela natureza do relato produzido (objetivo e preciso), mas também por ter sido corroborado pelos mencionados depoimentos testemunhais, explicando, assim, as razões para lhe ter atribuído credibilidade.
Não invoca o recorrente que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo dessas declarações não corresponde ou contraria o que, na realidade, disse a ofendida. E, efetivamente, inexiste qualquer discrepância, porquanto, após audição do registo da prova produzida oralmente, constata-se que aquela não prestou declarações contrárias à forma como o tribunal a quo demonstrou tê-las percebido. Antes se conclui que esse meio de prova, indicado na motivação como sustentáculo da decisão, confere inteira plausibilidade à forma como foi formada a convicção do julgador.

Concretamente, em ordem a pôr em causa a credibilidade atribuída a esse depoimento, invoca o recorrente que a ofendida, em diversos momentos, enunciou animosidade para com o arguido, ao imputar-lhe relacionamentos com outras mulheres, revelando desconfiança e ciúme, bem como que, movida por suspeitas sobre esses eventuais relacionamentos amorosos, decidiu encetar uma autêntica vigilância à residência do mesmo e que sempre o confrontou com tais factos, num constante desafio, pelo que, de acordo com as regras da experiência comum e o normal acontecer, tais comportamentos não se coadunam com o medo e a insegurança referidos por ela, antes revelando uma relação de paridade e de disputa entre ambos.

Porém, após audição integral do respetivo depoimento, em parte alguma se deteta qualquer animosidade da ofendida para com o arguido. Ao invés do que é sustentado no recurso, as suas palavras deixam transparecer que, depois de se ter divorciado do arguido em 2011, nunca teve qualquer vontade nem propósito verdadeiro de reatar o relacionamento com o mesmo, e que apenas o aceitou fazer, em 2013, a insistências dele e como forma de salvaguardar o património do casal e o bem-estar dos filhos (cf., nomeadamente, o respetivo registo magnetofónico a partir do momento 01:02:38), dando claramente a entender que preferia, de longe, viver separada do ex-marido e em paz, de forma a prosseguir com a sua vida.

Por outro lado, da prova oralmente produzida em audiência não resulta minimamente, por não ter sido referido por quem quer que seja, que a ofendida exercesse qualquer vigilância sobre a residência do arguido. Apenas a própria referiu que, efetivamente, num determinado dia aí se deslocou, indo atrás dele de carro, esclarecendo no entanto, com naturalidade, que apenas o fez para tentar perceber o motivo pelo qual o arguido a tratava mal (cf. a partir do minuto 00:51:44).

A circunstância de a ofendida assim ter procedido, bem como de, no dia 10-08-2015, ter confrontado o arguido com o teor das mensagens que na noite anterior tinha visto no telemóvel dele, relativas a conversas e encontros do mesmo com outras mulheres, de modo algum significa que ambos os membros do casal se encontravam numa relação de paridade e de disputa ente si, nem infirma os sentimentos de medo e de insegurança dados como provados (ponto 27º) com base nas próprias declarações da ofendida, pelo que não podem servir para pôr em causa a respetiva credibilidade, conforme pretende o recorrente. Ao invés do alegado por este (nomeadamente na conclusão LXXXIII), ao longo do seu depoimento, a ofendida, por várias vezes e de forma convincente, aludiu ao medo contante que sentia (cf. a partir dos minutos 00:30:48 e 00:35:17).
No que tange ao depoimento da testemunha A. F., que o tribunal a quo valorou no sentido de corroborar as declarações da ofendida, por ter ouvido telefonemas diários para esta, a qual lhe dizia que eram do arguido, alega o recorrente, por um lado, que a testemunha afirmou que nunca ouviu qualquer telefonema, asseverando apenas que ouvia o telefone tocar e que a ofendida lhe dizia ser o arguido, e, por outro lado, que o tribunal a quo não podia recorrer a esse meio de prova para fundamentar a factualidade dada como provada, por constituir depoimento indireto.

