Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2180/13.6TBBRG.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
NOTIFICAÇÃO
CITAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PROVAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: I – Resulta do artº. 662º. do actual C.P.C. um reforço dos poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto. Podendo oficiosamente ordenar a realização de diligências, a Relação aprecia livremente as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua convicção.
II – Na cessão de créditos, a citação para a acção de condenação no pagamento do crédito cedido, proposta pelo credor cessionário, pode produzir o mesmo efeito jurídico que a notificação referida no nº. 1 do artº. 583º., do C.C. já que o que determina a produção dos seus efeitos em relação ao devedor é que tenha (efectivo) conhecimento da cessão.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES –

A) RELATÓRIO
I.- S…, com os sinais de identificação nos autos, moveu acção de condenação, com processo comum sumária, contra “E…, Ldª.”, com sede em Braga, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 acrescida de juros de mora legais desde a data da citação.
Fundamenta alegando que aquela importância é um crédito que a sua ex-entidade patronal – “M…, Ldª.” – tinha sobre a Ré e lhe cedeu para liquidação de créditos laborais, tendo trabalhado para ela até ao início de Abril de 2011.
Contestou a Ré negando a existência do crédito, recusando ter comprado à “M…, Ldª.” qualquer stand de vendas. Afirmou ainda nunca ter sido notificada da cessão de crédito invocada.
Respondeu o Autor reafirmando que a Ré reconheceu a validade e eficácia do contrato de cessão de créditos, e propôs mesmo pagar um preço inferior ao acordado, o que não foi por si aceite.
Os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré do pedido.
Inconformado, traz o Autor o presente recurso pretendendo seja revogada aquela decisão, condenando-se a Ré nos termos que peticionara.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II.- O Autor/Apelante funda o seu recurso nas seguintes conclusões:
1 - Atenta a prova produzida em audiência de julgamento e contrato de cessão, junto com a p.i., ter-se-á que entender que, efectivamente, foi celebrado aquele contrato de cessão de crédito, pela M… e pelo recorrente, para pagamento, por conta, de remunerações devidas ao trabalhador, tal como ocorrera com outros trabalhadores, que receberam, também, parte em espécie;
2 – Na verdade, não obstante a testemunha, F… ter referido no seu depoimento que o negócio foi realizado pelo A., em nome próprio, não lhe era exigível saber se o fazia nessa condição ou em nome da cedente, tanto mais que, como consta desse e doutros depoimentos, desempenhava funções de director comercial da empresa e, por isso, sempre que actuava, em qualquer venda, fazia-o em nome da empresa e não em seu nome, como é lapidar…
3 - Aliás, essa testemunha referiu que não vendia em nome da empresa, dado que esta não vendia stands, o que demonstra, claramente, que o depoimento prestado teve esta convicção, o que deveria ter sido interpretado pelo tribunal, com esse sentido, pois tal facilmente se intui…
4 - Ora, sendo que a celebração desse contrato respeitava a um acto de gestão, não era, nem é exigível, que qualquer funcionário da cedente tivesse conhecimento da celebração do contrato, pois tal acto respeitava, tão só ao cessionário, ora recorrente, e ao gerente da cedente, com poderes para obrigar a sociedade, no caso, J….
5 – A recorrida usufrui desse stand, de valor manifestamente superior ao acordado, como ressalta dos depoimentos das três testemunhas, nisso unanimes, não pagou um único cêntimo e, segundo a decisão recorrida, nada deve ou tem a pagar, não obstante a mesma se ter defendido que com a alegação falsa de que se tratava de sucata e de produto sem qualquer valor económico, já abandonado nuns lotes que lhe foram prometidos vender…
6 - Como é manifesto, o A. nenhum interesse tinha em invocar aquele contrato, caso o mesmo não tivesse sido celebrado e devidamente assinado e cujas assinaturas não foram impugnadas.
7 - Por isso, a M… cedeu tal crédito/stand ao A., por conta dos seus créditos laborais, tal como o fez relativamente a outros seus trabalhadores.
