Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1981/13.0TBBCL
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: DANO BIOLÓGICO
DANOS MORAIS
DANOS PATRIMONIAIS
INCAPACIDADE PERMANENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/22/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: - O chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, pois a situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
- Se existem limitações funcionais da lesada que se podem perspectivar como pequenas invalidades permanentes, geradoras de um “dano de complacência” será híbrida ou mista a natureza do dano biológico.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – Relatório.

B. (A), casada, residente na …., intentou acção declarativa de condenação com processo comum ordinário contra “C .Seguros, S.A.” (R), com sede na …, decorrente de acidente de viação, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de de € 19.355,11, acrescida de juros de mora vincendos, calculados sobre o capital em dívida à taxa legal, até integral pagamento.
Alegou, para tal, ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais nesse montante, na sequência de acidente de viação de que foi vítima, por atropelamento pelo veículo automóvel segurado na R, cuja responsabilidade imputa ao condutor deste último.
A “D.– Companhia de Seguros, S.A.” requereu a sua intervenção principal espontânea nos presentes autos, apresentando articulado próprio no qual invocou que o acidente descrito pela A é, simultaneamente, de viação e de trabalho e que, por via disso, pagou a esta última, como seguradora de acidentes de trabalho, importâncias a título de indemnização por incapacidades temporárias, capital de remição, despesas e ajuda de terceira pessoa.
A R contestou a acção, declarando que assume a responsabilidade pela eclosão do acidente, mas impugnando os danos alegados pela A e os montantes indemnizatórios peticionados.
Requereu, de igual forma, a intervenção principal da seguradora de acidentes de trabalho D. e da entidade patronal da Autora, E., os quais procederam já ao pagamento à A de quantias indemnizatórias em consequência do mesmo acidente de viação.
A R contestou, ainda, o articulado apresentado pela D., impugnando os montantes que a mesma alegou ter pago à A e rejeitando a responsabilidade pelo pagamento da quantia por esta peticionada a título de despesas judiciais.
Foi admitida a intervenção principal espontânea da D. e provocada de E., não tendo este último apresentado articulado próprio.
Foi elaborado despacho saneador, após o que se procedeu à fixação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento da causa.
Foi então proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a acção e o pedido formulado pela interveniente e, em consequência:
a) Condenou a R a pagar à A a quantia global de € 27.390,04, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento;
b) Condenou a R a pagar à interveniente D. a quantia global de € 19.222,51, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a notificação para contestar o respectivo pedido até integral pagamento;
c) Absolveu a R do restante pedido.
Inconformada com a sentença, a R interpôs o presente recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso:
“I- Atendendo às lesões sofridas pela A, ao facto de os tratamentos a que se submeteu terem consistido, no essencial, em repouso, à circunstância de ter obtido a consolidação médico-legal ao fim de menos de seis meses, sem esquecer que ficou portadora de sequelas que lhe conferem uma IPG de 9 pontos, que implica esforços acrescidos, mas não impede de exercer a sua profissão ou dificultem o seu dia-adia, ou actividades quotidianas, entende a recorrente que é excessiva a verba atribuída a título de compensação pelos seus danos morais;
II- Face aos factos apurados entende a recorrente que seria mais adequada a compensar essas danos a verba de 10.000,00€, consentânea, de resto, com a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, nomeadamente a que resulta dos doutos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 31/05/2012, proferido no âmbito do processo n. 1145/07.1TVLSB.L1.S1, da 7ª Secção e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 13.02.2014, proferido no âmbito do processo n. 114/10.9TBPTL.G2, da 2ª Secção Cível
III- Apenas se provou que a incapacidade que afecta a A é de molde a suscitar a necessidade de emprego de esforços acrescidos (não concretamente demonstrados) no exercício da sua profissão;
IV- Não se provou, todavia, que as sequelas acarretem uma efectiva perda patrimonial;
V- Sendo este dano indemnizável, no seu cálculo o julgador não deve utilizar apenas as tabelas financeiras, mas também – e sobretudo – os critérios de equidade;
VI- Porém, estando em causa uma afectação permanente da integridade física que implica esforços acrescidos no desempenho da profissão da A, não pode prescindir-se, pelo menos como critério coadjuvante, do recurso às aludidas tabelas financeiras.