Cumpre clarificar que, como claramente resulta da motivação da decisão de facto, neste conspecto, o Mm.º Juiz apenas valorou o depoimento da testemunha A. F. enquanto elemento confirmativo dos factos de a ofendida receber telefonemas diários e de a mesma os atribuir ao arguido, o que contribuiu para corroborar as suas declarações, independentemente de a testemunha não ouvir o teor das palavras proferidas por ele, valoração essa que não merece qualquer reparo.

E também não se diga, como sustenta o recorrente, que estamos perante um depoimento indireto e, como tal, insuscetível de ser valorado, porquanto a testemunha se limitou a relatar factos por si percecionados diretamente, ou seja, o telefone da ofendida a tocar e esta a dizer que tais telefonemas eram do arguido.

Com efeito, a distinção entre depoimento direto e indireto deve ser feita com base na vivência ou não da realidade que se relata. Ou seja, se o depoente viveu e assistiu a essa realidade, o seu depoimento é direto; caso contrário será indireto. Assim, a testemunha tem conhecimento direto dos factos, quando os percecionou de forma imediata e não intermediada, através dos seus próprios sentidos, como é o caso. Já estaremos no âmbito do testemunho indireto ou de “ouvir dizer”, quando a testemunha refere meios de prova, ou seja, aquilo de que se apercebeu foi de outros meios de prova relativos aos factos, mas não imediatamente dos próprios factos.

Ainda a respeito do depoimento da testemunha A. F., a que o tribunal a quo também atendeu para, conjugadamente com o depoimento da ofendida, dar como provada parte da factualidade relativa aos acontecimentos do dia 10-08-2015, o recorrente alega que tais depoimentos são flagrantemente contraditórios quanto ao momento em que a ofendida e o arguido se ausentaram na festa popular, devendo, pois, ser dados como não provados os factos alegadamente ocorridos nessa sequência (vertidos nos pontos 10º a 14º).

Efetivamente, como expressamente consta da motivação da decisão, em relação ao episódio ocorrido naquela data, o Mmº. Juiz valorou o depoimento da testemunha A. F., enquanto elemento corroborador de um dos factos relatado pela ofendida, concretamente a velocidade imprimida ao veículo, pois essa testemunha "referiu ter visto o casal a sair na viatura do arguido e esta a circular a grande velocidade".
Cremos, porém, inexistir a contradição entre os depoimentos, e muito menos flagrante, apontada pelo recorrente com vista a abalar a credibilidade da ofendida.

Com efeito, dos próprios excertos indicados e inclusivamente transcritos, resulta que quer a testemunha A. F. quer a ofendida tiveram, como é natural, alguma dificuldade em precisar a hora a que esta e o arguido se ausentaram do recinto da festa popular. É certo que a ofendida acaba por referir que terá sido à uma da manhã ou após esta hora, uma vez que já foi depois do fogo-de-artifício. No entanto, a testemunha afirmou não fazer ideia e não saber que horas seriam. E embora apontando, de seguida, para as onze (23) horas, apenas apresentou como justificação para tal afirmação o facto de a festa ainda estar animada, não podendo, por isso, ser muito tarde. Ora, é sabido que o espetáculo de fogo-de-artifício constitui um momento alto das festas populares, com grande concentração de pessoas no recinto para a ele assistirem, havendo ainda muita animação.

