Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1549/14.3T8VCT.G1
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: ESTADO DE NECESSIDADE
PRESSUPOSTOS
USO DO TELEMÓVEL NO EXERCÍCIO DA CONDUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) São pressupostos do estado de necessidade desculpante a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal do agente ou de terceiro e ser o facto ilícito praticado idóneo a afastar o perigo que não seria removível por outro modo.
II) É o caso daquele que se dispõe a fazer uso do telemóvel enquanto conduz o seu veículo automóvel, na via pública, para atender uma chamada urgente relacionada com o estado de saúde da sua mãe, sabendo que a bateria estava fraca e iria ficar incontactável num curto espaço de tempo..
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Relação de Guimarães:

Em processo de contra-ordenação, foi condenado o arguido Fernando C. , pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artºs 84º, nº s 1 e 4, 136º, 138º, 143º e 145, nº 1, al. n) do c. da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias.
Não se conformando com esta decisão, dela o arguido interpôs recurso de impugnação para o Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, o qual foi julgado parcialmente procedente, uma vez que a sanção acessória que lhe havia sido fixada, foi reduzida para 60 dias.
Inconformado, com tal decisão, traz o requerente Fernando C. o presente recurso para este Tribunal da Relação.
Da motivação que apresentou resulta que as questão fundamental a resolver consiste em saber se a apurada conduta do recorrente consubstancia o exercício de um direito de necessidade e se agiu no cumprimento de um poder-dever que excluem a ilicitude do seu comportamento; subsidiariamente pede a suspensão da sanção acessória de inibição de conduzir sem qualquer condição, ou então com a condição de prestação de uma caução ou frequência de um curso de formação.

O Ministério Público na 1ª instância defende a manutenção do julgado.
A Exmª Procuradora Geral Adjunta nesta Relação emitiu parecer no qual aduz argumentação jurídica tendente a demonstrar a sem razão da recorrente, concluindo, assim, pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
II)
FUNDAMENTOS
Com relevância para a decisão do presente recurso, vejamos desde já a matéria de facto dada como provada em 1ª instância:
1- No dia 1-7-13, pelas 15.21h., na Avenida …, em …, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..., utilizando, durante a marcha do veículo, o telemóvel;
2 - O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado;
3 - Procedeu ao pagamento voluntário da coima;
4- Tem antecedentes contra-ordenacionais, pela prática, em 17-7-09, de duas contra-ordenações graves, por excesso de velocidade;
5 - O arguido precisa da carta de condução e de conduzir para se deslocar no âmbito da sua actividade profissional;
6 - Aquando dos factos referidos em 1. o arguido recebeu uma chamada urgente, relacionada com o estado de saúde da sua mãe, Margarida A.;
7 - O estado de saúde da mãe do arguido, à data com 93 anos de idade, agravou-se em finais de Junho de 2013;
8 - O arguido andava preocupado com aquela e tinha atribuído um toque específico ao número de telemóvel da pessoa que cuidava da mãe, por forma a puder facilmente identifica-lo;
9 -Naquele dia foi esse toque de chamada que o seu telemóvel emitiu;
10 - O arguido apercebeu-se ainda que estava a ficar sem bateria no telemóvel e que, num curto espaço de tempo, ficaria incontactável, o que o levou a atender tal chamada;
11- A mãe do arguido acabou por ser internada no dia seguinte, tendo vindo a falecer no dia 9-7-2013.
Motivação:
A convicção do tribunal, relativamente aos factos provados e não provados, baseou-se no teor do auto de contra-ordenação junto a fls.6, cujo teor foi confirmado pela testemunha Adelino L., agente da GNR que o elaborou; teve-se igualmente em consideração o teor dos demais documentos juntos aos autos, designadamente, de fls.15 (47) e 29 e s., bem como os depoimentos das testemunhas inquiridas, Fernando R. e Margarida R., respectivamente cunhado e irmã do arguido, os quais confirmaram estar o referido telefonema relacionado com o estado de saúde da mãe do arguido, tendo sido a segunda quem na ocasião ligou para o irmão, dando conta do estado de saúde daquela, que se tinha agravado, por ser o mesmo quem nestas situações "lhe valia"; deram ainda conta da habitual boa condução do arguido e da necessidade que o mesmo tem de conduzir no exercício da sua actividade profissional, estendida por vários pontos do país.
