Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
93/17.1T8VRL.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: TRABALHO PARCIAL
CONFISSÃO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - Os factos em causa nestes autos de acidente de trabalho, por se referirem a direitos indisponíveis, não podem pelo autor ser objecto de confissão extrajudicial, nem tão pouco a declaração que os abrange tem força probatória plena por não ter sido feita perante a ré, podendo, assim, o tribunal valorar livremente a prova produzida segundo a sua prudente convicção- 361º CC.
II- O regime legal de acidentes de trabalho confere o direito à reparação emergente de sinistro laboral ainda que o sinistrado trabalhe apenas a tempo parcial, durante diversas épocas do ano e ao longo deste, na preparação dos terrenos, no cultivo, na vinha, na azeitona, consoante as necessidades agrícolas do empregador.
III- O cálculo das prestações do trabalhador a tempo parcial que sofra acidente de trabalho tem por base a retribuição que auferiria a tempo inteiro, pois só assim se recompensa toda a diminuição da capacidade de trabalho e de ganho de que ficou afectado para a actividade que desempenhava quando se acidentou e, bem assim, para todas as demais.
IV- A lei (71º NLAT) não fornece uma fórmula matemática para aferir a retribuição de referência nos casos de trabalho parcial e intermitente em que não é possível determinar em concreto o valor auferido no último ano laboral, pese embora estabeleça balizas de referência.
V- São passíveis de aplicação critérios diversos que melhor se ajustem à especificidade do caso concreto, desde o recurso às retribuições resultantes de lei ou IRC, até à consideração do valor diário multiplicado pelos dias de calendário, desconsiderando-se ou não os dias de descanso, tudo dependendo, entre outros, da natureza do trabalho, da sua intensidade, da sazonalidade ou do seu caracter mais constante.
VI- No cálculo das prestações devidas por acidente de trabalho será de atender ao valor da retribuição declarada pelo empregador para efeito de seguro, quando na tentativa de conciliação o trabalhador, a tempo parcial, informou que o global do seu ganho não era superior àquela, quando na petição inicial reiterou tal posição e demandou apenas a ré seguradora, quando tal valor é claramente superior ao que resulta dos mínimos legais e inexistem nos autos elementos que apontem para fraude ou que contrariem a justeza de tal valor.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTOR/SINISTRADO: A. M..
RÉ: SEGURADORA ..., S.A.

ACÇÃO- especial emergente de acidente de trabalho, que prosseguiu para a fase contenciosa.
PEDIDO: reclama o autor que se reconheça como sendo de trabalho o acidente que sofreu e que se condene a ré seguradora no pagamento de: capital de remissão de uma pensão anual e vitalícia de €2.020,40, em função da IPP de que padece de 25,3746%; indemnização de €19.695,40 por ITA de 15-09-2016 a 29-01-2019; €4.134,23 por despesas em medicamentos, material ortopédico, consultas/tratamentos de fisiatria e despesas de transporte a hospitais e centros de tratamento; da quantia de €180,00 por despesas de transporte a tribunal e GML; e juros de mora.
CAUSA DE PEDIR: em 14/09/2016, sofreu um acidente de trabalho quando desempenha funções de trabalhador agrícola para A. N., numa sua propriedade agrícola, sita em Murça. O empregador dedica-se à exploração de propriedades agrícolas para produção e colheita de uvas e azeitonas, bem como para a respectiva transformação em vinho e azeite. Ao longo do ano agrícola, aquele contrata diversos trabalhadores, entre os quais o autor, para realizarem os diversos trabalhos que se vão sucedendo até à colheita dos referidos frutos. Entre Janeiro de 1999 e a data do acidente, o autor exerceu a sua actividade de trabalhador agrícola nos prédios rústicos pertencentes ao aludido empregador, por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização deste, juntamente com outros trabalhadores. Trabalhos que consistiam, designadamente, na lavragem com recurso a tractores agrícolas, na adubação e fertilização das vinhas e olivais, na aplicação de herbicidas e outros produtos, com recurso a máquinas de sulfatar, atomizadores e pulverizadores, em tesourar e escavar videiras, na colocação de paus e estacas, em colher uvas e azeitonas, bem como em transportar os produtos em carrinhas e tractores agrícolas. O empregador determinava as tarefas agrícolas a executar em cada período do ano. Os instrumentos de trabalho, designadamente enxadas, sachos, tesouras eléctricas e manuais, máquinas de sulfatar, atomizadores e pulverizadores, bem como carrinhas e tractores agrícolas utilizados pelo autor pertenciam ao empregador. Em função das tarefas agrícolas a executar em cada período do ano, trabalhava entre as 8 e as 17 horas, com intervalo para almoço de uma hora e, quando e se chamado, a regra era trabalhar de segunda a sábado. Foi convencionado a retribuição diária líquida de €40,00, pagos no final de cada tarefa agrícola. No dia do acidente encontrava-se na propriedade da empregador a manobrar um tractor carregado de uvas quando este se virou, tendo o autor caído e sofrido uma fractura do calcâneo direito e esfacelo da perna esquerda. O que lhe determinou ITA 15/09/2016 a 29/01/2019 (867 dias) e incapacidade permanente parcial para o trabalho de 25,3746%, desde 29-01-2019. Sofreu os gastos que reclama. O empregador tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a aqui ré mediante contrato de seguro que contemplava a retribuição anual de € 11.374,72.

CONTESTAÇÃO: entre a ré e o alegado empregador A. N. vigorava um contrato de seguro do ramo “Acidentes de Trabalho – Conta de Outrem” titulado pela apólice nº 1029032533, pela retribuição anual de €11.374,72, não estando o autor incluído nos trabalhadores dependentes a cargo do referido tomador de seguro. O autor não era trabalhador do tomador do seguro, não tendo qualquer dependência jurídica ou económica, sendo, antes, empresário por conta própria, com propriedades agrícolas suas. Na sequência de relação de amizade entre o autor e o tomador do seguro, o primeiro aceitou ceder o seu tractor agrícola, que na altura conduzia, fornecendo, a título de favor, o transporte das uvas e, ainda, o combustível para o veículo. O autor assinou um documento confessando estes factos ao perito averiguador. Impugna a restante matéria e requer a realização de exame por junta médica.
Elaborou-se despacho saneador onde se fixou a matéria assente e enunciou os temas de prova.
Procedeu-se a julgamento e proferiu-se sentença.

DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO): decidiu-se do seguinte modo:

“Tudo visto e nos termos expostos, julga-se a presente acção procedente por provada e em consequência, condenam-se a R. seguradora SEGURADORA ..., S.A. a pagar ao A. os seguintes valores:
- O montante de € 29.089,04 (vinte e nove mil e oitenta e nove euros e quatro cêntimos), a título de indemnização pelo período total de ITA;
- a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, no montante de € 16.800,00 x 70% x 25,3746% = € 2.984,05 (dois mil novecentos e oitenta e quatro euros e cinco cêntimos);
Aos montantes acima calculados acrescem os respectivos juros de mora vencidos, calculados sobre o capital de remição, desde o dia seguinte ao da alta clínica, à taxa legal, bem como os vincendos até integral pagamento – cfr. art. 135º do C.P.T.
Condena-se ainda a R. seguradora ao pagamento ao A. a título de deslocações e cuidados médicos e medicamentosos do valor de € 4.314,23 (quatro mil trezentos e catorze euros e vinte e três cêntimos), acrescido dos respectivos juros de mora vencidos à taxa legal desde a data de citação e dos vincendos até integral pagamento.
Custas pela R.
Fixa-se aos autos o valor de € 77.719,40 – cfr. art. 120º do C.P.T.”

RECURSO – INTERPOSTO PELA RÉ : impugna a decisão de facto e de direito. Pede que a ré seja desresponsabilizada do acidente ou, se assim não se entender, que a sua responsabilidade seja reduzida tendo em conta o limite da retribuição declarada para efeito de seguro.

Coloca as seguintes questões:

(i) impugnação da matéria de facto quanto à qualidade em que o autor prestava serviço para A. N. e quanto a algumas das despesas resultantes do sinistro. Impugna os pontos de facto provados 4, 7, 8 e 13, que devem ser não provados e questiona a não prova dos pontos 1, 2 e 3, que devem passar a provados.
Com excepção do ponto 13, a dissidência funda-se nos meios probatórios constituídos pela “confissão” aposta no documento de fls 266 a 269 (declaração escrita e assinada pelo autor, supostamente confessando que não auferia qualquer retribuição pelos serviços prestados e que estava a prestar um favor a um amigo A. N.) e depoimento de parte do autor. O documento em causa é um documento particular, escrito e assinado pelo autor, cuja autoria não contestou e reconheceu em julgamento, pelo que a confissão extrajudicial faz prova plena quanto aos factos desfavoráveis confessados, não carecendo de qualquer outra prova, conforme artigo 376º CC. Quanto ao ponto 13 (gasto de 1.209,80€ em deslocações para consultas e tratamentos no Porto) alega que esta despesa não resulta provada nem do depoimento do autor, nem das testemunhas ouvidas.
(ii) ausência de relação laboral ou de dependência económica entre o autor e A. N. (o autor fazia um favor a um amigo e não era pago por isso), decorrente da propugnada alteração da matéria de facto e que se reconduz à inexistência de acidente de trabalho.
(iii) ainda que se considere a existência de acidente de trabalho, questiona-se o valor excessivo da sua condenação (por ITA, IPP e despesas), porque não foram tidos em conta os limites da responsabilidade contratualmente assumida, que tem por tecto 11.374,72€, conforme artigos 71º/9, 79º/4/5 da NLAT. Efectivamente, a ré foi condenada com base na retribuição anual de 16.800,00€, pelo que a condenação nas prestações infortunísticas deve ser reduzida e a restante quota parte da responsabilidade deverá se assacada ao alegado empregador. Deve ainda ser absolvida do pagamento as despesas (deslocações/consultas/tratamentos no Porto) decorrentes da não prova do ponto 13 supra referido.
CONTRA-ALEGAÇÕES – defende-se a manutenção da decisão recorrida, quer no respeita à matéria de facto atenta a globalidade da prova não merecendo a pretensa “declaração confessória” credibilidade, quer quanto à matéria de direito devendo ter-se em conta a retribuição anual de €16.800,00 e ser a ré seguradora condenada com base na mesma.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: entende o senhor PGA que deverá anular-se o processado a partir da contestação apresentada pela ré seguradora e ordenar-se a citação de A. N., na qualidade de entidade empregadora do sinistrado, para contestar a ação, seguindo o processo os seus ulteriores termos, em face da nulidade de falta de citação de uma das entidades responsáveis pela reparação do acidente.
Não foram apresentadas respostas ao parecer.
Foram colhidos os vistos dos adjuntos e o recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso(1)):
1 - Impugnação da matéria de facto/valor da “confissão de factos”;
2 - A caracterização do acidente como sendo de trabalho;
3- Retribuição real e limites da responsabilidade da seguradora.

I.I FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:

Na primeira instância foram julgados provados os seguintes factos (sublinhando-se a negrito os factos impugnados e alterados):

· O A. à data do acidente em apreço tinha 44 anos de idade (nasceu a -/07/1972).
· A. N. tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a aqui R. mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ………, pelo valor de remuneração de € 812, 48 x 14 meses, num total anual de € 11.374,72.
· O A. sofreu um acidente quando se encontrava na propriedade agrícola denominada “X” sita no lugar da ..., freguesia de …, concelho de Murça, a carregar uvas num tractor, para posterior transporte das mesmas, procedendo-se ali à respectiva vindima.- FACTOS ASSENTES NO SANEADOR