8 - Deste modo, violou a douta decisão, além do mais, do disposto no artigo 577 do CC.
*
Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2; 635º., nº. 4; 639º., nos. 1 a 3; 641º., nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões acima transcritas cumpre:
- reapreciar a decisão sobre a matéria de facto;
- considerar se estão verificados os pressupostos de que depende a validade e eficácia da cessão de crédito.
*
B) FUNDAMENTAÇÃO
III. – O Apelante impugna a decisão da matéria de facto.
O artº. 662º. do actual C.P.C. regula a reapreciação da decisão da matéria de facto de uma forma mais ampla que o artº. 712º. do anterior Código, configurando-a praticamente como um novo julgamento.
Assim, a alteração da decisão sobre a matéria de facto é agora um poder vinculado verificado que seja o circunstancialismo referido no nº. 1: quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A intenção do legislador foi, como fez constar da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.
Assim, mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos referidos na alínea c), do nº. 2, e sem prejuízo de se ordenar a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu à Relação o poder/dever de investigação oficiosa, devendo realizar as diligências de renovação da prova e de produção de novos meios de prova, com vista ao apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
As regras de julgamento a que deve obedecer a Relação são as mesmas que sujeitam o tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham a força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções judiciais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos testemunhais, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cfr. artos. 466º., nº. 3 e 607º., nos. 4 e 5 do C.P.C., que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos artos. 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.).
Deste modo, é agora inequívoco que a Relação aprecia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua convicção.
Sem embargo, e como decorre do disposto no artº. 640º., do C.P.C., a parte que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve, sob pena de rejeição do recurso, especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ainda em honra dos princípios da cooperação, da lealdade e da boa fé processuais, que enformam aquele dever, incumbe também à parte recorrente, igualmente sob pena de imediata rejeição do recurso, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, no caso de os meios probatórios terem sido gravados, como lho impõe a alínea a) do nº. 2 daquele artº. 640º..
A parte recorrida deverá, ainda que sem qualquer cominação se o não fizer, indicar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e indicar, com igual exactidão, as passagens da gravação em que se funda, nos termos referidos na alínea b) do nº. 2, do mencionado artº. 640º..
O Apelante observou aquelas determinações legais pelo que cumpre reapreciar a decisão sobre a matéria de facto.
*
IV.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:
i) julgou provada a seguinte facticidade:
1. O A. trabalhou na sociedade M…, Ldª, até ao início do ano de 2011.
2. A M…, Ldª não pagou determinadas quantias devidas ao A., a título de remuneração devida pelo trabalho que realizou naquela sociedade.
3. A M…, Ldª foi declarada insolvente por sentença datada de 30 de maio de 2012, proferida no âmbito do processo número 1559/12.5TBBRG, que corre termos no 3º juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
ii) E julgou não provado que:
4. Para saldar as quantias aludidas em 2, a M…, Ldª cedeu ao A. o crédito que detinha, no valor de € 15.000,00, sobre a Ré, através de contrato celebrado no dia 15 de julho de 2011.
5. A M…, Ldª celebrou com a Ré um contrato de compra e venda de um stand de vendas, cerca de um ano antes do contrato aludido em 3, pelo preço de € 15.000,00, que possuía com cerca de 33 m2, composto de uma sala de reuniões, uma sala de vendas, um hall e uma casa de banho forrada em mármore moca creme, constituído por estrutura em ferro e inox, com janelas em vidro duplo, com divisões em prodeme, tetos falsos em pladur e iluminação embutida, com piso em soalho, que havia custado mais de € 30.000,00 e se encontrava em estado praticamente novo.
6. A Ré tomou conhecimento da cessão do crédito aludida em 4…
7. E sempre aceitou pagá-lo.
8. O stand comprado pela Ré à M…, Ldª encontra-se instalado num loteamento, propriedade daquela, designado “Urbanização…”.
*
V.- Como dispõe o artº. 341º., do Código Civil (C.C.), as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
E, como ensina Manuel de Andrade, aquele preceito legal refere-se à prova “como resultado”, isto é, “a demonstração efectiva (…) da realidade dum facto – da veracidade da correspondente afirmação”.