Como tal, não se vislumbra qualquer contradição entre ambos os depoimentos, sendo certo que a mesma, a existir, sempre seria de pouco ou nulo relevo para, no conjunto do seu depoimento e da demais prova produzida, infirmar a credibilidade da ofendida, por se reportar a um mero pormenor horário, suscetível de erros involuntários e atraiçoamentos da memória.
Em relação ao depoimento da testemunha M. F., progenitor da ofendida, que o Mmº. Juiz valorou para dar como provada a factualidade do ponto 19º, ou seja, o telefonema que o arguido lhe fez, respetiva data e palavras proferidas, alega o recorrente que a testemunha revelou uma especial pretensão retaliatória para com o mesmo, ao afirmar que sempre o aconselhou a pagar o que devia à filha, dando, pois, a entender que o tribunal a quo não lhe deveria ter atribuído credibilidade.
Porém, esse ponto de facto (19º) não foi impugnado, também não resultando da motivação da decisão que o depoimento da testemunha M. F. tenha sido valorado na decisão sobre qualquer outra factualidade, a não ser como elemento meramente corroborador do tipo de acusações e de linguagem que o arguido utilizava nos telefonemas que fazia à ofendida, em virtude de também as ter usado numa chamada que fez para o pai da mesma, referindo-se a ela.

Assim, é inócua a alegação do recorrente a propósito da referida pretensão retaliatória, a qual, de todo o modo, jamais se poderia retirar do excerto de depoimento por si indicado e transcrito, já que a testemunha apenas afirmou «Ele telefonava várias vezes, que eu só lhe dizia … botai a vida para a frente, paga-lhe aquilo que lhe deves e botai a vida para a frente. Disse-lhe eu muitas vezes», palavras estas que soam mais a um conselho do que a qualquer represália.

Por fim, alega o recorrente que as declarações da ofendida, consideradas pelo julgador como objetivas, isentas e rigorosas, se encontram "inquinadas de morte" pelo facto de a mesma, a propósito do acordo patrimonial celebrado com o arguido em 2013, ter dado explicações nada esclarecedoras, uma vez que tanto refere que esse acordo se destinava a ver-se livre do arguido, considerando que "apenas um louco" o aceitaria, como acrescenta, contraditoriamente, que serviria para garantir que o arguido não concretizaria as ameaças de morte. Assim, conclui o recorrente por uma incompatibilidade flagrante entre essas realidades trazidas a julgamento, por não ser verosímil ou provável que alguém que teme pela sua própria vida proponha um acordo por si caracterizado como algo que só um louco aceitaria, não se afigurando ainda razoável, de acordo com as regras da experiência comum, que a alegada vítima, que reclama sentir medo, pavor e insegurança em relação ao arguido, consiga ditar os termos de um acordo desses.
Porém, contrariamente ao alegado pelo recorrente, as explicações fornecidas pela ofendida a propósito do aludido acordo são perfeitamente explícitas e compreensíveis à luz das regras da experiência comum.

Com efeito, a partir dos momentos 00:22:44, 00:36:33 e 01:02:58 das suas declarações, a mesma explicou repetidamente, com espontaneidade e naturalidade, que propôs ao arguido, seu ex-marido, como condição do reatamento da relação afetiva que ele insistentemente pretendia, algo que o mesmo dificilmente aceitaria (transferir para seu nome os bens que tinha recebido na partilha para separação de meações), uma vez que ela não queria retomar a vida em comum, servindo-se, então desse estratagema, como tentativa de se ver livre do ex-marido, o que não tinha conseguido através da justiça, com o divórcio. Mais acrescentou que essa proposta, caso viesse a ser aceite, acabava por atenuar o seu receio de o arguido concretizar as ameaças de morte que lhe dirigia, pois poderia dissuadi-lo de atentar contra a sua vida, já que ficaria definitivamente despojado dos seus bens, por não ser herdeiro da ex-mulher.

Contrariamente ao que o recorrente pretende fazer crer, essa realidade, ainda que algo rebuscada e invulgar, não torna as explicações fornecidas pela ofendida como contrárias às regras da experiência comum ou incompatíveis com o medo e a insegurança por ela sentidos, antes encontrando justificação nesses sentimentos.

Acresce que, também ao invés do sustentado pelo recorrente, de modo algum é incompatível com tais sentimentos o facto de a ofendida, em 2017, se ter deslocado à Suíça, país onde sabia residir e trabalhar o alegado agressor, munida de uma transcrição e tradução da medida de coação imposta ao mesmo, factos relatados pela própria.