· O A. sofreu um acidente em 14/09/2016 pelas 11h00 horas quando se encontrava a exercer funções como trabalhador dependente por conta de A. N., na propriedade acima descrita na factualidade assente, dedicando-se este à exploração de propriedades agrícolas, tendo em vista a produção e colheita de uvas e azeitonas e a sua transformação em vinho e azeite.
· O acidente ocorreu tal como descrito nos artigos 5º e 6º da p.i.
· Em resultado de acidente sofrido pelo A. sofreu este as lesões descritas no relatório médico-legal de fls. 94 a 96vº, as quais lhe determinaram um período de ITA de 867 dias (entre 15/09/2016 e 29/01/2019) tendo ficado portador de IPP de 25,3746% a partir de 29/01/2019.
· O A. há cerca de 20 anos e até à data do acidente, desempenhava trabalhos agrícolas por conta de A. N., nos prédios rústicos que a este pertenciam, sitos na ... e ..., sendo o autor chamado habitualmente por diversas ocasiões do ano para desempenhar essas tarefas- rectificado de acordo com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.
· O autor utilizava os instrumentos de trabalho fornecidos por A. N., designadamente enxadas, sachos, tesouras eléctricas e manuais, máquinas de sulfatar, atomizadores e pulverizadores, bem como carrinhas- rectificado de acordo com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.
· Cumprindo as instruções que A. N. lhe dava e que, no local, controlava e fiscalizava o trabalho- rectificado de acordo com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.
· Nos dias em que trabalhava, o autor cumpria 8 horas diárias, das 8h às 17h, com intervalo para almoço, o que fazia quando era por aquele intermitentemente chamado ao longo de cada ano, para a preparação dos terrenos, da poda, da vindima, da azeitona, conforme o período anual- rectificado de acordo com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.
· Os tempos e o horário de trabalho do autor eram determinados pelo A. N.- rectificado de acordo com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.
· E mediante o pagamento de retribuição diária no valor de € 40,00.”
· Este valor era pago ao A. pelo indicado empregador no final de cada tarefa agrícola de que era incumbido.
· O A. efectuou as deslocações descritas no art. 42º da p.i. tendo suportado com as mesmas o custo de € 180,00.
· O A. é também trabalhador por conta própria, explorando a propriedade denominada “Y”, estando inscrito no IVDP.
· Em consequência do sinistro o A. teve de suportar o pagamento de diversos medicamentos e materiais ortopédicos no valor total de € 424,63.
· O A. suportou ainda custos com tratamentos de fisioterapia nos quais despendeu a quantia de € 545,00, a que acresceram os gastos com as respectivas deslocações no montante total de € 576,00.
· Noutras deslocações para outras consultas e tratamentos efectuados no Porto, o A. despendeu a quantia total de € €369”- rectificado de acordo com a decisão do recurso sobre a matéria de facto.
· Para assegurar a sua presença nas consultas realizadas no CHTMAD o A. despendeu a quantia de € 396,00.
· Para assegurar a sua presença nas consultas e exames realizados na Unidade Hospitalar de Macedo de Cavaleiros o A. despendeu a quantia de € 514,80.
· Para assegurar a sua presença nas consultas e tratamentos realizados na Unidade Hospitalar de Mirandela o A. despendeu a quantia de € 378,00.

B) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Sobre o tribunal superior recai o dever de alterar a decisão se os factos considerados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diferente – art. 662º do CPC.
O verbo utilizado frisa o grau de exigência de que o tribunal superior deve estar ciente caso modifique a decisão, só o devendo fazer se adquirir um grau de segurança máximo.
Impor significa que o tribunal não pode trilhar outro caminho que não seja a alteração da matéria, tal a sua evidência. Afasta-se a prova que não tenha um superlativo grau de certeza, dentro do quadro dos limites do conhecimento humano.
No caso, o réu entende que devem ser não provados os pontos 4, 7, 8 e 13 da matéria provada, e que devem ser provados os pontos 1, 2 e 3 não provados.

São estes os factos provados 4, 7 e 8 em causa:

· (4) O A. sofreu um acidente em 14/09/2016 pelas 11h00 horas quando se encontrava a exercer funções como trabalhador dependente por conta de A. N., na propriedade acima descrita na factualidade assente, dedicando-se este à exploração de propriedades agrícolas, tendo em vista a produção e colheita de uvas e azeitonas e a sua transformação em vinho e azeite.
· (7) O A. trabalhava por conta de A. N. nos termos descritos nos artigos 18º a 31º da p.i. mediante o pagamento de retribuição diária no valor de € 40,00.
· (8) Este valor era pago ao A. pelo indicado empregador no final de cada tarefa agrícola de que era incumbido.

São estes os factos não provados em causa:

- (1) O A. não era trabalhador por conta de A. N..
- (2) O A. e A. N. ajudavam-se mutuamente, na cedência de alfaias agrícolas e respectiva utilização, tendo no dia do acidente o A. cedido o tractor de matrícula QL que ele próprio conduzia a A. N., fornecendo-lhe o transporte das uvas desde a vinha.
- (3) O A. não foi pago por esta tarefa e ele próprio suportou o custo com o respectivo combustível.

