Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
159/11.5PAPTL.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVAS
DECISÃO
DEPOIMENTO DE PARTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) O recurso visa apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.

II) Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida.

III) Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a “tornam necessária” ou racionalmente “obrigatória”, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está.

IV) A circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nos presentes autos de processo comum nº 159/11.1PAPTL, após a realização da audiência de julgamento e por sentença proferida a 3 de Julho de 2014, o tribunal singular do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima condenou o arguido José A., como autor material em concurso efectivo de um crime de ofensa à integridade física por negligência e de um crime de omissão de auxílio (agravado), p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 15º, alínea b), 14ºº, nº 3, 26º, 1ª proposição, 30º, nº 1, 77º, 148º, nº 1 e 200º, nºs 1 e 2, todos do Código Penal, nas penas parcelares de seis e cinco meses de prisão, respectivamente e, em cúmulo jurídico, na pena única de nove meses de prisão, substituída pela pena de duzentos e vinte dias de multa, à razão diária de sete euros.

Inconformado, o arguido interpôs recurso, pugnando pela alteração da sentença recorrida.

O Ministério Público, por intermédio do magistrado no Tribunal Judicial de Ponte de Lima formulou resposta ao recurso do arguido, concluindo que deve a sentença recorrida ser mantida na íntegra.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e da juíza adjunta e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. Impõe-se ter presente que o tribunal judicial de primeira instância julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição) :

“1. No dia 10 de Setembro de 2011, em hora que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada entre as 12 horas e 30 minutos e as 13 horas, o arguido José A. tripulava o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-…, pertença do “Banco S., S. A.”, o que fazia pela Estrada Nacional nº 203, no sentido de marcha Correlhã – Ponte de Lima.

2. Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o ofendido Daniel L., com 9 (nove) anos de idade, seguia a pé, acompanhado dos seus progenitores.

3. Na qualidade de peões, depois de se certificarem de que podiam atravessar a faixa de rodagem com segurança, iniciaram a travessia daquela via, do lado esquerdo para o lado direito, atento o sentido de marcha do arguido (Correlhã – Ponte de Lima), utilizando para o efeito a passagem de peões ali existente, sita ao Km 20,172, na Rua …, em Ponte de Lima.

4. No preciso momento em que o aludido Daniel L. atravessava a referida faixa de rodagem, o veículo tripulado pelo arguido embateu-lhe com a parte frontal, projectou-o cerca de 10m e causou a sua queda no chão, imobilizando-se o corpo do menor em plena faixa de rodagem, junto ao passeio que ladeia a via do lado direito, considerado o apontado o sentido de marcha Correlhã – Ponte de Lima.

5. O descrito atropelamento ocorreu na hemi-faixa de rodagem onde seguia a viatura tripulada pelo arguido, numa altura em que aquele Daniel L. tinha já percorrido a quase totalidade da faixa de rodagem (cerca de 5m de 6,4m da faixa de rodagem).

6. O arguido não efectuou qualquer manobra evasiva prévia ao mencionado atropelamento, designadamente, não imobilizou o veículo que tripulava, nem se desviou para a hemi-faixa esquerda, atento o respectivo sentido de marcha, sendo que em sentido contrário inexistia trânsito, o que lhe permitia contornar a vítima.

7. Após este atropelamento, o identificado José A. imobilizou a viatura em que seguia e, de seguida, pôs-se em fuga.

8. Apesar de ser notório a qualquer cidadão médio e comum – como o foi ao arguido –, que a vítima poderia estar em risco de vida e que necessitaria de cuidados médicos urgentes, o arguido desinteressou-se desta, que assim se encontrava devido ao comportamento daquele, prosseguiu a sua marcha sem parar, sem prestar socorro e sem providenciar pelo chamamento de auxílio médico ou verificar se alguém o fazia.

9. Como consequência directa e necessária do acidente o ofendido foi transportado para o Hospital de …, a fim de receber assistência médica, local onde ficou internado, de forma contínua e até ao dia 16 de Setembro de 2011, data em que teve alta, tendo-se mantido em tratamento ambulatório.

10. Em consequência da conduta do arguido, o mencionado Daniel L. apresentava, à chegada ao Centro Hospitalar de …: “Desvio conjugado para a direita, várias escoriações no hemitórax direito e no joelho.” Em TC crâneo-encefálico apresentava: “Traço de fractura frontal direito que se prolonga à grande asa do esfenóide, define-se lâmina de hematoma extra-dural agudo-fronto-temporal com bolhas de “gás” no seu interior, apresentando cerca de 8mm de espessura máxima no seu componente temporal, onde é responsável por moldagem discreta do parênquima temporo-polar.”