VII- Considerando a idade da A à data da alta clínica (34 anos), o seu rendimento mensal (560€), o grau de incapacidade de 9 pontos, uma taxa de crescimento salarial de 1%, uma taxa de juro de 3% e uma perspectiva de vida activa até aos 70 anos, obtemos, com recurso às referidas tabelas financeiras, um capital na ordem dos 16.964€.
VIII- No caso vertente, não se tendo provado que a A sofrerá uma efectiva perda de rendimentos futura, desconhecendo-se as reais limitações (ou esforços acrescidos) que as sequelas acarretam na actividade profissional da demandante, tendo sido dado como não provado que essas sequelas dificultem o dia-a-dia da A, ou que tenham acarretado uma alteração da sua vida de forma radical, e sabendo-se que será já indemnizada pelos seus danos não patrimoniais, entende a recorrente que, em equidade, deveria ter sido fixada a indemnização por dano biológico da A em 15.000€
IX- Abatendo-se ao valor acima mencionado as verbas de 11.720,39€ e 889,57€ já recebidas pela demandante na vertente laboral do sinistro, fixando-se, portanto, em 2.390,04€ a indemnização líquida devida à demandante pelo seu dano biológico.
X- A douta sentença sob censura violou as regras dos artigos 496º e 566º do Código Civil.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença sob censura e decidindo-se antes nos moldes apontados (…).”
Não houve contra alegações.
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Factos provados na 1ª instância:
“1. No dia 22/11/2011, pelas 15.00 horas, na Estrada Nacional 206, ao KM 12.8, Freguesia de Negreiros, Barcelos, quando a Autora atravessava aquela via na passadeira aí existente, foi embatida pelo motociclo com matrícula …QI, conduzido por F..
2. Como consequência deste embate, a Autora sofreu fractura dos ramos isquiopúbico direito e ileopúbico esquerdo, da asa sagrada, do colo do 5º metacarpiano esquerdo e da extremidade distal do rádio esquerdo, bem como fractura das apófises transversas de L4 e L5.
3. A autora esteve internada um mês.
4. Como sequelas, a Autora apresenta raquialgia residual pós-fractura das apófises transversas de L4 e L5; rotações e abdução-adução das coxo-femurais discretamente limitadas e dolorosas na mobilização para ângulos extremos; discreta dismorfia da face dorsal da mão e da IFP do 5º dedo, face dorsal; cicatriz hipercrómica de dois por um centímetro na face anterior do joelho.
5. Estas sequelas determinam para a Autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, tendo a consolidação médico-legal das lesões ocorrido em 13-05-2012.
6. As mesmas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual da Autora, mas implicam esforços suplementares, determinando ainda limitação permanente nas actividades desportivas e de lazer em grau 2 de 7.
7. A Autora sentiu dores e ainda sente, fixando-se o quantum doloris no grau 5 de 7.
8. Nessa altura, a Autora trabalhava por conta de E., como assistente de clínica veterinária, auferindo a vencimento de € 560,00 x 14 meses/ano.
9. A Autora nasceu no dia 31 de Maio de 1978.
10. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº …, em vigor à data referida em 1º a entidade patronal da Autora havia transferido para a interveniente “D. – Companhia de Seguros, S.A.” a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho sofridos por esta.
11. Por força do acordo celebrado no âmbito da tentativa de conciliação realizada no processo especial emergente de acidente de trabalho que correu termos no Tribunal do Trabalho de Vila Nova de Famalicão sob o nº 325/12.2TTVNF, homologado por despacho de 23-10-2012, esta interveniente pagou à Autora as seguintes quantias: € 2.634,79 a título de incapacidades temporárias; € 11.720,39 a título de capital de remição; € 3.028,60 a título de despesas com assistência médica; € 986,16 a título de ajuda de terceira pessoa; € 841,10 a título de despesas com transportes; € 11,47 a título de despesas com medicamentos; e € 132,60 a título de despesas judiciais.
12. Por sua vez, E. referido em 9º pagou à Autora as seguintes quantias: € 198,95 a título de incapacidades temporárias; € 889,57 a título de capital de remição.
13. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº …, em vigor na mesma data, o proprietário do QI havia transferido para a Ré a responsabilidade civil decorrente da circulação do mesmo veículo.
E considerou também a 1.ª instância, com interesse para a discussão da causa, que não resultaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente os seguintes:
a) As sequelas sofridas pela Autora dificultam o seu dia-a-dia, arrumar e cuidar da casa, cozinhar, estar muito tempo de pé;
b) Alterou a sua vida de forma radical e a vida social que tinha, o convívio com amigos, caminhadas, passeios mais longos, viagens em viatura mais prolongadas – tudo coisas que agora não poderá fazer;
c) A sua actividade sexual foi afectada com as lesões e sequelas do acidente.