Com efeito, a partir do momento 01:06:50 do seu depoimento, a ofendida explica que, apesar de continuar a sentir medo que o arguido concretizasse as ameaças, em meados de 2017, foi passar três meses à Suíça, para trabalhar e angariar algum dinheiro para pagar as suas dívidas, sendo que, não obstante o arguido vivesse longe da localidade para onde ela foi, por razões de segurança, levou consigo uma tradução da medida de coação aplicada nos autos, que inclusivamente exibiu à polícia Suíça, por recear que o arguido a procurasse. Ou seja, mais uma vez, as atitudes da ofendida são compatíveis e encontram justificação nos sentimentos de medo e intranquilidade derivados dos comportamentos do arguido.

Por tudo quanto vem de se expor, é de concluir que a prova de que o tribunal a quo se socorreu para fundar a sua convicção relativamente aos factos impugnados pelo recorrente não se mostra suficientemente infirmada por quaisquer outros meios probatórios, nem se vê que a avaliação que dela foi feita careça de razoabilidade ou viole as regras da experiência comum, tendo sido analisada e valorada com integral respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, que, assim, não se mostra violado.
De modo algum invalida tal conclusão a circunstância de a prova produzida em audiência assentar essencialmente nas declarações da própria vítima, uma vez que, como o Mmº. Juiz a quo teve o cuidado de mencionar nas notas preliminares da motivação da decisão de facto, conforme é habitual nas situações de violência doméstica, as situações em apreço terão na sua maioria ocorrido na intimidade do casal, fora dos olhares de terceiros, pelo que apenas a ofendida e o arguido terão conhecimento direto dos factos.
Ora, quanto ao arguido, tal como é observado na motivação da decisão de facto, com o que se concorda inteiramente, o mesmo limitou-se a negar perentoriamente as chamadas telefónicas, sem oferecer uma explicação do motivo pelo qual a ofendida o estaria a incriminar, bem como, em relação ao episódio do dia 10-08-2015, a dizer que nada tinha ocorrido, não fornecendo nenhuma explicação nem versão alternativa dos factos, não sendo percetível qualquer motivo para a ofendida os invocar em concreto, pelo que deixou ao tribunal a impressão de que ele estaria a faltar à verdade. Nenhuma censura merece, pois, a descredibilização das declarações do arguido por parte do tribunal a quo.
Acresce que, conforme supra explicitado, para onde remetemos, as declarações da ofendida, só por si isentas e credíveis, foram ainda objeto de corroborações periféricas, mormente o depoimento das testemunhas A. F. (ao confirmar factos acessórios relativos aos acontecimentos dia 10-08-2015) e M. F. (pai da mesma e a quem o arguido também enviou mensagens escritas de teor semelhante às enviadas a ela), bem como a transcrição das mensagens, juntas a fls. 7, 8, 54 e 55.

Em suma, a prova produzida em audiência, permite claramente concluir pela verificação dos factos ora impugnados, sem qualquer afrontamento das regras da experiência comum ou apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, nada havendo a alterar.

Por conseguinte, improcede este segmento do recurso.

3.3 - Do preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica

Subsidiariamente, para o caso de improceder a impugnação da matéria de facto, como acabámos de concluir que acontece, sustenta ainda o recorrente (conclusões LX a XC) que o tribunal a quo errou na qualificação jurídica da matéria de facto dada como provada, por esta não ser suficiente para integrar os elementos típicos do crime de violência doméstica.

Para tanto, alega, em suma, que a sua conduta objetivada nessa factualidade, quer pela respetiva imagem global, quer pela gravidade dos específicos atos que a compõem, não traduz qualquer prevalência, dominação ou abuso de poder na relação afetiva com a ofendida, a ponto de consubstanciar um qualquer atentado relevante à dignidade pessoal da mesma, que permita qualificar as suas atitudes como condutas maltratantes, seja ao nível físico, seja ao nível psíquico, em decorrência do que pugna pela sua absolvição do crime de violência doméstica e, consequentemente, do correspondente pedido de indemnização civil, devendo apenas ser considerados preenchidos os elementos típicos dos crimes de injúria e de ameaça.