11. Na sequência da conduta do arguido José A., o menor sofreu, além de dores e mal-estar, as lesões descritas nos registos clínicos e relatório médico-legal de fls.268ss, que aqui se dão por integralmente reproduzidos: “traumatismo crâneo-encefálico com fractura do frontal direito até à base do esfenoide. Cicatriz de coloração nacarada na face medial do joelho de 1,5cm por 0,5cm de maiores dimensões, sem aderências a planos, as quais demandaram 460 dias para a consolidação médico-legal com afectação da capacidade para o trabalho geral durante 16 dias e sem afectação da capacidade de trabalho profissional durante 7 dias.”

12. Do evento resultaram, ainda, as seguintes consequências permanentes: “Sequelas de consolidação óssea da fractura frontal direita e na cicatriz do membro inferior direito, que não desfiguram, nem afectam gravemente a capacidade de trabalho (estudos) do examinado.”

13. No local onde ocorreu o descrito atropelamento a estrada tem uma largura de 6,4m, configura uma recta de boa visibilidade, em patamar, com uma faixa de rodagem dispondo de duas vias de trânsito, sendo uma para cada sentido, com bermas e passeios de ambos os lados, sendo a velocidade máxima permitida de 50Km/h, imposta por sinalização vertical.

14. No dia e hora deste acidente, chovia, a superfície da faixa de rodagem estava molhada, mas limpa, inexistindo quaisquer obstáculos que prejudicassem ou impossibilitassem a visibilidade dos condutores.

15. A passagem para peões encontrava-se devidamente assinalada com a marca transversal (M11), bem visível, bem como pré-sinalizada com sinalização vertical (A16a e H7).

16. O arguido José A., à data residente nesta comarca, sabia que naquele local existia uma passagem de peões, devidamente sinalizada e que era seu dever parar a marcha para permitir que o peão terminasse de atravessar a via.

17. Nesse local a visibilidade permite a um condutor que circule no sentido de trânsito do arguido (Correlhã – Ponte de Lima) atentar no posicionamento do peão a 400m de distância.

18. Não fora a desatenção do arguido, ao avançar sobre a passagem de peões sem se precaver de que não havia peões na mesma, e o atropelamento não se teria verificado.

19. Ao proceder pela forma vinda de descrever aquele José A. actuou com manifesta desatenção e contrariamente às mais elementares regras de cuidado estradais, porquanto agiu com inobservância dos deveres básicos exigidos no exercício da condução atentas as circunstâncias referidas.

20. Com efeito, ao agir como o supra descrito, sabia que um condutor médio e prudente, perante a aproximação de um peão em plena travessia da via, não conduziria o veículo do modo como o fez, impondo-se-lhe regras de cuidado que era capaz de cumprir e não acatou, designadamente imobilizando a viatura e/ou contornando o peão, sendo que nenhum obstáculo existia à realização de tais manobras em segurança.

21. Não chegou sequer a representar como possível, como lhe era exigível de acordo com as suas capacidades pessoais e circunstâncias do caso, que com a sua imprudência viesse a causar um atropelamento e com ele a causar lesões no corpo do ofendido Daniel L..

22. O arguido, não obstante ter admitido, até pela idade e compleição física do ofendido, que a vítima teria sofrido traumatismos graves, que colocavam em risco a sua integridade física ou, até mesmo a sua vida, conformou-se com essa probabilidade.

23. O identificado José A., apesar de estar ciente de que tinha causado o descrito atropelamento, com consequente queda do menor, com perfeito conhecimento que desta poderiam ter resultado lesões físicas e perda de consciência do ofendido, e que este necessitaria de urgente socorro médico, o que era notório para qualquer cidadão médio, quis e conseguiu deixar, contudo, a vítima prostrada no solo, sem pedir ou se certificar que alguém chamava socorro médico, deixando-a abandonada à sua sorte, prosseguindo a sua marcha indiferente ao destino da vítima, sem providenciar por ajuda, designadamente, transportando-o ao hospital mais próximo ou assegurando-se de que outrem os prestaria de imediato.

24. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas criminalmente por lei.

25. Do registo individual do condutor do arguido nada consta.

26. O arguido foi já condenado, em 11 de Setembro de 2013, por sentença transitada em julgado em 11 de Outubro de 2013, pela prática, em 13 de Fevereiro de 2011, de um crime de furto qualificado, no âmbito do Processo Comum Singular nº../..1GAPTL, do 2º Juízo, do Tribunal Judicial da comarca de …, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 (dois) anos e 3 (três) meses.

Provou-se, ainda, que:

27. O arguido José A. é divorciado.

28. Exerce a actividade profissional de …, da qual retira um rendimento mensal que ronda o valor de 1.500 reais (correspondente a cerca de €500,00 – quinhentos euros).

29. Reside em casa da ex-mulher, não entregando qualquer montante por aí residir.

30. Possui como habilitações literárias o 2º ciclo.”

Na sentença recorrida, o tribunal fundamentou a decisão da matéria de facto nos seguintes termos (transcrição):

“A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do Código de Processo Penal), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do Código de Processo Penal.

Antes de mais, importa sublinhar que quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.

Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência das mesmas declarações e depoimentos (para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal, vide RICCI BITTI/BRUNA ZANI, A comunicação como processo social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997).

O juiz deve ter uma atitude crítica de avaliação da credibilidade do depoimento não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso saber (vide Acórdão de 17 de Janeiro de 1994, publicado na revista Sub Judice, nº6-91).

A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal.

Obviamente que essa apreciação de prova está sujeita ao dever de fundamentação, desde logo, como decorrência do disposto no artigo 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que o princípio da livre apreciação das provas, previsto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado.

Outro sistema, que não este, que tem consagração no já referido princípio da livre apreciação e convicção do julgador, que não admitisse este risco conflituaria com direitos fundamentais ou poderia conduzir a situações de verdadeira denegação de justiça.

Deste modo, a matéria de facto tida como provada pelo tribunal resultou da análise da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta os parâmetros vindos de referir.

Atendeu-se, desde logo, aos elementos documentais juntos aos autos e aos dados objectivos que deles é possível extrair, em concreto: [i] o auto de notícia, a fls.7-8/157, do p. p., de onde se retiram, entre outros elementos, quais as características do local em que ocorreu o atropelamento em apreço nos autos, mais se mencionando que o peão (o ofendido Daniel L.) foi conduzido para o Hospital de …; [ii] a participação de acidente, a fls.9-11/158-159, do p. p., assumindo particular relevância o ‘cróqui’ que a integra e que indica a posição final do ofendido após esse atropelamento por referência à travessia de peões existente no local. Atentou-se também à menção que nela se faz em relação ao arguido José A., que compareceu junto da autoridade policial pelas 21 horas do dia 10 de Setembro de 2011, esclarecendo, além do mais, que (…) o menor Daniel L., surgiu de repente na passadeira, não lhe dando qualquer hipótese para evitar o atropelamento. Declarou ainda que abandonou o local do acidente, porque não gosta de ver este tipo de acontecimentos (…); [iii] as juntas a fls.26-31, do p. p., referentes às características e propriedade do veículo tripulado pelo arguido; [iv] o exame directo ao local onde ocorreram os acontecimentos em apreço nos autos, junto a fls.49-56, do p. p., aí se anotando as características da via (classe, tipo de pavimento, largura da faixa de rodagem, configuração, troço, número de vias, sentidos de circulação, largura das hemi-faixas, estado de conservação, superfície do pavimento, tipo de pavimento, largura das bermas, obstáculos, visibilidade, luminosidade, sinalização vertical e horizontal) e do tempo; [v] o relatório fotográfico, a fls.113-123, do p. p., que permite melhor percepcionar as características da faixa de rodagem e do local onde se sucederam tais acontecimentos; [vi] as informações clínicas, a fls.177-180, 216-232, 242-258 e 263-264, do p. p., e o exame médico-legal, a fls.268-271, do p. p., onde se encontram descritas as lesões corporais evidenciadas pelo ofendido e o período de doença que lhe adveio como consequência necessária e directa dessas lesões.

O auto de notícia e a participação de acidente supra referidos fazem fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.

Assumem-se, desta forma, como documentos autênticos, uma vez que emanam de um órgão de polícia criminal a quem é reconhecida competência para a sua elaboração.

Enquanto documentos autênticos, fazem prova plena dos factos que referem como praticados, in casu, pela autoridade policial, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (vide artigo 371º, nº1, do Código Civil).

Como aduz Vaz Serra, os documentos em causa são um documento testemunhal, na medida em que o documentador (agente da Polícia de Segurança Pública) se limita a atestar um facto, a informar acerca de um acontecimento que ocorreu (vide BMJ, 111º-123ss).

A força probatória plena desses documentos limita-se, no entanto, aos factos praticados pelo documentador e por ele atestados e prova, ainda, plenamente, os factos atestados que se passaram na sua presença.

Ora, no caso vertente, o auto de notícia e a participação de acidente supra mencionados não foram postos em causa em sede de audiência de julgamento – nem, tampouco, no decurso de todo o processo –, por nenhum dos intervenientes processuais.

Para além dos assinalados elementos documentais, tomaram-se em consideração as declarações do assistente António L. – pai do menor/ofendido Daniel L. – e o depoimento da testemunha Cândida C. – mãe do menor.

A convicção do tribunal formou-se em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que transpareceram em audiência daquelas declarações e depoimentos.

Tais declarações e depoimentos foram também temperados pela lógica da razão e da normalidade do acontecer, fazendo-se, ainda, apelo ao que ditam os juízos de experiência comum.

Impõe-se, antes de mais, ressalvar que na apreciação de situações como a do caso vertente, é normal que a natureza dinâmica e súbita com que os acontecimentos se desenrolam, bem como o lapso de tempo entretanto decorrido, gere imprecisões entre os discursos, nomeadamente quanto a distâncias e posicionamento dos envolvidos.

