Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO MONTERROSO | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/31/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I – No caso do IVA, só há crime de abuso de confiança fiscal quando o agente não procede à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para o efeito, do montante de imposto já efetivamente recebido. II – O facto do arguido ter efetivamente recebido as quantias de IVA em causa antes do termo do prazo para a sua entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, que tem de constar da acusação, por força do «princípio da acusação», sob pena de esta improceder. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães No 2º Juízo Criminal de Guimarães, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 250/12.7IDBRG), foi proferida sentença que: a) Condenou a arguida “P..., Lda.” pela prática a 16.02.2012 de um crime de abuso de confiança fiscal (IVA – 4.º trimestre de 2011), p. e p. pelos art.ºs 7º e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa à razão diária de € 25,00 (vinte e cinco euros) no valor global de € 6.250,00 (seis mil, duzentos e cinquenta euros); e b) Condenou o arguido Rui P... pela prática a 16.02.2012 de um crime de abuso de confiança fiscal (IVA – 4.ºtrimestre de 2011), p. e p. pelos art.ºs 6.º e 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 165 (cento e sessenta e cinco) dias de multa à razão diária de € 6,00 (seis euros), no valor global de € 990,00 (novecentos e noventa euros); * O arguido “P..., Lda.” e Rui P... interpuseram recurso desta sentença.
Suscitam as seguintes questões: - invocam a existência do erro notório na apreciação da prova – art. 410 nº 2 al. c) do CPP; - na data legal para a entrega ainda não tinham ainda sido recebidas pelos arguidos todas as quantias de IVA em causa; - havia que apurar se as quantias efetivamente recebidas e não entregues eram superiores a 7.500,00; - a sentença padece da nulidade prevista no art. 379 nº 1 al. a) do CPP, por, nessa parte, não ter sido observado o disposto no art. 374 nº 2 do CPP; - subsidiariamente, devem ser reduzidas as penas aplicadas. * Respondendo, o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso. Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta suscitou a seguinte questão: A confissão em que se fundamenta a condenação não pode ser considerada integral e sem reservas, ao contrário do que decorre da motivação da sentença e da ata de fls. 223, pois, ouvida a gravação das declarações prestadas pelo arguido, constata-se que ele declarou não ter recebido, pelo menos integralmente, a prestação tributária em causa nestes autos. Em consequência, deve ser repetido o julgamento sobre toda a matéria da acusação. Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * 1. A sociedade arguida na qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais, encontra-se colectada pela actividade de confecção de outro vestuário exterior em série (CAE 014231), tem como competente o Serviço de Finanças de Vizela; e está enquadrado para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral. 2. Rui P..., na qualidade de sócio e gerente da sociedade arguida, realizou, em nome desta, operações tributáveis tendo procedido ao apuramento do IVA exigível e ao envio das respectivas declarações periódicas. 3. Deste modo, nos meses de Outubro a Dezembro de 2011, no desenvolvimento da sua actividade, a sociedade arguida realizou operações tributáveis traduzidas na prestação de serviços, a título oneroso, tendo emitido facturas (nas quais colocou o preço dos serviços prestados e liquidou o IVA, que fez incidir sobre aquela base tributável, à taxa legal em vigor no momento da liquidação), enviou a declaração periódica, liquidando IVA no montante total de € 9.826,79 (nove mil, oitocentos e vinte e seis euros, setenta e nove cêntimos). 4. Tal quantia deveria ter dado entrada nos serviços da Administração Fiscal até ao dia 15 de Fevereiro de 2012, data limite de pagamento. 5. Porém, os arguidos, apesar de saberem que estavam legalmente obrigados a faze-lo, não entregaram a mesma à Administração Fiscal, nem naquela data nem nos 90 (noventa) dias subsequentes. 