3.3.1 - Nos termos do art. 152º, n.º 1, als. a) e c), do Código Penal, comete o crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado "quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdades e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge ou a progenitor de descendente comum em 1º grau".

A propósito do bem jurídico a que este ilícito se encontra vinculado, observa Nuno Brandão [12] que “ (…) o crime de violência doméstica assume não a natureza de crime de dano, mas de crime de perigo, nomeadamente, de crime de perigo abstrato. É, com efeito, o perigo para a saúde do objeto de ação alvo da conduta agressora que constitui motivo da criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstrato (…) Sendo dado o devido relevo a este último aspeto justificativo da criminalização da violência doméstica, poderão superar-se eventuais objeções opostas a esta conceção fundadas na dificuldade em explicar por que razão a violência doméstica é punida mais severamente que a ofensa à integridade física se ambas protegem o mesmo bem jurídico e esta constitui crime de dano e aquela mero crime de perigo abstrato, com a concomitante pos­sibilidade de por esta razão a ofensa à integridade física ter prevalência sobre a aplicação da violência doméstica em caso de concurso. Reservas que todavia se mostrarão infundadas se os maus tratos forem encarados na perspetiva da ameaça de prejuízo sério e frequentemente irreversível que os mesmos em regra comportam para a paz e o bem-estar espirituais da vítima. Acresce que aqui sim e para este efeito deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto. Tudo o que empresta à violência doméstica um grau de anti juridicidade que transcende o da mera ofensa à integridade física e assim justifica a sua punição mais severa e a sua prevalência em sede de concurso”.

Em sentido convergente se pronuncia André Lamas Leite [13], ao salientar que se trata de um bem jurídico “multímodo”, em que «o fundamento último das ações e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo», sendo «uma concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25º da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26º, n.º 1, da Constituição), nas dimensões não recobertas pelo art. 25º da Lei Fundamental, ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana», e que «(…) a degradação, centrada na pessoa do ofendido, desses valores jurídico constitucionais deve ser a pergunta operatória no distinguo entre o crime de violência doméstica e todos os outros que, por via do até aqui designado “concurso legal”, com ele se relacionam».

Designa-se, pois, por violência doméstica todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação familiar ou de união de facto ou somente de namoro, podendo tomar a forma de violência psicológica e mental (maus tratos psíquicos), que inclui agressões verbais, ameaças, humilhações, provocações, perseguições, clausura, privação de recurso físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos, ou de violência física (maus tratos físicos), que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, murros até espancamentos, ou ainda de privações da liberdade ou ofensas sexuais. O bem jurídico protegido é, assim, plural e complexo, visando essencialmente a defesa da integridade pessoal, nas suas vertentes física, psíquica e mental, e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.

Com efeito, a conduta típica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.

O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como, por exemplo, ofensa à integridade física, injúria ou ameaça. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação [14].

O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.

Conforme já vinha sendo salientado antes da revisão do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, o preenchimento deste tipo legal de crime não se basta, em princípio, com uma ação isolada, embora também não se exija a habitualidade da conduta. Na verdade, o crime realiza-se normalmente com a reiteração do comportamento de maus tratos físicos ou psíquicos, em determinado período de tempo. Caso não se verifique essa reiteração, recair-se-á, pelo menos, no domínio das ofensas à integridade física. Todavia, a verificação de tal crime não exige uma conduta plúrima e repetitiva ou a reiteração da conduta agressiva, já que a punição sempre ocorrerá quando a gravidade das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afetação da sua saúde (física ou psíquica). Aliás, atualmente o texto da lei é expresso a esse ponto, ao incluir o segmento alternativo “de modo reiterado ou não”.