2 – Objecto do recurso.

Face ao disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir (por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil) são as seguintes:
I - Análise do montante da indemnização por danos sofridos pela A:
A - Danos não patrimoniais;
B - Dano biológico.


3 - Análise do recurso.

Questão I - Análise do montante da indemnização por danos sofridos pela A.
Cinge-se o presente recurso à matéria da quantificação da indemnização pelos danos sofridos pela A.
A - Danos morais:
O Tribunal fixou em € 20.000,00 os danos morais da A.
No entender da recorrente, este montante é exagerado, pedindo que se fixe em € 10.000,00, argumentando que os tratamentos a que a A se submeteu consistiram, no essencial, em repouso, à circunstância de ter obtido a consolidação médico-legal ao fim de menos de seis meses, sem esquecer que ficou portadora de sequelas que lhe conferem uma IPG de 9 pontos, que implica esforços acrescidos, mas não impede de exercer a sua profissão ou dificultem o seu dia-a dia, ou actividades quotidianas, entende a recorrente que é excessiva a verba atribuída a título de compensação pelos seus danos morais.
Diz ainda a recorrente que tal montante é mais consentâneo com a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nomeadamente a que resulta dos doutos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31/05/2012, proferido no âmbito do processo n.º 1145/07.1TVLSB.L1.S1, da 7ª Secção e do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.02.2014, proferido no âmbito do processo n.º 114/10.9TBPTL.G2, da 2.ª Secção Cível.
Vejamos:
Os danos desta natureza traduzem prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária porque atingem bens como a vida, a saúde, a liberdade, a beleza, a dor, o afecto, etc. “Costumam a doutrina e jurisprudência francesas apontar a idade, o sexo da vítima e natureza das suas actividades, as incidências financeiras reais, possibilidades de melhoramento, de reeducação e de reclassificação.” Francoise Croal, Les Responsabilités Civiles Diverses et Le Contrat D’Assurance, página 165, citado em «Dano Corporal em Acidente de Viação» comunicação do Desembargador Sousa Dinis no CEJ, CJ, Acórdãos do STJ, 1997, tomo II, Ano V, página 12.
No âmbito dos danos não patrimoniais, a ressarcibilidade visa proporcionar ao lesado meios económicos que de alguma maneira o compensem da lesão sofrida.
Trata-se, assim, de uma reparação indirecta.
Os danos morais só indirectamente são computados através do cálculo da soma de dinheiro, susceptíveis de proporcionar à vítima satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados. (Inocêncio Galvão Telles in Direito das Obrigações, 4.ª edição, Coimbra, 1982, página 297; em sentido semelhante, vide João de Matos Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, Volume I, 6.ª edição, Coimbra, 1989, página 574)
Por outro lado, “o montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável - A este propósito, escreve Antunes Varela (in Ob. cit., página 578): “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.”
Deve ainda atender-se à situação económica e à do lesado, às flutuações do valor da moeda e às demais circunstâncias do caso e deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.” Antunes Varela e Pires de Lima in Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, página 501 – cfr. igualmente o art.º 496.º, n.º 3 do Código Civil.
Ora, no caso dos autos, sendo certo que a responsabilidade do acidente é assumida como alheia à A e o que resulta da matéria de facto (“2. Como consequência deste embate, a Autora sofreu fractura dos ramos isquiopúbico direito e ileopúbico esquerdo, da asa sagrada, do colo do 5º metacarpiano esquerdo e da extremidade distal do rádio esquerdo, bem como fractura das apófises transversas de L4 e L5. 3. A autora esteve internada um mês. 4. Como sequelas, a Autora apresenta raquialgia residual pós-fractura das apófises transversas de L4 e L5; rotações e abdução-adução das coxo-femurais discretamente limitadas e dolorosas na mobilização para ângulos extremos; discreta dismorfia da face dorsal da mão e da IFP do 5º dedo, face dorsal; cicatriz hipercrómica de dois por um centímetro na face anterior do joelho. 5. Estas sequelas determinam para a Autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, tendo a consolidação médico-legal das lesões ocorrido em 13-05-2012. 6. As mesmas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual da Autora, mas implicam esforços suplementares, determinando ainda limitação permanente nas actividades desportivas e de lazer em grau 2 de 7. 7. A Autora sentiu dores e ainda sente, fixando-se o quantum doloris no grau 5 de 7. 8. Nessa altura, a Autora trabalhava por conta de Carlos Alexandre Dias Fernandes, como assistente de clínica veterinária, auferindo a vencimento de € 560,00 x 14 meses/ano. 9. A Autora nasceu no dia 31 de Maio de 1978.”) entendemos que é adequado o montante fixado na sentença, embora considerado actualizado à data da sentença, como pede a recorrente.
