Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
447/10.4TBVLN.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: DIREITO DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O conceito de direito de personalidade não é tão extenso que implique para o proprietário vizinho o dever de se abster de levantar construção no seu prédio, a fim de não causar sombra no prédio vizinho ou de não prejudicar as vistas de que este disfruta
Decisão Texto Integral: Processo nº 447/10.4TBVLN.G1
Apelação

Tribunal recorrido: Tribunal da Comarca de Valença


+

Acordam em conferência na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

S… e mulher M…demandaram, pelo Tribunal Judicial de Valença e em autos de ação declarativa na forma sumária, S…, peticionando que: 1) se declarasse que são donos do prédio que descrevem; 2) se condenasse o Réu a respeitar tal direito; 3) se condenasse o Réu a demolir a construção que realizou na parte do terreno dos Autores; 4) se condenasse o Réu a afastar tal construção da extrema com o prédio dos Autores pelo menos três metros a fim de respeitar o direito à intimidade, à vida privada e qualidade de vida dos que habitam no prédio dos Autores, bem como a salubridade e a qualidade de ambiente; 5) se condenasse o Réu a abster-se de construir edifício ou outra construção que ultrapasse, junto a extrema, a altura de dois metros, de forma a permitir a entrada de ar, luz e ainda o desfrute da paisagem a partir da casa dos Autores; 6) se condenasse o Réu no pagamento da quantia diária de €100,00 a titulo de sanção pecuniária compulsória.
Alegaram para o efeito, em síntese, que são donos do prédio urbano que descrevem, que confronta, pelo seu quintal, com um prédio urbano do Réu. Sucede que este construiu, junto à estrema dos prédios, um barracão que em parte ocupa terreno do prédio dos Autores. Além disso, o barracão tem uma altura superior a 3,50 metros, o que é manifestamente exagerado para os fins a que se destina, devendo ser rebaixado para 2 metros, de modo a não privar os Autores de vistas e da entrada de sol e luz. Também, a utilização que é feita do barracão provoca maus cheiros e insalubridade, o que afeta a habitabilidade da casa dos Autores. Por outro lado, a construção não respeita a distância de 3 metros prevista no PDM e RMEU relativamente ao prédio dos Autores.
Contestou o Réu, concluindo pela improcedência da ação.
Disse, em síntese, que o barracão foi construído em 1985 e teve por base um licenciamento, não ocupa espaço do prédio dos Autores, tem a altura necessária para os fins a que se destina, não provoca maus cheiros ou insalubridade e, pese embora estar a menos de 3 metros da estrema dos prédios, não possui qualquer abertura para o lado do prédio dos Autores. Deste modo, a construção não afeta indevidamente o gozo e desfrute do prédio dos Autores.
Seguindo o processo seus termos, veio a final a ser proferida sentença que, em procedência meramente parcial da ação, reconheceu que os Autores são donos do prédio que descrevem, e absolveu o Réu do mais pedido.

Inconformados com o assim decidido, apelam os Autores.

Da respectiva alegação extraem as seguintes conclusões:

1. No modesto entendimento dos aqui recorrentes, estamos perante uma flagrante colisão de direitos – Cfr. artºs 335.º e 334.º do Cód. Civil.
2. Foi dado como provado o seguinte:
“a) Existe um prédio urbano composto de casa com dois pavimentos, destinada a habitação e rossios, sita no lugar da Torre da Freguesia de Gondomil, a confrontar do norte com S…, sul com o Réu e outros, nascente com caminho público e poente com J… .. Inscrito na respectiva matriz sob o art. 324 urbano. Omisso na Conservatória do Registo Predial.
b) O referido imóvel foi construído a expensas dos AA. há mais de 25 anos a esta parte em terreno que lhe foi verbalmente doado pelos pais do A.
c) E foi inscrito na respectiva Repartição de Finanças em 1978,d ata em que os AA. começaram a habitar no dito prédio.
d) Os AA. a partir dessa data, instalaram aí a sua economia domestica e é onde habitam juntamente com a família, tem centrada toda a sua economia comum
e) Fazem as suas refeições e pernoitam
f) Tem ainda ao longo destes anos feito obras de conservação, restauro e anexos
g) O que vem sucedendo à vista de todos, sem constranger terceiros, convencidos de que não ofendem direitos de outrem, e plenamente convencidos de que são os únicos donos da casa de habitação, anexos e respectivos rossios
h) O R. por sua vez é dono de um prédio urbano que confronta com o quintal da casa dos AA. pelo seu lado sul.
i) O barracão anexo do prédio descrito em h) situa-se a menos de 3 metros em relação a extrema do prédio descrito em A)
j) Entre o prédio descrito em A) (dos AA) e o prédio descrito em h) existem dois elementos em pedra, estando um colocado junto a estrada municipal que se situa a norte e outro no fim do prédio parte poente
k) O terreno descrito em h) fica num plano superior em relação ao terreno descrito em A)
l) O Réu construiu um muro ao longo da extrema com o prédio descrito em A) e , junto a tal extrema, construiu ainda um barracão
m) O barracão tem uma altura superior a 3,50m e priva parcialmente os autores de vistas do lado da sua moradia que deita para o prédio do Réu e, nessa parte, o seu terreno fica parcialmente privado da entrada de sol (luz)
n) O anexo descrito em l), do lado voltado para o prédio descrito em A), apresenta uma ”empena cega”, não tendo qualquer janela, abertura ou fresta
0) No ano de 1985, a Câmara Municipal de Valença, emitiu uma licença de construção em nome do réu, para construção de um anexo.”
3. O Tribunal a quo apenas reconheceu o direito de propriedade dos AA. (prédio descrito em A)), dando o restante como improcedente.
4. A douta sentença confundiu direito com interesse, ao defender que não está vedado ao Réu construir o barracão no seu prédio, nem qualquer facto que limite o direito de propriedade – Cfr. Arts. 1305.º e 1347.º do Cód. Civil.
5. Se, por um lado, é verdade que a propriedade sobre os imóveis abrange todo o espaço aéreo correspondente à superfície e ainda o subsolo, por outro lado, também é certo que isso não dá ao proprietário o direito de construir, à superfície, infraestruturas que sejam prejudiciais a terceiros.
6. A douta sentença, chamou à colação o PDM de Valença (art. 104.º nº1) e entendeu que os anexos podem ser construídos, desde que, não excedam 10% da área da parcela, que não podem ter mais de um piso nem um pé – direito superior a 2,30m para não provocarem a insalubridade do local e da envolvente e, que podem encostar ao limite da parcela.
7. Provou-se que o barracão está encostado ao limite do terreno, tem uma altura superior a 3,50m, fica num plano superior em relação ao terreno dos AA., e priva, parcialmente, os autores de vistas do lado da sua moradia que deita para o prédio do réu e o seu terreno fica parcialmente privado da entrada de sol (luz).
8. Verifica-se, assim, que o barracão está ilegal, porque tem uma altura superior ao permitido no art. 104.º, nº1 al. a), ou seja, tem uma altura superior a 2,30m.
9. Não provou o Réu que o barracão em causa estivesse devidamente licenciado e, pelo contrário, provou que, ainda, que preenchesse todos os requisitos do referido art. 104.º do PDM, tinha um altura excessiva e, também, dois pisos – vide vistorias juntas aos autos.