3.3.2 - No caso vertente, os comportamentos do arguido para com a sua ex-mulher, com quem entretanto voltou a viver em condições análogas às dos cônjuges, e também mãe dos seus filhos, consistiram em, a partir de março de 2015, encontrando-se ele na Suíça e ela em Portugal, telefonar quase diariamente para o telemóvel e para o telefone fixo da mesma, dizendo-lhe «tens dois amantes, um em Vila Real e outro em Mirandela» e «vais para a discoteca em Macedo de Cavaleiros», sendo que no dia 10-08-2015, depois de regressar ao nosso país, lhe disse «hoje tenho confirmado que és a maior puta que existe no mundo», «é hoje que rebento contigo», após o que, seguindo ambos no veículo automóvel conduzido pelo arguido, quando a ofendida abriu a porta para sair em andamento, ele agarrou tal porta e fechou-a, impedindo-a, assim, de o fazer.
Ainda nesse dia, o arguido disse à ofendida «é fácil vir do estrangeiro e matar-te, ninguém sabe que estive cá» e «és a maior puta que conheço».
Acresce que, após a ofendida ter terminado, no referido dia, a relação com o arguido, passando a viver em habitações separadas, este, em agosto de 2015 disse-lhe «tenho uma arma tão precisa que do Santuário de F. acerto-te na cabeça sem que ninguém se aperceba».

Prosseguindo com esse tipo de condutas, durante o mês de agosto de 2015, o arguido enviou para o telemóvel da ofendida as seguintes mensagens escritas:

- no dia 13, um total de cinco, a horas diferentes, dizendo: «Deus te ajude como me desejas a mim», «É só para te avisar tem cuidado», «os larápios temem uma sentença», «Só para te informar a ladra vai morrer queimada» e «A ladra que vá aproveitando bem os dias a chama pode chegar», perfazendo cinco mensagens, cada uma enviada à sua hora;
- no dia 17, com o teor: «Tu a mim roubasteme os carros e o tractor eu de recompensa voute ficar com o cérebro porque é enteligente»;
- no dia 18, com o texto: «Diz lá ao teu pauzinho que ladrão e ele e ensinoute a ti porque o mutor mandastemo trazer tu e depois não te importaste de mais nada nem quiseste saber quando te falei tende cuidado quem está a roubar sois vos mas não vos vai servir de nada nunca vi nenhum ladrão feliz nem com saúde»;
- no dia 19, três mensagens, a horas diferentes, dizendo: «Podes me evitar mas quando menos esperares só vais ouvir um olá sabes que não vou ficar a dever nada a ninguém não te digo o dia nem a hora de chegada», «não te esqueças encuanto aí tiveres algo teu tu vais pagar o que me roubaste» e «o teu pai sabe que não demora no caralho em vez de te atiçar para roubares não te ensina a ser uma pessoa onesta e menos aldrabona era bom para ele assim irá para o inferno sim pessoas como ele não merece outra coisa mas ele lá vê como a minha filha é enteligente e o roubou assim ele irá lhe guardar cérebro para recordação Eu concordo».
- no dia 20, com o conteúdo: «Bondia só para dizer a vida está a perder sentido cada dia mais por isso só há um caminho beijinhos».
- no dia 22, com o texto: «Desprezado por ti e pela tua filha se esto assim continua só há uma solução».

Tais comportamentos integram uma reiteração de maus tratos psíquicos, traduzidos em sofrimento moral, derivado das múltiplas injúrias e ameaças de morte, com foros de seriedade, nomeadamente com alusão a armas de fogo, sendo o arguido efetivamente possuidor de quatro armas dessa natureza, proferidas através do telefone e também pessoalmente, tendo-se demonstrado que a ofendida, para além do vexame, humilhação e constante sobressalto sofridos, ficou amedrontada, intimidada, insegura e intranquila, a ponto de ver prejudicada a sua liberdade de decisão e de ação, por recear que o arguido concretizasse as ameaças e atentasse conta a sua vida e integridade física.
Maus tratos psíquicos estes que apresentam gravidade para poderem ser enquadrados no crime de violência doméstica, na medida em que são claramente atentatórios da dignidade humana e violadores da pessoa da ofendida, com afetação da sua saúde psíquica, causando-lhe forte sofrimento moral, devido ao clima de medo, insegurança e intranquilidade em que passou a viver.