Por recurso às regras gerais da experiência corrente, o natural nestes casos, salvo raríssimas excepções, é descrever-se o contexto geral em que os acontecimentos se sucederam e aquilo que de mais impressivo ficou guardado na memória de cada um dos intervenientes, não sendo exigível que se relate o desenvolvimento integral dos factos com uma precisão matemática e milimétrica, sobretudo quando, como sucede in casu, há uma dinâmica que subjaz a grande parte destes acontecimentos.

Tendo em consideração este condicionalismo, o assistente António S. e a testemunha Cândida L. prestaram um relato que se teve por sério, sincero e consistente.

Foram peremptórios em asseverar que efectuaram a travessia da faixa de rodagem pela passagem de peões existente no local, sendo que o filho mais velho ia à frente, seguido da testemunha – que levava uma criança ao colo –, sendo que esta era precedida pelo ofendido/menor, que se interpunha entre aquela Cândida L. e o assistente António S..

Em relação a este aspecto evidenciam-se inegáveis semelhanças e correspondências de conteúdo no que concerne ao teor das afirmações que fizeram.

Já no que respeita à posição na via do veículo tripulado pelo arguido não foram consensuais.

Com efeito, o assistente afirma que o arguido estaria parado junto à passadeira, tendo aguardado que o filho mais velho e a testemunha Cândida L. passassem; na altura em que atravessava o aludido Daniel Lacerda o arguido, sem que nada o fizesse prever, arrancou, embateu no menor, projectando-o cerca de 10m para junto do passeio que ladeia o lado direito da hemi-faixa de rodagem, considerado o sentido Correlhã – Ponte de Lima.

O assistente acrescentou que havia filas de trânsito e que este se apresentava condicionado, na medida em que na data em causa decorriam as Feiras Novas, conhecidas por atrair muita gente.

Por sua vez, a testemunha Cândida L. refere que na altura em que se posicionaram junto à travessia de peões para atravessar para o outro lado da faixa de rodagem não se encontrava nenhum veículo imobilizado junto à mesma.

Deparamo-nos, pois, com duas versões distintas e antagónicas da mesma realidade, sendo certo que quer o assistente, quer a testemunha mantiveram-nas quando sujeitos a interpelações que os poderiam induzir em sentido contrário.

Sem prejuízo de se nos afigurar que a posição sustentada pelo assistente não se coaduna com o que ditam os juízos da experiência corrente e da normalidade do acontecer, sendo mesmo avessa ao bom-senso e à lógica da razão (não faz sentido, qualquer que seja o enfoque que adoptemos, que o arguido consinta que o filho mais velho e a esposa daquele António S. passem e, de repente, sem que nada o faça prever, se decida arrancar no preciso momento em que está a passar o menor/ofendido), a verdade é que a questão de saber se o veículo tripulado pelo mencionado José A. estava ou não parado assume-se, quanto a nós, meramente instrumental e secundário.

Na realidade, no que verdadeiramente releva, quer o assistente, quer a testemunha supra identificados são consensuais, não hesitando em assegurar que o filho de ambos foi colhido pela viatura em que seguia o arguido.

Aliás, também este não nega ter atropelado o menor, apenas apresenta uma versão distinta dos acontecimentos.

No caso vertente, as declarações do assistente e o depoimentos daquela testemunha, embora não sendo absoluta e literalmente coincidentes e precisos, apresentam aspectos consonantes, nomeadamente, no que respeita ao modo e forma como se comportou o arguido.

A conjugação dos relatos prestados, expurgada de aspectos dissonantes, que ao tribunal, no contexto dos factos que se apreciam, se assumiram de interesse secundário, evidencia uma realidade unívoca: no dia 10 de Setembro de 2011, em hora que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada entre as 12 horas e 30 minutos e as 13 horas, quando o menor/ofendido Daniel L., juntamente com os seus progenitores e irmão, se encontrava a atravessar a Estrada Nacional nº…, do lado esquerdo para o lado direito, atento o sentido de marcha Correlhã – Ponte de Lima, numa travessia para peões ali existente, sita ao Km 20,172, na Rua …, em Ponte de Lima, foi colhido pelo veículo tripulado pelo arguido José G., que lhe embateu com a parte frontal, projectou-o cerca de 10m e causou a sua queda no chão.

Posto isto, como se sabe, a credibilidade da prova passa pela plausibilidade da descrição factual, que, para ser tida em conta, deverá pautar-se pela lógica e coerência, aferida à luz das regras da experiência.

Cumpre, ainda, salientar que a tarefa do julgador na decisão da matéria de facto está necessariamente condicionada pelos limites do conhecimento humano.

A vivência social e conhecimento da realidade, ainda que consubstanciando sempre uma certa margem de risco relativamente ao apuramento da verdade, mas com o qual se deve conviver, sempre temperam a decisão sem excessivos dramatismos e sem descurar os cuidados que necessariamente se impõem.