Senão vejamos:
Estamos perante uma pessoa com 37 anos, que sofre lesões limitativas ao nível pessoal e laboral, com o quantum doloris no grau 5, o que já é de elevada repercussão, teve um internamento de um mês, as sequelas determinam para a A um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 9 pontos, tendo a consolidação médico-legal das lesões ocorrido em 13.05.2012 e são compatíveis com o exercício da actividade habitual da A, mas implicam esforços suplementares, determinando ainda limitação permanente nas actividades desportivas e de lazer em grau 2 de 7, com total ausência de culpa, ou seja, embora não se possam qualificar de graves, não se pode dizer que foram “leves” as consequências das lesões e que não deixem marcas e, por isso, parece-nos ajustada a quantia de € 15.000,00.
B – Dano biológico.
Por outro lado, entende a recorrente que não é adequada a quantia de € 20.000,00 pela diminuição da condição física resultante do défice funcional fixado na sentença.
Alega que, a A sofreu lesões consistentes em fractura dos ramos isquiopúblico direito e ileopúblico esquerdo, da asa sagrada, do colo do 5.º metacarpiano esquerdo e da extremidade distal do rádio esquerdo, bem como das apófises transversas de L4 e L5., que o tratamento destas lesões exigiu essencialmente repouso, que obteve a estabilização das suas lesões menos de 6 meses após o acidente, não foi sujeita a intervenções cirúrgicas ou a quaisquer tratamentos especialmente incómodos ou dolorosos, as sequelas de que ficou portadora conferem-me uma incapacidade de 9 ponto e diz que a A não está impedida de exercer a sua profissão ou que as sequelas dificultem o seu dia-a-dia, ou actividades quotidianas, que a A tenha alterado a sua vida de forma radical e a sua vida social ou que as sequelas acarretem qualquer afectação a nível sexual.
Argumenta que não se provou que as sequelas acarretem uma efectiva perda patrimonial; que o julgador não deve utilizar apenas as tabelas financeiras, por estar em causa uma afectação permanente da integridade física que implica esforços acrescidos no desempenho da profissão da A; que a idade da A à data da alta clínica (34 anos), o seu rendimento mensal (€ 560,00), o grau de incapacidade de 9 pontos, uma taxa de crescimento salarial de 1%, uma taxa de juro de 3% e uma perspectiva de vida activa até aos 70 anos, conduz de acordo com as tabelas financeiras, um capital na ordem dos € 16.964 e uma vez que não se provou que a A sofrerá uma efectiva perda de rendimentos futura, desconhecendo-se as reais limitações (ou esforços acrescidos) que as sequelas acarretam na actividade profissional da demandante, tendo sido dado como não provado que essas sequelas dificultem o dia-a-dia da A, ou que tenham acarretado uma alteração da sua vida de forma radical, e sabendo-se que será já indemnizada pelos seus danos não patrimoniais, deve baixar-se tal quantia.
Assim, conclui a recorrente, a indemnização por dano biológico deve ser de € 15.000, abatendo-se a tal as verbas de € 11.720,39 e € 889,57 já recebidas pela demandante na vertente laboral do sinistro, fixando-se, portanto, em € 2.390,04 a indemnização líquida devida à demandante pelo seu dano biológico.
Mas não cremos que tenha razão neste aspecto.
Estamos perante o dano biológico, dano à saúde ou dano corporal, que traduz a limitação da capacidade do lesado “de viver a vida como a vivia antes do acidente, por violação da sua personalidade humana, traduzido num prejuízo concreto, consistente na privação ou diminuição do gozo de bens espirituais, insusceptíveis de avaliação pecuniária.”
Como se refere no Acórdão do STJ de 16.06.2016, proferido no processo n.º 1364/06.8TBBCL.G1.S2 (e disponível em www.dgsi.pt) em causa estão bens como a saúde, a inteligência, os sentimentos, a vontade, a capacidade afectiva e criadora, a liberdade, a reserva da privacidade individual, prazer proporcionado pela vida e pelos bens materiais; valora-se, na apreciação deste tipo de danos, a faceta relacional do lesado, nas suas plúrimas manifestações, quer de índole comunitária (culturais, recreativas, desportivas, artísticas, de voluntariado), quer de natureza inter e intra-pessoal (espirituais, sentimentais, sexuais).
Para alguns estamos perante um dano patrimonial e para outros um dano não patrimonial e ainda há quem defenda que se trata de um tertium genus que não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (incapacidade permanente ou temporária com reflexos laborais) nem num simples dano mora (bastante restritivo nos seus pressupostos de admissibilidade).
O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis.