10. Não provou a necessidade de construir o barracão tão próximo, ou mesmo ultrapassando a extrema com o terreno dos AA. e, nem invocou ou provou a necessidade de construir com uma altura superior à legalmente permitida.
11. Provado está que a construção, tal como está implantada, retira sol, luz e vistas ao prédio dos AA.
12. O Réu não respeitou as normas legais para construir o barracão, quer em altura, quer em relação aos afastamentos do terreno dos AA., correspondendo tal comportamento a um interesse pessoal do Réu (a um mero capricho) e não ao exercício de um direito.
13. O direito do Réu só era exercido, dentro dos poderes consagrados no art.º 1305.º do Cód. Civil, se, este, tivesse cumprido a Lei, e, teria logrado alcançar o mesmo fim (mesmo construindo afastado da extrema e com uma altura que não ultrapassasse os 2,30m).
14. Esta situação/comportamento do R. implica para os AA. a privação de uso de sol, de luz, de vistas, violando-se, assim, o seu direito de propriedade, ofensa à sua privacidade e da sua família quando usam o seu quintal e piscina aí implantada, ou mesmo, determinadas partes da casa, permitindo, mais facilmente, a visualização de pessoas e, consequente, oposição ao respectivo direito à integridade física e psíquica.
15. O comportamento do Réu prefigura um abuso de direito ao abrigo do preceituado no art.º 334.º do Cód. Civil., porquanto, este excedeu os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do seu direito de propriedade, com a construção em causa, no local em apreço.
16. O Tribunal, de acordo com os factos provados e não provados (já aqui mencionados), devia ter aplicado o disposto no art.º 335.º do C.C., dando prevalência aos direitos dos AA., em detrimento do direito de propriedade e recolha de utensílios agrícolas e animais do R., sobretudo porque, o barracão, não foi licenciado e viola o P.D.M. quanto à altura e distancia da extrema.
17. Ou, então, compatibilizando os dois direitos conflituantes, ou seja, cederem os AA. e R. na medida do necessário para que produzam o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (art.º 335.º do Cód. Civil).
18. Daí que, devia, a douta sentença, ter condenado o Réu a rebaixar a altura do barracão para a altura máxima de 2,30m e retirar o piso superior do mesmo (tudo como melhor consta da peritagem junta aos autos), obrigando-o ao cumprimento da Lei, sem que daí resultasse a violação de nenhum direito dele (direito de propriedade) e, assim, minimizando a violação dos direitos de personalidade dos AA.
19. O Tribunal a quo não aplicou, correctamente, o estatuído nos arts. 334.º e 335.º do Cód. Civil.
20. A douta sentença parece querer justificar-se no facto de o anexo se encostar ao limite da extrema, e entende que, por isso, pode ter uma altura de 3,50m.
21. Mas, o que a Lei diz é que, quando exista uma parede meeira, que em planta não seja superiora 15m, o anexo não pode ter mais de 3,50m.
22. No caso dos autos não existe parede meeira, nem se provou que o barracão estivesse encostado à extrema, daí que a altura legal é de 2,30m – vide art.º 104º do PDM.
23. Dentro do direito de propriedade, consagrado no art.º 62.º da Constituição da República, cujo âmbito embora pleno, está sujeito a limitações de interesse público, resultante da sua função social (“inter alia” nos artigos 61.º nº1, 81.º, alíneas a) e b) da Lei Fundamental).
24. No cotejo das normas do REGEU com o C.C., conclui-se que, enquanto as primeiras visam a tutela do interesse púbico, nomeadamente, a segurança, a estética, e salubridade, a lei civil, por sua vez, protege interesses meramente privados, decorrentes das relações de vizinhança - vide art.º 1305.º do CC. e Vg. Ac. do STA, de 17 de Junho de 2003.
25. O Réu, ao assim actuar (não respeitando as normas de ordem pública, constantes do PDM de Valença, sem qualquer justificação), violou um direito público de vizinhança e o previsto no disposto no art.º 1305.º do C.C. e, o de gozo do direito de propriedade, tem que ser feito de acordo com os limites da lei – vide Oliveira Ascensão, in A tipicidade dos direitos reais, pág. 187 e 188 e nota 33.