A versão dos acontecimentos defendida pelo arguido afigurou-se-nos inconsistente e incongruente, não se revestindo das características de coerência, objectividade, lógica e seriedade necessárias para abalar a convicção formada pelo tribunal.

Aquele José A. afirma que o menor/ofendido, quando nada o fazia prever, decidiu-se atravessar a faixa de rodagem fora da travessia para peões.

O arguido, que circulava com atenção à estrada, nada pôde fazer para evitar o atropelamento, atento o seu carácter repentino e inusitado, acabando por embater com a parte do farol direito no corpo do aludido Daniel L..

Para além de esta descrição ser totalmente refutada pelo que afirmam o assistente António S. e a testemunha Cândida L., a explicação apresentada é, em nosso entender, ilógica, por dois motivos, a saber: [i] apelando ao que ditam os juízos da experiência comum e sabendo-se que o ofendido, ainda que não estivesse agarrado pela mão, circulava entre adultos, seus pais, não encontramos qualquer fundamento que justifique que se tenha decidido abandonar os progenitores, no meio dos quais se sentia seguro, e atravessar isoladamente a via, fora da passagem de peões, sendo certo que do outro lado haviam uma barreira para evitar que os condutores estacionassem os veículos (cfr. fotos nºs13 e 15, a fls.119 e 120, do p. p., respectivamente); [ii] a travessia, a ser repentina, como sustenta o arguido, teria, necessariamente, que determinar que o menor/ofendido fosse colhido pela parte do farol esquerdo (e não direito) e a distância percorrida teria, necessariamente, que ser inferior a 5m (o meio da via situa-se aos 3,20m). Ora, não foi o que sucedeu, na medida em que aquele Daniel L. foi colhido numa altura em que tinha já percorrido a quase totalidade da faixa de rodagem (cerca de 5m de 6,4m da faixa de rodagem).

Em face do exposto, a prova produzida milita no sentido de concluir-se que o arguido actuou com manifesta falta de cuidado.

Só uma atitude imprudente e manifestamente violadora dos deveres básicos exigidos no exercício da condução explica que tenha atingido o ofendido com a parte frontal do veículo automóvel que tripulava, quando este tinha já percorrido a quase totalidade da faixa de rodagem.

O tribunal considerou, ainda, o depoimento prestado pela testemunha José M., que se afigurou espontâneo, linear e verosímil, que esclareceu que circulando numa viatura no sentido Ponte de Lima – Correlhã, após passar a travessia de peões, ouviu um barulho, olhou pelo espelho retrovisor e observou um carro de cor preta parar e depois arrancar em direcção a Braga, o que o determinou a inverter a marcha e ir no seu encalço após aperceber-se que no chão, junto ao passeio, estava imobilizado um miúdo.

Em relação a este concreto momento o arguido José G. pretendeu fazer vincar que abandonou o local por ter medo, não obstante na participação de fls.9-10, do p. p., ter mencionado ao agente que a elaborou que (…) abandonou o local do acidente, porque não gosta de ver este tipo de acontecimentos (…).

Sem prejuízo do exposto, o certo é que, no momento de que cuidamos, encontravam-se no local o pai e a mãe do menor e um irmão que segurava uma criança ao colo.

Nem das declarações do assistente, nem do depoimento da testemunha Cândida L. resulta qualquer tipo de ameaça que porventura pudesse criar medo ao arguido.

Aliás, como ambos esclareceram, nessa altura, estavam preocupados com o seu filho, que se encontrava prostrado na faixa de rodagem, inanimado.

O local onde se sucederam os acontecimentos era público – Estrada Nacional –, não se situando numa zona erma, desprotegida e potencialmente perigosa, susceptível de causar medo no arguido.

É certo que o arguido foi perseguido pela testemunha José P..

No entanto, é necessariamente compreensível e legítima a conduta do cidadão que presenciando um atropelamento, persegue o automóvel causador com intenção de identificar o seu condutor, não havendo factualidade provada que permita concluir que, na sequência dessa perseguição, a referida testemunha haja molestado, ou sequer tentado molestar, o arguido.

Da mobilização probatória resulta, pois, que o medo invocado pelo identificado José A. – que deveria ter sido objectivamente verificado – não ficou demonstrado.

Esse perigo deveria ser de tal modo intenso que, no confronto entre a obrigação de prestar assistência e o medo, se mostrasse justificada a fuga do arguido.

Sucede que essa conduta justificada deveria ser acompanhada de outros sinais exteriores, designadamente, a imediata chamada de meios de socorro e a ‘entrega’ às autoridades policiais, o que não se demonstrou no caso vertente, tanto mais que o arguido dirigiu-se a estas autoridades apenas pelas 21 horas daquele dia 10 de Setembro de 2011, isto é, decorridas cerca de 8 (oito) horas sobre os acontecimentos em análise.

No que concerne às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais do arguido, face à ausência de outros elementos, o tribunal fundou-se nas declarações do próprio que, nesta parte, se afiguraram dotadas de suficiente consistência e credibilidade.

