Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5077/18.0T8BRG-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
ADMISSIBILIDADE
CONFISSÃO DE FACTOS
DIREITOS INDISPONÍVEIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - O depoimento de parte é o meio processual que a lei adjetiva põe ao serviço do direito probatório substantivo para provocar a confissão judicial.

2 - Só pode ser exigido quando esteja em causa o reconhecimento pelo depoente de factos cujas consequência jurídicas lhe são prejudiciais (facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária).

3 – Discutindo-se direitos indisponíveis – ação de impugnação de paternidade - e não admitindo a lei a confissão de factos relativos aos mesmos, não é admissível o depoimento de parte.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Em ação de impugnação de paternidade presumida intentada por J. J. contra M. J. e K. A., com o fundamento de que a menor K. A. apenas foi registada como filha do demandante por força da presunção de que os filhos de mulher casada têm como pai o marido desta, apesar de a referida menor não ser sua filha, veio o demandante interpor recurso do despacho que não admitiu o depoimento de parte da ré M. J. “face ao disposto no artigo 354.º, alínea b) do CC”.

Juntou alegação, que finalizou com as seguintes

Conclusões:

A) O Douto Despacho de fls .... e do qual se recorre, deveria ter deferido o depoimento de parte da Demandada M. J. requerido pelo Recorrente quanto à matéria discriminada na Petição Inicial;
B) Deverá optar-se pela admissibilidade do depoimento de parte por ser aquela que melhor conjuga todos os interesses em jogo e por não se encontrar excluída a sua admissibilidade, antes se afigurando estar pressuposta;
C) Com efeito, o próprio tribunal não está inibido de, num caso como o dos autos, ouvir oficiosamente qualquer das partes, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 452.° do Código de Processo Civil;
D) Não se encontra justificação material ou processual para impedir uma parte de requerer o depoimento de parte em relação à outra, nas mesmas circunstâncias;
E) Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, a propósito da impossibilidade de confissão nas acções sobre o estado das pessoas « ...O que repugna à lei não é o reconhecimento do facto, mas a subordinação da livre averiguação da verdade à declaração unilateral ou isolada de uma pessoa;
F) Embora o depoimento de parte seja o meio comum para obter a confissão, não se esgota nesta;
G) Muito embora o depoimento de parte seja o meio processual comummente previsto para provocar a confissão da parte, nem as disposições legais do Código Civil, nem as do Código de Processo Civil obstam a que, nos casos em que a acção versa sobre direitos indisponíveis, uma parte requeira o depoimento de parte da outra;
H) Para efeitos de deferimento ou não de um depoimento de parte, relevam, apenas, as circunstâncias de os factos indicados no respectivo requerimento constituírem ou não factos pessoais e o direito em causa estar ou não subtraído ao domínio da vontade das partes, e não, também, as eventuais virtualidades probatórias do referido do depoimento, "no que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte";
I) Relativamente ao depoimento de parte requerido pelo Recorrente, constituem factos pessoais todos os indicados por este na PI e como tal, deverá o requerido depoimento de parte da Demandada M. J. ser admitido;
J) O requerido depoimento de parte da Demandada M. J. deve ser admitido, ao contrário do que foi decidido;
K) O cerne da questão tem a ver com o facto de, estarmos na presença de direitos indisponíveis;
L) A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade dum facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária - art°352° do CC;
M) Nos termos do art.º 354°, alínea b) do CC, a confissão é inadmissível se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis;
N) As relações de filiação são do interesse do Estado e devem obedecer aos valores de certeza, segurança e paz social;
O) Hoje, com os meios técnicos, felizmente, ao dispor, cada vez mais, a filiação é demonstrada por prova direta e corresponde à verdade biológica;
P) A filiação pode ser demonstrada cientificamente e deve corresponder, em regra, à verdade biológica;
Q) Não é o depoimento de parte a prova decisiva para se conseguir aferir da paternidade, no que ao Recorrente diz respeito.
R) Numa acção de investigação de paternidade intentada pelo progenitor/Recorrente, a mãe/Demandada M. J. deve ser ouvida, como parte;
S) Não se visa, deste modo, obter a confissão, mas esclarecer a verdade, e dessa forma não se descaracteriza, o fim do depoimento de parte.
T) Deveria o Tribunal a quo ter admitido o depoimento de parte da Demandada M. J. à matéria indicada pelo Recorrente na sua Petição Inicial.
U) O Tribunal a quo decidiu erradamente quando decidiu não admitir o depoimento de parte da Demandada M. J. quanto à matéria discriminada na Petição Inicial;
V) Por conseguinte, foram violadas as normas dos artigos 452º, 453°, 454°, do Código de Processo Civil e artigo 352°, 353°, 354° e 361° do Código Civil, assim como os artigos 12°, 13º, 18º, 25º e 26° da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE,

