Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2075/19.0T8VCT-A.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
SEGURO OBRIGATÓRIO
LEGITIMIDADE
ACÇÃO DE REGRESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Salvo convenção ou disposição da lei em sentido contrário, o terceiro que seja titular duma relação jurídica conexa carece de legitimidade para intervir como parte principal. Essa ilegitimidade impede que seja directamente demandado ou a sua participação por via dos incidentes de intervenção espontânea ou provocada previstos nos artigos 311º e 316º do CPC, só podendo intervir como interveniente acessório ao lado do réu, circunscrevendo-se essa intervenção à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, nos termos do nº2 do artigo 321º do Código de Processo Civil.
2. À luz do artigo 146º, nº1, do RJCS o lesado tem o direito de usar da acção directa contra a seguradora em todos os seguros obrigatórios, e nos seguros facultativos nas circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3, do artigo 140º, isto é, se esse direito estiver previsto no contrato de seguro ou, inexistindo essa previsão, se o segurado tiver informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador;
3. No caso, sendo de natureza facultativa os contratos de seguro mediante os quais a ré transferiu para a seguradora a responsabilidade civil emergente dos serviços financeiros/profissionais prestados pelos promotores por si designados e a decorrente da sua actividade, e não se verificando as específicas circunstâncias dos nºs 2 e 3, do artigo 140º do RJCS, a seguradora chamada só pode participar na acção na qualidade de interveniente acessória ao lado da ré nos termos do nº2 do artigo 321º do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

1. Na ação declarativa que lhe foi movida por C. F., o réu Bank … – Sucursal em Portugal requereu na contestação o incidente de Intervenção Principal Provocada da Companhia de Seguros ... – Sucursal em Portugal, ao abrigo do artigo 316º do Cód. P. Civil, alegando que, pelo contrato de seguro titulado pela apólice ..., transferiu para essa seguradora a sua responsabilidade civil emergente da prestação de serviços financeiros ou profissionais pelos promotores por si designados; e, ainda, por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº. C03140004 transferiu a sua responsabilidade civil emergente da actividade por si exercida.

2. Por despacho exarado no final dos articulados, o tribunal deferiu parcialmente o incidente, admitindo a seguradora a intervir como parte acessória dos réus nos termos do artigo 321º do Código de Processo Civil, com os seguintes fundamentos:

Considerando tratar-se de seguros de carácter facultativo, e bem assim que nos mesmos não está previsto o direito de demandar directamente o segurador, e considerando que não se verifica a situação do segurador ter informado o lesado autor com o consequente início de negociações directas entre este último e o segurador, é de admitir a intervenção da seguradora, mas não como parte principal ao lado do réu, mas como parte acessória. Na verdade, nos contratos de seguro de carácter facultativo só se verifica direito de demandar directamente o segurador nas concretas situações, excepcionais, consagradas no nº2 e 3, do artigo 140º, do DL nº. 72/2008, de 16.04 (LCS) –respectivamente, o contrato de seguro prever tal direito e o segurado ter informado o lesado da existência de contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador -, ocorrendo ilegitimidade passiva do segurador nas restantes situações em que este seja demandado, pois que não é parte na relação material controvertida (mas apenas numa conexa). O direito de acção directa está consagrado no referido diploma apenas para os seguros de carácter obrigatório (cfr. art 146º, do referido diploma, na “Subsecção II - Disposições especiais de seguro obrigatório” -, da “Secção I - Seguros de responsabilidade Civil”- (tratando a Subsecção I o Regime Comum), tudo do Título II -“Seguros de danos”). Seguindo-se assim na esteira da jurisprudência consagrada nos ACs RP de 12/7/2017 e da RG de 19/10/207 (ambos in www.dgsi.pt)., é de admitir a intervenção da citada seguradora, não como interveniente principal do lado passivo, mas como parte acessória dos Réus, convolação a que se procede, relativamente à qual os Réus já exerceram o seu contraditório. Pelo exposto, decide-se deferir parcialmente o incidente, admitindo-se a intervir nos autos ... – Sucursal em Portugal, mas como parte acessória dos Réus – artigo 321º CPC”