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Fundamentação:
É entendimento do recorrente “que agiu no exercício de um verdadeiro direito de necessidade e no cumprimento de um poder/dever enquanto filho, sendo que o direito de necessidade e o cumprimento de um dever excluem a alegada ilicitude e/ou censurabilidade da conduta imputável ao recorrente”.
Na sentença recorrida considerou-se que as circunstâncias em que o arguido atendeu o telemóvel, recebendo uma chamada a propósito do estado de saúde da mãe, que se tinha agravado e que, sendo pessoa idosa, até acabou por falecer depois, não justificam a aplicação do disposto nos artºs 34º, nem 35º do C. Penal, “uma vez que aquela não pode ter-se desde logo como uma situação de perigo actual e não removível de outro modo, nem pode dizer-se que ao arguido não fosse exigível outro comportamento alternativo e lícito, pelo que não pode afirmar-se que esteja excluída a ilicitude e/ou censurabilidade da sua conduta”.
A questão fundamental do presente recurso consiste, em suma, em apurar se o quadro factual apurado integra os pressupostos do estado de necessidade desculpante e se é suficiente para se ter por verificada a invocada causa de exculpação.
Comprovado que está a prática pelo recorrente da contra-ordenação em causa (utilização de telemóvel no decorrer da condução automóvel), há que analisar, então, se o arguido agiu num quadro que permite concluir que lhe não pode ser imputado qualquer juízo de censura.
Na verdade, existem situações e circunstâncias em que o comportamento ilícito-típico não merece o juízo de censura Por significativo sobre esta temática, ainda que aplicável ao crime de condução sob o efeito do álcool, pode ver-se o Ac. da RP, de 6.05.1998, in CJ, Ano XXIII, Tomo III, pág. 141..
A lei portuguesa desculpa aquele que "praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente" (art. 35º nº 1 do CP).
A excussão da culpa decorre de, nas circunstâncias concretas do facto, não ser razoável exigir do agente um comportamento diferente.
Como salienta Figueiredo Dias, sobre o Estado Actual da Doutrina do Crime, 2ª parte, sobre a construção do tipo-de-culpa e os restantes pressupostos da punibilidade, R. P. C. C., Ano 2, 1º, 28), o afastamento da punibilidade fica a dever-se "a considerações retiradas das circunstâncias concretas do facto e do seu agente, que fazem que in casu não seja razoável exigir dele outro comportamento"; apesar do ilícito-típico praticado, demonstra-se "a persistência no agente de uma atitude de fidelidade do direito que aponta a fundamentação do facto numa atitude pessoal juridicamente desvaliosa ou em qualidades juridicamente desvaliosas da sua personalidade".
O estado de necessidade desculpante pode reconduzir-se, assim, do princípio da inexigibilidade de um comportamento ajustado à norma.
São pressupostos do estado de necessidade desculpante:
- verificar-se uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro.
O facto ilícito praticado tem de ser "adequado", ou seja, idóneo a afastar o perigo que não seria remível por outro modo.
Para além destes elementos objectivos relacionados com o perigo, o bem jurídico ameaçado e a adequação do facto é necessário que o juiz verifique que não era razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
O arguido praticou um facto contra-ordenacional – utilização de telemóvel enquanto exercia a condução do seu veículo ligeiro, na Avenida …, em ….