Este grupo de factos provados e não provados respeita essencialmente à caracterização da relação entre o autor e A. N., alegado empregador, que transferiu para a ré a sua responsabilidade infortunística.
O principal meio de prova invocado pela ré é uma alegada declaração escrita de confissão extrajudicial. Trata-se do documento junto com a contestação e que tem o seguinte teor:
“DESCRIÇÃO DO ACIDENTE
No dia 14-09-2016 pelas 11 horas estava a conduzir o meu trator com a matrícula QL na propriedade X, ..., Murça que pretense ao meu amigo A. N.. Esta propriedade tem mais ou menos 3 ha de vinha. Tem outra propriedade de … também com vinha 1 ha.
Para tratar destas vinhas ele contrata cerca de 10 pessoas durante 4 dias por ano a pagar 35 euros e cada um. No meu caso eu não conto para essas pessoas porque ele não me paga nada em dinheiro nem de qualquer outra forma porque o ajudo pela amizade. Também não tenho nenhum contrato de trabalho ou de serbissos com ele e até o gasóleo é por minha conta. Entretanto esta a manobrar o trator para as pessoas que andavam a colher porem no trator e eu levar para a carrinha. Quando fazia a manobra para colocar a trazeira do trator em posição o trator descaiu para a frente e resbalou para dentro de uma vala que ali tinha. Para não ficar debaixo dele saltei e caí em cima de uma pedras aleijandome. Fui socorrido pelos colegas e pelo inem e desde aí estou de baixa. Nunca sofri nenhuma lezam igual ou parsida com esta.
30-09-2016. A. M.”
Nos articulados, o autor não impugna que tenha redigido a declaração pelo seu punho e que a tenha assinado.
Em depoimento de parte - que ouvimos na totalidade -, o autor limitou-se a reconhecer que a redigiu e assinou. Explicou que o fez em circunstâncias de grande debilidade (“nem sabia se ia andar”), ainda no hospital, que o conteúdo lhe foi ditado pelo perito averiguador que ali apareceu, que nem se recorda do que escreveu, que lhe disseram que “o iam ajudar”, etc… Continuou o seu depoimento, dizendo, em suma, que trabalhava à jeira para A. N., o que fazia há cerca de 20 anos, que era pago a 40€/dia como os outros trabalhadores, que cumpria horário, que lhe era pago o gasóleo, e que, fora o tractor que levou na ocasião, era o empregador que fornecia os materiais (tesoura, enxada, pás, máquinas varejadoras…). Ou seja, fez um depoimento que não confirma o teor da declaração escrita.
Importa saber do valor desta declaração de “confissão” de factos enquanto meio probatório.
A “confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.” - artigo 352º do CC.
O facto confessado pode assumir diversas variantes. Por exemplo, pode ser constitutivo dum dever para o declarante, ou pode ser a negação de um facto favorável constitutivo do seu direito ou de situação jurídica complexa do seu interesse, entre outras hipóteses. Esta última seria a que ao caso interessaria.
A confissão é uma declaração de ciência, isto é, uma informação sobre uma realidade.
O que lhe subjaz, enquanto meio com determinada força probatória, é a premissa retirada da normalidade das coisas de que “ninguém mente contrariamente ao seu interesse”, formando-se a “…presunção da realidade do facto (desfavorável ao confitente) ou, ao invés, da inocorrência do facto (favorável ao confitente) que dela é objecto” - José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 4ªed., p. 295/6.
Porém, hipóteses há em que os factos são insusceptíveis de prova por confissão, como é o caso dos relativos a direitos indisponíveis – 354º/b, CC.
Tal acontece porque “sempre que a disposição de um direito subjectivo atribuído pelo ordenamento não possa ter lugar por mera vontade das partes, tão pouco pode ter lugar a confissão dum facto que tenha semelhante efeito dispositivo, pois, caso contrário, produzir-se-ia, através do ato (voluntário) da confissão, um efeito prático (indirecto) que as partes não poderiam diretamente atingir por via negocial” – José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 4ªed., p. 297.
Esta proibição de confissão que versa sobre factos relativos a direitos indisponíveis tem aplicação, por excelência, no campo dos direitos relativos ao estado das pessoas e também, na área laboral, em especial nos acidentes de trabalho.
Na verdade, a lei comina de nulos todos os actos que se traduzam na renúncia ou que sejam contrários a direitos e garantias do regime de reparação de acidentes de trabalho – artigo 12ºda NLAT, Lei 98/2009, de 4-09. Trata-se de matéria considerada de relevante interesse social e público, imperativa, em que o grau de oficiosidade é maior, optando o legislador por subtrair a sua resolução ao domínio privado, com as consequências daí advindas que se repercutem no seu regime jurídico.
Perante direitos indisponíveis não é curial a resolução do conflito através de acordos extrajudiciais não supervisionados pelo tribunal. Nem a sua fictícia resolução judicial em que se cairia caso se acolhesse a confissão como meio com força probatória plena capaz de manietar o tribunal de decidir, na sua plenitude, num campo de interesse público.
Repare-se, no caso, a fragilidade do contexto donde emerge a declaração que está em causa, permanecendo o autor hospitalizado, desconhecendo-se em que quadro e a que pretexto foi redigida. Seria dificilmente compreensível que o tribunal não pudesse ponderar livremente o valor da declaração e ficasse tolhido pela acção privada do perito investigador, ao serviço de uma das partes interessadas. A justiça seria subtraída do seu domínio público.
Sempre se dirá que, ainda que a confissão fosse legalmente admissível, nunca teria a força de prova plena conferida pelo artigo 358º/2, CC. Porque lhe falta um dos seus requisitos, qual seja a de que “seja feita a parte contrária ou a quem a represente”.
No caso, a declaração é enxertada num processo de averiguação do sinistro levada a cabo pela seguradora, sendo contratado um perito investigador, que é um terceiro.
O requisito em causa prende-se com a presunção de que “a declaração confessória é, em regra, mais credível quando feita, por escrito, à parte favorecida pela realidade do facto confessado” – Lebre de Freitas, ob. cit., p. 302. Há uma probabilidade maior de seriedade na declaração. No caso dos autos, seria o caso se o autor tivesse sido chamado à seguradora, ciente de que estava perante o “devedor” e do que estava em jogo. Então, a declaração feita em tal contexto, assumiria outros contornos de genuinidade e idoneidade.
Em conclusão, os factos em causa nos autos, por se referirem a direitos indisponíveis, não podem pelo autor ser objecto de confissão extrajudicial, nem tão pouco a declaração que os abrange pode ter força probatória plena por não ter sido feita perante a ré (2).
O tribunal pode assim valorar livremente a prova produzida, segundo a sua prudente convicção- 361º CC.

Dito isto, fez-se constar na decisão recorrida a propósito da prova da relação contratual entre o autor e “empregador”:

“Quanto à declaração subscrita pelo A. de fls. 203 e 204 e datada de 30/09/2016, a mesma não mereceu qualquer credibilidade quanto ao seu conteúdo, dado ter sido expressamente contrariada pelos demais meios de prova que infra apreciaremos.

Desde logo, no depoimento de parte do A. este admitiu que o tractor com que ocorreu o acidente em apreço é sua pertença e quais os termos em que no dia do sinistro se encontrava a desempenhar funções por conta do seu empregador, tomador do seguro, bem como aceitou que exerce igualmente actividade por conta própria estando inscrito no IVDP. Também A. N. o tomador do seguro afirmou que o A. trabalha por sua conta frequentemente e que lhe empresta o tractor para executar algumas tarefas, não cobrando pelo uso da maquinaria (dado que por seu turno também lhe empresta equipamento seu quando o A. lho pede), mas que retribui o trabalho que ele executa como aos demais trabalhadores, contribuindo ainda com dinheiro para o combustível consumido pela mesma máquina. Mais confirmou o modo como ocorreu o acidente em apreço.

Estas circunstâncias foram ainda integralmente corroboradas pelo depoimento de M. F., esposa do A. que também trabalha à jorna para o mesmo empregador quando este necessita e qual o horário a que o seu cônjuge e os demais trabalhadores estão sujeitos quando trabalham para o tomador do seguro. Esta testemunha esclareceu ainda de que modo foi elaborada a “declaração” acima indicada de fls. 203 e 204 enquanto o A. se encontrava hospitalizado, tendo sido submetido a três intervenções cirúrgicas, cujo teor lhe terá sido ditado pelo perito averiguador da aqui demandada seguradora e não corresponde ao que efectivamente ocorreu.