A convicção deste tribunal quanto à ausência de infracções do condutor e antecedentes criminais do arguido alicerçou-se no respectivo Registo Individual do Condutor e no Certificado de Registo Criminal, juntos a fls.37 e 528-529, do p. p., respectivamente.

A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal.”

3. Como é sabido, os tribunais da relação conhecem dos recursos em matéria de facto e em matéria de direito (artigos 427º e 428º do Código de Processo Penal ) e a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso em dois planos bem distintos:

No plano dos vícios decisórios do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: trata-se de analisar apenas a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normais de experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo.

O recorrente invoca que a sentença enferma de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova ao julgar provados os factos constantes dos pontos 3 a 6, 8, 18 a 24 do elenco da matéria de facto provada.

Como tem sido afirmado, existe vício decisório de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada da alínea a) do artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal quando se conclua, a partir do próprio texto da sentença, isoladamente considerada ou em conjugação com regras de experiência comum, que a matéria de facto provada se revela insuficiente para a decisão correcta de direito. Entendendo-se necessário precisar que a decisão critério não é aquela decisão que se alcançou no processo, mas a decisão justa, a composição mais próxima da “ideal” e que, tendencialmente, declara a justiça no caso concreto.

Ou seja, a matéria de facto provada é suficiente para a decisão quando o tribunal esgotou os poderes de investigação e decidiu, entre provados e não provados, quanto a todos os factos relevantes para a decisão justa. Incluindo-se nestes últimos, não só os que constam da acusação ou da contestação mas também os que resultam da discussão da causa, em função das várias soluções viáveis – absolvição, condenação, existências de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena ou quanto a circunstâncias relevantes para a dosimetria penal.

Como se tem entendido, ocorre contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição irredutível entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal.

Por último, verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando um suposto “homem médio” ou “cidadão comum”, perante o teor da decisão, por si ou em conjugação com normas extraídas da vivência comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova violou essas regras de experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente imperfeita, inadequada ou baseada em apreciações destituídas de lógica ou de razoabilidade, que desrespeita as regras sobre a prova ou as chamadas “leges artis”. Segundo se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-09-2010, proc 427/08.0TBSTB.E1.S2, Souto de MouraO erro notório na apreciação da prova, da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida.”( in www.dgsi.pt ).

Importa lembrar uma vez mais que os motivos pelos quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem de um juízo de valoração realizado pelo juiz de primeira instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova confere ao julgador em primeira instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. Com efeito, na apreciação do depoimento das testemunhas e das declarações dos arguidos atribui-se relevância aos aspectos verbais, mas também se pode considerar a desenvoltura do depoimento, a comunicação gestual, o refazer do itinerário cognitivo, os olhares para os advogados e as partes, antes, durante e depois da resposta, os gestos, movimentos e toda uma série de circunstâncias insusceptíveis de captação por um registo de áudio. Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores do desconforto da mentira e da efabulação.

Interessa ainda realçar que o tribunal de segunda instância não tem possibilidade de fazer as perguntas que entende deverem ser feitas, nem pela forma que considera adequada e processualmente válida.

Como sabemos, julgar é precisamente “escolher”, “optar”, “decidir”.A função do julgador não consiste em encontrar a versão que recolhe maior número de testemunhos, mas, sempre entre os limites de racionalidade e da experiência comum, determinar como os factos se passaram: exista ou não univocidade no teor dos depoimentos e declarações, o convencimento da entidade a quem compete julgar depende de uma conjugação de elementos tão diversos como a espontaneidade das respostas, a coerência e pormenorização do discurso, a emoção exteriorizada ou a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante.

A circunstância de uma pessoa produzir declarações inverosímeis ou sabidamente desconformes com a realidade não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal nunca se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios: desde que o raciocínio seja compreensível, o tribunal poderá aceitar como verdadeiros certos segmentos das declarações ou do depoimento e negar fiabilidade a outros, distinguindo o que merece credibilidade do que lhe surge como mera efabulação emocional ou, mesmo, como mero erro de percepção.

Assim, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas” e não será a circunstância, muito frequente em circunstancialismos semelhantes ao destes autos, de se deparar com versões contraditórias, que forçosamente se tenha de entender como verificada uma situação de dúvida intransponível e um consequente juízo probatório de “não provado”.

No caso concreto, nada impedia o tribunal de conferir consistência à narração do assistente no segmento em que afirma que os elementos da família encetaram a travessia da faixa de rodagem em fila, que o seu filho Daniel caminhava na travessia de peões já bem para lá do meio da faixa de rodagem quando foi colhido pelo veículo automóvel e, por outro lado, já não aceitar como boa a afirmação do mesmo declarante de que o automóvel tinha antes parado antes da passadeira para deixar passar a mulher e o filho mais velho do casal e reiniciou a marcha no preciso momento em que a criança completava o mesmo percurso a caminho do passeio.