No elenco e contexto dos factos provados consignou-se que tal comportamento ocorreu quando o arguido recebeu uma chamada urgente, relacionada com o estado de saúde da sua mãe, Margarida Al. (sendo que o estado de saúde da mãe do arguido, à data com 93 anos de idade, se havia agravado em finais de Junho de 2013).
Ora provado também ficou que o arguido andava preocupado com aquela e tinha atribuído um toque específico ao número de telemóvel da pessoa que cuidava da mãe, por forma a puder facilmente identifica-lo e, naquele dia foi justamente esse toque de chamada que o seu telemóvel emitiu.
E nestas circunstâncias, o arguido apercebeu-se ainda que estava a ficar sem bateria no telemóvel e que, num curto espaço de tempo, ficaria incontactável, o que o levou a atender tal chamada.
Ora, neste quadro parece-nos que outro comportamento não era exigível ao arguido Fernando C..
Na verdade, actuou perante uma situação de perigo actual para a vida da sua mãe. Existia uma comprovada situação de agravamento do seu estado de saúde, sendo, aliás que no dia seguinte acabou por ser internada e veio a falecer no dia 9 de Julho, ou seja, uma semana depois.
Por perigo actual entende-se uma situação que, segundo a experiência humana, produz provavelmente, dentro de um desenvolvimento natural, um prejuízo, se não se torna imediatamente uma medida defensiva (v. Wessel, Direito Penal, Parte Geral, Edições D…Buenos Aires, 1980, 120).
E, como vimos, não há razões para, no contexto dos factos provados, por em causa a ocorrência de tal situação de perigo para a vida da mãe do arguido no momento em que foi detectado a utilizar o telemóvel. A idade avançada da mãe do recorrente, o seu preocupante estado de saúde e a sua dependência em relação ao arguido (que possuía um toque específico de telemóvel para o atendimento de chamadas da pessoa que cuidava dela) permitem chegar à conclusão de que a situação era de perigo para a vida da Margarida C., tanto mais, que após o toque o recorrente certificou-se que a sua bateria estava fraca e iria ficar incontactável num curto espaço de tempo. O pronto atendimento do telemóvel com vista a poder prestar ajuda imediata à sua mãe (providenciando certamente da forma mais expedita pelo sua observação médica, pelo seu encaminhamento ao hospital, se fosse caso disso), mostra-se, assim, meio objectivamente apto a remover perigo. De resto, não está provado que a pessoa que prestava cuidados à mãe do arguido estivesse em condições de proporcionar um adequado e pronto socorro numa situação de emergência para a saúde da Margarida e, por isso também não se pode concluir que o perigo seria removível de outra forma.
O arguido pratica, assim, um facto contra-ordenacional como meio para alcançar um fim que consiste na salvaguarda da saúde da sua mãe. Esse fim é o motivo determinante da sua conduta. A importância e valor do motivo determinante, o facto de se tratar da sua mãe, o fim subjectivo do arguido em confronto com o desvalor objectivo da contra-ordenação praticada e as demais circunstâncias do caso são de molde a não exigir do arguido um comportamento ajustado à norma.
Em conclusão, o arguido não agiu em circunstâncias normais mas, antes, exposto a uma pressão motivadora extraordinária. Por isso, "o facto não expressa um sentimento hostil ao direito e censurável, como seria se não existisse a situação de conflito" (Wessel, ob. e loc. citados).
Segundo as circunstâncias do caso não seria razoável exigir do arguido um comportamento diferente. Daí que o comportamento ilícito não mereça um juízo de censura.
Daí que se imponha concluir pela absolvição do arguido recorrente pela prática da contra-ordenação que lhe era imputada.
Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, concedendo provimento ao recurso do arguido, revogar a decisão recorrida e, consequentemente lavram acórdão em que absolvem o arguido Fernando C., pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelas disposições conjugadas dos artºs 84º, nº s 1 e 4, 136º, 138º, 143º e 145, nº 1, al. n) do c. da Estrada, que lhe era imputada.
Sem tributação.