26. Mais violou, o Réu, uma norma de direito público, e de modo a prejudicar o uso e utilização do prédio dos AA. excedendo, de forma grosseira, os limites da boa fé e do fim social ou económico do seu direito de propriedade.
27. Estamos, perante um típico e obvio abuso de direito previsto no art.º 334.º do Cód. Civil.
28. Se, por um lado, temos o exercício da direito propriedade pelo Réu (embora ilegítimo, pelo que supra se deixou dito); de outro lado, temos o direito às vistas e a receber o sol e luz pelo prédio dos AA.
29. O sol é importante para a saúde, pois, permite a síntese da vitamina D (essencial para a manipulação do cálcio, baixando também os níveis de colesterol) e os raios ultravioletas são anticépticos (destruidores de bactérias, vírus e fungos), pelo que a insolação constitui um direito na perspectiva de saúde.
30. Ensina o Prof. Dr. Menezes Cordeiro in “Colisão de Direitos”, apud “O Direito”, 137, 2005, 38, em sentido amplo, que há colisão de direitos “quando um direito subjectivo, na sua configuração, ou no seu exercício, deva ser harmonizado com outro ou com outros direitos. Num sentido estrito, a colisão ocorre sempre que, dois ou mais direitos subjectivos, assegurem, aos seus titulares, permissões incompatíveis.
31. Ocorrendo um conflito de direito um deles terá de prevalecer e, esse, será o que se considere superior, sendo que, se iguais, a prevalência deva ser aferida casuisticamente. Tratando-se de direitos de espécie diferente irá prevalecer aquele que tutela interesse superior, tendo sido dada primazia aos direitos de personalidade (cfr. nº2 do art.º 335.º do Cód. Civil e ainda Ac.s do STJ, de 26 de Novembro de 2000 – CJ; STJ VIII-42-45, de 27 de Maio de 2004 – CJ; STJ XII, 2º-71-74, de 14 de Outubro de 2003), onde, aqui, o Venerando Conselheiro Q Alves Velho afirma: “admitindo a possibilidade de conflitos de direitos, doutrina e jurisprudência vem reafirmando a regra da prevalência do direito fundamental dos cidadãos ao bom nome e reputação, à hora e a reserva da vida privada sobre o direito de livre expressão….”
32. No caso dos autos, repete-se, estamos perante o exercício do direito de propriedade do recorrido ao construir, junto ao prédio dos AA., um barracão e o direito dos recorrentes de usufruírem plenamente do sol, no seu prédio, onde está implantada a sua casa, jardim e respectiva piscina, situação que antes gozavam.
33. No conflito de direitos deve atender-se, essencialmente, ao comportamento social que deve ter um “bonus pater familiae” e, como tal, não exercer os nossos direitos com sacrifício dos direitos alheios, conforme testemunha a Prof. Gisele Leite (in considerações sobre o direito de vizinhança comentando o artº 1293 do Cód. Civil Brasileiro) - os direitos de propriedade vigoram sobre a óptica da função social e, sobretudo, pelas condutas norteadas pela boa-fé objectiva.
34. O direito à insolação do terreno, casa e piscina dos recorrentes, deve prevalecer sobre o direito de edificação do Réu, tanto mais que, este, não respeitou as normas regulamentares do PDM de Valença, por aqui estar em causa o direito à saúde e, ainda, porque o direito dos AA. é anterior ao direito de edificação do Réu.
35. Daí que a possibilidade de rebaixar o barracão, para no máximo 2,30m, ia permitir a passagem dos raios solares, ar e luz, e ia permitir a conciliação/harmonização dos direitos de ambas as partes.
36. É função dos Tribunais garantir uma boa relação de vizinhança e a paz social, baseando-se, além do mais, também, na chamada “Jurisprudência dos Interesses”, que permite e “obriga” a aplicar o direito de forma mitigada e ponderando sempre os interesses em causa em cada momento.
37. A douta sentença violou o disposto nos arts.º 334.º, 335.º, 1360.º, 1305.º todos do Cód. Civil; o disposto nos art.º 104.º, nº1 do PDM de Valença e, ainda, o disposto no arts.º 615.º, nº1, als. b), e c), do Cód. Proc. Civil.