3. O réu Bank recorre desse despacho, concluindo:
a) O recurso do douto despacho que não admite a intervenção principal provocada passiva da seguradora ... – Sucursal em Portugal admitindo-a a título de intervenção acessória é recorrível, uma vez que, nos termos do artigo 322.º, n.º 2 do CPC, apenas a parte do despacho que admite a intervenção acessória da seguradora é irrecorrível.
b) O incidente de intervenção de terceiros é um incidente processado autonomamente, pelo que, há a possibilidade de recurso de apelação autónoma, nos termos da última parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 644.º do CPC.
c) O douto despacho recorrido pôs termo ao incidente de intervenção de terceiros, e fê-lo não admitindo a intervenção principal da seguradora, tal como tinha sido deduzido pelo ora Apelante na sua contestação, apenas admitindo a intervenção acessória da seguradora (através de convolação), sendo assim recorrível, nos termos e para os efeitos da alínea a) do n.º 1 e h) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, na parte não deferida.
d) Com o devido respeito que o Tribunal a quo merece, salvo melhor opinião, o douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 316.º e 317.º do CPC, designadamente no que respeita à não admissão da intervenção principal provocada da seguradora, devendo, consequentemente, ser substituído por outro que admita o incidente de intervenção principal provocada da seguradora.
e) Nos artigos 186.º e seguintes da sua contestação, o Recorrente alegou ter celebrado contratos de seguro, nos termos dos quais transferiu para a seguradora a responsabilidade civil em que possa incorrer em consequência de atos, omissões e erros imputados aos promotores por si designados, sendo que, por efeito dos aludidos contratos de seguro, a seguradora responde pelos valores que o Autor reclama na presente ação, por estes se incluírem no âmbito da respetiva cobertura dos seguros.
f) A seguradora, com a qual o Réu celebrou contratos de seguro de responsabilidade civil facultativos, deverá ser considerada titular da mesma relação jurídica invocada pelo Autor, devendo ser aceite que a seguradora seja admitida a intervir como parte principal, defendendo um interesse igual ao do Réu e parte na relação material controvertida.
g) Resulta da vasta maioria da doutrina e jurisprudência (no qual se inclui a Veneranda Relação de Guimarães) tratar-se o contrato de seguro de responsabilidade civil (incluindo o facultativo) dum contrato a favor de terceiro, nos termos dos artigos 443.º e 444.º do CC, podendo, por essa razão, o lesado demandar diretamente a seguradora ou o segurado, ou ambos em litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32.º do CPC.
h) Atenta a faculdade de que goza o lesado de demandar diretamente a Seguradora, a intervenção desta deverá ser admitida a título principal, seja em virtude da natureza do contrato de seguro de responsabilidade civil facultativo como contrato a favor de terceiro (artigo 444.º do CC), seja devido ao facto de, perante o lesado, segurado e seguradora, serem solidariamente responsáveis (artigo 497.º do CC).
i) A intervenção principal provocada (artigo 316º do CPC), em litisconsórcio passivo, da seguradora e do segurado, assegurará uma defesa conjunta contra o credor, bem como, acautelará um eventual direito de regresso (n.º 1, do artigo 317º do CPC), já que, o contrato de seguro de responsabilidade civil transforma a seguradora, enquanto obrigada ao pagamento do quantum indemnizatório, em titular da relação material controvertida, com um interesse principal.
j) Em face do exposto, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo ao decidir do modo como decidiu, violou as normas legais previstas nos artigos 32.º, 316º e 317º do Código de Processo Civil.

5. Cumpre decidir.

A recorrente pretende que a companhia de Seguros ... Limited-Sucursal em Portugal seja admitida a intervir nestes autos como parte principal nos termos do artigo 316º do CPC, alegando que, pelo contrato de seguro titulado pela apólice ..., transferiu para essa seguradora a responsabilidade civil emergente dos serviços financeiros/profissionais prestados pelos promotores por si designados; e que, por via do contrato de seguro titulado pela apólice nº. C03140004 transferiu a sua responsabilidade civil emergente da actividade por si exercida.

Sobre uma questão similar, no acórdão proferido a 23.01.2020 no processo 3743/18.9T8VCT-A este colectivo decidiu em sentido contrário ao do pugnado pelo recorrente, não havendo razão para alterar essa posição, que se passa a transcrever:

«Salvo convenção ou disposição da lei em sentido contrário, o terceiro que seja titular duma relação jurídica conexa carece de legitimidade para intervir como parte principal – essa ilegitimidade impede quer a demanda directa quer a sua participação nessa qualidade por via dos incidentes de intervenção espontânea ou provocada previstos nos artigos 311º e 316º do CPC - só podendo intervir como interveniente acessório ao lado do réu, circunscrevendo-se essa intervenção à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento, nos termos do nº2 do artigo 321º do Código de Processo Civil.

Como refere Salvador da Costa “o que verdadeiramente parece distinguir a intervenção principal provocada da intervenção acessória provocada é a real posição do interveniente relativamente à relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial, pois se o chamamento daquele se basear na relação jurídica invocada pelo autor na petição inicial estaremos perante o incidente de intervenção principal provocada, ao passo que se o chamamento se estribar numa relação jurídica conexa com aquela já se tratará do incidente de intervenção acessória provocada” (incidentes da instância – p. 117/118).
À luz do artigo 146º, nº1, do RJCS o lesado tem o direito de usar da acção directa contra a seguradora em todos os seguros obrigatórios, e nos seguros facultativos nas circunstâncias previstas nos nºs 2 e 3, do artigo 140º, ou seja, se esse direito estiver previsto no contrato de seguro ou, inexistindo essa previsão, se o segurado tiver informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador. Não se verificando essas específicas circunstâncias, a existência do contrato de seguro facultativo apenas viabiliza a intervenção acessória da seguradora nos termos supra enunciados (nº2 do artigo 321º), pelo que se entende ser correcta e bem fundada a solução plasmada na decisão recorrida, que vai de encontro à orientação da doutrina – cfr. José Vasques, in Lei do Contrato de Seguro, 2ª edição, pág. 481 e ss, e Abrantes Geraldes, no citado estudo «O Novo Regime Do Contrato de Seguro, Antigas e Novas Questões».
O recorrente cita o acórdão desta Relação de 09-07-2015 (do mesmo Relator), onde a solução defendida é no sentido da admissibilidade da intervenção principal da seguradora, sucede que a situação aí tratada reportava-se a um.. seguro obrigatório (Decreto-Lei 279/200, de 06.10, que aprovou o regime jurídico das unidades privadas de saúde).

Decisão.

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pela recorrente.