Assim como não existe notória contradição da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro ostensivo de apreciação da prova na valorização do depoimento da testemunha José M.. Com efeito, desconhecendo-se, nem sendo possível agora saber, qual a precisa velocidade a que circulava este automóvel no sentido contrário ao do automóvel do arguido, é perfeitamente razoável admitir que a mãe, o filho mais velho, o Daniel e o pai tenham iniciado e prosseguido a travessia pela passadeira apenas no preciso ou no momento seguido ao da passagem do automóvel conduzido pela testemunha.

Também carece de razão o argumento do arguido referente ao local do embate. Segundo o que será normal, a o Daniel, então de 9 anos de idade caminhava segundo o passo próprio do seu desenvolvimento físico e o recorrente não dispõe do mínimo elemento de prova que lhe permita sustentar que a criança seguia a correr ou que saiu disparada para efectuar a travessia. Tanto mais quanto, a crer no que testemunham os pais, seguia “em fila” entre os adultos.

Afigura-se-nos assim como compreendido na razoabilidade e na experiencia comum o juízo constante da decisão recorrida afastando a possibilidade de surgimento “repentino” ou inusitado pela circunstância de a vítima ter percorrido já a pé cerca de cinco metros da travessia da faixa de rodagem, enquanto o automóvel se aproximava do local sinalizado para passagem de peões.

Improcede igualmente o argumento invocado para fundamentar uma insuficiência da decisão : o relatório da PSP é claro na indicação dos fundamentos e nas conclusões e afigura-se-nos que o tribunal investigou tudo quanto haveria que investigar.

Em conclusão: ponderada a enunciação dos factos provados e não provados e a motivação da convicção constantes do texto da decisão recorrida, ainda que conjugados com os ditames da experiência comum, não se verifica qualquer contradição na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro manifesto na apreciação da prova, nem insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Termos em que improcede a arguição de vícios decisórios.

4. Num segundo plano, este já de “verdadeiro recurso em matéria de facto”, a análise não se limita ao texto da decisão e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.

Ainda assim, o recurso não pressupõe nem se destina a uma reapreciação global de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.

Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto à matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a “tornam necessária” ou racionalmente “obrigatória”, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está.

Como resulta da leitura conjugada da motivação e das conclusões, o recorrente questiona a decisão da matéria de facto provada e invoca discordância da apreciação da prova feita pelo tribunal, no que diz respeito à valoração das declarações do arguido, do assistente e dos depoimentos das testemunhas Cândida L., José M., procedendo a transcrição, a partir do registo aúdio da prova produzida na audiência.

Esses excertos das declarações e dos depoimentos são as concretas provas que este tribunal de recurso pode e deve analisar, sem prejuízo de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (art.º 412.º n.º 6 do Código do Processo Penal).

5. Tanto quanto para nós resulta da audição do suporte digital contendo o registo aúdio das declarações e depoimentos prestados na audiência, o assistente António L. efectuou uma narração segura e circunstanciada dos factos concretos de que se apercebeu. Num depoimento muito mais contido e impreciso, a testemunha Cândida L. confirmou o essencial dessas declarações. Como se afirma na motivação da sentença, assistente e testemunha coincidem no que verdadeiramente releva, não tendo dúvida em asseverar que o filho de ambos, então de 9 anos de idade, foi colhido pela viatura em que seguia o arguido, no momento em que a criança completava a sua travessia da faixa de rodagem, efectuada da esquerda para a direita atento o sentido de marcha do automóvel, seguindo a pé e “a passo”, pela passagem para peões marcada no solo e ali existente.

Estes elementos surgem-nos ainda confirmados por fotografias recolhidas na ocasião por elementos da PSP (maxime as fotos 14 e 15 susceptíveis de revelar a posição da vítima após o embate do automóvel e a subsequente deslocação), relevando de sobremaneira ter presente que a criança tinha já percorrido cerca de cinco metros da travessia no momento em que foi embatida pelo automóvel conduzido pelo arguido.

As discrepâncias ou incongruências, quer quanto à formação no local de filas de trânsito automóvel, quer sobre a questão de saber se o veículo do arguido parou e reiniciou a marcha imediatamente antes do embate, são compreensíveis pelo trauma sofrido naquele momento concreto e pela circunstância de tudo se ter passado num espaço de tempo de alguns segundos, sob um elevado nervosismo. Seguramente que a discordância a este propósito ou a falha de memória da mãe da criança - que a própria justifica por doença - não nos impõem uma decisão diferente.

Assim como concordamos com o recorrente quando salienta diversos trechos ou segmentos das declarações do assistente e das testemunhas para evidenciar, uma ou outra contradição em elementos circunstanciais ou mesmo de alguma importância, como seja o segmento do relato da testemunha José P. que referiu não ter visto nenhuma pessoa a efectuar a travessia, segundos antes de ter ouvido o “estrondo” e de ter visto pelo espelho retrovisor que uma pessoa tinha sido colhida.