6. O arguido Rui P..., por si e em representação da sociedade arguida, também não procederam ao pagamento da indicada quantia de IVA, acrescida de juros respectivos e valor da coima aplicável, no prazo de trinta dias a contar das notificação que lhes foram feitas, nos termos do disposto no artigo 105º, n.º4, alínea b), do RGIT a 3 de Agosto de 2012. 7. Desse modo, o arguido Rui P... fez ingressar na esfera patrimonial da sociedade arguida a quantia € 9.826,79 (nove mil, oitocentos e vinte e seis euros, setenta e nove cêntimos) de IVA, que a fez sua e dela dispôs, gastando-a em proveito próprio no seu giro comercial, sem que tenha sido realizada qualquer diligência no sentido da sua regularização. 8. Ao não entregar nos cofres do Estado o IVA relativo àquele período até à data limite da sua entrega, nem nos 90 (noventa) dias subsequentes, ou nos 30 dias posteriores a ter sido notificado para esse efeito, conforme o devia de fazer, o arguido Rui P... agiu de forma livre, voluntária e consciente, no interesse, em nome e representação da sociedade arguida, e com a intenção concretizada de obter para aquela sociedade, uma vantagem patrimonial indevida, bem sabendo que desse modo diminuía as receitas fiscais do Estado. 9. Tinha perfeito conhecimento que o seu comportamento era proibido e punido por lei. Criminal. Da defesa (e na sequência do julgamento): 10. À data dos fatos, a arguida sociedade tinha entre 10 a 12 trabalhadores, a receber, em média, o salário mínimo nacional; cerca de €800,00/mês de despesas com eletricidade; € 500,00/mês de despesa com renda das instalações onde labora. 11 A quantia supra mencionada como retida serviu para liquidar as despesas correntes e vindas de referir em 10, porque houve descontrolo nas contas da sociedade na sequência de atrasos de pagamentos por parte de clientes. 12. Em Abril de 2012, a arguida sociedade propôs acordo de pagamento da dívida em 12 prestações, o que foi deferido e cumprido; a última prestação foi paga em Abril de 2013. Apurou-se ainda que: 13. O arguido Rui P... tem o 11.º ano de escolaridade. 14. O arguido Rui P... aufere, em média, € 500,00/mês e pode dispor dos veículos da sociedade arguida. 15. O arguido é casado, sendo a sua mulher educadora de infância, auferindo esta, em média, € 900,00/mês líquidos. 16. O arguido e seu agregado familiar vivem em casa própria, pela qual amortizam um empréstimo bancário em valor não concretamente apurado mas não superior a € 300,00/mês. 17. O arguido é pai de uma menina com 04 anos de idade. 18. O arguido e seu agregado familiar têm um BMW série 1 do ano de matrícula de 2010. 19. O arguido já foi julgado e condenado: - PCS 2304/08.5TAGMR, do 3.º Juizo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães – por decisão datada de 14.12.2011 e transitada em julgado a 26.01.2012, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social a 15.05.2008, na pena de 180 dias de multa, à razão diária de € 6,00. 20. Atualmente, a arguida sociedade tem 34/35 trabalhadores, a auferir, em média, o salário mínimo nacional; despesas com eletricidade em média de € 1.200,00/mês; duas viaturas de transporte de mercadoria; uma divida à Segurança Social, de valor não concretamente apurado; e valores de imposto do 2.º e 3.º trimestre de 2012 por liquidar (mas que não ultrapassam os € 7.500,00). 21. A arguida sociedade não tem antecedentes criminais. * FUNDAMENTAÇÃOSuscita-se a questão prévia de saber se os factos narrados na acusação eram suficientes para a condenação. * Os factos provados dos pontos nºs 1 a 9 da sentença reproduzem, ponto por ponto, os factos narrados nos pontos 1 a 9 da acusação. Está em causa a prática pelos arguidos de um crime de abuso de confiança fiscal, decorrente de não terem entregue ao Fisco, até 16-2-2012, as quantias de IVA relativas ao 4º trimestre de 2011. Conforme jurisprudência atualmente largamente maioritária, se não uniforme, no caso do IVA, só há crime de abuso de confiança fiscal quando o agente não procede à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para o efeito, do montante de imposto já efetivamente recebido – v acs. desta relação proferidos nos recursos 520/11.1IDBRG.G1 (relator Cruz Bucho); 412/11.4IDGRG.G1 (relator João Lee Ferreira); 194/08.7IDBRG.G2 (relatora Nazaré Saraiva); e 103/11.6IDBRG.G1 (com o