Não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a “um alto grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida” (in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192).
Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como escrevem Antunes Varela et al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
Um documento particular cuja autoria cuja letra e assinatura sejam reconhecidas faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, ex vi do artº. 376º., do C.C.
Na situação sub judicio os factos em investigação admitem a prova testemunhal (a excepção seria, se tivesse sido invocada, a notificação da cessão ao devedor, nos termos e com os efeitos referidos no artº. 583º., do C.C.).
Relativamente ao valor probatório dos depoimentos das testemunhas, nos termos do disposto no artº. 396º., do C.C., eles estão sujeitos à livre (e conscienciosa) apreciação do julgador.
Sendo admitida prova testemunhal (e na medida em que o seja), é igualmente permitido o recurso às presunções judiciais, de acordo com o disposto no artº. 351º., do C.C., que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – cfr. artº. 349º., ainda do C. C.
O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também nesta, que está a apreciar, as coisas se passaram do mesmo modo.
Como ensinou Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” (in B.M.J. nº. 112º., pág. 190).
Ou seja, o juiz, provado um facto e valendo-se das regras da experiência, conclui que esse facto revela a existência de outro facto.
O juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – cfr. artº. 607º., nº. 5, do C.P.C. - cabendo a quem tem o ónus da prova “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como referem Antunes Varela et al. (in “Manual de Processo Civil”, pág. 420).
Se se instalar a dúvida sobre a realidade de um facto e a dúvida não possa ser removida, ela resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com o princípio plasmado no artº. 414º., do C.P.C., que, no essencial, confirma o que, sobre a contraprova, consta do artº. 346º., do C.C..
Isto considerado, e revisitados que foram todos os depoimentos prestados em audiência, e tendo em atenção o documento junto aos autos a fls. 7, cumpre passar à apreciação da pretensão do Apelante.
Introdutoriamente cumpre referir que os três depoimentos produzidos em audiência soam com toda a credibilidade tendo em consideração a espontaneidade que as testemunhas emprestaram às respostas que foram dando às questões que lhes foram colocadas, independentemente de quem lhes dirigia a pergunta – qualquer dos Exmos. Mandatários ou o Meritíssimo Juiz. Sem revelarem hesitações nem entrarem em contradições, as respostas que deram são coerentes com a razão de ciência que invocaram.
E daí que possa afirmar-se resultar inequivocamente provada a compra pela Ré de um stand de vendas com as características descritas na p.i., e transcritas no nº. 5 da matéria de facto, stand esse que nada tem a ver com o que a mesma Ré descreve na contestação.
Também resulta inequivocamente provado que aquele stand era propriedade da “M…, Ldª.”, para a qual trabalhou o Autor.
Resulta ainda dos depoimentos das testemunhas L… (que foi director administrativo da “M…, Ldª.”) e A… (vendedor comissionista da mesma empresa) que aquele stand, tendo embora o valor de “30 a 40 mil euros”, foi vendido pelo preço de € 15.000 que a Ré não pagou (de acordo com o que afirmaram as referidas duas testemunhas. De qualquer modo, o não pagamento sempre resultaria da aplicação das regras sobre o ónus da prova constantes do artº. 342º., do C.C. – constituindo o pagamento do preço a contraprestação do comprador, é a este que cabe o ónus da prova do cumprimento, e a Ré nem tampouco alega o pagamento, fincando-se na inexistência de um contrato de compra e venda).
Mais resulta que, de facto, a “M…, Ldª.”, não tendo dinheiro para pagar aos seus colaboradores entregou-lhes bens – viaturas e máquinas - para liquidar pelo menos parte da sua dívida.
Resulta ainda daqueles dois depoimentos (e não referimos o terceiro, da testemunha M… por, no essencial, ele confirmar os dois outros, quer quanto ao stand e suas características, quer ao local onde se encontrava instalado e o valor respectivo) que a pessoa que negociou a venda do stand foi o Autor, ora Apelante, S….