A maioria da jurisprudência e certa doutrina consideram o dano biológico como de cariz patrimonial. (cfr., entre outros, o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 e os Acórdãos de 4 de Outubro de 2007 – 07B2957, de 10 de Maio de 2008 – 08B1343, 10 de Julho de 2008 – 08B2101, e de 6 de Maio de 1999 – 99B222, e Prof. Sinde Monteiro, in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, 248).
Concordamos com a posição expressa no recente Acórdão do STJ de 21.01.2016, proferido no processo n.º 1021/11.3TBABT, in www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte: “o que está agora em causa é avaliar as possíveis e previsíveis consequências do défice funcional de que passou a padecer o lesado no plano específico das suas actividades profissionais, essencialmente numa dupla perspectiva: por um lado, visando obter o ressarcimento do esforço acrescido que será necessário para que, ao longo da sua vida profissional, compense tal défice, de modo a prosseguir o tipo de actividade laboral que exercia à data do acidente; e, por outro lado, visando compensá-lo da perda de oportunidades profissionais que, ao longo da sua carreira, tal capitis diminutio - que irremediavelmente o afectará de modo permanente e definitivo - irá, com toda a probabilidade, implicar.
(…) Em abono do entendimento de que se trata de um dano patrimonial refere-se que, mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta- pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute.
Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.
Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.
E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.
Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.
Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.
A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial.»
Ora, na situação dos autos (tal como a do último Acórdão que temos vindo a citar), a natureza híbrida ou mista do dano biológico é perfeitamente detectável, pois existem limitações funcionais da lesada que – como se ali se diz - se podem perspectivar como pequenas invalidades permanentes, geradoras de um mero “dano de complacência” (veja-se a situação analisada no Acórdão do STJ de 20.01.2010, proferido no processo n.º 203/99): na verdade, embora tais sequelas incapacitantes não tenham tido – perante a factualidade que as instâncias tiveram por provada - um imediato e directo reflexo no nível de remuneração auferida na actividade profissional do lesado, uma vez que não se provou que ele tivesse deixado de trabalhar na empresa onde exercia funções como consequência do acidente, elas poderão revelar-se plausivelmente no decurso da vida profissional futura da lesada, o que não é despiciendo no modelo de mercado de trabalho actual (precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador).
Terá, pois, que se considerar a limitação às possibilidades de obtenção, mudança ou reconversão de emprego e da perda de chance ou do leque oportunidades profissionais à sua disposição, enquanto fonte actual de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade profissional corrente, de modo a superar adequadamente as deficiências funcionais que constituem sequelas das lesões sofridas, garantindo um mesmo nível de produtividade e de rendimento auferido. (Note-se que neste Acórdão que temos vindo a citar foi atribuída à lesada, com a idade de 40 anos, a indemnização de € 25.000,00 para compensar o dano biológico na sua vertente patrimonial, sendo que esta permaneceu com uma incapacidade genérica de 6%, em termos de rebate profissional, compatível embora com a sua atividade profissional, mas não conseguindo realizar ou só executando com grande dificuldade tarefas que exigem maior esforço físico ou que requerem a sua posição de sentada por períodos mais ou menos prolongados).
Pelo exposto, considerando as lesões sofridas que afectam a sua operacionalidade nos membros inferiores e superiores e os seus reflexos futuros na qualidade de vida da A (quer laboral, quer de relação), entendemos como equitativa, justa e ponderada a indemnização fixada.
*
Pelo exposto, o recurso é parcialmente procedente na parte que se altera a indemnização por danos não patrimoniais para € 15.000,00.

Sumário:
- O chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, pois a situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
- Se existem limitações funcionais da lesada que se podem perspectivar como pequenas invalidades permanentes, geradoras de um “dano de complacência” será híbrida ou mista a natureza do dano biológico.


4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso e em consequência, revogar a sentença na parte da condenação por danos morais, condenando a R a pagar à A a quantia de € 15.000.00 por danos morais e, em termos globais, € 22.390,04, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento.

Guimarães, 22.09.2016

Elisabete Valente
Heitor Pereira Carvalho Gonçalves
Amílcar José Marques Andrade