Como já acima exposto, a circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito à inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.

De resto, o próprio arguido também revelou flagrante incoerência quanto ao exacto local em que o automóvel que conduzia colidiu com a criança: tanto quanto para nós resulta da audição do registo áudio a partir do CD apenso aos autos, o arguido começou as suas declarações, a perguntas do tribunal, por afirmar que a criança estava a fazer a travessia pela passadeira (“Acho que o miúdo quando passou a passadeira, começou a correr” afirmou aos 08.32 e, mais à frente (a criança) “já estava na passadeira a passar… começou a correr”. Perguntado pelo Exm.º juiz para esclarecer quando se apercebe da presença do peão na sua frente, respondeu o arguido “ele estava no final da passadeira” “ele vinha a passar a passadeira sozinho”. Surpreendentemente, aos 14 m das suas declarações sob registo 124459, o arguido já afirma que a vítima passou antes da passadeira, para posteriormente, já pelos 25 m afirmar que a criança tinha atravessado a faixa de rodagem depois da mesma passadeira.

No que se configura como essencial e se encontra descrito na matéria de facto provada, as declarações do assistente e o depoimento das testemunhas Cândida S. e José M. revelaram-se verosímeis e consistentes.

Verificamos assim que o tribunal valorou a prova e decidiu, para lá de uma dúvida razoável, optando pela conjugação de determinados elementos em detrimento de outros, numa solução perfeitamente plausível. Em lado algum transparece que o tribunal recorrido tenha enfrentado uma situação de dúvida quanto à ocorrência dos factos que julgou provados.

Agora em sede de recurso, percorridos todos os excertos de declarações e depoimentos que o recorrente transcreve na motivação do recurso, não podemos afirmar que a convicção formada pelo tribunal de primeira instância seja desprovida de razoabilidade, nem nos suscita incerteza que justifique a aplicação do princípio in dubio pro reo. Se porventura se poderia configurar uma solução distinta, é para nós segura a inexistência de elementos de prova que nos imponham uma decisão diferente da constante na sentença recorrida.

Em conclusão improcede o recurso neste âmbito, devendo manter-se a decisão da matéria de facto, afigurando-se-nos inquestionável que esses factos preenchem todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência do artigo 148º, nº 1 do Código Penal.

6. O recorrente argumenta ainda pela verificação de uma causa de exclusão da ilicitude nos factos constitutivos do tipo de crime de omissão de auxílio.

A pretensão do recorrente decorria necessariamente de uma alteração da matéria de facto dada como provada, que não se verificou (até porque neste âmbito o recorrente não especificou quaisquer elementos de prova que permitissem essa modificação).

A este propósito, cumpre notar em primeiro lugar que a repetida alegação de um “medo” da reacção agressiva dos pais e de outras pessoas presentes no local se encontra em flagrante oposição com a restante defesa do mesmo arguido: se a criança atravessava a faixa de rodagem a correr e fora da passadeira de peões, numa ocasião em que o condutor do automóvel que se aproximava nada podia fazer para evitar o embate, então, o arguido não era censurável pela produção do acidente e nunca teria nada a temer. Poderia parar o seu automóvel, colaborar para garantir a rápida assistência médica e assumir as suas responsabilidades perante a autoridade policial.

Em segundo lugar, não há conhecimento de que em situações idênticas, mesmo envolvendo culpa exclusiva de automobilistas em atropelamento de crianças, tenha havido no nosso país, reacções de populares que envolvessem agressões físicas. Apesar dos naturais “gritos” aflitivos dos pais, não se entende assim muito bem o que poderia motivar tal medo insuperável do arguido.

Em terceiro lugar, o falado medo não é compaginável com o subsequente comportamento do mesmo arguido, Se tivesse sido isso, então seria normal que o arguido fosse logo de seguida a um posto de uma autoridade policial comunicar o sucedido. O que o arguido não fez.

Por ultimo, e apesar das vagas referências de uma testemunha, não existe qualquer elemento probatório, necessariamente de natureza médica, susceptível de sustentar minimamente a alegação em recurso de que o arguido carecia de capacidade emocional para atender a uma situação trágica como dos autos.

Assim, a factualidade provada não permite descortinar a verificação de qualquer causa que dirima a culpa do arguido ou que exclua a ilicitude da conduta (art.ºs 31.º a 39.º do Código Penal) e evidencia o preenchimento (também) dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de omissão de auxílio, previsto e punido no artigo 200º, nºs 1 e 2 do Código Penal.

7. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação do arguido nas custas pela actividade processual a que deu causa, compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro).

De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em cinco UC.

8. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso do arguido José A., mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Condena-se o arguido nas custas do recurso, com cinco UC de taxa de justiça.

Guimarães, 23 de Março de 2015.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.

João Carlos Lee Ferreira

Maria Isabel Cerqueira