As testemunhas M. L., H. M., A. O., L. C., M. M. e F. R. as quais revelaram conhecer desde há largos anos o aqui demandante, quer porque residem perto do mesmo ou porque têm laços de parentesco com aquele (primos) e foram todas unânimes em declarar que o demandante pese embora tenha prédios rústicos próprios de vinha que explora em seu proveito, também trabalha à jorna para terceiros e dentre estes para o A. N., para o qual aufere € 40,00/dia valor que é o habitual para este tipo de tarefas, o que sucede já há cerca de 20 anos, e que quando ali trabalham cumprem um horário de 8 horas/dia.

Salienta-se ainda que a aqui demandada seguradora não apresentou qualquer meio de prova que pudesse informar estes depoimentos ou demonstrar que o demandante não se encontrava a executar trabalho como trabalhador à jorna no dia da ocorrência do acidente em causa.”

Ouvidas as declarações do autor e o depoimento de todas as testemunhas concluímos que a motivação traduz, no essencial, de modo correcto a factualidade respeitante a relação havida entre o autor a A. N. (o tomador do seguro). Sobressaindo de modo totalmente unânime que o autor era “jeireiro”, trabalhando para A. N. há cerca de 20 anos, durante várias vezes ao ano, sendo chamado quando era preciso e conforme a época dos vários trabalhos agrícolas (na poda, na vinha, na azeitona, em trabalhos fitossanitários e de preparação de terreno para o cultivo), tendo um horário de 8 horas e auferindo ultimamente 40€ dia, sendo que os instrumentos principais eram por norma fornecidos pelo tomador do seguro.
Sublinhe-se que o próprio A. N., tomador do seguro, confirmou esta realidade, assim como as demais testemunhas, também eles trabalhadores agrícolas, gente da aldeia, alguns primos afastados do autor, que chegaram a trabalhar em diversas ocasiões para A. N., juntamente com o autor e depuseram de forma que se afigurou simples e sincera.
Não é demais sublinhar que a ré não apresentou qualquer prova do que alegou (de relação de favor recíproco entre o autor e o tomador do seguro e de que aquele não era pago pelo trabalho feito). Inclusive prescindiu do depoimento da testemunha, o perito averiguador, que havia arrolado e que não compareceu em julgamento. Também devido a esta ausência ficou o tribunal impedido de ver esclarecidas em que circunstâncias foi obtida a declaração escrita. Tratando-se, nos termos expostos de prova sujeita a livre apreciação do tribunal, terá de ficar condenada à sua irrelevância, em face da prova testemunhal esmagadora, quer em termos de quantidade, quer de qualidade.
Assim, mantêm-se provados os pontos 4 e 8, e não provados os pontos 1, 2 e 3.
Contudo, a redacção do ponto 7 é criticável dado que, além de remeter para a petição inicial, em número superior á dezena de artigos, em técnica incorreta que não permite a visão compreensiva e integrada da matéria de facto, igualmente tal matéria está pejada de termos conclusiva. Ademais, a matéria referente aos dias de trabalho necessita de rectificação dado que sobressaiu de toda a prova que o autor não trabalhava sistematicamente de segunda a sábado, mas sim, durante alguns dias, em diversas épocas do ano, coincidentes com os períodos de necessidades agrícolas.

Assim, o ponto 7 será decomposto e ficará com a seguinte redação, o que se determina a fica a constar já no lugar próprio:
“O A. há cerca de 20 anos e até à data do acidente, desempenhava trabalhos agrícolas por conta de A. N., nos prédios rústicos que a este pertenciam, sitos na ... e ..., sendo o autor chamado habitualmente por diversas ocasiões do ano para desempenhar essas tarefas.
O autor utilizava os instrumentos de trabalho fornecidos por A. N., designadamente enxadas, sachos, tesouras eléctricas e manuais, máquinas de sulfatar, atomizadores e pulverizadores, bem como carrinhas.
Cumprindo as instruções que A. N. lhe dava e que, no local, controlava e fiscalizava o trabalho.
Nos dias em que trabalhava, o autor cumpria 8 horas diárias, das 8h às 17h, com intervalo para almoço, o que fazia quando era por aquele intermitentemente chamado ao longo de cada ano, para a preparação dos terrenos, da poda, da vindima, da azeitona, conforme o período anual.
Os tempos e o horário de trabalho do autor eram determinados pelo A. N..
E mediante o pagamento de retribuição diária no valor de € 40,00.”

Vejamos agora o ponto provado 13: “Noutras deslocações para outras consultas e tratamentos efectuados no Porto, o A. despendeu a quantia total de € 1.299,80.”
A ré diz que não há prova sobre esta matéria. Que as testemunha a ela não se referiram.

É esta a fundamentação da decisão recorrida:

O Tribunal baseou a sua convicção na prova documental junta aos autos, nomeadamente, nos documentos de fls. 140 a 151vº e 153vº a 181, os quais atestam as despesas suportadas pelo demandante relativamente quer às deslocações efectuadas, quer aos cuidados médicos e medicamentosos suportadas em virtude do sinistro aqui em apreço…”
A matéria foi alegada nos artigos 46 a 48 da petição inicial onde consta a referência aos documentos que a suportam.
Os documentos nºs 41 a 56 comprovam 4 deslocações em transporte público de autocarro ao Porto-Hospital de Santa Maria, no total de €103,00, em setembro e outubro 2016.
As demais deslocações respeitam a transporte de viatura própria, alegadamente no total de 11 deslocações, ida e volta, em setembro e outubro de 2016. Segundo o autor ascendem ao global de €1.196,80, decompostos em €1.108,80 de gasolina (total de 280 km/ida e volta, cada a €100,80) e €88,00 de portagens (€8,00 ida e volta por deslocação).
Os documentos 57 a 69 juntos com a petição inicial (portagens) comprovam apenas o total de 7 deslocações (ida e volta) e não 11. As portagens ascendem assim a 56€ e a despesas de gasolina serão reduzidas ao total de 210,00€, ao valor de 30€ cada ida/volta (7), sendo manifestamente exagerado o custo proposto pelo autor para cada deslocação de 280km tendo em conta os preços correntes da gasolina.
As deslocações ao Porto-Hospital S. Maria, além de atestadas pelos referidos documentos, foram confirmadas pelas declarações do autor e da esposa testemunha F. N., de uma forma genérica e bastante porquanto a mais relevante é a prova documental.

O ponto 13 passará a ter a seguinte redação, o que se determina ficando a constar em local próprio:
Noutras deslocações para outras consultas e tratamentos efectuados no Porto, o A. despendeu a quantia total de €369”.

D) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO

A caracterização do acidente como sendo de trabalho:
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente.
A oposição da ré ao defender a sua total absolvição alicerçava-se na procedência da impugnação sobre a matéria de facto. Alegava-se que o autor, na altura do sinistro, estava a prestar serviços a um amigo de longa data, o que fazia pro bono, a título gratuito e por mero favor, não existindo, consequentemente, pagamento de retribuição, nem dependência económica.
Esta matéria, referente à relação entre o autor e a A. N., na sua essência permaneceu inalterada, mormente quanto ao aspecto contestado pela ré de os serviços prestado pelo autor serem remunerados, sofrendo alteração de pormenor mais motivada na deficiente técnica de proferir a matéria provada. Sendo improcedente o recurso da matéria de facto, mantém-se a pertinência da fundamentação de direito da sentença, para a qual se remete.
Aceita-se, consequentemente, o enquadramento que na decisão recorrida se fez, considerando que, entre o autor e o tomador do seguro, subsistia um contrato de trabalho a tempo parcial. Na verdade, o autor, há cerca de 20 anos, trabalhava por conta de A. N., de forma intermitente, em diversas alturas/épocas do ano, na qualidade de trabalhar agrícola, sendo pago ao dia, utilizando instrumentos principalmente fornecidos pelo empregador, nos seus terrenos, sob as suas instruções e fiscalização, e observando horário de trabalho.
Como se refere na sentença, o trabalho a tempo parcial não tem por pressuposto que a actividade laboral, em tempo inferior ao habitual, seja praticada todas as semanas. Conforme o artigo 150º do CT, o trabalho a tempo parcial é aquele que corresponda a um período normal de trabalho semanal inferior ao praticado a tempo completo para situação equiparável. E de acordo com a mesma disposição o trabalho a tempo parcial pode ser prestado apenas em alguns dias por semana, por mês ou mesmo por ano. Ao trabalhador a tempo parcial é aplicável o mesmo regime de lei e IRCT que pela sua natureza não implique a prestação a tempo completo, estando submetido ao princípio da proporcionalidade e da equiparação – 154º CT. Pese embora esteja sujeito à forma escrita, a sua inobservância, gerando invalidade, não o impede de produzir efeitos como se fosse válido durante o tempo que esteve em execução, dada a irretroactividade desses efeitos negativos - 153º e 122º CT.
Ainda que não se considerasse um vinculo laboral stricto sensu, a situação do trabalhador estaria abrangida pelo regime de reparação de acidentes de trabalho, dada a sua extensão ao prestador de serviços que, sem subordinação jurídica e sem contrato de trabalho, esteja na dependência económica da pessoa em proveito de quem presta serviços, logo em situação que a lei considera equiparável - 3º/2, da NLAT, em conjugação com os artigos 4º, 1º, c), do preâmbulo da Lei 7/2009, de 12/02 e do artigo 10º do CT/09 (3). Não obstante a longevidade da concreta relação contratual (20 anos), repare-se que a equiparação legal vem há muito de trás. As referidas normas seguem a tradição legislativa anterior (4) de abranger as situações denominadas de para-subordinação (contratos equiparados), as quais, embora não formalmente subsumíveis numa relação laboral por falta de subordinação jurídica, merecem, contudo, o mesmo tipo de tutela por razões de justiça material. Dada a dependência económica relativamente ao credor, em tudo semelhante à existente no contrato de trabalho.
Sendo que, quando a lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços. Ora, a ré não afastou esta presunção que beneficiava o autor, o que lhe competia- 342º/2, CC.
Mas, como vimos, o cerne da impugnação da matéria de facto centrava-se no aspecto de que o autor fazia um favor e não era sequer remunerado, o que não se provou.
Decidido que a relação entre o autor e o tomador do seguro assume a natureza de vínculo laboral ou equiparado, não se questionando nos autos a verificação das demais exigências legais do direito à reparação, há que concluir que estamos perante um acidente de trabalho, pois, conforme artigo 8º NLAT (5): ” é acidente de trabalho o que se verifique no local e tempo de trabalho e produza lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.

Retribuição real e limites da responsabilidade da seguradora

A ré insurge-se, ainda, contra o facto de ter sido condenada em valores que excedem, na proporção, o montante de retribuição contratualmente transferido.
O responsável pela reparação infortunística é a entidade, singular ou colectiva, relativamente ao trabalhador ao seu serviço, havendo obrigação de o empregador transferir a responsabilidade através da celebração de seguro de acidentes de trabalho (6) -7º e 79º NLAT.
Na sentença recorrida utiliza-se uma fórmula de cálculo de retribuição anual em que o resultado (16.800,00 €) é superior ao valor declarado pelo empregador para efeito de prémio de seguro (11.374,72€). Não obstante, responsabiliza-se a ré seguradora pela sua totalidade.
Assiste, assim, plenamente razão no recurso da ré ao insurgir-se contra tal condenação, destituída de suporte legal. Violando-se lei expressa que determina que “Quando a retribuição declarada para efeito de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida” – 79º/4, NLAT.
Em tal situação é o empregador que responde pela diferença, na proporção, relativamente a indemnizações, pensões e despesas com hospitalização e assistência clínica- 79º/5, NLAT.
No caso, a subscrever-se a posição do tribunal recorrido quanto ao montante a atender de retribuição anual, a ré seguradora apenas poderia ser condenada na sua quota parte.
O empregador A. N. nunca figurou como réu, não tendo sido demandado enquanto tal na petição inicial, nem nenhum pedido foi contra ele deduzido. Da petição inicial também não emerge que devesse ser chamado a intervir, aliás o pedido formulado tem por base de cálculo a remuneração declarada para efeitos de seguro. O empregador nunca foi chamado à tentativa de conciliação na fase conciliatória, assumindo-se que, a existir vinculo laboral (que era o cerne da questão), a responsabilidade seria da seguradora (naturalmente até ao limite seguro).
Não podemos assim subscrever a posição do senhor PGA junto desta Relação que defende que o processo enferma de nulidade por falta de citação de uma das entidades responsáveis pela reparação do acidente, ou seja, a entidade empregadora do sinistrado, o que determinaria a anulação de todo o processado – 187º/a, CPT. Para assim ser, teria o empregador de figurar na petição inicial na qualidade de réu, o que não é o caso.
A considerar-se que o trabalhador auferia uma retribuição maior do que a transferida para efeitos de seguro, ocorreria, antes, a excepção processual dilatória de ilegitimidade passiva (plural), por violação das regras de litisconsórcio necessário. A lei exigiria a intervenção de dois interessados na relação material controvertida, a seguradora e o empregador, e na acção só estaria um deles- 33º CPC.
É certo que a ilegitimidade é do conhecimento oficioso. Simplesmente a lei processual laboral contém legislação específica que determina que a possibilidade de mandar intervir na causa outra pessoa só é possível até à audiência de julgamento – 27º/2/a, CPC. Além desta norma genérica, o código de processo de trabalho, contém uma outra reguladora da acção especial emergente de acidente de trabalho que dispõe: “Quando estiver em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável, para o que é citada…”. Assim sendo, por extemporaneidade, está vedado ao tribunal mandar intervir na causa o empregador.
Repare-se que no recurso nenhuma das partes, incluindo o autor, apontaram qualquer nulidade na decisão recorrida, mormente por violação de algum dever de gestão processual de mandar outrem intervir na causa.
Pelo contrário, desde o início, o trabalhador só demandou a seguradora na qualidade de responsável considerando que o valor que auferia anualmente estava contido no seguro. Inclusive arrolou o “empregador” como testemunha.
Donde, não se cuida, aqui, de uma questão de lei substantiva atinente a direitos indisponíveis nos acidentes de trabalho, mas sim de uma questão adjectiva e de extemporaneidade em conhecer a excepção de ilegitimidade e em mandar intervir outrem na causa. Opção que o legislador laboral tomou em prol da celeridade, entendendo que o encerramento da audiência de julgamento era o limite até ao qual se justificava anular actos, com tudo de negativo que isso acarreta.
Passamos agora à questão da fixação da retribuição a atender como base de referência do pagamento das prestações infortunísticas.
Na decisão recorrida diz-se que o cálculo das prestações para trabalhadores a tempo parcial tem como base a retribuição que aufeririam se trabalhassem a tempo inteiro. E multiplicou o valor diário de 40€x30x14, obtendo o total de (16.800,00 €). A retribuição transferida para a ré/seguradora era no valor anual de 11.374,72€.