Terminam dizendo que deve ser o Réu condenado a demolir o barracão ou, caso assim se não entenda, deve ser ordenada a demolição de modo a não ficar excedida a altura de 2,30 metros.

+

A parte contrária não contra-alegou.

+

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

+

São questões a conhecer:
- A de saber se a construção do Réu se apresenta ilegal;
- A de saber se o Réu exerceu o seu direito de forma abusiva;
- A de saber se se verifica uma colisão de direitos, tendo precedência o direito dos Autores.

+

Plano Fatual:

Estão provados os fatos seguintes:

A. Existe um prédio urbano composto de casa com dois pavimentos, destinada a habitação e rossios, sita no Lugar da Torre da Freguesia de Gondomil, a confrontar do norte com S…, sul com o R. e outros, nascente com caminho público e poente com J… . Inscrito na respetiva matriz sob o artº 324 urbano. Omisso na Conservatória do Registo Predial (alin. A) do despacho de seleção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
B. O referido imóvel foi construído a expensas dos AA. há mais de 25 anos a esta parte em terreno que lhe foi verbalmente doado pelos pais do AA. (alin. B) do despacho de selecção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
C. E foi inscrito na respetiva Repartição de Finanças em 1978 (doc 1), data em que os AA. começaram a habitar no dito prédio (alin. C) do despacho de seleção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
D. Os AA. a partir dessa data, instalaram aí a sua economia doméstica e é onde habitam juntamente com a família, tem centrada toda a sua economia comum (alin. D) do despacho de seleção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
E. Fazem as suas refeições e pernoitam (alin. E) do despacho de seleção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
F. Tem ainda ao longo destes anos feito obras de conservação, restauro e anexos (alin. F) do despacho de seleção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
G. O que vem sucedendo à vista de todos, sem constranger terceiros, convencidos de que não ofendem direitos de outrem, e plenamente convencidos de que são os únicos donos da casa de habitação, anexos e respetivos rossios (alin. G) do despacho de selecção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
H. O R. por sua vez é dono de um prédio urbano que confronta com o quintal da casa dos AA. pelo seu lado sul (alin. H) do despacho de selecção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
I. O "barracão" anexo ao prédio descrito em H) situa-se a menos de 3 metros em relação à extrema do prédio descrito em A) (alin. H) do despacho de selecção da matéria de facto de fls. 57 e ss.).
J. Entre o prédio descrito em A) e o prédio descrito em H) existem dois elementos em pedra, estando um colocado junto à estrada municipal que se situa a norte e outro no fim do prédio na parte poente.
K. O terreno descrito em H) fica num plano superior em relação ao terreno descrito em A).
L. O réu construiu um muro ao longo da extrema com o prédio descrito em A) e, junto a tal extrema, construiu ainda um barracão.
M. O barracão tem uma altura superior a 3,50m e priva parcialmente os autores de vistas do lado da sua moradia que deita para o prédio do réu e, nessa parte, o seu terreno fica parcialmente privado da entrada de sol (luz).
N. O anexo descrito em I), do lado voltado para o prédio descrito em A), apresenta uma “empena cega”, não tendo qualquer janela, porta, abertura ou fresta.
O. No ano de 1985, a Câmara Municipal de Valença emitiu uma licença de construção, em nome do réu, para a construção de um anexo.

Foram considerados não provados os fatos seguintes:

1. Os elementos em pedra referidos em J) delimitam os prédios descritos em A) e H) através de uma linha reta.
2. O muro foi construído há cerca de 15 anos e é um muro de suporte de terras.
3. O barracão ocupa, em parte, o terreno descrito em A), naquela parte que fica entre o muro referido em L) e a extrema com o prédio descrito em H), numa faixa de terreno ao longo de toda a confrontação sul do prédio descrito em A), numa largura de 50 cm junto da estrada sita a nascente e 15 cm no limite oposto, invadindo e ocupando uma faixa de terreno, a todo o comprimento do barracão.
4. A beirada onde assenta a cobertura abona em quase toda a sua extensão para cima do prédio descrito em A).
5. O barracão destina-se à recolha de animais e alfaias agrícolas, em virtude do que provoca maus cheiros, insalubridade no local e o aparecimento de insetos que perturbam e incomodam, além de serem transmissores de doenças que afetam a habitabilidade da casa dos autores bem como a usufruição do quintal pelos mesmos e seus familiares, nomeadamente filhos e netos de tenra idade.
6. O barracão priva os autores, do lado da sua moradia que deita para o prédio do réu, de ar.
7. A construção do anexo (barracão) teve lugar no ano de 1985.
8. A licença referida em O) é relativa ao anexo (barracão) referido em L).