Para a testemunha A…, pelo menos aquando da venda, o stand pertencia à “M…, Ldª.”, manifestando-se convicto que o Autor, ao vendê-lo, agiu em representação desta.
Porém, a testemunha L… afirmou que, a exemplo do que sucedeu com outros colaboradores, que receberam viaturas automóveis e máquinas, o Autor, para pagamento de parte do seu crédito, referente a “salários, e subsídios de férias e de Natal”, recebeu o supra mencionado stand, daqui se podendo inferir que, como refere o Meritíssimo Juiz, quando ele o vendeu estava a negociar por conta própria, ou seja, a vender coisa sua.
Esta contradição, que suscita a dúvida quanto à pessoa do vendedor do stand à Ré – se o Autor/Apelante ou a “M…, Ldª.” - é, porém, apenas aparente se atentarmos na globalidade deste último depoimento.
Certo que a dúvida seria mais facilmente removida se, pelo menos, se soubesse a data em que ocorreu a venda e a data em que o Apelante deixou de trabalhar para a “M…, Ldª.” (factos instrumentais que, pelo menos, fariam presumir a “veste” que “enroupava” o Autor quando vendeu o stand). Porém, relativamente a tais datas nenhuma das testemunhas se pronunciou com precisão – a testemunha A… disse que quando ocorreu a venda ainda trabalhava para a “M…, Ldª.”, e que «trabalhou até 2011», tendo o Autor/Apelante trabalhado também até «2011» (sem, sequer, mencionar o mês em que ocorreu este e aquele facto), enquanto que a testemunha L… foi ainda mais impreciso, referindo a data em que aquele deixou de trabalhar em «2011 ou finais de 2012», sendo que o próprio Apelante refere “o início de Abril de 2011” (cfr. item 1º. da p.i.) mas ninguém se refere à data em que ocorreu a venda.
Afirmou, porém, a segunda testemunha, que foi «falar com a “E…”, na pessoa do sr. Engº. C… e foi-me sempre dito “está bem, está bem, eu vou-te pagar”», facto que situa no tempo em que ele próprio ainda trabalhava para a “M…, Ldª.” como “director administrativo”.
Ora, sendo assim, é de presumir, pelo comum do acontecer, que foi falar com “a E…” sobre o pagamento da “dívida” a mando da sua entidade patronal, não fazendo sentido que o tivesse feito a mando ou a pedido do Autor/Apelante, salvo por alguma razão (que seria a excepção ao comum do acontecer, às regras da experiência comum) que, porém, não foi, sequer aflorada, nem as suas palavras permitem deduzir.
Extrai-se claramente que para si o stand, enquanto tal, ou o preço da sua venda, têm o mesmo significado atento o fim que lhe foi dado – pagamento parcial dos créditos do Autor – estando claramente ausente do seu consciente o sentido jurídico próprio de um e do outro.
Certo que havendo-lhe sido exibido o documento de fls. 7 ele mostrou total desconhecimento, tampouco, da sua existência, mas também não deixa de ser certo que revelou total segurança quando afirmou que as assinaturas nele apostas são do sócio-gerente da “M…, Ldª.” e do ora Apelante, o que dá credibilidade à genuinidade destas e, consequentemente, à efectiva celebração do contrato.
De qualquer modo, e aceitando-se que a Ré reconheceu por aquela via a dívida, daquelas palavras não se extrai, nem sequer por dedução, que ela tenha tido conhecimento da cessão do crédito, o que exclui, desde logo, a aceitação da cessão – factualidade que nenhuma das provas produzidas nos autos consegue, ao menos, traduzir o mais leve indício de realidade.
Assim, e quanto a estes factos – transcritos sob os nos. 6 e 7 - a decisão do Tribunal a quo não suscita qualquer reparo.