Segundo o artigo 71º/1, NLAT:

“A indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente”.

E segundo o artigo 71º/1 a 3, 13, NLAT:

Entende-se por retribuição anual o produto de 12 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de natal e de férias e outras retribuições anuais a que o sinistrado tenha direito com carácter de regularidade”, nunca podendo a retribuição ser inferior à que resulte de IRCT ou lei.
A lei prevê, ainda, que se a retribuição correspondente ao dia do acidente for diferente da normal “…esta é calculada pela mádia dos dias de trabalho e a respectiva retribuição auferida pelo sinistrado no período de um ano anterior ao acidente – 71º/4, NLAT
Ficou provado que o autor ganhava 40€ dia pelo período de 8h, no desempenho de tarefas agrícolas, o que fazia para o empregador de forma intermitente, durante o ano, em diversas ocasiões, consoante as necessidades.
Não é assim possível aplicar literalmente os referidos normativos, porque se desconhece quantos dias trabalhou no ano que antecedeu o acidente.
Tem a jurisprudência salientado que subjaz a este último dispositivo (7) a intenção de fixar uma base de cálculo abstracta por reporte ao período de um ano e a uma retribuição ilíquida. Não estando, assim, rigorosamente em causa, nem só a retribuição em concreto auferida pelo sinistrado durante o ano, nem só a retribuição percebida do empregador ao serviço de quem se acidentou (8).
Na verdade, os trabalhadores podem ser vítimas de acidente de trabalho antes de atingirem um ano de serviço e, não é por isso, que a base de cálculo deixa de ter o ano por reporte.
Ademais, não se abarca só a remuneração recebida daquele empregador. A indemnização por incapacidade temporária para o trabalho, a indemnização em capital e a pensão por incapacidade permanente destinam-se a compensar o sinistrado pela perda ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho - 48º, NLAT. Ora, o trabalhador que se sinistra não vê apenas reduzida a sua capacidade de ganho e de trabalho naquele especifico trabalho, mas também em geral para qualquer outra actividade que, assim, concomitantemente, fica prejudicada e cuja desvalorização é abrangida pela referido principio de reparação (9).

Posto isto, que fórmula de cálculo mais se adequa ao caso?