Em suma, apuraram-se atos que, perspetivados em conjunto, se traduzem num comportamento global do arguido que afeta a dignidade e a integridade psíquica da ofendida, sua ex-mulher, mas com quem voltara a viver em união de facto, e mãe dos seus filhos, com efeitos destrutivos na vivência pessoal e social desta, termos em que tal atuação preenche na sua plenitude o conceito de maus tratos psíquicos consagrado no artigo 152º, n.ºs 1, als. a) e c), do Código Penal, pelo qual o mesmo foi condenado em primeira instância.

Não tem, pois, razão o recorrente quando invoca a existência de erro na qualificação jurídica da matéria de facto provada, alegando que esta é insuficiente para integrar o ilícito de violência doméstica, por não traduzir qualquer prevalência, dominação ou abuso de poder na relação afetiva com a ofendida, a ponto de consubstanciar um qualquer atentado relevante à sua dignidade pessoal, preenchendo apenas os pressupostos dos crimes de injúria e de ameaça.

É inquestionável que, como o mesmo alega, citando o acórdão desta Relação de 02-11-2015 [15], embora o tipo legal de crime de violência doméstica cubra ações típicas que já encontram previsão noutros tipos legais, nomeadamente ofensa à integridade física, injúria e ameaça, não pode ser visto como reconduzindo-se à punição de um qualquer somatório de comportamentos deste tipo, ocorridos entre pessoas que, a ligá-las, tenham ou tenham tido uma qualquer relação de proximidade familiar ou afetiva. O seu fundamento deve ser encontrado na proteção de quem, no âmbito de uma concreta relação interpessoal, vê a sua integridade pessoal, liberdade e segurança ameaçadas com tais condutas, sendo, pois, o enfoque colocado na situação relacional existente entre agressor e vítima.

Daí a afirmação, feita nesse aresto, de que «este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação», sendo este «o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual».

Como igualmente acentua o acórdão da Relação do Porto de 28-09-2011 [16], citado naquele outro aresto, «no ilícito de violência doméstica é objetivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima».

Sucede que, no caso vertente, conforme supra explicitado, a caracterização de uma posição de dominação e de prevalência do arguido sobre a vítima, com a consequente subjugação desta, resulta suficientemente caracterizada em face dos múltiplos e reiterados atos de injúria e, sobretudo, de ameaça de morte praticados pelo arguido, deixando a ofendida amedrontada, intimidada e intranquila, a ponto de ver prejudicada a sua liberdade de decisão e de ação, em suma, violando a sua dignidade pessoal, tudo conforme emerge da matéria de facto provada.

Não merece, pois, censura o enquadramento jurídico dos factos efetuado na sentença recorrida, termos em que também nesta parte improcede o recurso.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, L. V., confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 04 de junho de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(Fernando Monterroso)


[1]- Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
[2]- Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
[3]- Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão citado na nota anterior.
[4]- Cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª edição, pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª edição, pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, pág. 77 e ss..
[5]- Processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3ª Secção, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6]- In Código de Processo Penal anotado, II volume, 2ª edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379.
[7]- Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341.
[8]- Vd. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, pág. 74.
[9]- Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[10]- Proferido no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[11]- Cf. o acórdão do STJ de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
[12]- “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, in Revista Julgar, 12 (Especial), págs. 9 a 24.
[13]- “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia”, in Revista Julgar, 12 (Especial), págs. 25 a 66.
[14]- Vd. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132, e Conde Fernandes, in Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305.
[15]- Proferido no processo n.º 77/14.1TAAVV.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[16]- Proferido no processo n.º 170/10.0GAVLC.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.