mesmo relator deste acórdão), disponíveis no ITIJ. [Uma vez recebido o montante de IVA, o obrigado tributário apenas fica depositário dos valores correspondentes, que passam a pertencer ao fisco, perante quem tem a obrigação legal de os entregar. É esta não entrega que é criminalmente punível e não a simples omissão de um pagamento. A norma do art. 105 nº 1 do RGIT não pune quem não pagar um imposto, mas, diferentemente, “quem não entregar à administração tributária (…) prestação deduzida nos termos da lei”. Só pode omitir a “entrega” de alguma coisa, quem a tiver, ou já tiver tido, em seu poder. Enquanto o obrigado tributário não receber os valores do IVA não pode cometer um crime de “abuso de confiança”. * A imputação de que os arguidos já tinham recebido as quantias de IVA quando decorreu o prazo para a sua entrega ao Fisco, é «facto» que não consta da acusação e tinha de constar, pois a ela compete a alegação e prova de todos os elementos constitutivos do crime. O facto do efetivo recebimento pelos arguidos das quantias de IVA ter ocorrido antes do termo do prazo para a entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, sendo a sua prova requisito da condenação. Como tal tem de constar da acusação, pois, por força do «princípio da acusação», o tribunal só julga dentro dos limites de «facto» que lhe são postos por ela. Não vigorando no processo penal as regras do ónus da prova do processo civil, não é ao arguido que compete a alegação e prova do «facto» de que ainda não tinha recebido as quantias, enquanto facto “impeditivo” da “pretensão” da acusação. Porém, como se referiu, esse facto, ou outro com igual alcance, não consta da acusação. Vejamos: No ponto 3 afirma-se que a sociedade arguida “P..., Lda.” enviou a declaração periódica liquidando IVA no montante total de € 9.826,79; Nos pontos 4 a 6 alega-se que, devendo tal quantia ter dado entrada nos serviços da Administração Fiscal até ao dia 15 de Fevereiro de 2012, não foi entregue pelos arguidos; Finalmente, no ponto 7 consta que “desse modo, o arguido Rui P... fez ingressar na esfera patrimonial da sociedade arguida a quantia € 9.826,79”, que a fez sua e dela dispôs, gastando-a em proveito próprio no seu giro comercial…”. Além de ser uma frase conclusiva (a expressão “desse modo” no início da frase indica tratar-se duma conclusão extraída do facto nº 6), é uma redação compatível com a hipótese do recebimento do IVA ter ocorrido após o termo do prazo legal para a entrega ao Fisco. Os factos nos 8 e 9 da acusação tratam dos chamados elementos subjetivos do crime. * Não contendo a acusação factos suficientes para a condenação dos arguidos, não pode o tribunal, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal, alargar a investigação a outros factos que permitam a condenação. É que a acusação fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do tribunal. Trata-se de uma decorrência do princípio do acusatório que, nos termos do art. 32 nº 5 da Constituição, estrutura o processo penal. Deverá conter a «narração» de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido da pena – art. 283 nº 3 al. b) do CPP. Por outro lado, a «narração» dos factos feita na acusação não deve deixar margem para dúvidas sobre os factos ou incidências processuais a que se refere. Isso impede o uso de meras fórmulas genéricas e tabelioas que, de tão abrangentes, nada concretizam. * Por isso, é irrelevante (para a condenação) que na parte da motivação da decisão sobre a matéria de facto sentença se refira “a faturação, extrato de conta corrente e recibos de quitação de fls, 53 a 104 emitidos pela arguida sociedade aos seus clientes, donde se verifica ter havido prestação de serviços, ter sido cobrado IVA pelos mesmos e terem tais serviços e IVA sido pagos (e pela totalidade)” (sublinhado do relator).
Trata-se duma fundamentação que, ainda assim, não esclarece se os pagamentos ocorreram antes ou depois do prazo legal para a entrega. Porém, repete-se, não é esse o ponto decisivo, mas a circunstância de, sendo elemento constitutivo do crime o efetivo recebimento pelos arguidos, até ao termo do prazo legal, das quantias de IVA, ter de constar da acusação factos que permitam o juízo inequívoco de que tal aconteceu. Só mais uma nota: |