Quid juris?
Sustentam os Apelantes, numa das abordagens jurídicas à questão sub judice, que o barracão da discórdia viola o PDM do Município de Valença, quer em termos do distanciamento ao seu prédio quer em termos de cércea, e daqui que, privando em parte o prédio de vistas, sol e luz, deveria ordenar-se a respetiva demolição total ou parcial.
Sobre isto temos a dizer o seguinte:
É verdade que está provado que o barracão tem uma altura superior a 3,50m e priva parcialmente os Autores de vistas do lado da sua moradia que deita para o prédio do Réu e, nessa parte, o seu terreno fica parcialmente privado da entrada de sol (luz); assim como está provado que o barracão situa-se a menos de 3 metros em relação à extrema do prédio dos autores.
Porém, isto não nos diz muito.
Porquê?
Quanto à cércea:
Retira-se da documentação administrativa que foi feita juntar aos autos (fls. 96 e seguintes) que o Réu obteve inicialmente, isto em 1985, licenciamento para a construção de um barracão, porém à data já construído. Segundo se encarrega de nos informar o próprio Autor em requerimento que apresentou oportunamente junto do presidente da Câmara Municipal (referimo-nos ao requerimento de fls. 372 dos presentes autos), o licenciamento admitia para a dita construção uma altura máxima de 4,90m (2,20m + 0,20m + 2,50). E, de fato, do esboço topográfico de fls. 397, que foi apresentado para efeitos do pretendido licenciamento, decorre que o piso inferior teria 2,20m e o superior 2,50m, o que com a placa divisória (dizemos nós) lá iria dar os tais 4,90m. Também se retira de tal documentação que em 1995 o Réu, com vista a legalizar o barracão que havia levantado em desconformidade com o licenciamento, requereu e obteve outro licenciamento, e neste era admitida a altura máxima de 4,70m para os pisos (como de igual forma o Autor aduz em requerimento apresentado à mesma entidade, v. fls. 321). Ainda, os serviços técnicos do Município informavam em 1998 que a diferença entre o executado e o licenciado se traduzia apenas no distanciamento em relação ao prédio vizinho. Entretanto, do laudo pericial constante dos autos (fls. 444 e seguintes) retira-se que o barracão que está implantado apresenta a altura máxima de 4,73m.
Ora, este conjunto de dados leva-nos a concluir que em termos altimétricos, e vista a legislação que vigorava à data do primitivo licenciamento - basicamente o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, RGEU, aprovado pelo DL nº 38.382, sucessivamente alterado, que nos parece ser a atendível para os efeitos em causa (pois que do que se tratou subsequentemente foi apenas de legalizar o que começou por ser feito, não uma obra ex novo) – a construção em causa não pode ser tida como irregular ou ilegal do ponto de vista administrativo. Desinteressante para o caso é, assim, o que passou depois a ser regulado atinentemente pelo entretanto emergente PDM do Município de Valença. De observar a propósito e em breve nota que o art. 60º do RJUE, aprovado pelo DL 522/99, veio inclusivamente a prescrever que as edificações construídas ao abrigo de direito anterior e as utilizações respetivas não eram afetadas por normas legais supervenientes.
Quanto ao distanciamento:
Também aqui o que conta é o ordenamento jurídico vigente à data do primitivo licenciamento. Ora, o RGEU não estabelecia quaisquer distâncias mínimas entre prédios quando, como é o caso, estava em questão um barracão ou anexo (contra o que sustentaram os ora Apelantes nas suas interações com a Câmara Municipal, o art. 60º do RGEU nada tinha a ver com o assunto). Donde, e dado que o barracão não tinha nem tem aberturas a dar diretamente para o prédio dos Autores, não encontramos como se possa dizer que deixou de ser observada uma qualquer distância mínima relativamente ao prédio dos Autores. Cai-se assim na regra geral, e esta é a de que, não concorrendo qualquer exceção legal, pode o proprietário construir em qualquer parte do seu prédio (v. art. 1305º do CC). Pois que como nos diz José Alberto Gonzalez (Restrições de Vizinhança, p. 107, e sem prejuízo das diversas exceções legais, “O nosso Código não impõe qualquer distância mínima obrigatória entre construções realizadas em diferentes prédios contíguos (…). Quer dizer, portanto, que aquele que construir o pode fazer perfeitamente até às estremas do seu prédio”.
Conclusão: relativamente à altura do barraco e seu distanciamento do prédio dos ora Apelantes julgamos que nenhumas consequências se podem retirar para o que se discute ou pode discutir nos presentes autos (relações jurídico-privadas). Daqui que não é por causa da altura ou do distanciamento que a pretensão dos autores poderá proceder.
Isto posto.
Sustentam os Apelantes, agora numa outra abordagem jurídica à questão em discussão, que o comportamento do Réu, ao ter construído como construiu, configura uma situação de abuso de direito.