Isto posto, e considerando que estamos, por ora, ainda no domínio dos factos, decide-se alterar a decisão da matéria de facto, e:
i) Aditar aos factos provados que:
4.- A “M…, Ldª.” possuía um stand de vendas que tinha cerca de 33 m2 de área, composto de uma sala de reuniões, uma sala de vendas, um hall e uma casa-de-banho forrada em mármore moca creme, e sendo construído numa estrutura de ferro e inox, possuindo janelas de vidro duplo, as divisões em prodeme, tectos falsos em pladur e iluminação embutida, com piso em soalho, o qual se encontrava em estado praticamente novo, sendo o seu valor de cerca de € 30.000 (trinta mil euros).
5.- Este stand foi vendido à Ré pelo preço de € 15.000 (quinze mil euros), que esta não pagou.
6.- Como consta do documento de fls. 7 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, a “M…, Ldª.”, declarou que “é credora da sociedade E…, LDA, com sede na Rua ..., da quantia de 15.000€ (quinze mil euros) relativa ao contrato de compra e venda que celebrou com esta de um Stand de vendas com a área de 33 m2, aproximadamente ... ... (segue-se a descrição do stand em termos iguais aos acima transcritos em 4)
Considerando que o segundo outorgante foi trabalhador da primeira e sendo este credor da sociedade por salários, vencidos e não pagos, no montante aproximadamente de 25.000€, a primeira cede ao segundo o referido crédito, que detém sobre aquela sociedade E…, para amortização do crédito que este detém sobre a sociedade aqui primeira outorgante.”.
E o Apelante S… declarou que “por lhe ter cedido o referido crédito, dá quitação à primeira outorgante da referida quantia de 15.000, 00€, por conta e amortização do seu crédito salarial”.
O referido documento está datado de “2011-07-15” e assinado por J…, na qualidade de gerente da outorgante “M…” e pelo Autor/Apelante.
ii) Manter o julgamento de não provado que:
7.- A Ré tenha tido conhecimento da celebração do “contrato de cessão de créditos” acima referido em 6., e tenha aceitado pagar ao Autor a importância de € 15.000 (quinze mil euros) que aí vem mencionada.
8.- O stand comprado pela Ré tenha sido por esta instalado num seu loteamento designado “Urbanização…”.
*
VI.- O Apelante funda o seu pedido num contrato de cessão de créditos celebrado com a “M…, Ldª.” para a qual trabalhou, e que, para parcial pagamento de seus créditos laborais, lhe cedeu o crédito do montante de € 15.000 que tinha sobre a Ré.
Atento o disposto no artº. 577º., do Código Civil (C.C.) (como o serão todos os dispositivos legais a seguir citados, sem a menção da sua origem) a cessão de créditos é o contrato pelo qual um credor (o cedente) transmite a um terceiro (o cessionário ou adquirente do crédito) a totalidade ou uma parte do seu crédito.
A validade desta transmissão não está dependente do consentimento do devedor (devedor cedido), que, em princípio, não sai prejudicado com a substituição da pessoa do credor originário já que os demais elementos da relação obrigacional se mantêm.
Porém, só é válida a cessão se a ela se não opuser a lei, se não houver um acordo das partes que a proíba, ou se o crédito, pela sua natureza, não for inerente à pessoa do respectivo titular (v.g. crédito de prestação de alimentos) - cfr. artos. 577º., nº. 1 e 579º., quanto à cessão, a determinadas pessoas, de créditos litigiosos.
A cessão pode ser feita a título gratuito ou a título oneroso, bem como se pode destinar à extinção de uma obrigação (cessão solutória), e por isso é que o artº. 578º., remete a definição dos requisitos e dos efeitos entre as partes para o negócio que lhe serve de base.
Inter partes a cessão produz efeito imediato, a partir do momento em que fica completo o acordo, aplicando-se-lhe o princípio geral que rege as convenções negociais (cfr. v.g. artº. 406º.).
Em relação ao devedor (debitor cessus), que é terceiro relativamente ao contrato de cessão, esta só produz efeitos desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele, expressa ou tacitamente, a aceite, nos termos do nº. 1 do artº. 583º., com o que o pagamento que o devedor, de boa fé, ou seja, enquanto não tenha conhecimento da cessão, fizer ao credor cedente, é oponível ao credor cessionário.