A jurisprudência tem feito uso de fórmulas diversas para aferir a base de cálculo das prestações infortunísticas nos casos em que se confronta com relações laborais que, nem são estáveis e contínuas, nem o empregador é só um, nem a retribuição é facilmente aferida pela soma dos valores ganhos no período de um ano.
Uns recorrem ao valor do salário mínimo nacional previsto em lei ou IRCT. Outros recorrem a fórmulas de multiplicação da retribuição diária por 22, 24 ou 30 dias, novamente multiplicada por 14 meses. Se analisarmos ao pormenor a matéria fáctica de cada caso jurisprudencial verificamos diferenças que, globalmente, se relacionam com o tipo de trabalho (mais ou menos duro e intenso), ou com a sua duração (concentrado, por corresponder ou não a “picos” do ano), com os usos locais, etc….
Não existem fórmulas sacrossantas. O modo de cálculo tem de adequar-se à justiça do caso concreto. As disposições legais (71º NLAT) não contém a fórmula concreta a usar, delas apenas se retirando as balizas a observar, assim como a rácio que lhes subjaz.
No caso, ficou comprovado um trabalho intermitente, mas já com traços de alguma habitualidade, anualmente repetido. O autor trabalhava por conta do empregador há cerca de 20 anos, o que acontecia todos os anos, conforme as épocas, desempenhando trabalhos agrícolas durante alguns dias, na preparação de terrenos, na poda, na vindima, na azeitona, etc... Caracterizou-se este trabalho como sendo a tempo parcial. Provou-se ainda que o autor também trabalhava os seus próprios terrenos agrícolas.
Segundo a lei, o “cálculo das prestações para trabalhadores a tempo parcial tem como base a retribuição que aufeririam se trabalhassem a tempo inteiro” – 71º, nº 9, NLAT.
O trabalhador a tempo parcial tem direito “À retribuição base e outras prestações, com ou sem carácter retributivo, previstas na lei ou em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho…” e ao subsídio de refeição previsto em IRC quando o período de trabalho for superior a 5h- 154º/3/a/b, CT.
Há também que ter presente que na falta dos elementos completos referentes à retribuição do ano anterior, o cálculo faz-se segundo o prudente arbítrio do juiz, considerando a natureza dos serviços prestados, a categoria profissional do sinistrado e os usos- 71/4/NLAT.
A fórmula utilizada na sentença recorrida, atendendo à totalidade dos dias do mês, não nos parece a mais adequada ao caso. A mesma tem sido utilizada pela jurisprudência sobretudo para trabalhos de curta duração e de esforço intenso com grande concentração laboral, o que justifica a desconsideração dos dias de descanso semanal. São também normalmente casos em que se sabe pouco sobre os dias em que o sinistrado terá efectivamente trabalhado no último ano. Abrangem, em grande parte dos casos, situações precárias de “típicos jeireiros”.
Não se afigura ser o caso dos autos em que a prestação laboral, embora intermitente, se repete ao longo do ano distribuída por diversos tipos de tarefas, que cobrem trabalhos mais ou menos intensos, como a simples preparação de terrenos. E em que existe mais informação nos autos a considerar.
O sinistrado na tentativa de conciliação balizou o limite máximo daquilo que seria o total do seu rendimento anual, na altura fazendo uma proposta tendo por base o valor transferido para seguradora de 812,48 € x 14 meses, num total anual de 11.374,72€. O sinistrado aceitou, assim, que não ganharia mais do que este total. Tais declarações sobre a factualidade subjacente aos seus direitos têm arrimo legal (112º CPT). Na petição inicial reitera esta afirmação (artigo 58º) e demanda só a ré seguradora.
O princípio da indisponibilidade de direitos vigente nesta matéria não impede que a parte indique factos (o que seria absurdo) ou que acorde sobre factos, incluindo sobre o vencimento, desde que a sua legalidade não seja contrariada por outros elementos do processo. O natural é que o sinistrado indique o que ganha. Veja-se que os processos laborais estão repletos de acordos em tentativa de conciliação com base em vencimentos alvitrados pelos trabalhadores, desde que aceites pela outra parte e fiscalizados/validados pelo Ministério Público e juiz. As ficções legais só devem operar quando não se apura o real, excepto naturalmente se o vencimento ganho estiver abaixo do limiar mínimo. No caso temos um limite máximo balizado pelo próprio sinistrado, nada indicando nos autos que não saiba de si, esteja pressionado ou exista um intuito fraudulento.
O empregador, por sua vez, aceitou e acolheu o valor de 812,48 €x14 como sendo o valor habitualmente pago aos seus trabalhadores agrícolas, pois foi este o valor que declarou para efeitos de seguro.
A ré seguradora aceita também que foi este o valor transferido.
Finalmente, este valor cobre largamente os mínimos que seriam devidos pelo trabalho prestado a tempo inteiro, nos termos acima explanados, na medida em que facilmente se alcança que suplanta o salário mínimo nacional na altura praticado (530€) (10), e o subsídio de alimentação que não era superior a cerca de 4,00€ por dia efectivo de trabalho se recorrêssemos a portarias de extensão para o sector agrícola.
Donde, a base de cálculo da retribuição que temos por adequada deverá ser 11.374,72€.

Tem o autor assim direito aos seguintes valores:

(i) Capital de remição de pensão por IPP correspondente a 70% da redução na capacidade geral de ganho no valor de 2.020,40€ (11.374,72€ x 70% x IPP 25,3746 %)- 48º/3/c, 75º, NLAT.
(ii) Indemnização diária igual a 70% e 75% da retribuição, respectivamente nos primeiros 12 meses e no período subsequente, por incapacidade temporária absoluta de 867 dias no total de 19.695,40€ (7.962,30€ de 365 dias e 11.733,10€ de 502 dias) -48º/3/d, 75º, NLAT
(iii) 3.383,43€ (após dedução do valor não provado) correspondente ao montante despendido pelo aqui sinistrado a título de deslocações e cuidados médicos e medicamentosos – 23º/a, 25º/a/b/c/d/f/g/i, 39º/1/2, 41º, NLAT.

III. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º do CPT e 663º do CPC, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso nos seguintes termos:

a) Alterar a matéria de facto nos termos supra expostos;
b) alterar/revogar a decisão condenando-se a ré a pagar ao autor:
b.1 o capital de remição da pensão de 2.020,40€ (dois mil, e vinte euros e quarenta cêntimos), com início em 29-01-2019, acrescidos de juros de mora à taxa legal a contar da alta clinica e vencidos até ao seu pagamento;
b.2 indemnização por ITA de 19.695,40€ (dezanove mil, seiscentos e noventa e cinco euros, e quarenta cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa legal a contar do vencimento e vencidos até ao seu pagamento – 72º/4, NLAT;
b.3 a título de reembolso por deslocações e cuidados médicos e medicamentosos a quantia de 3.383,43€ (três mil, trezentos e oitenta e três euros e quarenta e três cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa legal a contar da citação e vencidos até ao seu pagamento.
Custas a cargo da recorrente e recorrido na proporção vencimento/decaimento.
Notifique.
10-09-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2. No sentido de que os factos relativos a direitos indisponíveis conferidos pela lei de acidentes de trabalho, sendo irrenunciáveis, não podem ser objecto de confissão: ac. STJ de 12-12-1990, RC de 12-04-2011, RG de 3-11-2016 (salientando que os direitos indisponíveis e proibição de confissão só de aplicam ao autor/trabalhador), RG de 4-10-2018 (onde se debate situação parecida de “confissão” perante perito averiguador), www.dgsi.pt
3. Acidentes de trabalho e doenças profissionais- Uma introdução, Centro de Estudos Judiciários, Julho de 2013, texto de actualização da autoria de Viriato Reis e Diogo Ravara incidente sobre um anterior texto de Mª Adelaide Domingos, disponível em ebook no site do CEJ.
4. Lei 2127/65, Base II; art. 2º, 2 da Lei 100/97, de 13/09 - LAT; e, posteriormente, art. 13º do CT/03.
5. Lei 98-2009, de 4-09, aplicável aos acidentes ocorridos a partir de 1-01-2010.
6. Salvo excepções que ao caso não interessam.
7. 71º/4, NLAT.
8. Acórdãos da RE de 29-11-18, RG de 31-10-2018.
9. Acórdãos de: RG de 31-10-2018, 2-06-2016, 20-10-2016, 5-12-2019; RE – 15-03-2018.
10. DL 254-A/2015, de 31-12.