Mas não vemos como possa ser assim.
Pois que fato algum vem provado que indique uma atuação inserível à previsão do art. 334º do CC.
De resto, e como se observa no acórdão do STJ de 24.1.2002 (Col Jur - Ac do STJ, 2002, tomo I, p. 53 e 54), o exercício do direito só poderá ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, isto é, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante. E acrescenta o mesmo acórdão, e passamos a transcrever, que «a utilização do abuso do direito não deve constituir panaceia fácil de toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respectivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo (…)”. Seria, no limite, o caso. Pois que a edificação dentro daquilo que a cada qual pertence, mesmo que com essa edificação se saiba que se está a afetar o bem-estar preexistente de um qualquer terceiro (neste caso um vizinho), nada tem de clamorosamente ofensivo do sentimento socialmente dominante, não constitui só por si algo que vá manifestamente para além dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito de propriedade.
Mais dizem os Apelantes que estamos perante uma situação de colisão de direitos: direito de propriedade do Réu e direito de personalidade dos autores ao sol, luz e vistas.
Vejamos:
A lei constitucional (designadamente art.s 1º, 2º, 69º, nº 1, 70º, nº 2, 72º, nº 2 da CRP) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (v. respetivo preâmbulo e designadamente os art.s 6º, e 29º, nº 1) garantem e protegem os direitos de personalidade do ser humano (designadamente enquanto manifestação da salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa humana). O mesmo acontece com a lei ordinária, conforme resulta designadamente do art. 70º do CC. Os direitos de personalidade têm como objeto as mais variadas realidades atinentes à pessoa humana: vida, o próprio corpo, elementos anatómicos destacados do corpo, equipamento psíquico, identidade, honra, saúde físico-psíquica (aqui incluídas realidades como o sossego, o descanso, o lazer, o sono reparador, o ar puro, o ambiente sadio), etc. Dentro desta linha, a Lei Fundamental (v. artº 66º da CRP) e a lei ordinária (v. artº 2º 1 da Lei nº 11/87 – Lei de bases do Ambiente) consagram o direito a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado.
Os direitos de personalidade são absolutos, no sentido de que geram uma universal obrigação de respeito e abstenção de lesão (oponibilidade erga omnes), incorrendo em responsabilidade civil indemnizatória quem os violar. Exige-se aqui porém que se verifiquem os necessários pressupostos legais da responsabilidade civil. Por outro lado, permite a lei a imposição de medidas preventivas, atenuadoras e supressoras da lesão ilícita aos direitos de personalidade (aqui independentemente de culpa do sujeito passivo e até independentemente de dano efetivo). Isto resulta claro do disposto no artº 70º do CC, e não deixa de ser afirmado pela doutrina (v. R. Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, pp. 451 e sgts.).
Ainda, será de entender que em caso de conflito entre direitos de personalidade e direitos de outra natureza (direito de propriedade, direito de iniciativa empresarial, direito de estabelecimento comercial ou industrial, direito de trabalho, direitos da Administração Pública, etc.) devem, em princípio, prevalecer os primeiros (v. artº 335º, nº 2 do CC). Esta prevalência não é, pois, absoluta, havendo sempre que sopesar, face à realidade factual em concreto, a intensidade e a densidade dos interesses em jogo (v. R. Capelo de Sousa, ob. cit., p. 540 e Ac RL de 20.2.92, Col Jur 1992, 1º, p. 160).
Nem toda a ofensa a direitos de personalidade deve dar direito a medidas nos termos do 70º ou a indemnização. De acordo com a lição de Pessoa Jorge (v. Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, p. 300), há que ter presente que a vida em sociedade significa necessariamente limitações à plena liberdade de cada um e que, por isso, a tutela jurídica dos bens de personalidade – maxime quando impõe sobre outrem os prejuízos patrimoniais ou morais sofridos pelo ofendido – só é admissível quando, face à consciência jurídica dominante, esses bens mereçam tutela autónoma e a ofensa, pela sua gravidade ou anormalidade, se deva considerar excluída dos riscos próprios da vida em comunidade. Dentro da mesma ideia, afirma R. Capelo de Sousa (v. ob. cit., pp. 555 e 556) que há danos não patrimoniais que, pelo seu diminuto significado, não são indemnizáveis, danos estes que todos devem suportar num contexto de adequação social, em face da cada vez mais intensa e interativa vida social hodierna. De igual forma, já houve oportunidade de se deixar dito no Ac desta RG de 24.3.2004 (www.dgsi.pt) que os simples incómodos e aborrecimentos não devem dar lugar, em princípio, a medidas ao abrigo do 70º. Aí se escreveu a propósito que «também aqui é de ter em conta a disciplina constante do nº 1 do artº 496º do CC. Certo que este normativo rege para a responsabilidade civil e não para as providências a tomar ao abrigo do artº 70º do CC, mas quer-se-nos parecer que a lógica e a unidade do sistema jurídico impõe que igual "filosofia" se leve em linha de conta no caso de tais providências. Na realidade, procedem as mesmas razões. Em qualquer um dos casos é atingida a esfera não patrimonial, somente com a diferença (irrelevante para o efeito, cremos) de que na responsabilidade civil se pretende compensar o dano ocorrido, enquanto que com as medidas previstas no artº 70º do CC se visa prevenir, atenuar ou suprimir o próprio dano. (...). Portanto, concluímos que quando o direito de personalidade apenas é ligeiramente beliscado (e não estejam em causa valores fundamentais, como o direito à vida, à saúde, etc.) não há que decretar quaisquer medidas, sobretudo em situação de colisão de direitos. (…)».
Ora, e como também já houve oportunidade de se deixar dito no Ac. desta RG de 28.4.2004 (www.dgsi.pt) «O conceito de direito de personalidade não é tão extenso que implique a vinculação de terceiros a absterem-se de usar e fruir de um prédio de modo a não causar sombra em prédio vizinho. E dizer isto é o mesmo que dizer que, a nível de direitos de personalidade, ninguém goza de qualquer direito à abstenção por parte de terceiros de projeção de sombras sobre a sua propriedade. O que as pessoas têm direito, enquanto manifestação do direito a um ambiente humano e sadio, é a um nível de luminosidade conveniente à sua saúde, bem-estar e conforto. Isto di-lo expressamente a Lei de bases do Ambiente no seu artº 9º, nº 1. Mas como é evidente, a projeção de sombras por efeito de legítima edificação em prédio alheio em nada contende com este direito. (…). O mesmo se diga quanto à paisagem: desfrutar de um cenário paisagístico natural interessante aos olhos de cada um (…) não é um quid subsumível ao conceito de direitos de personalidade. Ninguém goza do direito a impedir outrem de edificar (bem como de florestar, de explorar o subsolo, etc.) só para que a paisagem de que vem desfrutando não fique diminuída ou degradada. Também neste domínio, tudo o que a lei – v. artº 18º, nº 1 da Lei de Bases do Ambiente - visa é impor à Administração (Central, Local e Regional) uma actuação de modo a que na implantação de construções, infraestruturas e aglomerados urbanos não se provoque um impacto violento na paisagem preexistente. A defesa aqui é a do ambiente enquanto realidade estética aos olhos da colectividade, e não a defesa das vistas panorâmicas de um qualquer proprietário».
Ora, o que está em causa no presente recurso é a privação de alguma projeção solar e do desfrute de algumas vistas por causa do barracão, por isso que está provado que o barracão tem uma altura superior a 3,50m e priva parcialmente os autores de vistas do lado da sua moradia que deita para o prédio do réu e, nessa parte, o seu terreno fica parcialmente privado da entrada de sol (luz)”. Face ao que acaba de ser dito, não estamos aqui perante verdadeiros direitos de personalidade, mas, quanto muito, perante expetativas criadas pelos autores de jamais se verem privados daquilo a que estavam acostumados. Não é a mesma coisa.
Isto significa que não se coloca aqui uma autêntica situação de colisão de direitos.
Mas mesmo que se visse no caso a presença de verdadeiros direitos de personalidade dos Autores, nunca estaríamos perante uma situação que pela sua gravidade ou anormalidade se devesse considerar excluída dos riscos próprios da vida em comunidade, mas sim perante pequenos incómodos e aborrecimentos que sempre deveriam ceder face à ordenação que o Réu decidiu fazer do seu direito de propriedade. Repare-se que não se trata de uma situação de privação total ou sequer significativa de sol, luminosidade ou vistas (nada está provado que o signifique, muito pelo contrário infere-se que se trata de uma pequena privação e, mesmo assim, repercutida apenas no terreno, não na sua casa de habitação dos Autores). Daqui também que as elucubrações dos Apelantes acerca da importância do sol para a saúde em termos de síntese da vitamina D e em termos antissépticos, sendo embora em abstrato adequadas, carecem de justificação na situação concreta.
Donde, não se encontra qualquer razão jurídica, isto à luz dos fundamentos que vem invocados no presente recurso, para ordenar a demolição, total ou parcial, do barracão em causa.
Improcede pois a apelação.

++

Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Regime de custas:

Os Apelantes são condenados nas custas da apelação.

+

Guimarães, 6 de março de 2014
José Rainho
Carlos Guerra
José Estelita de Mendonça