Por outro lado, o artº. 585º. permite ao devedor opor ao credor cessionário todos os meios de defesa que lhe seria lícito opor contra o credor cedente, incluindo os de que aquele não tinha conhecimento, só lhe ficando vedados os meios de defesa que se baseiem em factos ocorridos posteriormente ao conhecimento da cessão.
Daí que, para maior segurança sua, o credor cessionário deva levar a cessão ao conhecimento do devedor, não lhe sendo exigível que obedeça a uma qualquer forma especial visto que aquele nº. 1 do artº. 583º. a não exige, valendo, pois, a regra geral constante do artº. 219º..
Como refere o Ac. do S.T.J. de 15/01/2013, a necessidade de notificação ou a aceitação (expressa ou tácita) da cessão de créditos pretende acautelar por um lado o interesse do devedor em tomar conhecimento da identidade do novo credor porque isso “lhe permite manter a correcção e regularidade do pagamento que estava acordado com o cedente”, impedindo que a alteração subjectiva da obrigação o prejudique quanto aos meios de defesa a que ele podia ter recorrido em face do credor originário, e, por outro lado, o interesse do cessionário porque “poderá opor ao cedente e ao devedor o pagamento ou qualquer outro negócio jurídico que haja sido efectuado entre o devedor e o cedente”, referindo ainda o interesse deste “em saber que o devedor está disponível e não tem oposição a continuar a cumprir as obrigações a que se tinha adstrito ou vinculado para com o cedente” (Procº. 345/ 03.8TBCBC.G1.S1, Consº. Gabriel Catarino, in www.dgsi.pt).
Refere o Prof. Antunes Varela que, embora não tenha havido notificação nem aceitação, se o devedor tiver conhecimento da cessão “por qualquer via idónea, esse conhecimento tem efeitos muito próximos da notificação” (cfr., quanto à cessão de créditos, “Das Obrigações em geral”, vol. II, 4ª. edição, págs. 282-320, e o Prof. ALMEIDA COSTA in “Direito das Obrigações”, 12ª. edição, págs. 813-820).
Ora, ainda que com algumas decisões discordantes - cfr., v. g. o Ac. do S.T.J. de 9/11/2000 (in C.J., Acs. do S.T.J., ano VIII, Tomo III, pág. 121) que se atém aos efeitos legalmente previstos para a citação, designadamente o da estabilização dos elementos essenciais da causa, e à circunstância de a notificação do devedor ser precisamente integrante da causa de pedir – pode dizer-se afoitamente que o entendimento maioritário é o de que a citação para a acção de condenação no pagamento do crédito cedido, proposta pelo credor cessionário, pode produzir o mesmo efeito jurídico que a notificação referida no nº. 1 do artº. 583º..
Assim decidiu, dentre outros, o Ac. do S.T.J. de 06/11/2012 (Procº. 314/2002. S1.L1, Consº. Alves Velho, in www.dgsi.pt), que, sendo a citação o acto pelo qual se dá conhecimento a uma pessoa de que foi proposta contra ela determinada acção, de cujo conteúdo (pedido e a causa de pedir em que se funda) também é feito ciente, contém “como a notificação judicial, a potencialidade de dar conhecimento de um facto, no caso, o contrato de cessão” (cfr. artº. 219º., nos. 1 e 2 do actual C.P.C.).
E, fundando-se em Assunção Cristas (in “Cadernos de Direito Privado”, nº. 14, págs. 63) prossegue “se determinante é o conhecimento é indiferente, do ponto de vista do efeito jurídico, classificar a citação como notificação ou simples modo de conhecimento, e não se vê como sustentar que a citação não seja meio idóneo de transmissão ao devedor do pertinente e adequado conhecimento” com o que “se a ineficácia da cessão relativamente à pessoa do devedor perdurou até à data da citação, porque não tinha conhecimento do contrato, essa ineficácia cessará no momento da citação”.
*
VII.- Na situação sub judicio, o contrato de cessão de créditos que o Apelante celebrou com a “M…, Ldª.” visou a extinção, ainda que parcial, de uma obrigação contratual – no contrato de trabalho, à obrigação do trabalhador de prestar a sua actividade intelectual ou manual, corresponde a obrigação da entidade patronal de pagar àquele a retribuição acordada (cfr. artº. 1152º., do C.C.).
Ao contrato de cessão de créditos não foi oposta pela Ré qualquer invalidade, sendo certo que ele se mostra formal e substancialmente válido.
O que a Ré opõe ao Autor é a eficácia, em relação a si, daquele contrato alegando não haver dele sido notificada nem o ter aceite.
O Autor, que alegou o conhecimento e a aceitação da cessão pela Ré, não conseguiu cumprir com o ónus de os provar.
Sem embargo, e como acima se deixou referido, com a citação para esta acção, e o consequente conhecimento da celebração daquele contrato de cessão, seus fundamentos e objectivos, posto que com a petição inicial lhe foi entregue o documento de fls. 7 que a acompanhava, a Ré deixou de poder ignorar a transmissão do crédito.
E podendo opor ao Apelante (credor cessionário) todos os meios de defesa que podia opor à “M…, Ldª.” (a credora cedente) a Ré invocou a inexistência do crédito por não ter havido qualquer compra e venda e, logo, obrigação de pagamento do preço.
Não negando ter feito seu um stand de vendas que pertencia à “M…, Ldª.”, faz dele uma descrição que é “antípoda” daquele que, provadamente, lhe foi realmente vendido, e não cedido graciosamente como alegou relativamente àquele.
Só deve ser protegido o devedor que está de boa fé – no cumprimento da obrigação devem as partes proceder de boa fé, como lho impõe o nº. 2 do artº. 762º. do C.C. – e se se atentar (apenas) aos factos alegados e àqueles que foram provados não se pode afirmar que a Ré esteja nesta situação e mereça, por isso, protecção.
Provado, pois, que a Ré comprou um stand de vendas que pertencia a “M…, Ldª.” e que lhe não pagou o preço estipulado – quinze mil euros – terá ela de ser impelida a cumprir a sua obrigação contratual (artos. 874º. e 879º., designadamente alínea c), do C.C.).
E a modificação subjectiva do vínculo obrigacional decorrente da referida compra e venda, correspondente à substituição do credor originário - a vendedora – posto que o preço se mantém no seu valor inicial, e nada havendo a acautelar (já que não foram estipuladas condições do pagamento do preço) quanto ao tempo do pagamento, não advém qualquer prejuízo para a Ré, devedora, da cessão daquele crédito para o Autor/Apelante.
E sendo esta cessão agora eficaz quanto a ela, Ré, o pagamento terá de ser satisfeito ao Autor, nos termos que vêm peticionados.
Ora, os contratos devem ser pontualmente cumpridos (artº. 406º., nº. 1 do C.C.) e a simples mora no cumprimento da obrigação constitui o devedor no dever de reparar os danos causados ao credor (artº. 804º., nº. 1), sendo que nas obrigações pecuniárias a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (artº. 806º., nº. 1).
Na situação sub judicio, posto que foi com a citação que a Ré tomou conhecimento da cessão do crédito, vale a regra geral constante do nº. 1 do artº. 805º. pelo que, como vem peticionado, os juros hão-de contar-se a partir da data da citação – 10/04/2013, nos termos do A/R de fls. 11.
A taxa de juros é a legalmente estabelecida para as obrigações civis – artº. 559º., do C.C. – ou seja, 4% ao ano, nos termos da Portaria nº. 291/2003, de 8 de Abril.
Do que vem de expor-se se extrai que o pedido do Apelante deve proceder, pelo que, na procedência dos fundamentos do presente recurso, impõe-se a revogação da decisão impugnada.
*
C) DECISÃO
Considerando quanto acima se expõe acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação, e, revogando a decisão impugnada, condenar a Ré “E…, Ldª.” a pagar ao Apelante S… a peticionada quantia de € 15.000 (quinze mil euros) acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento.
Custas da acção e da apelação pela Ré.
Guimarães, 26/06/2014