Nos melhores de direito e com mui douto suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS, deve conceder-se provimento ao Recurso, revogando-se o Douto Despacho proferido pelo Tribunal a quo (fls .... ) e substituir-se por outro que decida pelo deferimento do depoimento de parte da Demandada M. J. requerido pelo Recorrente quanto à matéria discriminada na Petição Inicial por este deduzida, assim, fazendo, como sempre, serena e objectiva JUSTIÇA.

A ré M. J. contra alegou, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.
No mesmo sentido, contra alegou o Ministério Público.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver traduz-se em saber se deveria ter sido admitido o requerido depoimento de parte da ré M. J..

II. FUNDAMENTAÇÃO

A matéria de facto com interesse para a decisão é a que resulta do relatório supra.

A questão em análise neste recurso é a da admissibilidade do depoimento de parte da ré, requerido pelo autor, em ação de impugnação de paternidade, pese embora, nas suas alegações, o apelante tenda a confundir a questão da admissibilidade, com a questão da livre apreciação do depoimento de parte sem caráter confessório.

São questões diversas, pois a primeira diz respeito à apreciação do requerimento probatório – é o que está em causa nos autos – e a segunda diz respeito ao valor probatório de depoimento prestado (sabido como é que o juiz, no depoimento de parte “não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher alguns elementos para a boa decisão da causa, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova” – a título exemplificativo, veja-se os Acórdãos do STJ de 16/03/2011 e da Relação de Lisboa de 31/05/2011, ambos em www.dgsi.pt – com consagração legal no artigo 361.º do Código Civil). Como já supra referimos, a questão em apreço não é a da apreciação do valor probatório de um depoimento prestado, mas a da admissibilidade da sua prestação.
Vejamos melhor, então, a questão da admissibilidade do depoimento de parte.

A lei processual não fornece um conceito de depoimento de parte. Limita-se a dispor sobre quem pode prestá-lo e de quem pode ser exigido – artigo 453.º do CPC - e sobre que factos pode recair do ponto de vista da sua relação com a pessoa do depoente – artigo 454.º do CPC. Estabelece, ainda, a forma como deve ser requerido – artigo 452.º, n.º 2 do CPC – e como e quando deve ser prestado – artigos 456.º a 463.º do CPC.
Este meio de prova “depoimento de parte” encontra-se previsto no artigo 452.º do CPC, norma que se integra na secção epigrafada “prova por confissão das partes”
A confissão, meio de prova, define-a a lei substantiva como «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária» - artigo 352.º C. Civil.
Daqui decorre, conjugando regimes, que o depoimento de parte é o meio processual que a lei adjectiva põe ao serviço do direito probatório substantivo para provocar a confissão judicial, como expressamente previsto no artigo 356.º, n.º 2 do C. Civil.
Ora, se depoimento de parte se destina a provocar a confissão da parte e se esta, pelo seu objecto, implica o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente e que favorecem a posição da parte contrária, então bem se compreende que o depoimento só possa ser exigido quando esteja em causa o reconhecimento pelo depoente de factos "cujas consequência jurídicas lhe são prejudiciais e cuja prova competiria, portanto, à parte contrária, nos termos do artigo 342.º do Código Civil» (M. ANDRADE, "Noções Elementares e Processo Civil", 1976, pg. 240, citado no Acórdão do STJ de 27/01/2004 (Alves Velho) 03A3530).
Mas isto só é assim quanto aos factos relativos a direitos disponíveis, ou seja, factos susceptíveis de serem confessados.
A história destes preceitos ajuda a clarificar o assunto.
Estabelecia o artigo 560º, n.º 2, do CPC de 1961 (redacção dada pelo DL 44129 de 28/12/61) que não é admissível o depoimento sobre factos relativos a direitos indisponíveis.
Esta norma veio a ser revogada pelo DL. n.º 47690 de 11/05/67, em cujo preâmbulo se refere que as modificações introduzidas pelo referido diploma têm como fim quase exclusivo consagrar as inovações e as alterações exigidas pela entrada em vigor da nova lei civil.
Assim, foi a entrada em vigor do Código Civil de 1966, no qual se passou a prever a prova por confissão (artigos 352º a 361º), que determinou a eliminação do CPC de 1961, redacção originária, as normas sobre aquele meio de prova.
Porém, a lei civil passou a prescrever (artigo 354º, al. b)) que a confissão não faz prova contra o confitente se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis.

Referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto (in CPC Anotado Vol 2º, pag.s. 464/465), que relativamente à proposta formulada pela Ordem dos Advogados no sentido de se consagrar, quando da revisão de 1995-1996, a figura do testemunho de parte, livremente valorável em todo o seu conteúdo, esta não veio a ser perfilhada, consagrando-se apenas a possibilidade do juiz poder oficiosamente determinar a prestação de depoimento de qualquer das partes (art. 552º, n.º1, do CPC).

Logo, tem sido entendido que admitir-se que as partes pudessem ser chamadas a depor sobre factos relativos a direitos indisponíveis, tal traduziria, na prática, a consagração legal da figura do testemunho de parte que a comissão revisora do CPC rejeitou, concluindo-se pela não admissibilidade do depoimento de parte quando estejam em causa direitos indisponíveis (neste sentido Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 473; e Ac da RL de 31/05/2011 in www.dgsi.pt/jtrl – seguimos de perto, nesta resenha, o Acórdão da Relação de Lisboa de 10/01/2019, processo n.º 41/18.1T8CSC-B.L1-6, em www.dgsi.pt).

Como já salientámos, sempre existe a possibilidade de o depoimento de parte ser livremente apreciado quando não tenha carácter confessório, pois tal decorre do artigo 361.º do CC. Mas a questão em apreço não é a da apreciação do valor probatório de um depoimento prestado, mas a da admissibilidade da sua prestação. Ora a admissibilidade pressupõe a possibilidade de confissão decorrente da natureza dos factos sobre que incide, nada tem a ver com a força probatória de depoimento de que a confissão (possível ab initio) não decorra.

Aliás, a prestação de declarações pelas partes fora do regime da confissão está expressamente prevista no artigo 466.º, do CPC, embora apenas a requerimento da própria parte (dirigindo-se, primordialmente, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidade de produção de prova documental, testemunhal ou pericial, em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes. Acresce que, tais declarações serão sempre livremente apreciadas pelo tribunal, conforme resulta do nº 3 do artigo 466º do CPC, na parte em que não representem confissão).

No caso de que nos ocupamos, a prova por depoimento de parte nunca seria admissível, por força do artigo 354º, alínea b) do Código Civil, visto que estando em causa uma acção de impugnação de paternidade, os factos em apreciação são necessariamente relativos a direitos indisponíveis.
Discutindo-se direitos indisponíveis e não admitindo a lei a confissão, conforme resulta do artigo 354.º, b) do Código Civil, não é admissível o depoimento de parte, que constitui uma forma de obter a confissão de factos.

Apesar de não expressamente alegado, vêm referidas nas conclusões da apelação, várias normas constitucionais, pelo que sempre caberá dizer que o tribunal está obrigado a atender a todas as provas, desde que lícitas, não estando vedado ao legislador ordinário regular a possibilidade de limitar o depoimento de parte de forma a impedir o exercício do direito de o prestar num caso como o dos autos em que estão em causa factos relativos a direitos indisponíveis.

Improcede, assim, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo apelante.
***
Guimarães, 13 de junho de 2019

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes