Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
23/17.0JABRG.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
REQUISITOS LEGAIS
ABSOLVIÇÃO
ARTºS 21 DA CRP E 31º E 32º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude, constitui o exercício de um direito constitucionalmente consagrado (cfr. Artº 21º da Constituição da República), o qual, de igual modo, se encontra previsto, para efeitos penais, nos Artºs. 31º e 32° do Código Penal.
II - Como é comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, para a perfectibilização desta figura jurídica torna-se necessário que se verifiquem os seguintes predicados ou requisitos: a) A existência de uma agressão actual, em execução ou iminente, a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro; b) Que essa agressão seja ilícita ou antijurídica; c) Que o agente actue com "animus defendendi", ou seja, que aja com o intuito de se defender, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou à agressão iminente; d) Que o meio empregado seja necessário e racional; e e) Que o agente esteja impossibilitado de recorrer à força pública.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Colectivo nº 23/17.0JABRG, do Juízo Central Criminal de Braga, Juiz 6, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foram submetidos a julgamento os arguidos:

1.1. A. S., viúvo, reformado, filho de J. A. e de A. V., natural da freguesia ..., do concelho de Amares, nascido no dia - de Setembro de 1947, residente na Rua …, nº .., da freguesia ..., do concelho de Amares, portador do Cartão de Cidadão nº …….; e
1.2. J. N., também conhecido pela alcunha de “X”, solteiro, comercial de ferragens, filho de A. N. e de J. F., natural de Angola, nascido no dia - de Janeiro de 1970, residente na Rua …, nº .., da freguesia ..., do concelho de Amares, portador do Cartão de Cidadão nº ……….
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2. Em 15/07/2020 foi proferido acórdão, depositado no mesmo dia, do qual consta o seguinte dispositivo (transcrição (1)):

“Pelo exposto, decide-se:
a) Absolver o arguido J. N. da prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 22º, nºs1 e 2, alínea b), 23º, nºs1 e 2, 26º, 1ª proposição, 69º, nº1, alínea a), 131º e 132º, nº2, alínea h), todos do CP;
b) Sem custas criminais, nesta parte (cfr. artigo 522º, nº1, do CPP);
c) Condenar o arguido A. S. pela prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efectivo, real e heterogéneo, de:
[i] 2 (dois) crimes de ameaça, na pessoa do arguido/assistente J. N. (por via de A. C. e J. F.), p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 26º, 1ª proposição, 30º, nº 1, 77º e 153º, nº1, todos do CP, na pena parcelar de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 360,00 (trezentos e sessenta euros), para cada um;
e
[ii] 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa do assistente/arguido J. N., p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 143º, nº 1, todos do CP, na pena parcelar de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros);
d) Condenar o arguido A. S. em cúmulo jurídico, ao abrigo do vertido no artigo 77º, nºs 1 e 2, do CP, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 900,00 (novecentos euros);
e) Condenar o arguido A. S. no pagamento das custas criminais, fixando-se em 3 (três) UC’s a taxa de justiça devida (cfr. artigos 513º e 514º, do CPP, e artigos 3º, nº 1 e 8º, nº 9, estes do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela Anexa III, do mesmo diploma legal), sem prejuízo do direito a protecção de que (eventualmente) beneficie(m) – cfr. fls.343;
f) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente/demandante A. S. totalmente improcedente, e, em consequência absolver do pedido o arguido/demandado J. N.;
g) Condenar o assistente/demandante A. S. no pagamento das custas civis (cfr. artigo 527º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 523º, este do CPP), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie – cfr. fls.343 – e sem prejuízo da isenção prevista no artigo 4º, nº1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais, se for aplicável;
h) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente/demandante J. N. parcialmente procedente, e, em consequência condenar o arguido/demandado A. S. a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), a que acrescem juros de mora (cfr. artigos 804º, 805º, nº2, alínea b), do CC), vencidos e vincendos, que serão contabilizados a partir do momento da prolação desta decisão actualizadora – e não a partir da notificação do pedido de indemnização civil formulado – à taxa legal em vigor em cada momento, sendo de 4% a actualmente aplicável (cfr. Portaria nº 291/2003, de 08 de Abril, ex vi artigo 559º, do CC), por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3, 2ª parte, do CC (este interpretado restritivamente), e 806º, nº1, do mesmo diploma legal (vide Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002, de 09 de Maio de 2002, publicado no Diário da República, I Série – A, nº146, de 27 de Junho de 2002), até efectivo e integral pagamento;
i) Condenar o assistente/demandante J. N. e o arguido/demandado A. S. no pagamento das custas civis, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 75% para o assistente/demandante e 25% para o arguido/demandado (cfr. artigo 527º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 523º, este do Código de Processo Penal), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie(m) – cfr. fls.328 (quanto ao mencionado J. N.) e fls.343 (quanto ao aludido A. S.) – e sem prejuízo da isenção prevista no artigo 4º, nº 1, alínea n), do Regulamento das Custas Processuais, se for aplicável.
(...)”.
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3. Inconformados com tal decisão, dela vieram o Ministério Público e o arguido A. S. interpor os presentes recursos, cujas motivações são rematadas pelas seguintes conclusões e petitórios (transcrição):

3.1. Ministério Público (fls. 705/711 Vº)

“1.Por douto acórdão proferido em 15 de Julho de 2018, decidiu o tribunal a quo:
a) Absolver o arguido J. N. da prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 13.º, 1.ª parte, 14.º, n.º1, 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b, 23.º, n.ºs 1 e 2, 26.º, 1ª proposição, 69.º, n.º1, alínea a), 131.º e 132.º, n.º2, alínea h), todo do CP”.
2. Pese embora não se pôr em causa a absolvição do arguido J. N. pela prática do crime, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 22º, n.ºs 1 e 2, alínea b, 23º, n.ºs 1 e 2, 26º, 1ª proposição, 69º, nº 1, alínea a), 131º e 132º, nº 2, alínea h), todos do Código Penal, tendo em conta a factualidade dada como provada, não pode o Ministério Público deixar discordar com a não condenação do arguido J. N., pela da prática do crime de Ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, p. e p. pelo art. 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. h), do nº 2, do art. 132º do Código Penal, ou, caso assim não se entenda, pela prática do crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos art.s 14º, nº 3 e 143º do Código Penal.
3. Não obstante a materialidade fáctica assente, mormente nos pontos 12 a 32 dos factos provados, considerou o Tribunal a quo que o arguido J. N. actuou em legítima defesa.
4. A legítima defesa encontra-se prevista no art. 31º do Código Penal como causa de exclusão da ilicitude.
5. A exclusão da ilicitude decorrente da actuação em legítima defesa depende da verificação dos seguintes requisitos: agressão actual e ilícita, defesa necessária e intenção defensiva.
6. Ora, no caso concreto, tendo-se dado como provado que o “O arguido J. N., ao actuar do modo supra descrito, representou como possível atingir o arguido A. S., pelo menos, na sua integridade física, resultado com o qual se conformou” (ponto 31 dos factos provados), ficou assim excluída a intenção defensiva, ficando assim afastada a legítima defesa.
7. A douta decisão recorrida padece de erro de direito, ao enquadrar juridicamente os factos que se considerou provados, considerando que o arguido agiu em legítima defesa, sem que dos mesmos fizesse constar que o arguido agiu com intenção defensiva relativamente à agressão de que estava a ser alvo.
8. A matéria de facto provada não comporta a decisão de direito proferida, não porque estes sejam insuficientes para a decisão (o vício previsto no art. 410º, nº 2, al. a) do C.P.P. ocorre antes nos casos em que existe uma omissão de pronúncia, ou seja, quando o tribunal não dá como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão), mas porque foi efectuada uma errada integração jurídico-penal.
9. A factualidade provada integra, objectiva e subjectivamente, a prática do crime de Ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, p. e p. pelos arts. 14º, nº 3, 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. h), do nº 2, do art. 132º do Código Penal e logo, devendo o arguido J. N. ser condenado pela sua prática.
10. O uso de um veículo automóvel para atingir um determinado resultado – no caso sub iudice o arguido J. N. serviu-se do veículo automóvel que conduzia para atingir o ofendido A. S. na sua integridade física, não pode deixar de se enquadrar na utilização de um meio particularmente perigoso.
11. A tal não obsta, o facto de se ter dado como provado que o arguido agiu com dolo eventual.
No sentido de que a possibilidade de realização do tipo legal de ofensas à integridade física qualificada com dolo eventual existirá em relação a muitas das alíneas do art.132.º2”, Paulo Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense, Tomo I, 2.ª edição, pag. 252).
12. Não obstante, caso se entenda que os factos provados, acima enunciados, não comportam, do ponto de vista subjectivo, a condenação pela prática do crime qualificado, por se entender que não basta existir dolo relativamente ao resultado produzido, mas que este teria que abranger os elementos constitutivos dos exemplos-padrão previstos no nº 2, do art. 132º do Código Penal, deverá antes o arguido ser condenado pela prática do crime de Ofensa à integridade simples, p. e p. pelos arts. 14º, nº 3 e 143º, do Código Penal, uma vez que a factualidade assente é suficiente para tal.
13.“(…) II- Aqueixa não está sujeita a qualquer forma ou “dizeres” especiais, e muito menos tem o queixoso que nela revelar conhecimentos jurídico-penais designadamente, através de uma correcta qualificação do facto por si denunciado.
III- A lei apenas exige, para este efeito, que através de um acto formal consistente em dar conhecimento do facto ao Ministério Público, se revele vontade inequívoca do queixoso em que o facto, o “pedaço de vida” denunciado seja objecto de procedimento”. (Acórdão da Relação de Coimbra, de 07-06-2017, proc. 145/14.0TAMGR-C1, pub in www.dgsi.pt).
14. Com efeito, é inequívoca a vontade do ofendido A. S. no sentido do prosseguimento do procedimento criminal contra o arguido J. N., na medida em que, quando inquirido na Polícia Judiciária, em 10.02.2017, ou seja, puco mais de um mês depois dos factos, descreveu circunstanciadamente o sucedido, trazendo ao conhecimento daquele OPC os factos ocorridos, juntando inclusivamente Procuração outorgada a Advogado para o representar no processo.
15. Tal importaria uma alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação, que demandaria comunicar, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 3, do art. 358º do C.P.P.
16. Nesta conformidade, deverá ser determinada a reabertura da audiência a fim de ser dado cumprimento ao disposto no nº 3, do art. 358º do C.P.P., devendo o Acórdão proferido ser substituído por outro que condene o arguido, nos termos acima descritos.

Por tudo o exposto, no douto acórdão recorrido fez-se uma errada aplicação do direito aos factos, havendo violação das normas dos artigos 14º, nº 3, 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. h), do nº 2, do art. 132º, todos do Código Penal C.P..
Com o que V. Exªs farão a costumada JUSTIÇA!”.
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3.2. Arguido A. S. (fls. 712/753)
“1.º - O Douto aresto recorrido condenou o Arguido, ora Recorrente, pela prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efectivo, real e heterogéneo de dois crimes de ameaça na pessoa do Ofendido J. N., p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13.º, 1ª parte, 14º, Nº 1, 26º, 1ª proposição, 30º, Nº 1, 77.º e 153º, N.º 1 e de um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa do Ofendido J. N., p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13.º, 1ª parte, 14.º, N.º 1, 26.º, 1ª proposição e 143º, N.º 1, todos do Código Penal, em cúmulo jurídico na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6.00 (seis euros), num total de € 900,00 (novecentos euros) e, bem assim, no pagamento da quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros) a título de indemnização civil.
2.º- Tendo absolvido o Arguido J. N. da prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos Artigos 13.º, 1ª parte, 14º, nº 1, 22º, nº 1 e 2, alínea b), 23º, nº 1 e 2, 26º, 1ª preposição, 69º, nº 1, alínea a), 131º e 132º, nº 2, alínea h), todos do Código Penal.
3.º - Porém, e não concordando com tal decisão, vem o Recorrente apresentar o presente recurso, pretendendo, com o mesmo mostrar, por diversos ângulos de observação, que o julgado em apreço não pode subsistir.
4.º - Desde logo, no que concerne à condenação do Recorrente pela prática do crime de ofensa à integridade física, entende aquele que, não obstante ter negado a prática de tais factos, a verdade é que o Tribunal a quo decidiu pela sua condenação.
5.º- Porém, o Tribunal fundamentou a sua convicção unicamente nas declarações do J. N., já que nos autos inexiste qualquer outra prova testemunhal ou até mesmo pericial, pois, tendo este sido submetido a exame médico-legal, não resultou do mesmo qualquer lesão ou marca que pudesse comprovar os alegados murros.
6.º- O A. S. sempre referiu e reconheceu que tocou na face do J. N., nas circunstâncias que ele mesmo descreveu aquando da sua tomada de declarações, tendo o J. N., por sua vez, aproveitado, claramente tal reconhecimento e ampliado o sucedido por forma a lograr convencer o Tribunal dos alegados murros perpetrados pelo Recorrente.
7.º- De todo o modo, não pode o Recorrente deixar de discordar com a douta decisão de aplicação efectiva da pena de multa em que foi condenado pois que, salvo melhor opinião, sempre haveria lugar à aplicação da dispensa de pena.
8.º- Com efeito, em face da prova produzida, é possível afirmar, com segurança, que a ilicitude do acto praticado é diminuta, o grau de culpa, por sua vez, é reduzido, verdade sendo que da agressão não resultaram consequências significativas, não havendo sequer uma lesão física a reportar (a este propósito é de salientar o relatório do exame médico legal, efectuado no dia 09 de Janeiro de 2017, que concluiu que pela ausência de lesões).
9.º- E, conforme já decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão proferido em 13/01/2016, no âmbito do processo N.º 69/13.0PBCTB “Não existindo lesões não há danos a ressarcir ou a compensar e, considerando a inexistência de antecedentes criminais e a inserção social e laboral do arguido, estão verificados os requisitos previstos no nº 1 do art. 74 do C. Penal inexistindo razões de prevenção que se oponham à dispensa de pena.”
10.º- Em bom rigor, face ao circunstancialismo em que a agressão ocorreu, deveria ter sido aplicada dispensa de pena, o que se requer, tendo, por conseguinte, sido violados os Artigos 73º e 74º do Código Penal.
11.º- Caso assim não se entenda, sempre se dirá que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não ponderou, de forma correcta, os critérios legais previstos nos Art. 70.º e 71.º do Código Penal, na escolha e determinação da medida da pena com que sancionou o Recorrente.
12.º- O douto arresto recorrido não ponderou de forma criteriosa quer a culpa, quer as exigências de reprovação e prevenção, podendo e devendo ter optado por uma pena mais baixa.
13.º- O crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo Art. 143º, Nº 1 do Cód. Penal, e, pelo qual, o ora Recorrente foi condenado em 1.ª instância, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa de dez até 360 dias, sendo que, devia ao Recorrente ter-lhe sido aplicada a pena de multa mínima prevista no tipo penal.
14.º - Ora, o Nº 1 do Art. 71º do Cód. Penal estipula o critério geral da determinação da medida da pena ao verter que esta é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (geral e especial).
15.º- Sendo que, na determinação concreta da pena, são basilares os factores de determinação da pena, acolhendo-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõe a favor ou contra o Arguido (Art. 71º, Nº 2 Cód. Penal).
16.º- Correlativamente, temos de atender também ao ínsito no Nº 1 do Art. 40º do Cód. Penal, que refere que “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.”, bem como ao seu N.º2, de acordo com o qual “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
17.º- Salvo o devido respeito por opinião diversa, o douto aresto ora em crise não ponderou tal dinâmica, não ponderou, de forma criteriosa quer a culpa, quer as exigências de reprovação e de prevenção, podendo e devendo ter optado por uma pena mais baixa.
18.º- Acresce que, o Arguido, aqui Recorrente, encontra-se social, familiar e laboralmente integrado, é um cidadão exemplar, de boa conduta moral e social. Possui uma modesta condição económico- social.
19.º- Ademais, a gravidade da violação jurídica cometida pelo Arguido apresenta-se com reduzida expressão, atendendo ao tipo de agressão infligida e à ausência de lesões sofridas pelo Ofendido, verdade sendo que, a culpa, se não reduzida, quando muito é mediana.
20.º- Por todos os circunstancialismos supra expostos, tem-se por adequado fixar o quantum da pena pela prática do crime de ofensa à integridade física pelo mínimo legal.
21.º - Mal andou, pois, o Tribunal a quo, decidindo como decidiu, tendo violado o disposto nos Art. 40º, 47º e 71º, todos do Cód. Penal e o Art. 18º da CRP.
22.º- Entende, ainda, o Recorrente que, a quantia fixada a título indemnizatório é desproporcional e excessiva, devendo ser reduzida e fixada em quantia nunca superior a € 500,00.
23.º- Como já se referiu supra, a culpa do Recorrente é reduzida, ou quanto muito moderada.
24.º- E, tendo em conta a situação familiar e económica do Arguido A. S.- em concreto a sua modesta situação financeira-, afigura-se-nos que o quantum fixado pelo Tribunal a quo se mostra um encargo elevado.
25.º- Pois que, tal como decorre da factualidade provada, aquele aufere unicamente uma pensão de reforma no valor de € 432,00, executando, de forma sazonal, tarefas agrícolas.
26.º- É, assim, com aquele valor que o Arguido/Recorrente A. S., faz face a todas as despesas do agregado familiar composto, para além de si, pela sua companheira (que não beneficia de qualquer rendimento) e por uma filha menor, subsistindo, inclusivamente, com apoio de familiares.
27.º - Assim, sopesados o grau de culpabilidade do Arguido, a sua situação económica e os demais circunstancialismos apurados, conclui-se pelo desacerto do montante de € 1200,00 fixado na douta decisão proferida.
28.º- Tendo, por conseguinte, o Tribunal recorrido violado o preceituado nos Artigos 496º, Nº 3 e 494º do Código Civil e o princípio da equidade.

Acresce ainda que:
29.º- O Tribunal a quo fez uma interpretação incorrecta dos factos julgados e dados como não provados nos pontos F, G e H os quais deveriam, ao invés, ter sido dados como provados e, bem assim, decidiu mal ao dar como provado o facto do item 27.
30.º- Em bom rigor, do cotejo da prova produzida, da sua correcta interpretação e apreciação, impunha-se decisão diversa daquela que a final veio a ser proferida quanto aos supra elencados pontos da matéria de facto, pelo que, desde já, se requer a reapreciação da prova gravada ao abrigo do disposto no Artigo 412º, Nº 3 do CPP.
31.º- Ora, no que concerne à motivação da decisão de facto, de acordo com o teor do aresto em crise, a convicção do Tribunal Recorrido ter-se-á formado com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em Audiência de Discussão e Julgamento, em concreto pela análise conjugada dos documentos juntos aos autos (auto de notícia, informação da Polícia Judiciária, ficha de registo automóvel DM, relatórios periciais de avaliação do dano corporal, relatório pericial do veículo DM), declarações prestadas pelo Recorrente e pelo Arguido J. N. e depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas.
32.º- Porém, no nosso modesto entender, desde logo, das declarações prestadas pelo Recorrente, quer em sede de inquérito quer em sede de Audiência e Discussão de Julgamento, e, bem assim, do que resultou dos depoimentos das testemunhas ouvidas, em concreto, R. F. e do inspector M. T. foi, claramente, produzida prova que possa sustentar a alteração da matéria de facto dada como não provada no que concerne às alíneas F, G e H, dando-se, outrossim como provada.
33.º - Incompreensivelmente, o Tribunal Recorrido considerou que as declarações do aqui Recorrente, prestadas em sede de Audiência de Julgamento, “…se revelaram parciais, subjectivas e contraditórias…”, mais tendo considerado terem ficado “ convencidos que o Arguido A. S. procurou trazer a julgamento uma versão que favorecesse a sua posição, ou melhor, que menos o desfavorecesse.”
34.º- Considerando, ainda, que, o Recorrente prestou um depoimento “… confuso, pouco rigoroso e até contraditório com as declarações prestadas na fase investigatória…”.
35.º- Porém, conclui depois o Colectivo, que se compreende que tendo-se tratado de um evento súbito, dinâmico e que se desenrolou rapidamente, seja susceptível de gerar imprecisões nos discursos.
36.º- Porém, em bom rigor, entendemos que a “interpretação” que o tribunal Recorrido atribuiu ao depoimento do Recorrente em nada se coaduna com a postura que aquele manteve em todo o desenrolar do processo, isto é, desde a fase investigatória até à Audiência de Julgamento, inclusive.
37.º- Na verdade, desde o primeiro momento, mesmo antes do início do procedimento criminal, isto é, desde o momento em que foi atingido pelo veículo DM, o Recorrente mantém sempre a mesma versão dos factos, isto é, que foi atingido pelo DM duas vezes. Não se vislumbrando, por isso, onde reside o depoimento contraditório e exagerado daquele.
38.º- Com maior ou menor pormenor, com detalhe a mais ou a menos, a verdade é que o Recorrente manteve sempre a mesma versão, quer relativamente à forma como abordou o Arguido J. N. (tendo, inclusivamente, admitido, desde sempre, ter partido de si a iniciativa de “confrontar” o J. N.) quer no que concerne ao desenrolar dos acontecimentos, fazendo uma descrição exacta, credível e coerente, designadamente, com as lesões que resultaram do evento.
39.º- Em bom rigor, a descrição que o Recorrente faz dos momentos que antecederam os atropelamentos, para além de se mostrar rigorosa e autêntica, revela que aquele prestou um depoimento verdadeiro, credível e imparcial, ao invés do que considerou o Tribunal a quo. Pois que, chega, inclusivamente, a admitir factos que, em muito, o podiam prejudicar.
40.º- Para além do que, a descrição dos factos tal como a fez o Recorrente no decurso de Audiência de Julgamento, designadamente, os momentos que se seguiram ao segundo atropelamento, é corroborada pela testemunha R. F. que, pese embora não tenha assistido ao desenrolar do evento, foi das primeiras pessoas a acorrer ao local e a chegar junto do Recorrente.
41.º- A supra indicada testemunha, que no entender do Tribunal Recorrido prestou um depoimento despretensioso, sério, linear e consistente, tendo, inclusivamente, o Tribunal ficado convencido da sua veracidade, referiu dois aspectos que foram amplamente desvalorizados pelo Tribunal.
42.º- Referimo-nos, por um lado, ao que a testemunha afirmou quando refere que o Recorrente lhe disse: “ele passou por cima de mim duas vezes” e, por outro, ao “barulho muito forte, tipo estouro” que aquela diz ter ouvido no interior da casa onde estava quando ocorreu o atropelamento.
43.º- Com o devido respeito e deferência, cabe, a este propósito, questionar: porque razão o Tribunal a quo desconsiderou, não dando relevância, ignorando, até, o que esta testemunha afirmou relativamente a tais factos que, no nosso modesto entendimento, se mostram relevantes?
44.º- Ora, atentando à versão que o Tribunal Recorrido deu como provada -que existiu apenas um único momento em que o carro atingiu o Recorrente, aquando da manobra de marcha-atrás efectuada pelo Arguido-, é de salientar que, tal descrição dos factos, a terem sucedido dessa forma, não é suficiente para provocar o barulho muito forte, tipo estrondo, que a testemunha diz ter ouvido.
45.º- Isto é, a ser verdade que, na manobra de marcha atrás, o veículo DM atinge o Ofendido na perna, braço e tronco e que existiu apenas um atropelamento, tal não é suficiente para provocar o referido barulho muito forte audível pela testemunha e por todos que se encontravam no interior da residência.
46.º- Mas já assim será o segundo atropelamento que se dá em seguida, quando o Arguido J. N., depois de efectuar manobra de marcha atrás, engrena a primeira velocidade, dirige o veículo em frente e passa, novamente, sobre o corpo do Recorrente.
47.º- E a confirmar que assim ocorreu, temos, também, as lesões que o Ofendido apresentou, sendo que, o relatório elaborado pelo Gabinete Médico Legal, relativamente ao dano corporal, que no caso dos autos assume uma desmedida relevância, conjugado com os depoimentos acima transcritos, leva à indubitável conclusão que foi produzida prova bastante para considerar como provados os factos insertos na acusação pública e na decisão instrutória de pronúncia.
48.º- Em concreto que, na sequência do que se descreveu sob o nº 26 da factualidade provada, o Arguido J. N., ao ver o Recorrente A. S. prostrado no chão, iniciou a marcha do veículo DM na direcção deste, passando a referida viatura por cima do seu corpo.
49.º- A propósito da gravidade e extensão das lesões que o A. S. apresentava, importa levar em consideração o depoimento prestado pela testemunha E. G., a qual confirmou o lastimável estado físico daquele.
50.º- Nessa medida, entendemos que, salvo melhor opinião, o Tribunal a quo faz uma errada interpretação da supra indicada prova produzida, em concreto dos depoimentos das testemunhas R. F. e E. G., cuja reapreciação com o presente recurso se requer.
51.º- O Tribunal Recorrido fundamentou, ainda, a sua convicção (para além das declarações do Arguido J. N.), no relatório da perícia efectuada ao veículo DM e no depoimento da testemunha Inspector M. T..
52.º- Porém, do que resultou do depoimento da indicada testemunha, todos os cenários são possíveis, ou seja, aquele admite, por um lado, como provável, dois atropelamentos, na medida em que afirma que as marcas existentes na parte inferior do veículo indicam um contacto do mesmo com uma superfície que, tanto podem ter surgido da manobra de marcha atrás, como do veículo em marcha para a frente;
53.º- E, por outro, admite que o veículo terá passado pelo menos uma vez sobre o corpo do Ofendido;
54.º- Como, também, admite como provável que as lesões no Ofendido tenham sido provocadas aquando da manobra de marcha – atrás, quando o Recorrente vem amarrado à porta (o que, na sua opinião explica a amolgadela na porta), mas também que as mesmas tenham sido provocadas pela roda do veículo que passou pelo corpo do Ofendido;
55.º- Chegando, até, a levantar a dúvida de o veículo, em momento anterior à realização da perícia, ter sido lavado/adulterado.
56.º- Em face do exposto, entende o Recorrente, salvo melhor opinião, que o depoimento do Inspector responsável pela investigação, para além de pouco contribuir para a descoberta da verdade dos factos, atenta a ambivalência, incertezas, dúvidas que demonstrou, não pode valer como prova crucial para formar a convicção do Tribunal e, por conseguinte, proferir a decisão que proferiu.
57.º - Pois que, não podemos olvidar que, por um lado, a referida testemunha não assistiu aos factos em discussão nos presentes autos e, por outro, não depôs em Audiência na qualidade de perito, para além do que, constata-se que do seu depoimento, basicamente, apenas se extrai deduções e conclusões que essa testemunha tirou e as quais, no nosso entendimento, não são suficientes para sustentar a decisão que o Tribunal Recorrido proferiu quanto aos factos não provados.
58.º- Discorda-se do Tribunal a quo quando este considera que, para ter havido um segundo momento, em que o veículo conduzido pelo Arguido J. N. passa por cima do corpo do Ofendido, teria, por um lado, que existir mais do que uma marca na parte inferior do veículo DM e, por outro, deveria o veículo apresentar danos no pára-choques frontal.
59.º- Com efeito, cremos que em face da toda a prova carreada para os autos, deveria o Tribunal Recorrido ter admitido, considerado e julgado assente que a segunda passagem do veículo DM sobre o corpo do Recorrente deu-se, não por impacto no pára-choques frontal, mas sim por ter passado com as rodas por cima daquele.
60.º- Acreditámos ter ficado demonstrado, que o veículo passou sobre os membros do A. S. com as rodas, não tendo havido embate frontal, pois só assim, se justificam e se compreende as lesões consequentes e que constam do relatório de avaliação de dano corporal.
61.º- Em bom rigor, para se concluir pela realidade da acusação movida contra um qualquer arguido, não é determinante que haja provas directas e cabais.
62.º- Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, como expressamente refere o Artigo 125º do CPP, não poderemos excluir das provas admissíveis a prova indirecta, indiciária ou por presunções.
63.º- Com efeito, na ausência de prova directa para a prova dos factos em processo penal, é legítimo o recurso à prova indirecta com virtualidade incriminatória, em que se parte de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, recorrendo a um juízo de normalidade alicerçado em regras da experiência que permitam chegar a um imagem global da verdade.
64.º- Nesta senda, deveria o Tribunal a quo equacionar que, ao contrário do que sucedeu, recorrendo a um juízo de probabilidade, alicerçado em regras da experiência comum, os factos ocorreram tal como constam na acusação pública e no despacho de pronúncia e foram que relatados pelo Recorrente.
65.º- Aliás, só por si o depoimento das testemunhas R. F., E. G. e, bem assim, o relatório pericial de avaliação de dano corporal, são prova bastante de que, efectivamente, ocorreram dois momentos em que o Recorrente foi atingido pelo DM, e não apenas um.
66.º- Atente-se, pois, às lesões comprovadamente existentes e que o Tribunal Recorrido julgou como assentes, as quais são absolutamente compatíveis e plausíveis com a versão dos factos apresentada pelo Recorrente e que corroboram de forma inequívoca o depoimento do Ofendido.
67.º- Por isso, importa aqui destacar o relatório médico-legal que se encontra junto aos autos, donde resulta as lesões que o Ofendido sofreu: fractura dos arcos costais ( 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º anteriores direitos, 3.0, 4.0, 5.0, 7.0, 8.0, 9º e 10º posteriores direitos), fractura da junção costocondral do 2.0 esquerdo e 3º, 4º, 6º, 7º e 8 esquerdos, pneumotorax bilateral, fractura dos ossos do nariz, fractura da apófise transversa da L3 e fractura do maléolo medial esquerdo.
68.º- Como é bom de ver, tais lesões não se coadunam com uma única passagem do veículo sobre o corpo do Ofendido, nem tão pouco com a queda deste ao solo durante a manobra de marcha atrás efectuada pelo DM, tal como, erradamente, conclui, o Tribunal Recorrido.
69.º- Aliás, os elementos fotográficos juntos aos autos são bem reveladores do estado deplorável e doloroso em que ficou o Ofendido.
70.º- Assim, no circunstancialismo probatório que se acaba de enunciar, em que os elementos materiais verificados corroboram de forma inequívoca o depoimento do Recorrente A. S., nenhuma razão se vislumbra para que a matéria de facto impugnada não seja alterada.
71.º- Porém, ao invés, o Tribunal a quo considerou a versão do J. N. credível, verdadeira e consistente. O que, como é bom de ver, o Recorrente não compreende!
72.º- Contrariamente ao que sucedeu, deveria o Tribunal a quo ter seguido uma metodologia mais crítica dos factos apresentados pelo Arguido J. N..
73.º- De facto, e de acordo com as regras da experiência em processos criminais a que o Tribunal a quo não pode ser alheio, é apanágio de quem tenta afastar a sua responsabilidade criminal proceder à construção de uma versão que se aproxime o mais possível do efectivamente ocorrido e que simultaneamente afaste ou atenue a sua responsabilidade criminal, sem distorção de factos que possam colocar em causa, de forma séria e evidente, a veracidade da versão que se pretende apresentar.
74.º- Ora, analisado com cuidado e rigor, que o caso exige, facilmente se concluirá que o arguido J. N. adoptou sempre uma postura diferente, contraditória, confusa e variável, apresentando diversas versões do mesmo evento ao longo das diferentes fases processuais (inquérito, instrução e, por fim, Julgamento), adaptando-as conforme melhor lhe ia convindo.
75.º- Considere-se, para tal, o auto de interrogatório de Arguido, que se encontra junto aos autos, de fls. 135 a 139 para, facilmente, se concluir pela inconsistência das declarações daquele.
76.º- No que concerne à alegada chave de fendas que o J. N. diz ter visto nas mãos do Recorrente, atentos os elementos probatórios carreados para os autos, andou mal o Tribunal a quo ao dar como provado os pontos 17 e 23 da matéria de facto, os quais deveriam, ao invés, ter sido dados como não provados.
77.º - Pelo que, desde já, se requer, também nestes concretos pontos, a reapreciação da prova gravada ao abrigo do disposto no Artigo 412º, Nº 3 do CPP.
78.º- Na verdade, o Recorrente nega, e sempre negou, ter, na ocasião, algum objecto na mão, designadamente, o que consta dos autos, a chave de fendas.
79.º- E, em abono da verdade, na ocasião em que o Arguido J. N. apresentou queixa-crime junto da GNR, posto territorial de Amares, descreve o alegado objecto como sendo uma faca de abertura automática ou faca de ponta e mola- é o que resulta, aliás, do auto de denúncia elaborado no dia 07 de Janeiro de 2017, e que se encontra junto aos autos a fls. 4 a 6.
80.º- Mais tarde, concretamente no dia 31 de Maio de 2017, aquando da sua inquirição pela Policia Judiciária, reafirmou que o objecto que o A. S. trazia consigo era uma faca. É o que consta do auto de interrogatório de Arguido perante, Polícia Judiciária junto a fls. 135 a 139.
81.º- Apenas no decurso da Audiência de Julgamento o arguido J. N. fala, pela primeira vez, na existência de uma alegada chave de fendas, de cabo verde e reluzente. Nunca o tendo feito até então!!!
82.º- Porém, não deve ser acolhida a versão deste Arguido, pois que, a ser verdade que o Recorrente manteve na sua mão qualquer objecto - o que por mera hipótese se admite-, diga-se, em abono da verdade, com elevado grau de probabilidade, que o Arguido o teria visto e identificado imediatamente.
83.º- Como resulta da prova produzida, a porta do carro DM encontrava-se aberta e como tal, a luz interior do mesmo estaria, com toda a certeza, acesa, o que permitira ao Arguido J. N. ter suficiente visibilidade para identificar o eventual objecto.
84.º- Apenas a testemunha R. F. declarou ter visto uma chave de fendas, no chão, não fazendo, porém, como é bom de ver, qualquer ligação de tal objecto com o Ofendido.
85.º- Tal e qual a testemunha Inspector M. T. afirmou que durante toda a fase de investigação não foi possível aferir da existência de qualquer chave de fendas.
86.º- Assim, salvo melhor entendimento, da prova produzida em Audiência de julgamento não resultou que o Recorrente, efectivamente, empunhasse, na ocasião, qualquer objecto, designadamente, uma chave de fendas.
87.º- Nesta senda, mostra-se, ainda, mais singular que o Tribunal Colectivo não se tenha questionado sobre o destino dado à alegada chave de fendas. A ser verdade que a mesma estaria no chão, perto do corpo do Recorrente, que destino então teve a chave de fendas? Ficou no meio da via? Alguém a recolheu? Em bom rigor, a douta decisão ora em crise não o esclarece.
88.º- As declarações prestadas pelo Assistente, ora Recorrente, foram desvalorizadas pelo Tribunal Recorrido, que suportou a sua motivação (no que respeita à existência da chave de fendas) unicamente no depoimento prestado pelo Arguido J. N..
89.º- Porém, inexistindo outra descrição presencial que não a do próprio J. N. (cuja animosidade para com o Recorrente é manifesta e notória), não deveria o Tribunal a quo ter dado como provados os factos insertos nos sobreditos pontos 17 e 23.
90.º- Trata-se de um claro exemplo de palavra contra palavra, ou seja, da palavra do ora Recorrente A. S. Arguido contra a palavra do J. N..
91.º- Devendo, nessa medida, ser eliminados da resenha factual dada como provada na sentença recorrida os pontos 17 e 23 e, ao invés, serem dados como não provados.
92.º- Com efeito, os supra referidos factos – os das alíneas F, G e H da matéria de facto dada como não provada e os dos itens 17 e 23 como provados-foram incorrectamente julgados, requerendo-se, assim, a reapreciação da prova gravada, nos termos do disposto no Nº 3 do Art. 412º CPP.
93.º- Assim, em face do preceituado nos Artigos 428º e 431º, als. a) e b) do CPP, deve, em conformidade com o que deixamos expendido e à respectiva fundamentação, reexame das provas a efectuar pelos Venerandos Juízes do Tribunal da Relação:

1) Dar-se como provados os seguintes factos:
- “ Na sequência do que se descreveu sob o nº 26, da factualidade provada, o arguido J. N., ao ver o arguido A. S. prostrado no chão, iniciasse a marcha do veículo DM na direcção deste arguido, passando a referida viatura por cima do seu corpo, atingindo-o no tronco, pernas e braços”;
- “Que o arguido J. N., ao actuar deste modo, agisse com o propósito de tirar a vida ao arguido A. S., ciente que utilizava um veículo automóvel, cuja característica não ignorava e que se tratava de um meio particularmente perigoso, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por este último ter sido atempadamente socorrido e, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade”;
- “Que o arguido J. N., nas circunstâncias descritas em g), actuasse de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.”
2- Ser eliminada da resenha factual dada como provada, a matéria de facto inserta no item 27.
3- Dar como não provados os factos:
17) Nas circunstâncias de tempo e de lugar supra apontadas, o arguido A. S. estava munido com um objecto não concretamente identificado, mas em tudo idêntico a uma chave de fendas;
23) Nestas circunstâncias o aludido A. S. mantinha-se a empunhar na sua mão esquerda o objecto referido 17.
94.º- Constituem meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida, nos termos do Artigo 412º, Nº 3, al. b), do Código de Processo Penal:
a) Declarações do Recorrente prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 11/03/2020, de minutos 16:24 a 23:21; minutos 24:04 a 26:47; minutos 27:05 a 36:15; minutos 36:57 a 39:10;
b) Auto de Denúncia elaborado pela Guarda Nacional Republicana, Posto Territorial de Amares, sendo o apresentante J. N., junto aos autos a fls. 4 a 6;
c) Declarações prestadas pelo Arguido J. N. prestadas em interrogatório perante Polícia Judiciária, junto aos autos a fls. 135 a 139;
d) Depoimento da testemunha R. F., prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 01/07/2020, de minutos 01:39 a 05:28; minutos 06:00 a 06:57; minutos 09:05 a 14:17;
e) Depoimento da testemunha E. G., prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 01/07/2020, de minutos 01:30 a 09:29;
f) Depoimento da testemunha M. T., prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 01/07/2020, de minutos 03:13 a 03:40; minutos 04:00 a 10:34.
g) Relatório da perícia de avaliação de dano corporal, de fls. 231 a 233; h) Relatório do exame pericial realizado ao veículo DM, de fls. 121 a 125.
95.º- E, afinal, alterando-se a matéria factual nos temos supra aduzidos, deverá ser alterado o aresto ora em crise e o Arguido J. N. condenado pela prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, do qual o mesmo vinha pronunciado, bem assim no pedido cível formulado nos autos.

Caso assim não se entenda – o que não se concebe ou concede-, sempre se dirá, ainda, que:
96.º- No caso dos autos, após a produção de prova, ficou demonstrado e provado que o Arguido J. N. utilizou o veículo DM e que, por via disso, provocou lesões no corpo do Assistente, ora Recorrente.
97.º- Resultou, de igual modo provado, que aquele Arguido, ao agir como agiu, representou como possível atingir o Assistente - como efectivamente atingiu-, pelo menos na sua integridade física, resultado com o qual se conformou e que a acção lesiva foi adequada a causar a morte daquele que, só não ocorreu pelo facto de ter sido prontamente assistido.
98.º- Ora, com o devido respeito, o Tribunal Recorrido ao considerar o supra mencionado, dando tais factos como provados, não podia, depois, decidir como decidiu, enquadrando o sucedido no âmbito da legítima defesa e, consequentemente, absolver o Arguido.
99.º- Com efeito, desde logo, se mostra excluída, da conduta do Arguido J. N. e da resenha factual que o Tribunal Recorrido deu como provado (ponto 31 dos factos provados), a intenção defensiva relativamente à agressão de que estava a ser alvo. Pressuposto este essencial para afastar a ilicitude decorrente de actuação em legítima defesa.
100.º- O instituto da legítima defesa está consagrado no Artigo 31º, Nº 1 do Código Penal que dispõe: “ O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.” Acrescentando o N.º 2, al. a) do mesmo normativo legal que: “ Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado: a) Em legítima defesa; (…)
101.º- E, nos termos do Artigo 32.º daquele diploma legal, "Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro."
102.º- Decorre do supra mencionado texto legal, que a legítima defesa, enquanto causa de exclusão da ilicitude, apresenta os seguintes requisitos objectivos: a ocorrência de uma agressão; a actualidade da agressão; a ilicitude da agressão; a necessidade da defesa; a necessidade do meio e o conhecimento e o querer.
103.º - Mas, o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso, isto é, o bem ou interesse agredidos; o tipo e a intensidade da agressão; a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar; a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido; bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes.
104.º- Trata-se, pois, de um juízo objectivo e ex ante, pelo que o julgador se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas, sem esquecer que a exigência de utilização do meio menos gravoso para o agressor não pode levar a fazer recair sobre o agredido riscos para a sua vida ou integridade física, não estando o defendente obrigado a recorrer a meios ou medidas de eficácia duvidosa ou incerta para a sua defesa.
105.º- Por outro lado, no que concerne ao elemento subjectivo da acção de legítima defesa, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 19-07-2006, decidiu que, «conquanto parte da nossa jurisprudência e certo sector da doutrina continuem a exigir, como elemento ou requisito essencial da legítima defesa, a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade ou intenção de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio, a verdade é que a doutrina mais representativa defende que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa».
106.º- Ora, tendo presente o supra mencionado, e revertendo ao caso dos autos, impõe-se concluir que, face à matéria de facto definitivamente assente, a conduta do Arguido J. N. não pode, desde logo do ponto de vista objectivo, integrar uma actuação ao abrigo da causa de exclusão.
107.º- E, em bom rigor, em termos de elemento subjectivo, provou-se que o arguido J. N. representou como possível atingir o Recorrente, resultado com o qual se conformou e, portanto, de lhe produzir ferimentos do tipo dos verificados, estando, por isso e desde logo, afastada a intenção defensiva.
108.º- Com efeito, não se inclui entre os factos dados como provados, que o Arguido tenha agido com intenção defensiva relativamente à agressão que estava a ser alvo.
109.º- Em boa verdade, deveria o Tribunal a quo, ter levado em linha de conta que a agressão desferida pelo Arguido J. N. na pessoa do Recorrente nunca surgiria como necessária para fazer cessar a agressão por parte deste.
110.º- Bastava para tanto a reacção de lhe ter retirado a alegada chave de fendas das mãos, não necessitando de ter iniciado e completado a manobra de marcha atrás, percorrendo cerca de 5 metros, tanto mais que o Recorrente é uma pessoa idosa e encontrava-se no exterior do veículo.
111.º- Ademais, bem sabia o Arguido J. N. que utiliza um meio (automóvel) que sabia ser idóneo a causar ferimentos graves e até a morte a uma pessoa e tendo perfeito conhecimento, ainda, que a sua utilização o investia numa situação de superioridade em relação ao Ofendido, o que se traduz, desde logo, no emprego de um meio desleal.
112.º- Além disso, da descrita factualidade (item 31 dos factos provados) não resulta que o Arguido J. N. teve em vista afastar uma agressão actual e ilícita de que estava a ser vítima, mas sim que agiu com o propósito de lesar a integridade física do Assistente A. S. e de lhe produzir ferimentos do tipo dos verificados, ficando, desse modo, excluído qualquer intuito defensivo ou sequer uma acção conscientemente dirigida à defesa, afirmando-se, ao invés, a intenção agressiva.
113.º- Assim, salvo o devido respeito por melhor entendimento, a douta decisão proferida padece de erro por violação da lei substantiva, isto é, erro de interpretação ou determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito.
114.º- Nesta conformidade, tendo o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, foram violados, entre outros, os Artigos 31º, 32º, 131º e 132º, nº 2, alínea h), do Código Penal, devendo, por isso, a decisão ora em crise ser substituída por outra que condene o arguido J. N. pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos Artigos 13º, Nº 1, 1º parte, 14º, nº 1, 22º, nº 1 e 2, alínea b), 23º, n.ºs 1 e 2, 26º, 1ª preposição, 69º, nº 1, alínea a), 131º, e 132º, nº 2, alínea h), todos do Código Penal, bem assim no pedido cível formulado nos autos.

Ainda sem prescindir, para o caso de assim não se entender:
115.º- Não obstante o Recorrente discordar da decisão proferida pelo Tribunal a quo, pelos motivos acima expostos, a considerar-se ser de manter a mesma e absolver o Arguido J. N. da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, não podemos deixar de realçar que, atendendo à factualidade dada como provada - nomeadamente, ao ponto 31 dos factos provados -, deveria o Tribunal Recorrido ter condenado aquele Arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo Artigo 145º, Nº 1, al. a) e Nº 2, com referência à alínea h) do Nº 2 do Artigo 132.º do Código Penal.
116.º- Com efeito, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
117.º- Porém, se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até quatro anos.
118.º- Pretende-se, com a citada prescrição e como é bom de ver, proteger a integridade física da pessoa humana, integridade entendida como corporal e psíquica e, por consequência, punir o agente que inflige na vítima «mau trato através do qual [aquela] é prejudicada no seu bem-estar físico de forma não insignificante» (ofensa no corpo), ou age de modo a pôr «em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a» (lesão da saúde).
119.º- Sendo elemento objectivo do tipo de ilícito qualquer ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ainda que não cause dor ou sofrimento, o crime de ofensa à integridade física é um crime de resultado, na medida em que supõe tal dano e também um crime de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado que pode ser uma ofensa no corpo ou uma ofensa na saúde da pessoa visada.
120.º- Subjectivamente, para o preenchimento deste mesmo crime, é imposto que o agente actue com consciência e vontade de que a sua conduta lesa o corpo ou a saúde de outra pessoa. Tem como elemento subjectivo o dolo, em qualquer das suas modalidades, dolo, que deve ser dirigido à ofensa do corpo ou da saúde de terceiro, sendo irrelevante a motivação do agente.
121.º- Ora, da factualidade apurada nos presentes autos extrai-se que o Arguido J. N., intencionalmente, atingiu a integridade física do Ofendido, ora Recorrente, pelo que, no caso vertente, dúvidas não restam que a integridade física de outra pessoa foi violada, dolosamente pelo Arguido, verificando-se, pois, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito do Artigo. 143º do Cód. Penal (cfr. ponto 31 dos factos provados).
122.º- Resta apurar se a conduta do Arguido J. N., e que consta da factualidade provada, reveste características tais que a tornem especialmente censurável ou perversa, isto é, se o crime de ofensa à integridade física praticado pelo Arguido deve ser qualificado.
123.º- De acordo com o vertido na legislação penal, são susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º.
124.º- E, efectivamente, o uso de um veículo automóvel, para atingir um determinado resultado – no caso sub judice, o Arguido J. N. serviu-se do veículo DM para atingir o Ofendido na sua integridade física-, não pode deixar de se enquadrar na utilização de um meio particularmente perigoso. (Assim o decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do Acórdão proferido em 13/06/2018).
125.º- No Código Penal, o crime de ofensa à integridade física qualificada está construído, à semelhança do homicídio qualificado, para o qual é feita a remissão, segundo a técnica dos exemplos-padrão: no nº 1 está configurada a tipicidade da qualificativa e no nº 2 faz-se uma indicação meramente exemplificativa de alguns índices que poderão revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que o tipo se refere (é o que resulta do disposto no Nº 1 do Artigo 145º e da remissão que no Nº 2 do mesmo preceito se faz para o Artigo 132º, Nº 2).
126.º- Por especialmente censurável deve entender-se as circunstâncias de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
127.º- E por especial perversidade tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade.
128.º- No caso dos autos, conforme se logrou provar, a agressão foi levada a cabo com a utilização de um meio ou instrumento (automóvel).
129.º- E, neste particular, importa salientar que o Arguido J. N. utilizou um meio com que colocou o ofendido numa situação de dificuldade exponencial de defesa, conduta que revela insensibilidade, passível de sustentar um juízo de especial censurabilidade, por fundar um juízo de maior desvalor ético, quando confrontada com os procedimentos de agressão comummente adoptados.
130.º- E, subjectivamente, também se comprovou que aquele Arguido, actuou com consciência e a vontade de lesar a saúde do Ofendido (realegue-se, o Tribunal a quo deu como provado que o Arguido representou como possível atingir o corpo do Recorrente, resultado esse com o qual ele se conformou), sabendo que utilizava um meio particularmente perigoso para lesar a integridade física, ou seja, que no caso concreto, o dolo do arguido também abrangeu essa condição de especial vulnerabilidade em que o mesmo colocou o ofendido.
131.º- Dúvidas não há, pois, que no caso dos autos, a conduta do Arguido J. N. integra o exemplo padrão da alínea h) do Nº 2 do Art. 132º.
132.º - Assim, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, fez uma errada aplicação do direito aos factos, violando, assim, o vertido nos Artigos 143º, 145º e 132º, Nº 2 alínea h), pelo que se impõe uma decisão diversa da recorrida, devendo o Acórdão proferido ser substituído por outro que condene o Arguido J. N. pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, da previsão do Artigo 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, por referência ao Artigo132º, Nº 2 al. h), todos do Código Penal e bem assim no pedido cível formulado nos autos.

Nestes termos e com o mui douto suprimento de V.Ex.as, deve ser concedido provimento ao presente recurso em conformidade com as conclusões que antecedem, assim se fazendo
BOA e INTEIRA JUSTIÇA”.
*
4. Na 1ª instância a Exma. Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido A. S., nos termos constantes de fls. 759/765, terminando essa sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1. Não assiste razão ao arguido nas críticas que aponta ao douto acórdão proferido, não merecendo este nenhum reparo, no que concerne à materialidade fáctica dada por assente, que espelha a prova (documental, pericial e testemunhal) produzida em sede de audiência de julgamento e junta aos autos.
2. Contesta o recorrente, o facto de o Tribunal recorrido ter tido em conta, para sua condenação pela prática do crime de ofensa à integridade física, apenas as declarações do arguido J. N., uma vez que inexiste nos autos qualquer prova testemunhal ou pericial que suportem essa condenação.
3. Não assiste, porém, razão ao arguido na crítica que, neste ponto, faz ao douto acórdão proferido.
4. Efectivamente, no douto acórdão recorrido, o Tribunal fez constar, não só os factos que considerou provados e não provados, como também enumerou, de forma inequivocamente suficiente, os motivos de facto e de direito que o levaram a fazê-lo, com análise crítica de toda a prova carreada para os autos.
5. Efectivamente, fez-se constar do douto acórdão proferido, os motivos pelos quais, à luz das regras de experiência comum, as declarações do arguido J. N. foram considerados credíveis, contrariamente às declarações do arguido por contraponto com as declarações do arguido A. S., ora recorrente, que considerou “pouco claras e lineares” e “exageradas”, não logrando, neste ponto, convencer o tribunal.
6. O tribunal recorrido analisou de forma clara e inequivocamente suficiente, todos os meios de prova, que conjugou entre si, plasmando de forma clara e perceptível as razões pelas quais estes mereceram ou não credibilidade, nada ficando, neste ponto, por dizer, tendo feito constar, não só os factos que considerou provados e não provados, como também enumerou, de forma equilibrada e bastante, os motivos de facto e de direito da sua decisão, valorando crítica e racionalmente todas as provas carreadas para os autos, de acordo com as regras da razão e da experiência comum, de forma que não merce qualquer reparo.
7. Para além da verificação dos requisitos gerais previstos no nº 1, als. a), b) e c), do nº 1, do art. 74º do Código Penal, para aplicação do instituto da dispensa de pena nos crimes de ofensa à integridade física é necessário ainda que se verifique, pelo menos, uma das situações previstas no n.º 3, do respectivo tipo legal, previsto no art. 143º do Código Penal, o que não sucede no caso em apreço.
8. Com efeito, resultou provado, no que concerne à cronologia dos acontecimentos, que foi o arguido A. S. quem primeiramente abordou o arguido J. N., quando este se encontrava no interior do seu veículo e lhe desferiu dois murros na face (pontos 19 a 22 dos factos provados), tendo sido este acontecimento que despoletou todos os demais.
9. Por outro lado, a retorsão a que alude a alínea b), do art. 143º do Código Penal, assenta num princípio de resposta, ou seja, quando o agente se limita a reagir perante uma actuação prévia do ofendido, através do uso da força física, o que também é por demais evidente, não se verificou no caso sub iudice.
10. Tudo ponderado, não se encontram verificados, no caso em apreço, os requisitos legais para a aplicação do instituto da dispensa de pena.
11. No quadro dos fins das penas, e atendendo ao binómio culpa-ilicitude dos factos, a pena de multa aplicada ao arguido, pela prática do crime de Ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º do Código Penal em que foi condenado, revela-se ajustada, não ultrapassando de modo nenhum os limites da culpa e dando resposta cabal às exigências de prevenção geral e especial.
12. Assim, a pena concreta aplicada ao arguido deverá ser mantida nos seus precisos termos, já que a sua concreta determinação atendeu aos critérios elencados nos artigos 40º, 70º e 71º, nº 1 e nº 2, todos do Código Penal, revelando-se a mesma adequada.
13. Também no que concerne à absolvição do arguido J. N. da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 22º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23º, n.ºs 1 e 2, 26º, 1ª proposição, 69º, n.º1, al. a), 131º e 132º, nº 2, alínea h), todos do Código Penal, o douto acórdão proferido não é susceptível de reparo.
14. No caso concreto, o Tribunal recorrido efectuou um exaustivo exame crítico de toda a prova provas, inferindo-se do mesmo que o colectivo de juízes ficou convencido da realidade dos factos que considerou assentes, tendo sido amplamente explanado o percurso e o raciocínio lógico que conduziu a essa convicção, fazendo um exame critico de modo que o tribunal de recurso pode aferir da sua adequação.
15. Cumpriu assim o tribunal recorrido, o dever de harmonização lógica e cronológica dos factos, da respectiva formulação de juízos de valor sobre eles, avaliando a razão de ciência e a credibilidade da prova produzida, bem assim do próprio enquadramento jurídico correspondente.
16. Sem prescindir, pugna o recorrente pela condenação do arguido J. N. pela prática de um crime ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. h), do nº 2, do art. 132º do Código Penal.
17. Sufragando neste ponto, a posição do recorrente, dá-se aqui por reproduzido, na íntegra, por razão de economia processual, o teor do recurso já interposto pelo Ministério Público nos presentes autos.

Pelo exposto, deverá o recurso interposto ser julgado procedente no que concerne à condenação do arguido J. N. pela prática do crime ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. h), do nº 2, do art. 132º do Código Penal e improcedente quanto ao demais,
assim fazendo V. Exas, a costumada JUSTIÇA.”.
*
5. Outrossim o arguido J. N. respondeu a ambos os recursos:

5.1. Ao recurso interposto pelo Ministério Público, nos termos que constam de fls. 766/766/780 Vº, terminando essa sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“I. Carece, salvo melhor opinião e o devido respeito, de absoluto fundamento a tese advogada pela Recorrente.
II. Entende a recorrente que, face a factualidade dada como provada, o arguido J. N. deveria ter sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 3 e 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, com referência à alínea h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, ou, caso assim não se entenda, pela prática do crime de Ofensa à integridade física, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 3 e 143.º do Código Penal.
III. O recorrido discorda frontalmente com a posição assumida pela recorrente e considera que o acórdão encontra-se correctamente fundamentado, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à decisão da matéria de direito, indicando os motivos de facto e de direito que sustentam a decisão, em cumprimento cabal do disposto no nº 2 do artigo 374º do Código de Processo penal.

ANTES DE MAIS:
IV. A Digna Magistrada do MP, com o devido respeito, não analisa correctamente a absolvição do recorrido pelo crime do qual vinha acusado e pronunciado – crime de homicídio qualificado, na forma tentada – desde logo, quando refere que, quanto a este ponto, importa atender somente à matéria dada como provada nos pontos 12. a 33.
V. Como o próprio acórdão - e bem - o expressamente refere, os fatos ocorridos no dia 06 de Janeiro de 2017 tem de ser conjugados com o comportamento adoptado pelo arguido A. S. através das “ameaças que anunciou dias antes às testemunhas J. F. e A. C.”.
VI. Assim, importa atender ainda, quanto ao ponto suscitado pela recorrente, aos factos dados como provados de 1. a 11., bem como aos factos constantes de 45. a 53., para se compreender a verdadeira dinâmica do sucedido no dia 06 de Janeiro de 2017, bem como o estado anímico do aqui recorrido, J. N., nesse mesmo dia.
VII. Se o recorrido não tivesse sido alertado dias antes das intenções do arguido A. S., quer por parte do tio, A. C., quer por parte da própria mãe, J. F., talvez o temor pelo qual foi possuído no momento da “emboscada” perpetrada por aquele não tivesse sido tão intenso.
VIII. Esses factos ocorridos nos dias que antecederam os acontecimentos do dia 06/01/2017 -- totalmente desprezados pela Digna magistrada do MP, aqui recorrente -- são relevantes e foram devidamente valorados pelo Tribunal para perceber o verdadeiro alcance dos mesmos (acontecimentos) e a forma significativa como afectaram o visado – o ora recorrido.

POSTO ISTO:
IX. A recorrente entende que a douta decisão recorrida padece de erro de direito, ao enquadrar juridicamente os factos provados, considerando que o arguido agiu em legítima defesa, sem que dos mesmos fizesse constar que o arguido agiu com intenção defensiva à agressão de que estava a ser alvo.
X. Antes argumenta que “tendo-se dado como provado que o “O arguido J. N., ao actuar do modo supra descrito, representou como possível atingir o arguido A. S., pelo menos, na sua integridade física, resultado com o qual se conformou” (ponto 31 dos factos provados), ficou assim excluída a intenção defensiva, ficando assim afastada a legítima defesa.”
XI. Com esta posição não pode de todo o recorrido concordar, como melhor passa a explanar:
XII. É certo que o tribunal considerou e deu provado que o arguido actuou na modalidade mais periférica do dolo, o dolo eventual, quando realizou a manobra de marcha atrás no seu veículo automóvel, para fugir do local onde se encontrava em perigo, tendo entendido que o recorrido representou como possível atingir o arguido A. S. na sua integridade física;
XIII. No entanto, do cotejo e conjugação dos factos provados e não provados, da dinâmica dos factos tal como estes sucederam no tempo e no espaço que o douto acórdão descreve de uma forma notável, bem como da sua fundamentação, salvo o devido respeito, a conclusão da recorrente é manifestamente incorrecta e contrária ao espírito da lei, na medida em que parte de extrapolações inadmissíveis (quanto aos factos dados como provados) e não consentâneas à luz de regras de experiência comummente aceite pelo homem médio.
XIV. A existência deste elemento volitivo, isto é, o recorrido ter admitido como possível a lesão do corpo do arguido, quando realiza a manobra de marcha atrás, não anula a legítima defesa em que actua, pois foi (a sua actuação) indispensável à salvaguarda de um seu interesse juridicamente protegido (a sua integridade física e a sua vida), “ tendo agido com a (única) intenção de se defender”.
XV. Assim o facto de o recorrido ter representado como possível atingir a integridade física do arguido A. S., não retira a intenção defensiva à sua actuação.
XVI. Tanto mais que não resulta provado que o arguido agiu com o intuito de ofender corporalmente o arguido A. S., nem ficou demonstrado que o recorrido sabia e queria todos os actos (adequados a ferir o corpo) que objectivamente praticou.
XVII. Ora, face à “emboscada” preparada pelo arguido A. S., o recorrido só teve como alternativa fugir do local onde se encontrava em perigo.
XVIII. Atento o pânico e aflição sentidas pelo recorrido e os brevíssimos momentos dentro dos quais teve de decidir, o uso do veículo automóvel DM para sair do local mostra-se expectável e dentro dos padrões da actuação do homem médio colocado nas mesmas circunstâncias factuais.
XIX. Assim, não tem a recorrente qualquer razão quando refere que tendo-se dado como provado o ponto 31. ( “ O arguido J. N., ao actuar do modo supra descrito, representou como possível atingir o arguido A. S., pelo menos, na sua integridade física, resultado com o qual se conformou”), fica excluída a intenção defensiva, ficando desde modo afastada a legítima defesa;
XX. Também não tem igualmente razão quando refere que dos factos provados não consta que o arguido agiu com intenção defensiva relativamente à agressão de que estava a ser alvo, pois desde logo, tal resulta no ponto 24. dos factos provados onde consta que “O Arguido J. N., perante as descritas agressões, aperceber-se da existência desse objecto e desconhecendo se o mencionado A. S. se fazia acompanhar, receou pela sua integridade física e mesmo pela sua própria vida, pelo que aproveitou-se do facto de a marcha-atrás estar engrenada para arrancar com o veículo DM, recuando num total de cerca de 5 m.”
XXI. A legítima defesa é uma causa de exclusão da ilicitude, resultando da sua integração que o facto típico não é punível porque a sua ilicitude é excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade - artigos 31º, n.º 1 e n.º 2, alínea a) e 32º do Código Penal.
XXII. A consagração legal da legítima defesa no Código Penal é a explicitação do princípio constitucional fixado no artigo 21º da Constituição da Republica Portuguesa, que estabelece que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.
XXIII. A legítima defesa apresenta-se como uma causa de exclusão da antijuridicidade do facto, tendo por base uma prevalência que à ordem jurídica cumpre dar ao justo sobre o injusto, à defesa do direito contra a sua agressão, ao princípio de que o direito não deve recuar ou ceder nunca perante a ilicitude.
XXIV. São pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de “animus defendendi”.
XXV. São requisitos da agressão, a ilegalidade, a actualidade e a falta de provocação; e por sua vez, são requisitos da defesa, a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.
XXVI. A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão, e em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir.
XXVII. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cfr. acórdão do STJ de 18-12-96, processo n.º 115/96-3ª , n.º 6, Dezembro 1996, pág. 69.
XXVIII. Um dos elementos constitutivos da legítima defesa é o agente ter praticado o facto para repelir a agressão actual e ilícita de que está a ser sujeito passivo, ou seja, que tenha agido com o intuito de defesa; sendo função da legítima defesa apenas o impedir ou repelir a agressão, compreende-se e exige-se que o defendente só utilize o meio considerado, no momento e segundo as circunstâncias concretas, suficiente para suster a agressão.
XXIX. A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem; tal como a intenção de ofender o corpo de terceiro, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira.
XXX. O juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias do caso concreto:
- “o arguido J. N., em Novembro de 2016, iniciou um relacionamento amoroso com M. S., que anteriormente fora companheira do arguido A. S., tendo ambos uma filha em comum;
- este arguido não se conformou com o fim desta relação e por via do tio e da mãe do aludido J. N., ameaçou que lhe iria “dar uma coça” e “fazer a folha”, passando a vigiar a sua residência;
- o mencionado J. N. foi conhecedor dessas ameaças, com o que passou a sentir-se intimidado e amedrontado, experimentando um forte sentimento de insegurança e receando pela sua integridade física;
- no dia 06 de Janeiro de 2017, já de noite (entre as 22 horas e as 23 horas), isto é, em pleno Inverno, o arguido A. S., por aperceber-se que o arguido J. N. encontrava-se no interior da residência da aludida M. S. (sita na Rua ..., em … – …), decidiu aguardar que este saísse dessa habitação para assim concretizar as ameaças que proferira;
- para o efeito muniu-se de uma chave de fendas e permaneceu escondido no exterior da referida habitação para que pudesse surpreender o identificado J. N. e, deste modo, impedir que preparasse uma reacção de defesa, com o que montou-lhe uma emboscada;
- este J. N., após abandonar a residência da sua então companheira, entrou para o lugar do condutor do veículo DM que tripulava, fechou a porta, accionou a ignição e engrenou a marcha-atrás, sendo que nesse momento foi abordado pelo arguido A. S. que, depois de abrir a porta desta viatura, segurou-a com a mão esquerda e posicionou-se entre essa porta e a entrada para o banco do condutor, assim obstando a que aquele arguido pudesse sair;
- acto contínuo, o mesmo A. S., fazendo uso da sua mão direita, desferiu um murro na face do arguido J. N., causando-lhe dores físicas;
- o aludido A. S., após este murro, dirigindo-se ao mencionado J. N., disse-lhe “passa para o outro lado”, o que este último recusou;
- em seguida, o arguido A. S., com a sua mão direita, desferiu um novo murro na face do arguido J. N. com o que lhe causou mais dores físicas;
- nestas circunstâncias o identificado A. S. mantinha-se a empunhar na sua mão esquerda a chave de fendas supra referida;
- o arguido J. N., que para além de estar sentado no banco do condutor, com os seus movimentos mais condicionados, encontrava-se verdadeiramente encurralado, pois que aquele A. S. bloqueava a sua saída, perante tais agressões e após aperceber-se dessa chave de fendas, por recear pela sua integridade física e mesmo pela sua própria vida, aproveitou-se do facto de a marcha-atrás estar engrenada para arrancar com o veículo DM, recuando num total de cerca de 5m;
- o arguido A. S., por seu turno, assim que o arguido J. N. iniciou esse trajecto, agarrou-se à porta da viatura DM;
- no entanto, aquele A. S., devido ao desnível existente entre o acesso onde este veículo estava aparcado e a faixa de rodagem da Rua ..., acabou por cair ao chão, ficando deitado de barriga para baixo, altura em que a roda dianteira esquerda da viatura passou por cima da sua perna esquerda, em concreto do seu tornozelo, bem como pelo lado esquerdo do seu tronco e por cima do seu braço esquerdo, causando-lhe as lesões melhor supra descritas.”( sublinhado nosso).
XXXI. Na situação em apreço e no que tange à inserção circunstancial, temos a assinalar o local da prática dos factos -- uma berma de estrada --, o espaço temporal -- noite dentro, em pleno Inverno --, evidenciar a intensidade da perigosidade do agressor e sua forma de actuação – à espera do recorrido, escondido, para o abordar sem lhe dar possibilidade de defesa --, ímpeto agressivo do arguido A. S. para com o recorrido, com o propósito concretizado de o agredir fisicamente e ainda a com claras intenções de continuar a fazê-lo ou mesmo atentar contra a sua vida, atenta a presença do objecto que se veio ser uma chave de fendas, a ameaça real e efectiva que representava, bem como o pânico e aflição sentidas pelo recorrido.
XXXII. Atento o quadro existencial no local, o recorrido configurou a hipótese de colocar-se em fuga como a única solução para salvaguardar a sua integridade física e mesmo proteger a sua vida, atento o quadro existencial descrito e até as anteriores e recentes ameaças que tinha sido alvo por parte do arguido A. S..
XXXIII. Assim e atendendo à motivação do douto acórdão recorrido, “Além do que fica sobredito importa, igualmente, ter presente que o arguido J. N. agiu sempre motivado por um mesmo fim: evitar continuar a ser fisicamente agredido pelo arguido A. S. para, desta forma, proteger a sua integridade física e a sua vida.”
XXXIV. Do douto acórdão resulta claramente que o recorrido nunca pretendeu ou quis ofender a integridade física do arguido A. S. quando realizou a manobra de marcha atrás e, posteriormente, quando já na faixa de rodagem da Rua ... engrenou a 1ª velocidade e avançou para a frente; sempre teve como propósito único proteger a sua integridade física e a sua vida, pois que foi atacado a murros pela mesma pessoa que dias antes o havia ameaçado perante o seu tio e sua própria mãe e que vinha munido de um objecto que julgou ser uma navalha, e por recear que pudesse novamente atacá-lo, sozinho ou por intermédio de outras pessoas, que poderiam estar escondidas.
XXXV. Não resultou da matéria de facto provada que o arguido J. N. agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente o arguido A. S., nem com intuito agressivo, antes resultou provado que o recorrido agiu com intuito defensivo; logo, nunca poderá ser condenado pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, nem mesmo simples.
XXXVI. Do transcrito e exposto, resulta não padecer a douta sentença recorrida de qualquer vício, por não violar qualquer norma quer de Direito substantivo, quer de Direito adjectivo, sendo portanto legal e justa porque espelha a verdade e a ela foi correctamente aplicada a Lei

NESTES TERMOS,
E nos melhores de direito que V.ªs Ex.ªs Srs. Drs. Juízes Desembargadores suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, ser a douta decisão integralmente confirmada, via pela qual se alcançará a acostumada
JUSTIÇA!”.
*
5.2. Ao recurso interposto pelo arguido J. N., nos termos que constam de fls. 781/788 Vº, terminando essa sua peça processual com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“I. É manifesta a improcedência do recurso interposto pelo recorrente, uma vez que o douto acórdão, em obediência aos requisitos previstos no artigo 374º do Código de Processo Penal, cumpre as exigências legais de fundamentação da decisão e faz um sagaz exame crítico do sólido conjunto de provas produzidas e examinadas em audiência de julgamento.
II. O Tribunal a quo formou a sua convicção quanto ao cometimento dos crimes pelo Arguido de forma concludente, em respeito absoluto pelo princípio de livre apreciação da prova e de acordo com as mais elementares regras da experiência e do senso comum, que impunham decisão no sentido daquela que veio a ser proferida.
III. O recurso interposto pelo Arguido consubstancia ingerência inadmissível na livre margem de apreciação e modo de formação da convicção do julgador quando sustenta que o seu depoimento foi credível e que merecia ter sido valorado em detrimento das declarações prestadas pelo recorrido.
IV. Tal asserção choca de forma flagrante com a contida na fundamentação do acórdão onde reza que o discurso do arguido A. S. não convenceu o Tribunal, pautando-se “por confuso, pouco rigoroso e até contraditório com as declarações prestadas na fase investigatória”.
V. O Tribunal entendeu, com absoluta clareza, “que o relato do arguido J. N. é aquele que se revela mais coerente e consistente com o que ditam os juízos de probabilidade e os dados da intuição humana.”
VI. Muito ao invés, as circunstâncias da prática criminal, o depoimento coerente e consistente do recorrido e o depoimento falacioso do recorrente A. S. -- tudo provado nestes autos – são, segundo as regras da experiência, de molde a apartar eventuais dúvidas quanto ao cometimento do crime de ofensa à integridade física simples pelo qual foi condenado.
VII. Tudo ponderado, é patente que a vã retórica do recorrente plasmada no recurso interposto não põe em causa, sequer remotamente, o iter lógico e racional conducente à decisão de condenação, que não enferma de quaisquer vícios, não tendo havido erro de julgamento.
VIII. No caso a quo não se verifica preenchido qualquer um dos pressupostos necessários à aplicação do instituto da dispensa de pena, desde logo porque resultou provado que foi o recorrente quem abordou o recorrido e lhe desferiu dois murros na face.
IX. Assim, resultou provado que foi o recorrente a iniciar a contenda e, como tal, obviamente não reagiu a qualquer actuação prévia do recorrido, pelo que a dispensa de pena nunca poderá ser aplicada ao recorrente.
X. O recorrente sustenta que deveria ser condenado em pena inferior, não tendo sido devidamente ponderados os critérios legais previstos nos artigos 70º e 71º do Código Penal, posição com a qual o recorrido discorda.
XI. As circunstâncias que favorecem o arguido foram devidamente ponderadas, atendendo às condições de vida do recorrente, a situação familiar e social.
XII. No entanto, atento o grau de culpa do recorrente e as exigências de prevenção geral que a sua conduta suscita, a pena aplicada é ajustada e adequada.
XIII. A resposta dada à factualidade – nomeadamente, a provada sob os pontos 17 e 23 e a não provada sob as alíneas F), G) e H) – teve como essencial a convicção resultante das declarações prestadas pelos arguidos A. S. e J. N. e do depoimento das testemunhas P. J., M. S., R. F., E. A., S. S., J. F., A. C., A. F., M. T., K. S., M. C., F. A., C. A., E. G., A. O. e J. B..
XIV. No caso dos autos, existindo embora gravação, as declarações do recorrente e os depoimentos das testemunhas invocados por aquele, nomeadamente, R. F., E. G. e inspector M. T., não são passíveis de alterar a matéria dada como provada e como não provada.
XV. Depois, porque a matéria dada como provada e não provada, bem como a sentença com a respectiva fundamentação (em pleno uso das vantagens propiciadas pela actuação dos princípios da imediação e oralidade) se encontram elaboradas de modo convincente e exaustivo, pelo que torna mais pertinente a adesão aos considerandos acima referidos, nomeadamente em ordem a evitar que a injustiça material advenha da segunda decisão, pelo que tudo aconselha e encaminha para a alteração da matéria de facto.
XVI. Assim, atento os factos que o recorrente – com o devido respeito, sem qualquer razão – pretende ver alterados, com a apreciação dos documentos juntos aos autos, nomeadamente fotografias e o relatório pericial, bem como com suas declarações e o depoimento das testemunhas indicadas, a conclusão só pode ser que a matéria de facto provada e não provada foi correcta e legalmente dada, formando o colectivo de Juízes a sua prudente convicção segundo critérios de valoração racional e lógica.
XVII. A questão que o Recorrente traz à colação é de valoração da prova produzida em audiência de julgamento.
XVIII. No fundo, do que o recorrente discorda é tão só da apreciação e valoração da prova efectuada pelo tribunal a quo, pretendendo que, face à prova produzida em audiência, seja feita uma outra apreciação, que coincida com a sua própria, esquecendo o princípio da livre convicção ou livre apreciação.
XIX. Analisando com rigor a argumentação vertida no presente recurso, a mesma resume-se à análise da prova produzida no julgamento e à extracção das conclusões que o recorrente tem por pertinentes; na realidade, o recorrente faz a sua própria análise crítica da prova.
XX. Nesse sentido, a procedência do recurso implicava que a Relação censurasse o tribunal recorrido por, cumprindo a lei, ter decidido segundo a sua livre convicção.
XXI. Vale isto para dizer e advogar que, salvo melhor opinião e o devido respeito, afigura-se-nos perfeitamente legítima a opção efectuada pelo Tribunal a quo, pelo que nenhuma censura merece a matéria dada como provada e não provada, não devendo, por conseguinte, merecer qualquer alteração.
XXII. Assim, do douto acórdão resulta claramente que o recorrido nunca pretendeu ou quis atentar contra a vida ou ofender a integridade física do arguido A. S. quando realizou a manobra de marcha atrás e, posteriormente, quando já na faixa de rodagem da Rua ... engrenou a 1ª velocidade e avançou para a frente; sempre teve como propósito único proteger a sua integridade física e a sua vida, pois que foi atacado a murros pela mesma pessoa que dias antes o havia ameaçado perante o seu tio e sua própria mãe e que vinha munido de um objecto que julgou ser uma navalha, e por recear que pudesse novamente atacá-lo, sozinho ou por intermédio de outras pessoas, que poderiam estar escondidas.
XXIII. Logo, o Tribunal esteve bem ao decidir absolver o Arguido J. N. pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, do qual vinha acusado e pronunciado.
XXIV. Por último, pede o recorrente que o recorrido seja condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145º, nº 1, alínea) e nº 2, com referência à alínea h) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
XXV. Quanto a este ponto e por economia processual, reitera-se, e aqui se dá por reproduzido, tudo quanto se teve oportunidade de responder no recurso interposto pela Digna Magistrada do MP.
XXVI. Do transcrito e exposto, resulta não padecer a douta sentença recorrida de qualquer vício, por não violar qualquer norma quer de Direito substantivo, quer de Direito adjectivo, sendo portanto legal e justa porque espelha a verdade e a ela foi correctamente aplicada a Lei.

NESTES TERMOS,

E nos melhores de direito que V.ªs Ex.ªs Srs. Drs. Juízes
Desembargadores suprirão, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, ser a douta decisão integralmente confirmada, via pela qual se alcançará a acostumada
JUSTIÇA!”.
*
6. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal da Relação emitiu o seu douto parecer, nos termos que constam de fls. 797/798 Vº, pronunciando-se pela improcedência de ambos os recursos.
*
7. Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C.P.Penal (2), não foi apresentada qualquer resposta.
*
8. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
9. Efectuado exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois conhecer e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. É hoje pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2 (3).
*
1.1. Todavia, na situação em apreço, impõe-se apreciar, antes de mais, como questão prévia, da (in)admissibilidade do recurso interposto pelo arguido/demandado A. S., no segmento relativo à condenação fixada a título de indemnização civil ao demandante J. N..

Vejamos.
Como se alcança de fls. 320/323, o ofendido/assistente J. N. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido A. S., no qual, em síntese, alegando ter sofrido danos de natureza patrimonial e não patrimonial com a actuação daquele, relacionados com os factos atinentes ao crime de ofensa à integridade física – os quais descreve –, conclui peticionando a condenação do demandado a pagar-lhe a quantia de € 1.700,00 (mil e setecentos euros), acrescida de juros à taxa legal, “desde a citação”, até integral pagamento.
Outrossim, como se alcança de fls. 389/395, o mesmo ofendido/assistente J. N. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido A. S., no qual, em síntese, alegando ter sofrido danos de natureza não patrimonial com a actuação daquele, relacionados com os factos atinentes aos crimes de ameaça agravada – os quais descreve –, conclui peticionando a condenação do demandado a pagar-lhe a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), acrescida de juros à taxa legal, “desde a citação”, até integral pagamento.
E, como se viu, o tribunal a quo, no acórdão final, a esse propósito decidiu “Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente/demandante J. N. parcialmente procedente, e, em consequência condenar o arguido/demandado A. S. a pagar-lhe uma indemnização no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), a que acrescem juros de mora (cfr. artigos 804º, 805º, nº2, alínea b), do CC), vencidos e vincendos, que serão contabilizados a partir do momento da prolação desta decisão actualizadora – e não a partir da notificação do pedido de indemnização civil formulado – à taxa legal em vigor em cada momento, sendo de 4% a actualmente aplicável (cfr. Portaria nº 291/2003, de 08 de Abril, ex vi artigo 559º, do CC), por efeito do disposto nos artigos 805º, nº 3, 2ª parte, do CC (este interpretado restritivamente), e 806º, nº1, do mesmo diploma legal (vide Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2002, de 09 de Maio de 2002, publicado no Diário da República, I Série – A, nº146, de 27 de Junho de 2002), até efectivo e integral pagamento”.
Ora, por esta via recursória, defende o demandado/recorrente A. S. que a aludida quantia fixada a título indemnizatório é desproporcional e excessiva, pugnando pela sua redução para quantia nunca superior a € 500,00 (quinhentos euros).
Sucede, porém, que a parte do acórdão condenatório respeitante aos aludidos pedidos cíveis é irrecorrível.

Vejamos.
De acordo com o disposto no Artº 402º, nº 1, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, ressalvando, no entanto, o preceituado no artigo seguinte, segundo o qual o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, como sucede, nomeadamente, com a parte da decisão que se referir a matéria penal e a matéria civil.
Na presente situação, o arguido e demandado A. S. não limitou o recurso à parte criminal, insurgindo-se também, como se viu, contra o valor da indemnização civil - € 1.200,00 (mil e duzentos euros) - que foi condenado a pagar ao demandante J. N., considerando-o excessivo e desproporcional.
Ora, nessa matéria, o Artº 400º, nº 2, estabelece regras idênticas às do processo civil, estipulando que, sem prejuízo do disposto nos Artºs. 427º e 432º (inaplicáveis ao caso em análise), o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
O Artº 44º, nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), em matéria cível, fixou a alçada dos tribunais da relação em € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00.
Por conseguinte, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.

In casu, o valor de cada um dos pedidos de indemnização civil deduzidos pelo demandante é de € 1.700,00 (mil e setecentos euros) e de € 3.000,00 (três mil euros), respectivamente, num total de € 4.700,00 (quatro mil e setecentos euros), tendo o demandado sido condenado no pagamento àquele da quantia de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), sendo, pois, este o valor do respectivo decaimento.
Assim, torna-se manifesto e evidente que não se verificam as aludidas condições de recorribilidade, quer porque o valor do(s) pedido(s) é inferior ao da alçada do tribunal, recorrido, quer porque o valor do decaimento não é superior a € 2.500,00.
Consequentemente, o recurso sobre a decisão proferida em matéria cível não é admissível.
De acordo com o que se prescreve no Artº 420º, nº 1, al. b), o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do nº 2 do Artº 414º, onde se inclui a irrecorribilidade da decisão.
Impõe-se, pois, rejeitar o recurso do acórdão recorrido na parte atinente ao(s) pedido(s) de indemnização civil, por a decisão não ser recorrível, não se conhecendo dele, sem prejuízo, evidentemente, das consequências a extrair de uma eventual absolvição do arguido/demandado na parte criminal.
*
1.2. Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelos recorrentes, bem como a inadmissibilidade do recurso do arguido/demandado A. S. na parte relativa ao pedido de indemnização civil, são as seguintes as questões essenciais que importa decidir, algumas delas comuns a ambos os recorrentes, e que por isso serão analisadas conjuntamente:

Ministério Público:
- Saber se, em face da factualidade dada como provada, o arguido J. N. actuou, ou não, em legítima defesa e, concomitantemente, se deve ou não ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, p. e p. pelo Artº 145º, nº 1, al. a) e nº 2, do Código Penal, com referência à al. h), do nº 2, do Artº 132º do mesmo diploma legal, ou, caso assim não se entenda, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos Artºs. 14º, nº 3 e 143º do Código Penal.

Arguido A. O.
- Saber se é ou não válida a sua condenação pelo crime de ofensa à integridade física simples unicamente com base nas declarações de J. N.;
- Saber se existe erro de julgamento, nos termos do disposto no Artº 412º, nº 3, no que diz respeito aos factos dados como não provados nos pontos f), g) e h), e aos factos dados como provados nos pontos 27, 17 e 23 e, concomitantemente, se o arguido J. N. deve ser condenado pela prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, do qual o mesmo vinha pronunciado, e bem assim no pedido cível formulado nos autos;

Se assim se não entender
- Saber se, em face da factualidade dada como provada, o arguido J. N. actuou, ou não, em legítima defesa e, concomitantemente, se deve ou não ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo Artº 145º, nº 1, al. a) e nº 2, do Código Penal, com referência à al. h), do nº 2, do Artº 132º do mesmo diploma legal;
- Saber se se verificam os requisitos conducentes à aplicação do instituto da dispensa da pena (no que tange ao crime de ofensa à integridade física simples); e
- Saber se, em relação ao mesmo ilícito criminal, é excessiva a pena aplicada ao arguido.
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2. Mas, para uma melhor compreensão das questões colocadas pelos recorrentes, e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e não provados, e bem assim a fundamentação acerca de tal factualidade.

2.1. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
Da pronúncia
1. O arguido A. S. manteve um relacionamento amoroso com M. S., no âmbito da qual, no dia 22 de Novembro de 2002, nasceu A. M..
2. Este relacionamento amoroso terminou em dia que, em concreto, não foi possível apurar, mas situado em Novembro de 2016.
3. A aludida M. S., nessa mesma altura, iniciou um relacionamento amoroso com o arguido J. N., o que não foi do agrado do arguido A. S..
4. Nessa sequência, no dia 31 de Dezembro de 2016 ou no dia 01 de Janeiro de 2017, este arguido abordou A. C. – tio do arguido J. N. –, e, em tom sério, grave e consciente, disse-lhe “o teu sobrinho anda com a minha companheira, tenho que lhe dar uma coça”.
5. No dia 02 de Janeiro de 2017, o mencionado A. S. abordou J. F. – mãe do identificado J. N. – e, depois de dizer-lhe que o filho desta andava com a sua mulher e que lhe estava a tirar o amor da sua vida, afirmou “eu a ele vou-lhe fazer a folha”.
6. Desde então, o arguido A. S. passou a vigiar a residência do arguido J. N..
7. Aquele A. C., ao ouvir a expressão referida em 5., proferida pelo aludido A. S., no tom em que a proferiu, ficou receoso, temendo que este arguido viesse, num futuro próximo, a atentar contra a integridade física do seu sobrinho J. N..
8. Sabia o arguido A. S. que essa expressão era idónea a causar naquele A. C. receio pela integridade física do arguido J. N. – seu sobrinho –, como efectivamente causou.
9. O arguido A. S. proferiu as expressões referidas em 5. e 6. ao tio e à mãe do arguido J. N., respectivamente, com o objectivo, a plena consciência e certeza que as mesmas chegariam ao conhecimento deste último arguido, como aliás aconteceu, e que eram adequadas a causar-lhe receio pela sua integridade física.
10. O arguido A. S. actuou com o propósito, alcançado, de provocar medo e inquietação, atentando contra a liberdade de determinação do arguido J. N..
11. O identificado A. S. agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
*
12. No dia 06 de Janeiro de 2017, o arguido J. N., em hora que, em concreto, não foi possível determinar, mas situada no período compreendido entre as 20 horas e 30 minutos e as 21 horas, deslocou-se à residência da mencionada M. S., sita na Rua ..., nº .., da freguesia ... (actual União de Freguesias de ... e ...), do concelho de Amares, fazendo-se transportar no veículo automóvel da marca ‘Renault’, modelo ‘Clio’, com a matrícula DM (doravante, abreviadamente, DM), que estacionou junto dessa habitação, a uma distância de cerca 15m/20m, num acesso situado fora da faixa de rodagem da referida Rua.
13. Este arguido permaneceu na identificada moradia até cerca das 22 horas e 30 minutos / 22 horas e 45 minutos.
14. O arguido A. S., por sua vez, ao passar no seu veículo automóvel junto da habitação daquela M. S., avistou a viatura DM.
15. Nessas circunstâncias, o aludido A. S. prosseguiu a sua marcha até à sua residência, após o que dirigiu-se apeado até à habitação da identificada M. S..
16. Este arguido, uma vez aí chegado, decidiu permanecer no local à espera que o arguido J. N. saísse desta habitação, o que fez com o objectivo de emboscá-lo e agredi-lo fisicamente.
17. Nas circunstâncias de tempo e de lugar supra apontadas, o arguido A. S. estava munido com um objecto não concretamente identificado, mas em tudo idêntico a uma chave de fendas.
18. Entretanto, o arguido J. N. abandonou a residência daquela M. S., dirigiu-se para o veículo DM, abriu a porta desta viatura, colocou-se no lugar do condutor, fechou essa porta, inseriu a chave na ignição e accionou-a – com o que se acenderam as luzes de estrada –, após o que engrenou a marcha-atrás.
19. Quando assim se encontrava, o arguido J. N. foi abordado pelo arguido A. S. que, após abrir a porta do DM, segurou-a com a mão esquerda e posicionou-se entre essa porta e a entrada para o banco do condutor.
20. Acto contínuo, o arguido A. S., fazendo uso da sua mão direita, desferiu um murro na face do arguido J. N., causando-lhe dores físicas.
21. Após este murro, aquele A. S., dirigindo-se ao arguido J. N., disse-lhe “passa para o outro lado”, o que este último recusou.
22. Em seguida, o arguido A. S., com a sua mão direita, desferiu um novo murro na face do arguido J. N. com o que lhe causou mais dores físicas.
23. Nestas circunstâncias o aludido A. S. mantinha-se a empunhar na sua mão esquerda o objecto referido 17.
24. O arguido J. N., perante as descritas agressões, após aperceber-se da existência desse objecto e desconhecendo se o mencionado A. S. se fazia acompanhar, receou pela sua integridade física e mesmo pela sua própria vida, pelo que aproveitou-se do facto de a marcha-atrás estar engrenada para arrancar com o veículo DM, recuando num total de cerca de 5m.
25. O arguido A. S., por seu turno, assim que o arguido J. N. iniciou esse trajecto, agarrou-se à porta da viatura DM.
26. No entanto, no momento em que esta viatura saiu do acesso referido em 12. e entrou na faixa de rodagem da Rua ..., aquele A. S., devido ao desnível aí existente, acabou por cair ao chão, ficando deitado de barriga para baixo, altura em que a roda dianteira esquerda do veículo DM passou por cima da sua perna esquerda, em concreto do seu tornozelo, bem como pelo lado esquerdo do seu tronco e por cima do seu braço esquerdo.
27. Acto seguido, o arguido J. N. ausentou-se do local ao volante dessa viatura.
28. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido J. N., descrita em 26., o arguido A. S. sofreu, entre o mais: [i] diversas feridas na face e cabeça; [ii] escoriações nos 4 (quatro) membros; [iii], fractura dos arcos costais (nos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º anteriores direitos, nos 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º e 10º posteriores direitos, fractura da junção costocondral do 2º esquerdo, e 3º, 4º, 6º, 7º e 8º esquerdos); [iv] pneumotórax bilateral; [v] fractura dos ossos do nariz; [vi] fractura da apófise transversa de L3; e [vii] fractura do maléolo medial esquerdo.
29. Como resultado desse mesmo comportamento, o arguido A. S. sofreu ainda consequências permanentes que se traduzem em: [i] Ráquis: palpação da coluna lombar dolorosa; mobilidade lombal normal, mas dolorosa; ROT presentes e simétricos; sinal de Lasègue negativo bilateralmente; e [ii] Membro inferior esquerdo: cicatriz de 4cm x 3cm na face medial do tornozelo; palpação do tornozelo dolorosa; limitação da mobilidade do tornozelo (dorsiflexão e flexão plantar).
30. As lesões descritas em 28. implicaram 292 (duzentos e noventa e dois) dias para a consolidação médico-legal – fixável no dia 25 de Outubro de 2017 –, com afectação da capacidade de trabalho geral do arguido A. S. por 60 (sessenta) dias e sem afectação da sua capacidade para o trabalho profissional.
31. O arguido J. N., ao actuar do modo supra descrito, representou como possível atingir o arguido A. S., pelo menos, na sua integridade física, resultado com o qual se conformou.
32. Agiu este arguido A. S. com o propósito, concretizado, de molestar o corpo do arguido J. N., nos moldes supra descritos, causando-lhe, em consequência, dores físicas.
33. O arguido A. S., naquele dia 06 de Janeiro de 2017, actuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei.

Do pedido de indemnização civil do assistente/demandante A. S.

34. O assistente/demandante A. S., na sequência do sucedido junto da habitação da aludida M. S., descrito em 26., foi transportado pela Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Amares para o Hospital de Braga nesse mesmo dia 06 de Janeiro de 2017, onde foi assistido, recebendo tratamento médico e medicamentoso.
35. Este assistente/demandante permaneceu internado nessa unidade hospital durante 17 (dezassete) dias.
36. No dia 23 de Janeiro de 2017 obteve alta hospitalar, tendo, porém, continuado tratamento ambulatório e conservador no Centro de Saúde de Amares.
37. As lesões acima mencionadas, para além de 292 (duzentos e noventa e dois) dias de doença, referidos em 30., causaram forte abalo psíquico ao identificado A. S., quer pelas fortes e prolongadas dores físicas padecidas, quer pela angústia e medo sentidos.
38. Com efeito, este assistente/demandante sofreu um grande susto e chegou a temer pela sua vida, ficando em estado de choque e pânico.
39. Além disso, sentiu grande vergonha, embaraço e tristeza.
40. A roupa e calçado (botas) que usava nesse dia ficou rasgada e inutilizada em virtude do ocorrido.
41. Os óculos que, na altura, aquele A. S. trazia colocados, caíram no solo e quebraram-se, com o que ficaram completamente inutilizados, pelo que este assistente/demandante teve de desembolsar o montante de € 510,00 (quinhentos e dez euros), com IVA incluído, para aquisição de 2 (duas) novas lentes oftálmicas e respectiva armação.
42. O aludido A. S., como resultado do sucedido no dia 06 de Janeiro de 2017, descrito em 26., teve ainda que realizar diversas deslocações, designadamente, ao Centro de Saúde de Amares, ao Hospital de Braga, ao Gabinete Médico-Legal, à GNR e ao escritório da sua Ilustre Mandatária, seja para receber tratamento, seja para prestar declarações, seja para informar e ser informado.
43. Para esse efeito, este assistente/demandante utilizou o seu transporte particular, que foi conduzido por um seu familiar, em concreto, a sua filha E. A..
44. O assistente/demandante A. S. é pessoa respeitada e conhecida no lugar da sua residência.

Do pedido de indemnização civil do assistente/demandante J. N.

45. O arguido/demandado A. S. proferiu as expressões referidas em 4. e 5., junto de A. C. e de J. F. – tio e mãe do assistente/demandante J. N. –, respectivamente, com o objectivo de criar medo e receio a este último, pois que tinha a plena consciência de que devido à relação de proximidade – familiar – existente, tais expressões chegariam ao seu conhecimento, como chegaram.
46. Essas expressões foram acompanhadas da passagem frequente do identificado A. S. pela casa do assistente/demandante J. N., adequadas a criar-lhe medo e receio da probabilidade séria de concretização do mal que lhe era anunciado.
47. O mencionado J. N., em virtude dessas expressões, sentiu-se intimidado, amedrontado e experimentou um forte sentimento de insegurança, tendo receado pela sua integridade física.
48. Como resultado de tais expressões, este assistente/demandante ficou seriamente abalado e perturbado na sua paz, sossego e tranquilidade da vida quotidiana, pois que passou a ter medo de sair da sua habitação, sobretudo durante a noite, vivendo em permanente estado de ansiedade e sobressalto, com fobias e medo constantes, o que também foi sentido por aqueles que mais de perto conviviam consigo, pois que passou a ser uma pessoa mais acanhada e fechada e a ter uma atitude mais receosa e desconfiada em geral.
49. O estado de ansiedade supra referido provocou no identificado J. N. perda de sono, maior irritabilidade e dificuldades de concentração.
50. O aludido J. N., devido àquelas expressões, passou a evitar cruzar-se com o arguido/demandado A. S. e a frequentar os mesmos locais, designadamente, os cafés da aldeia.
51. Passou ainda a fazer outros caminhos para sair e regressar à sua residência.
52. Este assistente/demandante, à data dos factos sob discussão, exercia a profissão de vendedor na região do Minho, deslocando-se sozinho de automóvel.
53. O identificado J. N., desde que teve conhecimento das ameaças proferidas pelo mencionado A. S., passou a andar apavorado e a temer ser abordado por este último, vivendo com receio que viesse a concretizar os intentos anunciados, por si ou por interposta pessoa, pois que conhece-o bem há várias décadas.
54. Como resultado das agressões perpetradas pelo arguido/demandado A. S., o assistente/demandante J. N. sofreu mal-estar, para além das correspondentes dores físicas.
55. Sofreu, ainda, desgosto e vergonha pela forma como foi tratado.
56. Sentiu-se publicamente enxovalhado e sofreu sério abalo no seu sentimento de segurança pessoal.
57. Tais agressões causaram neste assistente/demandante uma forte perturbação, quer por nunca anteriormente haver experienciado uma situação semelhante, quer por o seu agressor ser uma pessoa que encontra – e vai continuar a encontrar – com regularidade, dado residir na mesma freguesia.
58. Esta perturbação foi e é sentida por aqueles que mais de perto convivem com o mencionado J. N..
59. Por força dessas mesmas agressões, este assistente/demandante teve de efectuar deslocações à GNR, ao Instituto de Medicina Legal junto do Hospital de Braga, à Polícia Judiciária e ao Tribunal, bem como de suportar perdas de tempo.
60. O aludido J. N. é pessoa educada, séria, calma e recatada, respeitadora e respeitada no meio social onde vive e está inserido.

Dos antecedentes criminais do arguido A. S.

61. O arguido A. S. foi já condenado:
a) No Processo Comum Singular nº 71/07.9TAAMR, do (extinto) do Tribunal Judicial da Comarca de Amares, por sentença proferida no dia 01 de Abril de 2009, transitada em julgado no dia 11 de Maio de 2009, pela prática, em Dezembro de 2001, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 4,00 (quatro euros), perfazendo o montante total de €720,00 (setecentos e vinte euros); posteriormente, foi tal pena declarada extinta pelo pagamento;
b) No Processo Comum Singular nº 472/09.8GAAMR, do (extinto) do Tribunal Judicial da Comarca de Amares, por sentença proferida no dia 26 de Abril de 2010, transitada em julgado no dia 27 de Maio de 2010, pela prática, em 17 de Setembro de 2009, de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período; posteriormente, foi tal pena declarada extinta nos termos do artigo 57º, do CP.

Dos antecedentes criminais do arguido J. N.
62. Do Certificado do Registo Criminal do arguido J. N. nada consta.
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Dos factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido A. S.
63. O arguido A. S. cresceu num núcleo familiar numeroso, constituído pelos pais e 9 (nove) irmãos, de humildes recursos socioeconómicos.
64. O arguido terminou o 4º ano de escolaridade e aos 10 (dez) anos iniciou a sua vida profissional, numa serração, junto do progenitor.
65. Aos 17 (dezassete) anos de idade deslocou-se para França, à época de forma ilegal, permanecendo nesse país durante 2 (dois) anos.
66. Quando regressou foi preso.
67. Seguiu-se o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório, em Angola, durante 2 (dois) anos, onde desempenhou funções de motorista.
68. O arguido emigrou em 1971 para o Canadá e permaneceu aí durante vários anos junto do agregado constituído pelo cônjuge e 3 (três) filhos.
69. Regressou em 1988, pelo facto de o seu cônjuge se encontrar gravemente doente, vindo a falecer.
70. Aquele A. S. ficou com os 3 (três) três filhos a cargo, na altura com 17 (dezassete), 13 (treze) e 3 (três) anos de idade, assumindo durante 2 (dois) anos todos os cuidados aos descendentes.
71. O arguido, perante a condição de viuvez refez a sua vida afectiva com aludida M. S., resultando desta união o nascimento da filha A. M., referida em 1.
72. Este relacionamento não foi bem aceite pelos filhos do arguido, que mantinham uma relação de conflito com a companheira do pai, situação que acelerou a autonomização dos mesmos e condicionou a relação entre estes e o mencionado A. S..
73. O arguido, em 1990, mediante uma condição económica favorecida, resultado do tempo de emigração no Canadá, decidiu investir na criação de uma empresa de confecção de vestuário, juntamente com um sócio.
74. No entanto, decorridos 16 (dezasseis) anos, acabou por encerrar essa confecção em virtude da situação financeira difícil com que se debatia.
75. Nessa altura vendeu alguns bens, designadamente a habitação onde vivia.
76. O relacionamento com aquela M. S. era instável devido aos problemas do foro mental de que esta padecia, que envolveu alguns internamentos no Departamento de Psiquiatria do Hospital de Braga.
77. A instabilidade da relação motivou a separação do casal, que ocorreu em Novembro de 2016, como referido em 2.
78. À data dos factos sob discussão nestes autos, o arguido encontrava-se separado da companheira M. S. e vivia numa habitação arrendada.
79. Em Março de 2017 voltou a integrar o núcleo familiar da companheira, para apoiar a filha menor A. M..
80. A identificada M. S., nessa altura, encontrava-se internada.
81. No presente momento o arguido conserva o agregado familiar referido em 79.
82. Este agregado habita o rés-do-chão de uma moradia, cujo arrendamento, no valor de € 175,00 (cento e setenta e cinco euros), por mês, é subsidiado em € 75,00 (setenta e cinco euros) pela Câmara Municipal de ….
83. O arguido recebe uma pensão de reforma no valor de € 432,00 (quatrocentos e trinta e dois euros).
84. Sazonalmente executa tarefas agrícolas, nomeadamente na colheita de fruta.
85. O aludido A. S. participa nas despesas da filha.
86. A sua companheira não beneficia de qualquer rendimento ou prestação social, pelo que subsiste com o apoio de familiares.
87. O arguido mantém actualmente com os 3 (três) filhos mais velhos uma relação de maior proximidade, destacando o apoio prestado pela filha E. A., com quem viveu durante 2 (dois) meses, após o sucedido no dia 06 de Janeiro de 2017.
88. Convive com frequência com as filhas mais velhas, residentes na mesma freguesia, e frequenta a casa destas aos fins-de-semana, onde faz as refeições.
89. Do contacto estabelecido pela DGRSP com a filha E. A., esta sinalizou que o arguido nunca assumiu atitudes agressivas no seio familiar ou contexto social.
90. O mencionado A. S. ocupa o tempo livre disponível no acompanhamento à filha A. M., de 17 (dezassete) anos de idade, estudante no 12º ano de escolaridade, em Braga.
91. O arguido ocupa ainda o tempo livre numa oficina de mecânica de um amigo, prestando-lhe apoio em tarefas indiferenciadas.
92. Socialmente é reconhecido como pessoa bem inserida.
93. O arguido contextualiza os presentes autos num período de instabilidade pessoal e afectiva, posicionando-se na situação de vítima.
94. Não indicou repercussões significativas no seu quotidiano decorrentes destes autos, a não ser algum constrangimento pessoal pela condição de arguido.
95. Em abstracto e perante a problemática criminal em causa, o arguido manifesta adequadas capacidades para reconhecer a ilicitude e formular juízos críticos, bem como sobre os potenciais danos.

Dos factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido J. N.
96. O arguido nasceu em Angola, onde os pais residiam desde há alguns anos e onde o progenitor desempenhava actividade profissional como comerciante de ferragens, tendo falecido em 2004.
97. A família, constituída por mais 2 (duas) irmãs do arguido, regressou a Portugal em 1974, contava aquele J. N. com 4 (quatro) anos de idade.
98. Durante o seu percurso escolar registou uma reprovação no 9º ano de escolaridade.
99. O arguido desistiu dos estudos aos 17 (dezassete) anos de idade, quando frequentava o 11º ano de escolaridade.
100. Mais tarde, no ano de 2008, através de um curso profissional, obteve a equivalência ao 12º ano de escolaridade.
101. Após o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório em Braga, no Regimento de Cavalaria nº 6, o aludido J. N. iniciou actividade profissional na área da tecelagem, onde se manteve durante 1 (um) ano.
102. A seguir ingressou na empresa de construção civil “…”, onde desempenhou as funções de apontador/medidor durante 7 (sete) anos.
103. Abandonou esta actividade profissional por ter agravado os níveis de consumo de substâncias aditivas, sinalizando o primeiro contacto com a substância de haxixe, por volta dos 16 (dezasseis) / 17 (dezassete) anos de idade.
104. Trabalhou depois na empresa “G.”, em Braga, e 2 (dois) anos na Alemanha, onde trabalhou numa tipografia, mantendo o comportamento aditivo nesse período.
105. Coabitou na Alemanha com uma namorada, natural de Portimão, regressando o casal a esta cidade, onde fixou residência.
106. Aquele J. N. conseguiu trabalho numa loja de venda a retalho, onde trabalhou durante alguns meses, mas voltou a Amares, após uma nova recaída no comportamento aditivo.
107. Entretanto ingressou na Comunidade Terapêutica “…”, em … – Braga, completando o respectivo programa de tratamento em 2008, aproximadamente.
108. Desde então mantém-se abstinente do consumo de drogas.
109. O arguido retomou actividade profissional, regressando à empresa de ferragens “W, Lda.”, onde já antes tinha laborado.
110. Devido à pandemia de Covid-19, o aludido J. N. perdeu este emprego, o que sucedeu há cerca de 2 (dois) meses.
111. Neste momento aufere o subsídio de desemprego, no valor mensal de € 451,00 (quatrocentos e cinquenta e um euros).
112. Encontra-se inscrito no “IEFP – Instituto do Emprego e Formação Profissional”.
113. Manteve uma relação afectiva com a identificada M. S. que terminou após os factos dos presentes autos.
114. A essa data o arguido apresentava a mesma situação sociofamiliar que actualmente, residindo com a sua progenitora J. F., numa casa pertença desta.
115. Mantém um bom relacionamento com a sua progenitora, bem como com as 2 (duas) irmãs, com quem convive regularmente.
116. Na altura dos factos de que ora se cuida, os rendimentos do agregado do arguido eram constituídos pelo salário bruto que auferia, no valor de € 680,00 (seiscentos euros), por mês, e pela pensão de viuvez daquela J. F., no valor mensal de € 502,00 (quinhentos e dois euros).
117. O arguido assumia o pagamento das despesas referentes à mensalidade do consumo da luz e do contrato da “Telecomunicações” (TV e Telefone), no valor de € 100,00 (cem euros), acrescidas da prestação de um empréstimo contraído para obras de recuperação da habitação, de € 280,00 (duzentos e oitenta euros) mensais, sendo as restantes despesas assumidas pela sua progenitora.
118. Presentemente, devido à sua situação de desemprego e à pandemia de Covid-19, requereu e beneficia de uma moratória no pagamento da prestação respeitante ao empréstimo referido em 117.
119. O mencionado J. N. mantém uma relação afectiva de namoro, desde há cerca de 2 (dois) anos, elemento com quem passa grande parte do seu tempo livre.
120. Foi descrito pelo seu anterior colega de trabalho e pelo seu ex-patrão como sendo uma pessoa pacífica no relacionamento com outros colegas e que demonstra uma atitude responsável nas funções que desempenha.
121. Em contexto familiar, o arguido foi também caracterizado como um indivíduo pacato e solidário, constituindo-se como um forte apoio à sua progenitora por apresentar maior disponibilidade que as irmãs.
122. No meio de residência a família beneficia de uma imagem social favorável, que abrange o arguido.
123. É sinalizado como pessoa discreta e reservada.
124. No entanto, os factos dos presentes autos foram comentados na freguesia, causando estranheza o envolvimento do arguido, por ser associado a um comportamento calmo e cordial com os demais.
125. Decorrente do envolvimento no presente processo judicial, o arguido J. N. não sinaliza alterações objectivas no seu contexto de vida.
126. No entanto, em termos emocionais, o arguido exprime sentimentos de insegurança e constrangimento.
127. Em termos abstractos, perante a problemática criminal em causa, o arguido verbalizou um discurso consciente da ilicitude e dos potenciais danos para terceiros.
128. Perante este processo-crime e por ser consciente da sua gravidade, manifestou receio face à decisão do Tribunal.”.
*
2.2. Considerou não provados:
“a) que o relacionamento amoroso entre o arguido A. S. e M. S., referido sob o nº 1, dos factos provados, terminasse no ano de 2015;
b) que na ocasião referida sob o nº 4, da factualidade assente, o arguido A. S., referindo-se ao arguido J. N., também dissesse a A. C. que “eu já o ajudei em tempos”.
c) que, como resultado das expressões referidas sob os nºs 4 e 5, da factualidade provada, o arguido J. N. passasse a recear pela sua própria vida;
d) que nas circunstâncias de tempo e de espaço referidas sob o nº 12, dos factos provados, este arguido permanecesse até às 23 horas na residência daquela M. S.;
e) que nas circunstâncias espácio-temporais referidas sob o nº 19, da factualidade assente, o arguido A. S. introduzisse a sua cabeça no interior do veículo DM;
f) que na sequência do que se descreveu sob o nº 26, da factualidade provada, o arguido J. N., ao ver o arguido A. S. prostrado no chão, iniciasse a marcha do veículo DM na direcção deste arguido, passando a referida viatura por cima do seu corpo, atingindo-o na cabeça, tronco, pernas e braços;
g) que o arguido J. N., ao actuar deste modo, agisse com o propósito de tirar a vida ao arguido A. S., ciente que utilizava um veículo automóvel, cuja característica letal não ignorava e que se tratava de um meio particularmente perigoso, resultado com o qual se conformou e quis, só o não logrando obter por este último ter sido atempadamente socorrido e, consequentemente, por circunstâncias alheias à sua vontade;
h) que o arguido J. N., nas circunstâncias descritas em g), actuasse de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei;
i) que desde o sucedido naquele dia 06 de Janeiro de 2017, o assistente/demandante A. S. não mais conseguisse ter noites de descanso tranquilo, acordando em sobressalto, com a imagem do veículo DM conduzido pelo arguido/demandado J. N. sobre si;
j) que o vestuário que o assistente/demandante A. S. trazia nesse dia consistisse num casaco de cabedal, numa camisa e numas calças;
k) que o valor destas peças de vestuário e calçado, àquela data, se computasse em quantia nunca inferior a € 200,00 (duzentos euros);
l) que na sequência da conduta do arguido/demandado J. N., o assistente/demandante A. S. também sofresse diversas lesões ao nível dentário, tendo ficado com 2 (dois) dentes partidos;
m) que a reparação desses 2 (dois) dentes ascenda à quantia de € 4.000,00 (quatro mil euros);
n) que nas deslocações referidas sob o nº 42, dos factos provados, o assistente/demandante A. S. despendesse quantia nunca inferior a € 200,00 (duzentos euros);
o) que este assistente/demandante fosse pessoa séria, honrada, humilde, recatada e (sobejamente) conceituada no lugar da sua residência e fora dele e que sempre tivesse um bom comportamento moral e social;
p) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir.”.
*
2.3. E motivou essa decisão de facto nos seguintes moldes (transcrição):

“A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do CPP), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do mesmo diploma legal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova.
Importa realçar, desde já, que nesta apreciação não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Com efeito, a convicção do tribunal não se funda apenas nos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, linguagem não verbal, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados e coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência dessas mesmas declarações e depoimentos.
Como, aliás, se explicita no Acórdão da Relação de Évora, de 24 de Maio de 2018, (…) segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14 (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº 266/14.9GAVNO.E1, relator MARTINHO CARDOSO).
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros, mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal, que não se confunde, naturalmente, com arbitrariedade.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório (vide CAVALEIRO FERREIRA, Curso de Processo Penal, 1º Volume, 1986, p.211).
Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom-senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou, nas palavras de CASTANHEIRA NEVES da liberdade para a objectividade (vide Revista do Ministério Público, 19º-40).
Ainda a este propósito, afirma FIGUEIREDO DIAS que (…) [u]ma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo – sublinhado nosso (vide Direito Processual Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1981, p. 202).
Tecidas estas prévias considerações, o tribunal atendeu, desde logo, aos documentos juntos aos autos e aos dados objectivos que dos mesmos é possível extrair, em concreto:
[i] ao auto de denúncia de fls.31-32, elaborado por A. O., militar da GNR do Posto Territorial de Amares, em que figura como denunciante/vítima o, aqui, arguido J. N..
Da análise desse auto resulta que este arguido compareceu naquele Posto da GNR no dia 06 de Janeiro de 2017, pelas 23 horas e 42 minutos, relatando ter sido vítima de agressão física perpetrada pelo, aqui, arguido A. S., que estava munido de arma branca, em concreto, faca de abertura automática ou faca de ponta e mola (cfr. o campo destinado à indicação do Modus Operandi do Suspeito).
O auto em apreço foi complementado pela informação de fls.490 – junta em sede de audiência de julgamento – onde se atesta que (…) compareceu neste Posto Sr. J. [o, aqui, arguido J. N.] para formalizar queixa por agressões e ameaças (…) tendo sido informado pelo Sr. J. que estava com receio que o suspeito [o, aqui, arguido A. S.] pudesse estar caído junto da rotunda (…).
[ii] ao auto de denúncia de fls.8-9, elaborado no Posto Territorial da GNR de Amares, em que figura como denunciante E. A. que identificou como vítima o seu progenitor, aqui, arguido A. S. e como denunciado o, aqui, arguido J. N..
Deste auto resulta que a denúncia em apreço foi apresentada no dia 09 de Janeiro de 2017 e reporta-se a factos ocorridos naquele dia 06 de Janeiro de 2017.
[iii] à informação de serviço da Polícia Judiciária – Departamento de Investigação Criminal de Braga (doravante, abreviadamente, PJ) e ao relato de diligência externa realizada por esta, a fls.43-44 e a fls.52-53, respectivamente, de onde se extrai, além do mais, que o, aqui, arguido A. S. deu entrada no Hospital de Braga no referido dia 06 de Janeiro de 2017, pelas 23 horas e 53 minutos, (…) pelo motivo de “acidente de viação – atropelamento” (…) encontrando-se actualmente internado na Unidade de Cuidados Intermédios (…) o paciente (…) apresenta algumas melhorias, em relação ao estado de saúde que apresentava à entrada no serviço de urgências o que causará que fique internado vários dias (…) consegue falar, embora que com bastantes limitações (…) Do contacto pessoal com o A. S., verificou-se que esta evidenciava bastantes dificuldades respiratórias em expressar-se oralmente, encontrando-se ainda “entubado” (…).
[iv] à ficha de registo automóvel, referente ao veículo automóvel, ligeiro de mercadorias, da marca ‘Renault’ e modelo ‘Clio’, com a matrícula DM, a fls. 55-56 – tratando-se da viatura que o arguido J. N. tripulava naquele dia 06 de Janeiro de 2017.
*
Assumiram, também, relevância os relatórios periciais de avaliação do dano corporal, a fls.196-197 (quanto ao arguido J. N.) e a fls.231-233 (quanto ao arguido A. S. – cfr., ainda, quanto a este, os relatórios intercalares de fls.25-28, fls.211-213 e fls.221-223).
O primeiro desses relatórios respeita ao exame realizado no dia 09 de Janeiro de 2017, concluindo-se que (…) [n]a ausência de lesões o perito não tem elementos para se pronunciar medico-legalmente sobre as consequências da eventual ofensa à integridade física.
No segundo descrevem-se quais as lesões corporais que o arguido A. S. evidenciava, quais as sequelas de que ficou a padecer, bem como o respectivo período de doença que adveio para si.
Da sua análise resulta que este arguido, quando deu entrada no Hospital de Braga (no dia 06 de Janeiro de 2017), apresentava: [i] diversas feridas na face e cabeça; [ii] escoriações nos 4 (quatro) membros; [iii], fractura dos arcos costais (nos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º anteriores direitos, nos 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º e 10º posteriores direitos, fractura da junção costocondral do 2º esquerdo, e 3º, 4º, 6º, 7º e 8º esquerdos); [iv] pneumotórax bilateral; [v] fractura dos ossos do nariz; [vi] fractura da apófise transversa de L3; e [vii] fractura do maléolo medial esquerdo.
Em virtude dessas lesões, o mesmo arguido apresenta as seguintes sequelas: [i]Ráquis (trata-se da espinha dorsal ou coluna vertebral – estrutura formada por ossos, cartilagens e fibras que nos humanos estende-se desde a cabeça até à pélvis, permitindo que o indivíduo se mantenha de pé e possa realizar diversos movimentos): palpação da coluna lombar dolorosa; mobilidade lombal normal, mas dolorosa; ROT presentes e simétricos; sinal de Lasègue negativo bilateralmente; e [ii] Membro inferior esquerdo: cicatriz de 4cm x 3cm na face medial do tornozelo; palpação do tornozelo dolorosa; limitação da mobilidade do tornozelo (dorsiflexão e flexão plantar).
Aquelas lesões e sequelas implicaram 292 (duzentos e noventa e dois) dias para a consolidação médico-legal – fixável no dia 25 de Outubro de 2017 –, com afectação da capacidade de trabalho geral do mencionado A. S. por 60 (sessenta) dias e sem afectação da sua capacidade para o trabalho profissional.
Os dados que se retiram do relatório pericial ora em apreço compatibilizam-se com o relatório de urgência de fls.54 e com as informações clínicas de fls.87-98/59-80, fls.217-218 e fls.226-227, tratando-se de elementos remetidos pelo Hospital de Braga, que também foram considerados pelo tribunal.
Atendeu-se, igualmente, às fotografias juntas em sede de audiência de julgamento, a fls. 611-614, e que retratam o estado físico que apresentava o aludido A. S. no dia seguinte aos acontecimentos que o envolveram com o arguido J. N..
*
Por último, atentou-se no relatório do exame pericial realizado pela PJ ao veículo DM, a fls. 121-125, em particular, as fotografias nºs 2 e 6 a 9, inclusive – que retratam a parte lateral esquerda desta viatura, sendo perceptível uma amolgadela na parte inferior da porta de acesso ao condutor –, nº 10 – que evidencia o empeno dessa mesma porta –, nº 11 – respeitante à zona inferior do veículo em questão por baixo da porta do condutor, sendo visível a amolgadela supra referida –, nº 13 – que mostra uma perspectiva da parte inferior do DM, não sendo visível nessa foto qualquer marca de limpeza –, nºs 14 a 16, inclusive – que também respeitam à parte inferior dessa viatura e exibem uma marca de limpeza no resguardo, provocada pelo contacto com outra superfície –, nº 17 – que retrata a mesma parte inferior, não se visualizando nenhuma outra marca para além daquela retratada nas fotos nºs 14 a 16, inclusive – e nºs 22 a 26, inclusive – que permitem percepcionar o local onde se desenrolaram os factos do dia 06 de Janeiro de 2017.
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As perícias médico-legais e da PJ supra identificadas não foram postas em causa em nenhum momento processual, designadamente, em sede de audiência de julgamento, atenta a idoneidade, isenção e conhecimento técnico que se reconhece a quem as realizou e elaborou os relatórios correspondentes.
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Os elementos documentais e periciais acima enunciados foram conjugados com a apreciação crítica das declarações prestadas pelos arguidos A. S. e J. N. e do depoimento das testemunhas P. J. – que reside a cerca de 200m/300m daquele A. S., conhecendo este J. N. por ser da mesma freguesia –, M. S. – que é actualmente companheira do aludido A. S. e ex-companheira do mencionado J. N. –, R. F. – que, à data dos factos, residia com aquela M. S., conhecendo ambos os arguidos por esse motivo –, E. A. – filha do identificado A. S. –, S. S. – ex-patrão daquele J. N. –, J. F. – progenitora deste arguido –, A. C. – tio do mesmo arguido –, A. F. – que conhece os aludidos A. S. e J. N. por serem da mesma freguesia –, M. T. – inspector da PJ –, K. S. – sobrinha do mencionado A. S. –, M. C. – irmã deste arguido –, F. A. – cunhado do mesmo arguido –, C. A. – filha do identificado A. S. –, E. G. – que é socorrista da Cruz Vermelha Portuguesa na delegação de Amares –, A. O. – militar da GNR do Posto Territorial de Amares – e J. B. – Presidente da Junta de Freguesia ....
A convicção do tribunal formou-se em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que transpareceram em audiência dessas mesmas declarações e depoimentos.
O relato das testemunhas A. C. e J. F. assumiu fulcral relevância na dilucidação do sucedido nos dias que antecederam os acontecimentos de 06 de Janeiro de 2017.
A primeira testemunha, de forma espontânea, serena e sincera, afirmou ter sido procurada pelo arguido A. S., devido à amizade existente entre ambos, e que este, depois de contar-lhe que o mencionado J. N. andava com a sua companheira, disse “como teu amigo vou-te avisar que vou-lhe bater, vou-lhe dar uma coça”.
Como esclareceu, atento o modo como o aludido A. S. se expressou e proferiu tais palavras, acreditou que este, efectivamente, iria agredir o seu sobrinho, razão pela qual, por ter receio que essa agressão física se concretizasse, pediu à sua esposa para avisar a irmã – aquela J. F..
Esta testemunha asseverou, ainda, que o identificado A. S. aludiu sempre à sua ex-companheira M. S., não tendo feito qualquer referência à filha que nasceu do relacionamento amoroso mantido entre ambos até Novembro de 2016.
A progenitora do arguido J. N. referiu que em finais de 2016/inícios de 2017, mais concretamente, numa segunda-feira, após uma missa, foi abordada pelo mencionado A. S., que a questionou se “sabias que o teu filho anda com a minha mulher?”.
Em face da resposta negativa que obteve, este arguido disse à testemunha que apesar de estar separado da sua ex-companheira há cerca de 1 (um) ano ainda a amava e que “o teu filho não devia ter feito isso”, mais dizendo, “eu a ele vou-lhe fazer a folha”.
Estas palavas foram proferidas pelo mencionado A. S. com “cara de mau”, como descreveu a identificada J. F., o que motivou que ficasse seriamente convencida que este arguido pretendia bater no seu filho.
Tal facto determinou que tratasse de avisar imediatamente aquele J. N., uma vez que ficou bastante perturbada.
A mesma testemunha acrescentou que, no mesmo dia em que o aludido A. S. falou consigo, recebeu um telefonema da sua irmã – que é casada com a testemunha A. C. –, que após lhe relatar o que se havia passado entre o marido e o identificado arguido, pediu que avisasse o sobrinho, uma vez que “eles são muito perigosos”, o que, nas palavras da mencionada J. F., “ainda me pôs mais doente”.
Esta testemunha, como esclareceu, deu conhecimento ao filho desses 2 (dois) episódios de ameaças e, apesar de este dizer-lhe “não te aflijas mãe que vai tudo correr bem”, pôde observar que “ficou diferente”, pois que passou a comer mal, deixou de sair à noite – sendo que antes era normal ir tomar café perto de casa – e quando saía fazia-o de carro.
Aquela J. F. foi rigorosa na descrição dos factos que a envolveram e o seu depoimento pautou-se por escorreito, ponderado, sequencial, linear e coeso.
Sem prejuízo de ser a progenitora do arguido J. N. e de, por força dessa relação de parentesco, poder ter interesse (in)directo no desfecho do processo – o que determinou que se tivessem especiais cautelas na apreciação do seu depoimento –, a verdade é que foi séria, honesta e verosímil no seu relato, além de que a descrição que fez do acontecido mostra-se concordante com a possibilidade de ocorrência de factos da natureza daqueles que aludiu e que se mostram alegados na decisão instrutória de pronúncia.
Além disso, não entrou em contradição e destrinçou adequadamente os factos que conhecia, por tê-los presenciado, daqueles que desconhecia.
Acresce que as referências que fez ao modo como se comportou o arguido A. S., designadamente, o facto de mostrar-se irritado, o tom sério e grave das ameaças proferidas e a referência à sua ex-companheira – sem qualquer menção à filha que nasceu do relacionamento mantido com esta –, que, não obstante a separação, tratou por “minha mulher”, são bastante similares àquelas apontadas pela testemunha A. C..
Na realidade, do confronto do depoimento prestado por esta testemunha com o depoimento da testemunha J. F. resultam inequívocas semelhanças e correspondências de conteúdo no que concerne à postura e ao discurso do identificado A. S..
Complementaram-se, pois, entre si, seja individual, seja conjuntamente.
O mesmo já não se pode afirmar em relação às declarações que este A. S. prestou a respeito e que, segundo consideramos, se revelaram parciais, subjectivas e contraditórias.
Este arguido, apesar de confirmar que teve um relacionamento amoroso com a testemunha M. S., que se iniciou em 1990/1991 e que terminou em Novembro de 2016, no âmbito do qual nasceu uma filha, pretendeu convencer o tribunal não ter ficado ressentido quando soube que a sua ex-companheira, nesse mesmo mês e ano, começou uma nova relação com o mencionado J. N..
Não obstante afirmar que “tinha que aceitar” essa situação e que aquela M. S. tinha que “fazer a vida dela”, o conformismo que expressou não foi convincente, sobretudo se tomarmos em consideração que estava em causa um relacionamento de cerca de 25 (vinte e cinco) anos de duração, do qual resultou descendência.
Na verdade, o aludido A. S. foi substituído e a sua substituição foi imediata.
Esta circunstância, à luz do que ditam os juízos da experiência comum aqui aplicáveis e da normalidade do acontecer, é susceptível de causar desagrado e irritação.
No caso vertente, este arguido procurou menorizar o impacto que a notícia do novo relacionamento da sua ex-companheira (agora, actual companheira) teve em si, ao referir que ficou chateado por ser amigo do aludido J. N. e por não ser esta a forma de um amigo tratar outro amigo.
Contudo, essa desvalorização não se coaduna com a postura que teve junto da progenitora e do tio daquele J. N..
Com efeito, se o identificado A. S. tivesse ficado apenas magoado com o seu amigo J. N., por se sentir traído na sua amizade, teria procurado este último e manifestado essa sua desaprovação. Ou, então, abordaria as testemunhas J. F. e A. C. e expressaria a sua consternação.
No entanto, não foi o que aconteceu, pois que junto de ambos tornou evidente que não aceitava o fim do seu relacionamento e que a identificada M. S. ainda era a sua mulher. E por esse motivo é que ameaçou que iria bater no “amigo” J. N. – o amante –, o que fez em tom sério e inequívoco, de tal forma que lhes causou preocupação por recearem que concretizasse, realmente, o mal que lhes anunciava.
Se fosse de outro modo, se se tratasse de um mero “desabafo”, como desvalorizou o aludido A. S., a reacção daqueles J. F. e A. C. teria sido (necessariamente) diferente, designadamente, menosprezariam o que lhes havia sido dito, nada revelariam ao visado e não se sentiriam inquietos.
Ora, o que se verificou na realidade foi bem diferente e afectou os envolvidos, em particular, o identificado J. N..
Em face do exposto, ficamos convencidos que o arguido A. S. procurou trazer a julgamento uma versão dos factos que favorecesse a sua posição, ou melhor, que menos o desfavorecesse.
Norteou-se, pois, pela selectividade, não tendo convencido o tribunal, sobretudo no confronto com o depoimento das testemunhas J. F. e A. C., que se afiguraram honestas e consistentes no relato que prestaram.
A este propósito importa, ainda, referir que estas testemunhas, perante as ameaças proferidas pelo arguido A. S., ficaram convencidas que este pretendia “bater”, isto é, agredir fisicamente o arguido J. N. – aliás, a expressão que dirigiu àquele A. C. é explícita –, já não atentar contra a sua vida.
Daqui se infere que foi precisamente isso – e não coisa diferente – o que transmitiram ao aludido J. N..
Em relação ao sucedido no dia 06 de Janeiro de 2017, mais concretamente, ao confronto que opôs os arguidos nas proximidades da habitação da mencionada M. S., resulta da mobilização probatória que não foi presenciado por mais ninguém, razão pela qual as declarações que prestaram assumiram-se cruciais.
As versões que apresentaram não se mostraram, porém, consensuais pois que nelas ambos referiram assumir a posição de vítima.
O arguido A. S., uma vez mais, procurou atenuar as circunstâncias em que se deslocou àquela habitação.
Com efeito, tal com o fez em relação às ameaças proferidas junto das testemunhas J. F. e A. C., afirmou que essa deslocação não foi motivada pelo novo relacionamento da ex-companheira M. S., mas pelo facto de estar preocupado com a sua filha – que vivia com a progenitora –, pois que esta verbalizara não gostar do mencionado J. N. e pretendia “falar com ele”, “tirar com ele umas coisas a limpo”, “unicamente falar da minha filha”, dizer-lhe “põe-te fino, se alguma coisa acontece à minha filha eu trato de ti”, uma vez que “de resto não tinha nada que falar com ele”.
Mais afirmou ter decidido ficar no exterior à espera do identificado J. N., junto a uma carrinha e de modo a não ser visto por este último.
No entanto, o arguido A. S. não foi capaz de concretizar nenhuma situação que tivesse presenciado ou que lhe tivesse sido relatada pela filha ou por outrem e que determinasse a preocupação que manifestou ao tribunal, bem como justificasse a sua decisão de numa noite de Inverno, já depois das 22 horas e 30 minutos, procurar abordar aquele J. N. no exterior da residência da ex-companheira M. S..
Tampouco apresentou um argumento que se tivesse por minimamente sensato e que permitisse compreender por que razão optou por manter-se no exterior dessa habitação, oculto, à espera do aludido J. N..
Importa, aqui, ter presente que o arguido A. S. referiu conhecer este J. N. há muitos anos e que não obstante o fim do relacionamento amoroso com a mencionada M. S. manteve com ela uma boa relação por causa da filha que tinham em comum.
Ora, a ser da forma que explicou, não estava em causa nenhum assunto urgente, que tivesse de ser tratado de imediato, pelo que sempre poderia procurar aquele J. N. à luz do dia. Mas ainda que assim não fosse, não se compreende a razão pela qual decidiu aguardar no exterior e estar escondido, pois que se se tratava de algo relacionado com a sua filha sempre seria mais avisado tratar dessa questão na presença da progenitora e desse J. N., tanto mais que se relacionava com ambos.
A actuação do arguido A. S. não se revelou, portanto, consentânea com o propósito que relatou e que o moveu a deslocar-se naquele dia 06 de Janeiro de 2017 até à residência da ex-companheira.
Se, porém, conjugarmos o comportamento adoptado com as ameaças que anunciou dias antes às testemunhas J. F. e A. C., a actuação de que ora se cuida ganha evidente sentido.
Tratou-se, efectivamente, de uma “emboscada” – como se afirma na pronúncia –, com o propósito, aliás, concretizado, de agredir fisicamente o identificado J. N., por causa do relacionamento que iniciou com a aludida M. S. e que muito lhe desagradava, tanto mais que o considerava seu amigo.
Este arguido procurou igualmente desvalorizar a sua participação nos acontecimentos ora sob censura no momento em que surpreendeu aquele J. N., uma vez que negou ter-lhe desferido um murro na face, afirmando antes que se limitou a tocar-lhe na cara com as costas da mão, uma única vez, sendo certo que essa asserção também não se concilia com as declarações que prestou em sede de inquérito (cfr. fls.102-105 [anteriores fls.60-63] por remissão de fls.142-144, em concreto fls.103, linha 24), onde refere ter-lhe desferido uma bofetada (um “mosquete”, nas suas palavras).
Quanto ao que sucedeu nos momentos seguintes a essa agressão, o discurso do aludido A. S. pautou-se por confuso, pouco rigoroso e até contraditório com as declarações prestadas na fase investigatória, sem prejuízo de termos consciência que se tratou de um evento súbito, dinâmico e que se desenrolou rapidamente, susceptível de gerar imprecisões nos discursos, não sendo de exigir aos intervenientes que relatem o desenvolvimento integral dos factos com uma precisão matemática e milimétrica.
Tendo em consideração este condicionalismo, verificamos que o arguido A. S., em julgamento, afirmou que: [i] aquele J. N. engrenou a marcha-atrás do veículo DM e arrancou; [ii] o aludido A. S., que estava posicionado entre a porta e o lugar do condutor, foi arrastado por essa porta, que agarrou; [iii] devido ao desnível existente entre a faixa de rodagem da Rua ... e o acesso onde estava estacionada tal viatura, o mesmo arguido desequilibrou-se e caiu; [iv] nessa altura a porta da viatura passou-lhe por cima, sem lhe tocar, não tendo sentido qualquer impacto provocado pela mesma; [v] de seguida sentiu a roda dianteira esquerda do veículo DM passar-lhe por cima da perna esquerda, desconhecendo se também lhe passou por cima do braço esquerdo; [vi] o identificado A. S. ficou caído no meio da estrada, de barriga para baixo, com a cabeça voltada para a rotunda (Praceta) do autarca, também vulgarmente conhecida por rotunda dos calhaus (cfr. foto nº 22, a fls. 124, do relatório pericial elaborado pela PJ e já supra melhor identificado); [vii] o veículo DM recuou ainda cerca de 10m – 15m, após o que arrancou “direitinho” àquele A. S., sem se desviar, embora dispusesse de espaço para tal; [viii] nestas circunstâncias, as rodas do lado esquerdo deste veículo passaram ao longo e por cima do lado esquerdo do corpo deste A. S. (com excepção da cabeça); [ix] em momento algum foi colhido pelo para-choques frontal dessa viatura; [x] desconhece em que momento e como é que a porta do lado do condutor se fechou; [xi] não se recorda se as luzes deste veículo estavam acesas; e [xii] o identificado J. N., depois de arrancar em frente, não deteve a marcha dessa viatura.
Em face da descrição efectuada concluiu que o aludido J. N. “fez de propósito para me apanhar”.
Na fase de inquérito extraiu a mesma ilação, mas relatou o sucedido em termos não inteiramente coincidentes, porquanto: [i] na manobra de marcha-atrás, quando caiu, a roda dianteira esquerda do veículo DM também passou por cima do seu braço esquerdo – aspecto que manifestou desconhecer em julgamento; [ii] quanto esta viatura avançou na sua direcção, passou por cima do seu corpo, embora dispusesse de espaço para desviar-se, atingindo-o não só nos braços e pernas, como também na cabeça – em julgamento reconheceu que se lhe passasse por cima da cabeça certamente que lhe provocaria a morte; ainda nesta fase do julgamento mencionou ter sido atingido apenas no lado esquerdo (braços, pernas e também tronco) do seu corpo; [iii] nestas circunstâncias andou “uns segundos aos rebolões debaixo do carro” – em julgamento declarou que esta afirmação não retratava a realidade do aconteceu, pois que manteve-se no meio da faixa de rodagem.
Do exposto resulta que o arguido A. S., com maior ou menor pormenor, de forma total ou apenas parcialmente coincidente com o que declarou no inquérito, aludiu, no essencial, a 2 (dois) momentos distintos em que terá sido atingido pelo veículo DM – quando esta viatura realizou a manobra de marcha-atrás e, posteriormente, seguiu em frente –, sendo que no segundo desses momentos sustentou que o veículo em causa dispunha de espaço suficiente para evitar passar-lhe por cima, o que não aconteceu por ser propósito do arguido J. N. tirar-lhe a vida.
Já este último arguido negou frontalmente a imputação dos factos que lhe é efectuada, apresentando uma versão com contornos distintos, na medida em que relatou que quando se encontrava dentro da viatura DM – tratava-se de um veículo de serviço que lhe estava afecto por exercer a actividade de vendedor –, já depois de ter fechado a porta, accionado a ignição – que fez com que se acendessem automaticamente as luzes de estrada – e engrenado a marcha atrás, o identificado A. S. abriu essa porta, podendo constatar que estava “extremamente nervoso… ataca-me, manda-me um murro… com a mão direita… punho fechado”, atingindo-o na maçã do rosto, do lado esquerdo.
Nesse momento apercebeu-se que este arguido tinha na sua mão esquerda “uma coisa que parece ser uma navalha”, com uns 10cm a 12cm de lâmina, sendo que “depois vim a saber que era uma chave de fendas”.
Após desferir esse murro, o mesmo A. S. disse-lhe “passa para o outro lado” e, perante a passividade do mencionado J. N., “ele volta-me a dar um murro… com a mesma mão”, atingindo-o no mesmo sítio que o murro anterior.
É nesse instante que “vejo a parte que reluz” da tal “coisa”, sendo que tudo se passa em “fracções de segundos”, recordando-se de dizer àquele arguido “Ó Sr. A. S. não faça isso”, após o que aproveitou-se do facto de a marcha-atrás já estar engrenada para recuar, o que fez uma vez que “sentia-me cheio de medo, cheio de medo, tiro o pé da embraiagem e fiz marcha-atrás”.
Nestas circunstâncias, “o Sr. A. S. ficou pendurado na porta… eu sinto um solavanco na roda da frente… eu não vejo mais o Sr. A. S., eu saio para a estrada, engreno primeira velocidade… porta aberta no meio da estrada, bato a porta”.
Em desenvolvimento desta narrativa, o aludido J. N. explicou que ao recuar com o veículo DM, andou cerca de 2m – 3m, após o que “sinto a roda da frente do meu lado esquerdo que salta, faz um salto e eu não vejo mais o Sr. A. S.”.
Este arguido relacionou tal solavanco com o facto de haver “uma guia de passar a água que separa a rampa da via de trânsito”, uma vez que “quando faço a marcha-atrás, olho neste sentido para trás [faz o gesto de olhar por cima do ombro direito para trás, próprio da execução da manobra de marcha-atrás], não olho para aqui [para a porta lateral esquerda do veículo]… estou a olhar para trás, quando o Sr. A. S. se desprende, eu não sei, não tenho percepção de ele se desprender… são 5 segundos, 10 segundos”.
Após esse solavanco o veículo DM ainda recuou mais 2m – 3m, o que sucedeu quando já se encontrava na faixa de rodagem daquela Rua ..., ficando “virado para a frente” (com a Praceta do autarca na retaguarda, portanto).
De seguida, o arguido J. N. engrenou a 1ª velocidade e arrancou em frente, altura em que fechou a porta do lado do condutor, afirmando, a este respeito, que “já estou em andamento no sentido em frente”, “quando já vou em andamento para me ir embora”, “fico em direcção para seguir em frente, sigo em frente, engreno a velocidade antes, a primeira velocidade, ando para aí cerca de 2, 3 metros, 4 metros com a porta ainda aberta, puxo a porta, fecho a porta e vou para a GNR”.
Nesta ocasião, como asseverou, não sentiu nenhum outro solavanco, nem se deparou com qualquer obstáculo na estrada, designadamente o corpo do mencionado A. S., tendo verificado que a via estava desimpedida, razão pela qual decidiu avançar em frente, o que fez por supor que “o corpo está atrás da manobra que eu fiz… quando saio para a faixa de rodagem eu tenho visibilidade total, eu não vejo nenhum corpo à frente do carro”, “porque eu faço marcha-atrás e ele provavelmente é deslocado para trás da viatura… com a porta… é deslocado para trás e eu sigo em frente”, “se não está na frente, está na traseira”.
Confrontado com a possibilidade de o mesmo A. S. estar caído junto da lateral esquerda do veículo DM, mais concretamente ao pé da porta do condutor, e de a amolgadela visível nas fotografias nºs 6 a 9, inclusive, do relatório pericial elaborado pela PJ a que se aludiu supra (cfr. fls.121-122), ter sido provocada pelo embate no corpo deste arguido quando a fechou, o aludido J. N. referiu que “a porta não bate contra nenhum… a porta é alguma coisa que pega nela pela parte de baixo e que a faz dobrar… pode estar na lateral [o arguido A. S.] e depois ir para o meio da via, mas não sou eu que vou especular”, até porque as manobras que realizou com essa viatura “faço com pânico”, “eu sentia medo, pronto, foi o que o senhor [o identificado A. S.] me provocou, provocou-me medo, da forma como me abordou, às onze horas da noite, em Janeiro, no Inverno, num sítio escuro, com aquilo que eu referi… eu achar que era uma faca”, “não sei o que me querem fazer, eu temo pela minha vida”, “passou-me pela cabeça porque a abordagem é um bocado, extremamente agressiva, é extremamente agressiva”, de tal modo que quando arrancou e avançou para a frente (em sentido contrário àquela Praceta do autarca, portanto), apenas tenha imobilizado esse veículo após percorrer uns 20m – 30m, ao aperceber-se de “um carro chegar e estava com medo… não sabia se estava mais alguém com o Sr. A. S.… eu vou à GNR… e vou dizer o que aconteceu e alguém me vai ajudar”, “a minha intenção é comunicar às autoridades, pedir ajuda às autoridades porque estou a ser atacado… eu senti medo, queria ser protegido, vou à GNR, vou comunicar à GNR, a GNR vai accionar os meios de socorro, se precisar alguém de auxílio. E eu saí dali porque eu não sei se está lá uma pessoa, se estão duas pessoas, se estão três e eu sou atacado”.
Deste modo, em face do que fica sobredito, o arguido J. N., além de rejeitar peremptoriamente que, em algum momento, tenha pretendido tirar a vida ao arguido A. S., asseverou que quando empreendeu a manobra de marcha-atrás e, posteriormente, quando já na faixa de rodagem da Rua ... engrenou a 1ª velocidade e avançou para a frente, teve como único desiderato proteger a sua integridade física e a sua vida, pois que foi atacado a murro por alguém que dias antes o havia ameaçado e que trazia consigo um objecto que pensou tratar-se de uma navalha, sendo certo que neste último momento verificou antecipadamente que a via se mostrava totalmente desimpedida para nela circular, até por estar convencido que este A. S. estaria na sua retaguarda e por recear que pudesse fazer uma nova investida, sozinho ou acompanhado por mais pessoas.
Sendo estas as versões apresentadas pelos arguidos, importa sublinhar que o julgador não é um mero colector de depoimentos, impondo-se-lhe que os avalie criticamente, que os submeta ao crivo da razão e ao filtro da lógica, valendo-se das regras gerais da experiência corrente, da sua vivência social e pessoal e do conhecimento da normalidade do acontecer.
A convicção do juiz forma-se livremente, podendo, neste juízo de verosimilhança acerca dos dados processualmente adquiridos, estribar-se nas máximas da experiência e nos parâmetros de normalidade que subjazem à generalidade dos acontecimentos (cfr. artigo 127º, do CPP).
A credibilidade da prova passa pela plausibilidade da descrição factual, que, para ser tida em conta, deverá pautar-se pela lógica e coerência, aferida à luz dos juízos da experiência comum.
Salvaguardando o devido respeito por opinião diversa, no caso de que ora nos ocupamos cremos que o relato do arguido J. N. é aquele que se revela mais coerente e consistente com o que ditam os juízos de probabilidade e os dados da intuição humana.
Com efeito, as declarações do arguido A. S., além de pouco claras e lineares, afiguraram-se algo exageradas, uma vez que, para além de desconsiderar, em absoluto, o contexto em que os factos se passaram, limitou-se basicamente a afirmar que aquele J. N. quis passar com o veículo DM, por 2 (duas) vezes, por cima do seu corpo.
Por seu turno, este último arguido admitiu ter atingido o identificado A. S. apenas num primeiro momento, em concreto, quando realizou uma manobra de marcha-atrás com essa viatura, o que fez exclusivamente para fugir do local onde se encontrava e assim proteger a sua integridade física e a sua vida, sendo certo que esse propósito manteve-se quando engrenou a 1ª velocidade e seguiu em frente, além de que, nessa ocasião, a via onde seguia mostrava-se desimpedida, sem a presença de qualquer obstáculo.
Para além de esta explicação se mostrar, quanto a nós, mais sensata e plausível com o que é normal acontecer em situações similares, também verificamos que encontra apoio no que exibem as fotografias nºs 13 a 17, inclusive, do já mencionado relatório pericial elaborado pela PJ (cfr. fls.123).
Na verdade, se repararmos na foto nº 14, constatamos que na parte inferior da frente da viatura DM, por baixo do habitáculo do motor, é visível uma marca de limpeza (no resguardo), que pode atribuir-se ao contacto com outra superfície. Trata-se de uma “marca de deslocação” (usando, aqui, as palavras do Sr. Inspector M. T. – que acompanhou essa diligência), provocada pela fricção entre dois “objectos”, o que, in casu, pode derivar do contacto entre essa parte e o corpo do arguido A. S..
E se atentarmos nas fotos nºs 15 e 16, verificamos que tal marca de limpeza situa-se junto à roda da frente do lado esquerdo deste veículo, o que se coaduna com a manobra de marcha-atrás, realizada em curva, descrita pelo arguido J. N. (recorde-se que o veículo DM, depois dessa manobra e antes de ser engrenada a 1ª velocidade, ficou posicionado na Rua ... de forma perpendicular).
Por último, para além da marca de limpeza vinda de referir, nenhuma outra foi detectada na parte inferior do veículo em questão, o que legitima que se conclua que nenhuma outra fricção se verificou, designadamente com o corpo do arguido A. S..
Com efeito, se tivesse existido uma segunda passagem – como afirma este arguido – então, não só teria que haver mais uma marca na parte inferior da viatura DM, como a mesma também teria que verificar-se em relação ao para-choques frontal, atenta a posição desse veículo na via.
Assim, o facto de haver tão-somente uma marca de deslocação e o facto de localizar-se por baixo do habitáculo do motor do DM junto à roda da frente do lado esquerdo permitem reconhecer plausibilidade à versão sustentada pelo arguido J. N., em detrimento daquela defendida pelo arguido A. S..
No mesmo sentido milita, igualmente, o depoimento do Sr. Inspector M. T. pois que, alinhando-se com aquele J. N. e ponderando os elementos que reuniu na investigação que desenvolveu, não pôde afirmar mais do que uma passagem do veículo em questão por cima do corpo do mencionado A. S. e não 2 (duas), como alega este último (sem prejuízo de a testemunha ter manifestado desconhecer se essa passagem foi realizada na execução (ou não) de uma manobra de marcha-atrás).
E o que vem de afirmar-se quanto à passagem da viatura DM mantém validade em relação às lesões que o identificado A. S. apresentava quando deu entrada no Hospital de Braga no dia 06 de Janeiro de 2017.
Efectivamente, atento o teor das informações clínicas e do relatório médico-legal a que se aludiu anteriormente, não é possível fazer corresponder uma parte dessas lesões ao primeiro momento que o aludido A. S. indicou (que coincide com a manobra de marcha-atrás) e outra parte ao segundo momento que relatou (quando foi engrenada a 1ª velocidade e aquele DM avançou em frente).
Além disso, não podemos esquecer que há outras lesões que terão sido consequência não dessa passagem, mas antes da queda do corpo do próprio A. S. no pavimento em asfalto daquela Rua ... (repare-se que a par de escoriações nos membros inferiores e superiores esquerdos e da fractura dos arcos costais esquerdos, atingidos pela viatura DM, houve também escoriações nos membros inferiores e superiores direitos e fractura dos arcos costais direitos, certamente derivados dessa queda).
O único elemento que, segundo divisamos, de certa forma pode debilitar o relato do arguido J. N. prende-se com a amolgadela que se observa na parte exterior da porta do condutor do veículo DM (cfr. fotos nºs 6 a 9, inclusive, do relatório pericial elaborado pela PJ, a fls.121-122), pois que quando aquele A. S. foi arrastado e caiu no solo encontrava-se de permeio entre o lado de dentro dessa porta – e não externo – e o lugar do condutor.
No entanto, a apontada fragilidade apenas o é em termos relativos face à demais prova já enunciada, pois que nem este arguido, nas suas declarações, descreveu qualquer situação em que tenha sido atingido por essa porta ao ponto de causar a amolgadela de que se cuida, como também nas já indicadas informações clínicas e relatório médico-legal e ainda nas fotografias juntas em sede de audiência de julgamento não é possível detectar uma lesão específica e inequívoca que seja compatível com essa mesma amolgadela.
Não dispomos, pois, de elementos probatórios suficientes que nos permitam determinar em que momento dos acontecimentos sob discussão é que foi provocada tal amolgadela e qual a sua causa, designadamente, se a mesma resultou (ou não) de um embate no corpo do arguido A. S. verificado quando o arguido J. N. fechou a referida porta, numa altura em que havia já engrenado a 1ª velocidade e arrancado em frente.
Ora a incerteza supra enunciada não pode desfavorecer este último arguido pois que, tendo em conta os princípios da investigação e da presunção de inocência, se o tribunal mesmo através da sua actividade probatória não lograr obter a certeza dos factos mas antes permanecer na dúvida, terá por princípio de decidir em desfavor da acusação, absolvendo o arguido por falta de prova (vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, lições policopiadas, 1988-1989, p.144).
Além do que fica sobredito importa, igualmente, ter presente que o arguido J. N. agiu sempre motivado por um mesmo fim: evitar continuar a ser fisicamente agredido pelo arguido A. S. para, desta forma, proteger a sua integridade física e a sua vida.
Assim, e pelas razões explanadas supra, as declarações deste arguido assumiram particular peso persuasivo.
A par dessas declarações e na dilucidação do ocorrido no dia 06 de Janeiro de 2017, revelaram-se importantes os depoimentos das testemunhas P. J., R. F. e E. P..
Este P. J. foi a primeira pessoa a deparar-se com o arguido A. S. caído na faixa de rodagem da identificada Rua ..., tendo descrito em que posição se encontrava o mesmo, quais as lesões que evidenciava e que socorro lhe prestou, o que fez através de um relato que se teve por espontâneo, seguro e lógico, além de isento.
Aquela R. F. – que, à data, residia na habitação da aludida M. S. – explicou que na altura dos factos apercebeu-se de um ruído muito forte (um “estrondo”, nas suas palavras), o que sucedeu quando o arguido J. N. já havia saído, tendo observado pela janela da cozinha que o arguido A. S. encontrava-se no meio da estrada, de joelhos, voltado para essa habitação.
Decidiu, então, ir ter com este, sendo que quando se aproximou verificou que tinha ferimentos na cara.
Esta testemunha manteve-se junto do mencionado A. S. até chegar a ambulância, que foi chamada por aquele P. J..
Mais acrescentou ter visto uma chave de fendas no piso da referida Rua ..., tendo dado conta desse facto ao arguido J. N., com quem falou ainda nesse dia por telefone.
O seu depoimento foi despretensioso, sério, linear e consistente, não se tendo descortinado contradições, pelo menos flagrantes, nem tampouco qualquer elemento que se reputasse por artificial, o que contribuiu, decisivamente, para que o tribunal se convencesse da sua veracidade.
Acresce que serviu, ainda, para corroborar o que foi dito pelo arguido J. N. quando afirmou que, inicialmente, pensava que o aludido A. S. se encontrava munido de uma navalha, sendo que “depois vim a saber que era uma chave de fendas”.
Esse conhecimento foi-lhe trazido precisamente pela testemunha R. F., com quem falou após sair da GNR, razão pela qual, até à formalização da denúncia, estava convencido de que se tratava de uma “arma branca” (cfr. o auto de denúncia de fls. 31-32, em concreto, o campo ‘Modus Operandi do Suspeito’).
A testemunha E. P. foi objectiva, ponderada e imparcial no seu discurso e o seu conhecimento resulta de ter-se deslocado ao local na qualidade de socorrista da Cruz Vermelha Portuguesa da delegação de Amares, tendo encontrado o arguido A. S. com a cara muito inchada, com várias escoriações e a queixar-se bastante da parte torácica e do pé, o que resulta também corroborado pelas informações clínicas juntas aos autos, pelo relatório médico-legal a que se fez já anteriormente referência e pelas fotografias apresentadas em audiência de julgamento.
Deste modo, os identificados P. J., R. F. e E. P. permitiram ao tribunal perceber qual o estado do arguido A. S. nos momentos imediatos que se seguiram a ter sido colhido pelo veículo DM tripulado pelo arguido J. N..
O que esclareceram a este propósito foi, no cômputo geral, coincidente e consistente com o que nos dizem as regras da experiência corrente aqui aplicáveis.
A testemunha M. S., quanto a estes aspectos, evidenciou um conhecimento bastante limitado na medida em que, como referiu, apenas saiu da sua habitação para despedir-se do arguido J. N., mantendo-se a partir de então no seu interior, apesar de ter-se apercebido do “estrondo” referido pela testemunha R. F. e de verificar, na sequência desse barulho, que implicava o arguido A. S., que reconheceu quando espreitou pela janela da cozinha.
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No que concerne aos factos que respeitam ao foro volitivo dos arguidos A. S. e J. N., insusceptíveis de percepção sensorial, importa salientar que, conforme ensina GERMANO MARQUES DA SILVA, na valoração da prova intervêm deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo certo que se as inferências não dependem substancialmente da imediação, terão de basear-se na correcção do raciocínio, o qual se alicerçará nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (vide Curso de Processo Penal, Volume II, p.127).
A prova do elemento subjectivo, por pertencer ao mundo interior do agente é, pois, indirecta.
Como se escreve no Acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Maio de 2012: (…) tratando-se de factos de ordem subjectiva (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum (acessível em www.dgsi.pt/jtrc, Processo nº 630/09.5TACNT.C1, relatora MARIA PILAR OLIVEIRA).
Deste modo, em relação aos elementos subjectivos do(s) tipo(s) legal/legais de crime em apreço nos autos, os mesmos ou são revelados pelo próprio arguido, através da confissão (vide o Acórdão da Relação de Évora, de 14 de Julho de 2015 (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº 27/14.5PTEVR.E1, relator ALBERTO BORGES), ou então têm de ser inferidos de factos objectivos que sejam suficientemente idóneos para a sua demonstração.
No caso decidendo, em relação ao arguido J. N., permitimo-nos remeter para o que deixamos já anteriormente apreciado e exposto a propósito dos motivos que estiveram subjacentes à sua actuação nos factos dos autos.
Quanto ao arguido A. S., a convicção do tribunal formou-se em virtude da conjugação da atitude por si desenvolvida com as consequências que, segundo é adequado e esperado – atentas as regras da experiência –, dela decorrem, podendo concluir-se, com bastante segurança, que, não obstante estar ciente da reprovabilidade e punibilidade dos seus comportamentos, agiu sempre de modo deliberado, livre e consciente, e que: [i] ao dirigir-se a A. C. – tio do arguido J. N. –, dizendo-lhe “o teu sobrinho anda com a minha companheira, tenho que lhe dar uma coça”, e ao dirigir-se a J. F. – mãe do mesmo arguido –, dizendo-lhe “eu a ele vou-lhe fazer a folha”, fê-lo com a intenção, concretizada, de amedrontar esse J. N., causando-lhe insegurança e temor pela sua integridade física, como causou, assim atentando contra a sua liberdade de determinação; e [ii] ao agredi-lo com 2 (dois) murros na face, assim causando-lhe dores físicas e mal-estar, quis molestar o seu corpo e lesá-lo corporalmente.
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A prova do pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes/demandantes A. S. e J. N. fundou-se, desde logo, nos elementos documentais e periciais que ficaram enunciados supra, mais concretamente, nas fotografias juntas pelo primeiro em audiência de julgamento, nas informações clínicas a este atinentes e no respectivo relatório da perícia de avaliação do dano corporal.
Para além do que objectivamente se retira desses elementos, o tribunal fundou a sua convicção nas declarações prestadas pelos próprios assistentes/demandantes e no depoimento das testemunhas que com eles tiveram contacto na sequência dos acontecimentos sob apreciação nos presentes autos.
Assim, no que concerne ao assistente/demandante A. S. valoraram-se positivamente os contributos das testemunhas P. J., R. F. e E. P., pelas razões anteriormente expostas, tratando-se, portanto, das primeiras pessoas a acudi-lo.
Para além destas, a testemunha E. A., como explicou, já não encontrou o seu progenitor no local dos factos, mas antes no Hospital de Braga, tendo afiançado que apresentava-se em “muito mal estado”, de tal forma que as horas que se seguiram foram “decisivas”.
As lesões verificadas determinaram que ficasse internado e quando teve alta para o domicílio permaneceu na habitação da testemunha durante mais de 1 (um) mês, onde esteve acamado mais de 2 (duas) semanas, tendo sido esta a prestar-lhe os cuidados de que necessitava.
A testemunha fez alusão às fortes dores físicas sentidas pelo progenitor, às consequências que para este resultaram das lesões sofridas e aos prejuízos materiais que para si advieram em consequência do sucedido no dia 06 de Janeiro de 2017 (estrago dos óculos, roupas e calçado).
Também a testemunha A. F. inteirou o tribunal acerca do estado em que encontrou o assistente/demandante A. S. quando visitou-o no Hospital de Braga, tendo observado que estava “negrinho… do lado esquerdo parecia alcatrão... muito negro”, que tinha dificuldades em falar e que se queixava de muitas dores, sobretudo no calcanhar.
A testemunha K. S. esteve com o aludido A. S. no Hospital de Braga tendo podido aperceber-se – até porque é enfermeira no Hospital de São João – que se tratava de um doente crítico, mas sem estar em risco de vida.
Esta testemunha relatou que o seu tio apresentava muitas lesões na face (hematomas e edemas) e deformidades na perna, assim justificando que se queixasse de muitas dores.
No mesmo sentido militou o depoimento da testemunha M. C. que descreveu ter-se deparado com o irmão “quebrado… cara toda negra, esfacelada… eu não o conheci sequer… fiquei desorientada”.
A referida testemunha, para além de ter estado com o mencionado A. S. no Hospital de Braga, também visitou-o quando este se mudou para a habitação da testemunha E. A., onde teve de permanecer em repouso, deslocando-se mediante o auxílio de muletas.
A testemunha F. A. confirmou o internamento do seu cunhado A. S. e, tal como as anteriores, fez referência às lesões que apresentava (a este propósito mencionou que tinha o braço esquerdo muito negro), às dificuldades que tinha em falar, ao facto de sentir-se “muito incomodado” e à necessidade que teve de manter-se em repouso.
Por último, a testemunha C. A. não dissentiu das que a antecederam no que tange à descrição das lesões, queixas, sequelas e prejuízos materiais que resultaram para o seu progenitor no seguimento do ocorrido no dia 06 de Janeiro de 2017.
Em relação ao assistente/demandante J. N., para além do depoimento da testemunha J. F., que, pelas características que se lhe reconheceu, foi merecedora de credibilidade, apreciou-se o relato da testemunha S. S. que, por ser patrão daquele, esteve com o mesmo no dia seguinte, podendo observar que estava “um bocadinho vermelho” na face esquerda, mais referindo que nessa altura, devido às ameaças que recebera, andava mais nervoso, ansioso e receoso e evitava frequentar cafés, o que fez de forma espontânea, sincera e segura.
*
No que respeita às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais dos arguidos, o tribunal alicerçou-se no teor do respectivo relatório social, a fls. 478-483 (cfr. referência nº 9895870 – quanto ao aludido A. S.) e a fls. 484-489 (cfr. referência nº 9895869 – quanto ao mencionado J. N.), que foi por eles confirmado em termos seguros e que se reputaram por verosímeis.
A este respeito, o arguido J. N. também esclareceu que presentemente, devido à pandemia de Covid-19, encontra-se desempregado, com o que aufere o subsídio de desemprego, no montante de € 451,00 (quatrocentos e cinquenta e um euros), por mês, encontrando-se inscrito no “IEFP – Instituto do Emprego e Formação Profissional”.
Mais acrescentou que em virtude dessa sua situação financeira, requereu e viu ser-lhe deferida uma moratória no pagamento de um empréstimo que contraiu para obras de reparação da habitação onde reside.
Valorou-se, também, o depoimento prestado pelas testemunhas S. S. e J. B., pois que o conhecimento que revelaram acerca da personalidade dos arguidos não foi contrariado.
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A convicção do tribunal quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido J. N. fundou-se no respectivo Certificado do Registo Criminal, a fls. 468 (cfr. referência nº 67413678).
Os antecedentes criminais do arguido A. S. derivaram do respectivo Certificado do Registo Criminal, a fls. 469-471 (cfr. referência nº 67413652), e serviram, a par dos factos dos presentes autos, para pôr em causa as afirmações que faz no seu pedido de indemnização civil acerca das características da sua pessoa.
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A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o supra referido princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do CPP.
A este propósito cumpre referir que o pedido indemnizatório formulado pelo assistente/demandante A. S. na parte respeitante às lesões (alegadamente) sofridas ao nível dentário não foram atendidas por a prova produzida não ter sido suficiente, nem consensual.
Com efeito, da informação clínica junta a fls. 87ss, não consta ter sido detectada qualquer lesão a esse nível, pois que no “Estudo maxilo-facial” realizado esclarece-se, entre o mais, que apresenta: (…) Moderada sinusite maxilar direita. A mandíbula apresenta trabeculação normal, sem traços de fractura e sem sinais de luxação articular (…) – cfr.fls.89.
Tal informação contraria a testemunha E. A. que afirmou que logo no Hospital de Braga apercebeu-se que o assistente/demandante A. S. não tinha os 2 (dois) dentes da frente do maxilar.
Já a testemunha C. A. contrariou a irmã pois que apesar de referir os 2 (dois) dentes da frente, identificou como sendo os da mandíbula.
Por fim, o documento junto a fls.277, que acompanha este pedido, mostra-se datado de 12 de Agosto de 2018, pelo que na relação com os acontecimentos de 06 de Janeiro de 2017 verifica-se um desfasamento muito superior a 1 (um) ano, que impede, sem demais prova, que se estabeleça uma relação causal entre tais acontecimentos e o tratamento dentário identificado nesse mesmo documento.”.
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3. Passemos, então, à análise das concretas questões suscitadas pelos recorrentes nos respectivos recursos, as quais serão apreciadas segundo a sua precedência lógica.
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3.1. Dos factos atinentes à condenação do arguido A. S. pelo crime de ofensa à integridade física / da impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento

De acordo com as conclusões do recorrente A. S. (4), para além de fazer menção genérica e inconsistente à circunstância de o tribunal a quo, relativamente à matéria atinente ao crime de ofensa à integridade física, ter estribado a sua convicção “unicamente nas declarações do J. N.”, insurge-se o mesmo contra a decisão sobre a matéria de facto dada como provada e como não provada pelo Tribunal a quo, mais concretamente sobre os pontos f), g) e h) [que foram dados como não provados e que, na sua perspectiva, deverão ser considerados provados], e sobre os pontos 27, 17 e 23 [que foram dados como provados, e que em seu entender devem ser considerados como não provados].

Vejamos, pois.

Sublinhando-se, antes de mais, que, como prima facie poderia resultar de uma leitura mais apressada dos correspondentes preceitos adjectivos, não são ilimitados os poderes conferidos às Relações em termos da matéria de facto apurada em 1ª instância.
Para isso concorre, basicamente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como "remédio jurídico" para os vícios de julgamento ou, noutra perspectiva, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como "novos julgamentos", e ainda as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no Artº 127º do C.P.Penal, segundo o qual “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente”.
Por outro lado, não se pode olvidar que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da Relação está condicionado pela circunstância de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão, sendo certo que os princípios da oralidade e da imediação (5) permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido e com os demais intervenientes processuais, nomeadamente com as testemunhas, permitindo-lhe uma melhor avaliação da credibilidade das declarações e depoimentos prestados.
E exactamente porque o Tribunal da Relação não beneficia destes princípios (da oralidade e da imediação) - e, nesta medida, escapa-lhe, por insindicável, toda uma panóplia de informações não verbais e não documentadas, imprescindíveis para a valoração da prova produzida -, entende-se que a reapreciação das provas gravadas só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância caso se constate que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas produzidas.
Nesta perspectiva, o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 1ª instância nem pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do conjunto dos elementos de prova produzida, mas tão-somente o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e bem assim das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, traduzindo-se, pois, numa reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Assim, os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um “remédio” a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inquestionavelmente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância, e já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando dos já supra aludidos princípios da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou em parte de cada uma delas) que se apresentou como mais plausível e coerente.
Sublinhe-se, por outro lado, que não raras vezes os recursos, quanto a esta questão concreta, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, ilegítimo, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, a que já se aludiu, exercício este que, face ao transcrito Artº 127º do C.P.Penal, apenas ao tribunal incumbe.
O que não é legítimo é a convicção do recorrente sobrepor-se à do julgador.
Evidentemente que, como sublinha o mencionado Mestre, (6) o princípio da livre apreciação da prova não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imutável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida.
Com efeito – diz –, se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (como já dissemos que a tem toda a discricionariedade jurídica) os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados; a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, possa embora a lei renunciar à motivação e o controlo efectivos.
Noutra vertente, há que relembrar que a matéria de facto pode ser sindicada junto dos Tribunais da Relação por duas vias: a primeira, no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; e a segunda através da “impugnação ampla” da matéria de facto, a que alude o Artº 412º, nºs. 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
Ora, no primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do citado Artº 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
Ao passo que, na segunda situação, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs. 3 e 4 do citado Artº 412º.
Acresce que, nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Ou seja, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, pois, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (7).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, conforme determina o Artº 412º, nº 3, do C.P.Penal:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”.

Ora, a especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
Ao passo que a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida.
E, finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. Artº 430º do C.P.Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente um outro ónus: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs. 4 e 6 do Artº 412.º do C.P.Penal).
E, para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente de especificar quais os pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, quais os segmentos dos depoimentos que impõem decisão diversa da recorrida e quais os suportes técnicos em que eles se encontram, com referência às concretas passagens gravadas.

Ora, no caso vertente, das conclusões do recorrente A. S. extrai-se que o mesmo não assaca à decisão recorrida nenhum dos vícios a que alude o Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal (nem este Tribunal os vislumbra), os quais, como se referiu anteriormente, têm como pressuposto (inultrapassável) que o vício a apreciar resulte do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Na verdade, como se disse, para além de fazer menção genérica e inconsistente à circunstância de o tribunal a quo, relativamente à matéria atinente ao crime de ofensa à integridade física, ter estribado a sua convicção “unicamente nas declarações do J. N.” [o que, atenta a respectiva fundamentação fáctica, não corresponde à realidade, sendo certo, ademais, que tais declaração podem ser perfeitamente valorados, à luz do disposto no Artº 127º, mesmo na ausência de outra(s) prova(s)], insurge-se o mesmo contra a decisão sobre a matéria de facto dada como provada e como não provada pelo Tribunal a quo, mais concretamente sobre os pontos f), g) e h) [que foram dados como não provados e que, na sua tese, deveriam ser dados como provados], e sobre os pontos 27, 17 e 23 [que foram dados como provados, e que em seu entender deveriam ser considerados como não provados], resulta claro da motivação e das conclusões do seu recurso, que o arguido e recorrente A. S. tem em vista o erro de julgamento a que alude o Artº 412º, n.ºs 3 e 4, traduzido numa errónea valoração das provas produzidas em julgamento no que tange à supra descrita factualidade, mais concretamente nos seguintes meios de prova que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida:
a) Declarações do Recorrente prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 11/03/2020, de minutos 16:24 a 23:21; minutos 24:04 a 26:47; minutos 27:05 a 36:15; minutos 36:57 a 39:10;
b) Auto de Denúncia elaborado pela Guarda Nacional Republicana, Posto Territorial de Amares, sendo o apresentante J. N., junto aos autos a fls. 4 a 6;
c) Declarações prestadas pelo Arguido J. N. prestadas em interrogatório perante Polícia Judiciária, junto aos autos a fls. 135 a 139;
d) Depoimento da testemunha R. F., prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 01/07/2020, de minutos 01:39 a 05:28; minutos 06:00 a 06:57; minutos 09:05 a 14:17;
e) Depoimento da testemunha E. G., prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 01/07/2020, de minutos 01:30 a 09:29;
f) Depoimento da testemunha M. T., prestadas em Audiência de Julgamento – Sessão do dia 01/07/2020, de minutos 03:13 a 03:40; minutos 04:00 a 10:34; e
g) Relatório da perícia de avaliação de dano corporal, de fls. 231 a 233; h) Relatório do exame pericial realizado ao veículo DM, de fls. 121 a 125.

Dado que o recorrente A. S. cumpre satisfatoriamente o disposto no Artº 412º, nºs. 3 e 4, vejamos, pois, se os meios probatórios por ele trazidos à liça impõem decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido quanto aos supra mencionados pontos da matéria de facto dada como provada e como não provada, sendo certo que a tónica da sua tese consiste no facto de ter sido atropelado duas vezes pelo veículo tripulado pelo arguido J. N. (num primeiro momento, quando aquele fez marcha atrás, e num segundo momento, quando o mesmo engrena a primeira velocidade, e dirige o veículo em frente, passando novamente sobre o seu corpo), e bem assim na circunstância de não ser portador de qualquer objecto (chave de fendas) quando abordou o J. N. nos moldes descritos nos pontos 12 a 23 da factualidade dada como assente.
Começando pelas declarações que o próprio recorrente prestou em sede de audiência de discussão e julgamento, as quais este tribunal de recurso ouviu integralmente, o mesmo sucedendo com toda a demais prova ali produzida oralmente (e não apenas as declarações e depoimentos que o recorrente transcreveu na motivação do seu recurso), verifica-se que, efectivamente, o mesmo relata ao tribunal uma versão dos factos em tudo idêntica à ora explanada no seu recurso.
Porém, não pode o recorrente pretender que, sem mais, se acolha a sua versão, dado que a mesma está em flagrante contradição com aquela que o arguido J. N. explicou ao mesmo tribunal, quando asseverou que, quando foi agredido pelo arguido A. S., este tinha na sua mão esquerda “uma coisa que parece ser uma navalha”, com uns 10 a 12 cm de lâmina, e que posteriormente veio a saber que se tratava de uma chave de fendas, e que atingiu o arguido A. S. com o veículo que tripulava apenas uma vez, na altura em que realizou a manobra de marcha atrás, tendo em vista fugir do local onde se encontrava e assim proteger a sua integridade física.
Ora, como resulta da fundamentação da matéria de facto, o tribunal colectivo deu maior credibilidade às declarações do arguido J. N., acolhendo a sua versão dos factos, em detrimento das declarações prestadas pelo ora recorrente A. S., afigurando-se-nos que a análise global da prova produzida permite sancionar esse entendimento do tribunal a quo, como adiante melhor se verá.
Carece também de razão o recorrente A. S. quando alega que, quando apresentou queixa-crime junto da GNR de Amares, conforme auto de denúncia elaborado no dia 07/01/2017, constante de fls. 4/6 [do Apenso A], o arguido J. N. descreveu o alegado objecto como sendo uma faca de abertura automática ou faca de ponta e mola, e que, mais tarde, no dia 31/05/2017, quando inquirido na Polícia Judiciaria, a fls. 135/139, fez menção a uma faca.
Há que referir, desde logo, que o aludido auto de notícia não pode assumir a relevância jurídica que o recorrente A. S. dele pretende extrair.
Pois, ainda que o auto de notícia, elaborado de acordo com o disposto no Artº 243º do C.P.Penal, constitua um documento autêntico, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (Artºs. 363, nº 2, do Código Civil e 169º do C.P.Penal), tal apenas ocorre relativamente aos factos que aí se encontram vertidos como praticados pelo agente autuante e àqueles que nele são atestados com base nas percepções do mesmo. E isto até que o conteúdo do mesmo não for fundadamente posto em causa (cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, em anotação ao Artº 243º, pág. 666.
Por outro lado, no que tange às declarações que o arguido J. N. prestou em inquérito, mais concretamente perante órgão de polícia criminal, conforme auto de fls. 135/139, conferida a acta da audiência de discussão e julgamento constatamos que em momento algum foi aquele arguido “confrontado” com o teor de tais declarações.
Na verdade, não obstante a leitura de tais declarações ser permitida dentro do condicionalismo estabelecido no Artº 357º, nº 1, al. a), mister era, para que pudessem ser valoradas, que ela tivesse sido efectuada durante o julgamento, o que não sucedeu. Assim o impõe o Artº 355º, cujo nº 2 ressalva da proibição de valoração de provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência, estabelecida no seu nº 1, apenas “as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes”.
Seja como for, sempre se diga que não corresponde à realidade a afirmação ora trazida à colação pelo recorrente, bastando uma simples leitura daqueles autos para se concluir que ali foi declarado algo diverso acerca da matéria em causa.
Não vemos também em que medida os depoimentos das testemunhas R. F., E. G. e M. T., invocados pelo recorrente A. S., impõem decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido.
A testemunha R. F., de relevante, esclareceu o tribunal que, naquele dia, estava em casa da cunhada, M. S., com quem vivia e que, cerca das 22H15, quando se preparavam para jantar, ouviram um barulho muito forte. Adiantou que a cunhada veio à janela, tendo dito que o “X” (querendo referir-se ao arguido A. S.). Então veio cá fora, para tentar ajudar, e constatou que ele estava no meio da estrada, antes da rotunda, encontrando-se de joelhos, tentando pôr-se de pé. Sublinhou que o mesmo tinha ferimentos na cara e que dizia “oh R. F., ajuda-me; ele passou-me com o carro por cima”. E adiantou, ainda, ter visto uma chave de fendas no chão, próximo do local onde ocorreram estes factos, esclarecendo que era de cor verde, e que media cerca de 20 cm., sendo certo que no dia seguinte voltou ao local e já lá não a encontrou. E que quando chegou perto do arguido A. S. ajudou-o a levantar-se, mantendo-se o mesmo de pé até a ambulância chegar. Afirmou, ainda, que o arguido A. S. estava desorientado, tendo-lhe dito: “ele matou-me, passou-me com o carro por cima”. E, finalmente, após ter sido confrontada com as declarações que havia prestado no dia 17/02/2017 em sede de inquérito, mais concretamente na Polícia Judiciária, conforme auto de fls. 115/117, em conformidade com o estatuído no Artº 356º, nº 2, al. b), no segmento em que ali se consignou que “Esteve ali a prestar a ajuda possível até à chegada da ambulância, tendo-lhe o A. S. dito “eu morro, ele passou-me por cima duas vezes”, sem indicar à depoente quem tinha sido o individuo”, reconheceu “estar certo” aquilo que disse na Polícia Judiciária.
Objecta o recorrente A. S. que o tribunal a quo não deu qualquer relevância ao depoimento desta testemunha, quando a mesma aludiu ter ouvido “um barulho muito forte, tipo estrondo”, e quando afirmou que o recorrente A. S. disse-lhe que “ele passou por cima de mim duas vezes”, frisando que tal “estrondo” apenas pode estar relacionado com o segundo atropelamento que alega.
Porém, salvo o devido respeito, afigura-se excessiva e sem suporte essa conclusão do recorrente A. S..
Desde logo, porque não foi minimamente apurado, nem se indicia minimamente, que o dito “estrondo” ou barulho esteja relacionado com o evento em causa, e muito menos que o mesmo se ficou a dever ao alegado segundo atropelamento do recorrente .
Além do mais, olvida o recorrente que a convicção do Tribunal é formada dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, serenidade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (8). E que o interrogatório, como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras. O que significa que o tribunal não está vinculado a aceitar as declarações dos arguidos e/ou das testemunhas como totalmente verdadeiras ou totalmente falsas, como por vezes se argumenta, com a ideia de que se lhe foi atribuída credibilidade em relação a certos factos, tem que se lhe atribuir em relação a outros, como sucedeu na situação em apreço com a mencionada testemunha, R. F..
Também o depoimento da testemunha E. G. não assume a importância que o recorrente A. S. lhe atribui (tendo em vista relevar a alegada gravidade e extensão das lesões que o mesmo apresentava e daí concluir pela verificação de um segundo atropelamento).
Pois, com relevância, tal testemunha, voluntária na Cruz Vermelha, limitou-se a referir ao tribunal que se deslocou ao local, por terem sido accionados por causa de um atropelamento, e que ali chegada se deparou com o arguido A. no chão, que se queixava bastante da parte torácica e de um perna. E que o mesmo “estava bastante inchado”, que “tinha a cara com sangue” e “um bocadinho com escoriações”, sendo que “do resto do corpo não viu nada”.
Também não é decisivo para sustentar a tese do recorrente A. S. o relatório elaborado pelo Gabinete Médico Legal que consta de fls. 231/233, que descreve as lesões por aquele sofridas, dadas como assentes no ponto 28, não se podendo concluir desse relatório, com o mínimo de segurança, mesmo que conjugado com os demais elementos invocados pelo arguido, que ocorreu um segundo atropelamento pelo veículo tripulado pelo arguido J. N..
A idêntica conclusão se chegando no que tange ao depoimento da testemunha M. T., inspector da Polícia Judiciária, o qual, pelo contrário, ajuda a confirmar a bondade da decisão tomada pelo tribunal a quo relativamente à matéria em causa.
Na verdade, afirmou tal testemunha ao tribunal, com interesse para a dilucidação dessa questão, ter levado a cabo o exame ao veículo tripulado pelo arguido J. N., nos termos que constam de fls. 121/125. E tendo sido peremptório ao afirmar que, não obstante se notar que a porta do condutor esquerda não fechava correctamente, e que haveria alguns danos na parte inferior do veículo, na zona do motor, onde tem a protecção plástica, havendo marcas de arrastamento, as quais poderão ter sido provocadas pela passagem por cima de algum objecto, de um corpo humano, também asseverou não conseguir dizer se “tais marcas de deslocação foram feitas para a frente ou de marcha atrás” e bem assim se o dito veículo passou uma segunda vez pelo corpo do Sr. A. S., embora reconheça que “uma vez terá passado”.
Ora, como se disse anteriormente, este tribunal de recurso ouviu todas as declarações e depoimentos prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento que se encontram gravadas no respectivo processo digital (e não apenas as declarações e depoimentos que o recorrente A. S. transcreveu na motivação do seu recurso), e da análise dessa prova, conjugada com a demais prova, e com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas, apenas podemos referir sem hesitações que o tribunal a quo cumpriu a sua missão com êxito.
Pelo que, de modo algum os elementos probatórios invocados pelo recorrente A. S. permitem dar sustentabilidade à versão que o mesmo traz à apreciação deste tribunal, já que tal versão, na análise dialéctica desses elementos com os demais meios probatórios, não podia, sob pena de violação das mais elementares regras da experiência, merecer acolhimento.
Efectivamente, e repetindo-nos, da análise de toda a prova, conjugada e concatenada com as regras da experiência comum e da normalidade das coisas, apenas podemos referir sem hesitações que o tribunal a quo cumpriu a sua missão com êxito.
Concordando-se inteiramente com os Mmºs Juízes que compõem o tribunal colectivo quando, a propósito da credibilidade (ou falta dela) atribuída à prova produzida, pautada “pela lógica e coerência, aferida à luz dos juízos de experiência comum”, expenderam:
“Salvaguardando o devido respeito por opinião diversa, no caso de que ora nos ocupamos cremos que o relato do arguido J. N. é aquele que se revela mais coerente e consistente com o que ditam os juízos de probabilidade e os dados da intuição humana.
Com efeito, as declarações do arguido A. S., além de pouco claras e lineares, afiguraram-se algo exageradas, uma vez que, para além de desconsiderar, em absoluto, o contexto em que os factos se passaram, limitou-se basicamente a afirmar que aquele J. N. quis passar com o veículo DM, por 2 (duas) vezes, por cima do seu corpo.
Por seu turno, este último arguido admitiu ter atingido o identificado A. S. apenas num primeiro momento, em concreto, quando realizou uma manobra de marcha-atrás com essa viatura, o que fez exclusivamente para fugir do local onde se encontrava e assim proteger a sua integridade física e a sua vida, sendo certo que esse propósito manteve-se quando engrenou a 1ª velocidade e seguiu em frente, além de que, nessa ocasião, a via onde seguia mostrava-se desimpedida, sem a presença de qualquer obstáculo.
Para além de esta explicação se mostrar, quanto a nós, mais sensata e plausível com o que é normal acontecer em situações similares, também verificamos que encontra apoio no que exibem as fotografias nºs 13 a 17, inclusive, do já mencionado relatório pericial elaborado pela PJ (cfr. fls.123).
Na verdade, se repararmos na foto nº 14, constatamos que na parte inferior da frente da viatura DM, por baixo do habitáculo do motor, é visível uma marca de limpeza (no resguardo), que pode atribuir-se ao contacto com outra superfície. Trata-se de uma “marca de deslocação” (usando, aqui, as palavras do Sr. Inspector M. T. – que acompanhou essa diligência), provocada pela fricção entre dois “objectos”, o que, in casu, pode derivar do contacto entre essa parte e o corpo do arguido A. S..
E se atentarmos nas fotos nºs 15 e 16, verificamos que tal marca de limpeza situa-se junto à roda da frente do lado esquerdo deste veículo, o que se coaduna com a manobra de marcha-atrás, realizada em curva, descrita pelo arguido J. N. (recorde-se que o veículo DM, depois dessa manobra e antes de ser engrenada a 1ª velocidade, ficou posicionado na Rua ... de forma perpendicular).
Por último, para além da marca de limpeza vinda de referir, nenhuma outra foi detectada na parte inferior do veículo em questão, o que legitima que se conclua que nenhuma outra fricção se verificou, designadamente com o corpo do arguido A. S..
Com efeito, se tivesse existido uma segunda passagem – como afirma este arguido – então, não só teria que haver mais uma marca na parte inferior da viatura DM, como a mesma também teria que verificar-se em relação ao para-choques frontal, atenta a posição desse veículo na via.
Assim, o facto de haver tão-somente uma marca de deslocação e o facto de localizar-se por baixo do habitáculo do motor do DM junto à roda da frente do lado esquerdo permitem reconhecer plausibilidade à versão sustentada pelo arguido J. N., em detrimento daquela defendida pelo arguido A. S..
No mesmo sentido milita, igualmente, o depoimento do Sr. Inspector M. T. pois que, alinhando-se com aquele J. N. e ponderando os elementos que reuniu na investigação que desenvolveu, não pôde afirmar mais do que uma passagem do veículo em questão por cima do corpo do mencionado A. S. e não 2 (duas), como alega este último (sem prejuízo de a testemunha ter manifestado desconhecer se essa passagem foi realizada na execução (ou não) de uma manobra de marcha-atrás).
E o que vem de afirmar-se quanto à passagem da viatura DM mantém validade em relação às lesões que o identificado A. S. apresentava quando deu entrada no Hospital de Braga no dia 06 de Janeiro de 2017.
Efectivamente, atento o teor das informações clínicas e do relatório médico-legal a que se aludiu anteriormente, não é possível fazer corresponder uma parte dessas lesões ao primeiro momento que o aludido A. S. indicou (que coincide com a manobra de marcha-atrás) e outra parte ao segundo momento que relatou (quando foi engrenada a 1ª velocidade e aquele DM avançou em frente).
Além disso, não podemos esquecer que há outras lesões que terão sido consequência não dessa passagem, mas antes da queda do corpo do próprio A. S. no pavimento em asfalto daquela Rua ... (repare-se que a par de escoriações nos membros inferiores e superiores esquerdos e da fractura dos arcos costais esquerdos, atingidos pela viatura DM, houve também escoriações nos membros inferiores e superiores direitos e fractura dos arcos costais direitos, certamente derivados dessa queda).
O único elemento que, segundo divisamos, de certa forma pode debilitar o relato do arguido J. N. prende-se com a amolgadela que se observa na parte exterior da porta do condutor do veículo DM (cfr. fotos nºs 6 a 9, inclusive, do relatório pericial elaborado pela PJ, a fls.121-122), pois que quando aquele A. S. foi arrastado e caiu no solo encontrava-se de permeio entre o lado de dentro dessa porta – e não externo – e o lugar do condutor.
No entanto, a apontada fragilidade apenas o é em termos relativos face à demais prova já enunciada, pois que nem este arguido, nas suas declarações, descreveu qualquer situação em que tenha sido atingido por essa porta ao ponto de causar a amolgadela de que se cuida, como também nas já indicadas informações clínicas e relatório médico-legal e ainda nas fotografias juntas em sede de audiência de julgamento não é possível detectar uma lesão específica e inequívoca que seja compatível com essa mesma amolgadela.
Não dispomos, pois, de elementos probatórios suficientes que nos permitam determinar em que momento dos acontecimentos sob discussão é que foi provocada tal amolgadela e qual a sua causa, designadamente, se a mesma resultou (ou não) de um embate no corpo do arguido A. S. verificado quando o arguido J. N. fechou a referida porta, numa altura em que havia já engrenado a 1ª velocidade e arrancado em frente.
Ora a incerteza supra enunciada não pode desfavorecer este último arguido pois que, tendo em conta os princípios da investigação e da presunção de inocência, se o tribunal mesmo através da sua actividade probatória não lograr obter a certeza dos factos mas antes permanecer na dúvida, terá por princípio de decidir em desfavor da acusação, absolvendo o arguido por falta de prova (vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, lições policopiadas, 1988-1989, p.144).
Além do que fica sobredito importa, igualmente, ter presente que o arguido J. N. agiu sempre motivado por um mesmo fim: evitar continuar a ser fisicamente agredido pelo arguido A. S. para, desta forma, proteger a sua integridade física e a sua vida.
Assim, e pelas razões explanadas supra, as declarações deste arguido assumiram particular peso persuasivo.
A par dessas declarações e na dilucidação do ocorrido no dia 06 de Janeiro de 2017, revelaram-se importantes os depoimentos das testemunhas P. J., R. F. e E. P..
Este P. J. foi a primeira pessoa a deparar-se com o arguido A. S. caído na faixa de rodagem da identificada Rua ..., tendo descrito em que posição se encontrava o mesmo, quais as lesões que evidenciava e que socorro lhe prestou, o que fez através de um relato que se teve por espontâneo, seguro e lógico, além de isento.
Aquela R. F. – que, à data, residia na habitação da aludida M. S. – explicou que na altura dos factos apercebeu-se de um ruído muito forte (um “estrondo”, nas suas palavras), o que sucedeu quando o arguido J. N. já havia saído, tendo observado pela janela da cozinha que o arguido A. S. encontrava-se no meio da estrada, de joelhos, voltado para essa habitação.
Decidiu, então, ir ter com este, sendo que quando se aproximou verificou que tinha ferimentos na cara.
Esta testemunha manteve-se junto do mencionado A. S. até chegar a ambulância, que foi chamada por aquele P. J..
Mais acrescentou ter visto uma chave de fendas no piso da referida Rua ..., tendo dado conta desse facto ao arguido J. N., com quem falou ainda nesse dia por telefone.
O seu depoimento foi despretensioso, sério, linear e consistente, não se tendo descortinado contradições, pelo menos flagrantes, nem tampouco qualquer elemento que se reputasse por artificial, o que contribuiu, decisivamente, para que o tribunal se convencesse da sua veracidade.
Acresce que serviu, ainda, para corroborar o que foi dito pelo arguido J. N. quando afirmou que, inicialmente, pensava que o aludido A. S. se encontrava munido de uma navalha, sendo que “depois vim a saber que era uma chave de fendas”.
Esse conhecimento foi-lhe trazido precisamente pela testemunha R. F., com quem falou após sair da GNR, razão pela qual, até à formalização da denúncia, estava convencido de que se tratava de uma “arma branca” (cfr. o auto de denúncia de fls. 31-32, em concreto, o campo ‘Modus Operandi do Suspeito’).
A testemunha E. P. foi objectiva, ponderada e imparcial no seu discurso e o seu conhecimento resulta de ter-se deslocado ao local na qualidade de socorrista da Cruz Vermelha Portuguesa da delegação de Amares, tendo encontrado o arguido A. S. com a cara muito inchada, com várias escoriações e a queixar-se bastante da parte torácica e do pé, o que resulta também corroborado pelas informações clínicas juntas aos autos, pelo relatório médico-legal a que se fez já anteriormente referência e pelas fotografias apresentadas em audiência de julgamento.
Deste modo, os identificados P. J., R. F. e E. P. permitiram ao tribunal perceber qual o estado do arguido A. S. nos momentos imediatos que se seguiram a ter sido colhido pelo veículo DM tripulado pelo arguido J. N..
O que esclareceram a este propósito foi, no cômputo geral, coincidente e consistente com o que nos dizem as regras da experiência corrente aqui aplicáveis.
A testemunha M. S., quanto a estes aspectos, evidenciou um conhecimento bastante limitado na medida em que, como referiu, apenas saiu da sua habitação para despedir-se do arguido J. N., mantendo-se a partir de então no seu interior, apesar de ter-se apercebido do “estrondo” referido pela testemunha R. F. e de verificar, na sequência desse barulho, que implicava o arguido A. S., que reconheceu quando espreitou pela janela da cozinha.”.
Na verdade, a análise de toda a prova (gravada, documental e pericial) não nos dá qualquer indício de que aquele tribunal decidiu mal. Antes pelo contrário, confirma o raciocínio coerente, lógico e racional prosseguido pelos Exmos. julgadores para dar como provados os ou não provados os factos em discussão.
Facilmente se percebendo, da leitura do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, que a mesma é escorreita, devida e profusamente fundamentada - maxime no que tange à concreta intervenção de ambos os arguidos nos factos em apreço -, e os juízos e a análise crítica que ali é expendida são apreendidos pelo leitor comum, isto é, são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.
Refira-se, aliás, que, no fundo, o que o recorrente A. S. pretende é questionar o modo como o Tribunal recorrido formou a convicção relativamente aos factos em causa, visando impor a sua própria tese acerca dos mesmos.
Olvidando, além do mais, que, para que este tribunal de recurso pudesse levar a cabo a pretendida alteração da matéria de facto, tornava-se necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse uma tal alteração, mas antes impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no citado Artº 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal).
Sendo certo que, como assertivamente se refere no acórdão da Relação de Évora de 19/05/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 441/10.5TABJA.E2, disponível in www.dgsi.pt, “Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela.”.
Ora, no caso vertente, tendo em consideração as normas legais e os princípios jurídicos acabados de enunciar, e analisando o acórdão recorrido quanto à motivação sobre a matéria de facto, facilmente se constata que as provas produzidas em audiência de discussão e julgamento não "impõem" uma decisão diversa daquela que foi proferida pelo tribunal a quo.
Antes a confirmam, como já dissemos.
É certo que ao recorrente A. S. assistia o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à sua defesa, o que fez nos termos que constam das respectivas conclusões recursórias.
Porém, em bom rigor, o recorrente, ao alegar em tais moldes, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos, e socorrendo-se de pormenores desgarrados (com transcrição cirúrgica e descontextualizada de partes das declarações de ambos os arguidos e dos depoimentos das testemunhas R. F., E. G. e M. T.) da visão global que sempre deve existir, em boa verdade o recorrente está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aquele adquiriu em julgamento, olvidando a regra da livre apreciação da prova ínsita no Artº 127º do C.P.Penal, a que já por diversas vezes aludimos.
Pelo que, não se detectando na decisão recorrida qualquer vício e ou violação de nenhuma das normas a este propósito invocadas pelo recorrente, ou nulidades que não se encontrem sanadas, tem-se a matéria de facto definitivamente assente.
Nestas circunstâncias, soçobra o recurso do arguido A. S., nesta parte.
*
3.2. Do cometimento, pelo arguido J. N., de um crime de homicídio qualificado

Nesta sede, defende o recorrente A. S. dever ser o arguido J. N. condenado pela prática, como autor material, na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, pelo qual vinha pronunciado.

Porém, tal pretensão está votada ao insucesso.

Na verdade, como claramente resulta das conclusões recursórias deste recorrente, a procedência desta questão pressupunha, além do mais, que tivesse êxito a impugnação da matéria de facto por ele suscitada, no sentido de serem considerados como provados os factos que o tribunal a quo considerou como não provados nos pontos f), g) e h), o que não sucedeu.
Consequentemente, sem necessidade de outras considerações acerca deste assunto, por totalmente despiciendas, soçobra o recurso do arguido A. S., nesta parte.
*
3.3. Actuou, ou não, o arguido J. N. em legítima defesa e, concomitantemente, deve ou não ser o mesmo condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada ou, caso assim não se entenda, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples?

Como se viu, nesta sede preconiza o recorrente Ministério Público, no que é secundado pelo recorrente A. S., que a factualidade dada como provada pelo tribunal a quo não permite concluir, como se concluiu no acórdão recorrido, que o arguido J. N. actuou em legítima defesa, e que, pelo contrário, tal factualidade provada integra, objectiva e subjectivamente, a prática, pelo mesmo arguido, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, com dolo eventual, p. e p. pelos Artºs. 14º, nº 3, 145º, nº 1, al. a) e nº 2, com referência à al. h), do nº 2, do Artº 132º do Código Penal, devendo o mesmo arguido ser condenado pela sua prática.
Defendendo, ainda, o recorrente Ministério Público, que, caso se entenda que os factos provados não comportam, do ponto de vista subjectivo, a condenação de tal arguido pela prática do crime qualificado, por se entender que não basta existir dolo relativamente ao resultado produzido, mas que este teria que abranger os elementos constitutivos dos exemplos-padrão previstos no nº 2, do Artº 132º do Código Penal, deverá antes o arguido J. N. ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade simples, p. e p. pelos Artºs. 14º, nº 3 e 143º, do Código Penal, uma vez que a factualidade assente é suficiente para tal.
Ora, face a estas posições dos recorrentes, a questão essencial que importa apurar prende-se com a verificação, ou não, no caso concreto, dos requisitos da legítima defesa.
A legítima defesa, como causa de exclusão da ilicitude, constitui o exercício de um direito constitucionalmente consagrado (cfr. Artº 21º da Constituição da República), o qual, de igual modo, se encontra previsto, para efeitos penais, nos Artºs. 31º e 32° do Código Penal.

Efectivamente, sob a epígrafe “Exclusão da ilicitude”, prescreve o Artº 31º do Código Penal:

“1 - O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2 - Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
a) Em legítima defesa;
(...).
Encontrando-se a noção de “legítima defesa” na norma subsequente, Artº 32º do mesmo diploma legal, nos seguintes termos:
“Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.”.

A propósito desta figura jurídica, e dos seus fundamentos, ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 405:

“(...) são dois os fundamentos da força justificativa da legítima defesa. Por um lado a necessidade de defesa da ordem jurídica, através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão; se justificará que, numa palavra, a legítima defesa não esteja limitada por uma ideia de proporcionalidade (...). Mas por outro lado também a necessidade de protecção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Afirmando este duplo fundamento, porém, não desejamos ficar numa postura de “não só, mas também”. Antes pensamos que os dois fundamentos se ligam e interpenetram através da ideia - muito justamente formulada por Stratenwerth - de que na legítima defesa se trata em último termo de uma preservação do Direito na pessoa do agredido (...). Mas também inversamente: não há fundamento para uma acção de legítima defesa quando, no caso, se verifique um interesse na preservação do Direito, mas inexista a necessidade de protecção do bem jurídico (...). À defesa de um bem jurídico acresce sempre o propósito da preservação do Direito na esfera da liberdade pessoal do agredido, tanto mais quanto a ameaça resulta de comportamento ilícito de outrem (...)”.

Como é comummente aceite pela doutrina e pela jurisprudência, para a perfectibilização desta figura jurídica torna-se necessário que se verifiquem os seguintes predicados ou requisitos:

a) A existência de uma agressão actual, em execução ou iminente, a quaisquer interesses, pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro;
b) Que essa agressão seja ilícita ou antijurídica;
c) Que o agente actue com "animus defendendi", ou seja, que aja com o intuito de se defender, com o fim de pôr termo à agressão em curso ou à agressão iminente;
d) Que o meio empregado seja necessário e racional; e
e) Que o agente esteja impossibilitado de recorrer à força pública.

Requisitos esses que o Exmo. Conselheiro Maia Gonçalves lapidarmente sintetiza em anotação ao Artº 32º do seu “Código Penal Português”, 14ª Edição, Almedina, 2001, pág. 149, nos seguintes termos:

"Do que ficou exposto se deduz que são requisitos da legítima defesa:

a) A existência de uma agressão a quaisquer interesses, sejam pessoais ou patrimoniais, do defendente ou de terceiro. Tal agressão deve ser actual, no sentido de estar em desenvolvimento ou iminente, e ilícita, no sentido geral de o seu autor não ter o direito de a fazer; não se exige que ele actue com dolo, com mera culpa ou mesmo que seja imputável; é por isso admissível a legítima defesa contra actos praticados por inimputáveis ou por pessoas agindo por erro;
b) Defesa circunscrevendo-se ao uso dos meios necessários para fazer cessar a agressão paralisando a actuação do agressor. Aqui se inclui, como requisito da legítima defesa, a impossibilidade de recorrer à força pública, por se tratar de um aspecto da necessidade do meio. Trata-se do afloramento do princípio de que deve ser a força pública a actuar, quando se encontra em posição de o poder fazer, sendo a força privada subsidiária, e este requisito continua a ser exigido pela CRP.
c) Animus defendendi, ou seja o intuito de defesa por parte do defendente.”.

No mesmo sentido a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/09/2008, proferido no âmbito do Proc. nº 08P2491, relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Henriques Gaspar, em cujo sumário se afirma:

“X - Segundo a definição mais clássica de legítima defesa – acção necessária para repelir por si mesma um ataque actual e antijurídico, que, essencialmente, vem aceite no art. 32.º do CP –, a situação de defesa pressupõe e tem de ser desencadeada por uma agressão actual e ilícita contra o agente ou terceiro, afectando bem jurídico susceptível de ser protegido através de defesa. Deve, pois, existir uma agressão – que significa toda a lesão ou a iminência de lesão (perigo imediato) – de um interesse juridicamente protegido do agente ou de terceiro, desde que o comportamento do agressor se apresente com um mínimo de causalidade de acção.
XI - Para o efeito de integração dos pressupostos da situação de legítima defesa, a agressão deve ser actual, no sentido de que está em execução ou iminente, porque o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado. A agressão está iminente quando, embora ainda não iniciada, numa aproximação analógica aos elementos da tentativa, se deva seguir imediatamente, segundo a leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente. Ou seja, para determinar a iminência ou a actualidade é decisivo o prognóstico objectivo de um espectador experimentado colocado na situação do agente e não a representação subjectiva deste. A mera intenção, sem ser exteriormente accionada, não constitui iminência de agressão (cf., v.g., Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo 1, 2.ª edição, págs. 411-412, e Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, ob. cit., pág. 366). A iminência da agressão estará presente nas situações em que se saiba antecipadamente, com certeza ou com elevado grau de probabilidade, que terá lugar.
XII - Perante uma agressão actual e antijurídica pode ter lugar a defesa necessária. A legítima defesa, como defesa necessária, supõe, porém, uma vontade de defesa, não no sentido de exclusão, pois desde que exista tal vontade, podem concorrer, para além desta, outros motivos (v.g., ódio, indignação, vingança), mas com tratamento específico quando, perante o animus deffendendi, sobrelevem a necessidade de defesa. A necessidade (art. 32.º do CP: “meio necessário”) da acção defensiva para repelir o ataque constitui, assim, um pressuposto da situação de legítima defesa.
XIII - Mas a actuação com vontade de defesa depende dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Existindo o conhecimento de uma situação objectiva de legítima defesa, não tem sentido a exigência adicional, como se fosse autónoma, de uma co-motivação de defesa (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 438, e Roxin, ob. cit., pág. 667).
XIV - A exigência da necessidade que qualifica os meios de defesa admissíveis traduz-se na escolha do meio menos gravoso para o agressor, de acordo com o juízo do momento, mas com natureza ex ante, avaliando objectivamente toda a dinâmica do acontecimento. A necessidade da acção defensiva supõe que esta não deve passar além do que seja adequado para afastar e repelir eficazmente a agressão – princípio da menor lesão para o agressor, avaliada segundo critérios objectivos; por isso, quem defende deve escolher de entre os meios eficazes de defesa que estejam, em concreto, à sua disposição, aquele que resulte menos perigoso e que cause menor dano.
XV - Assim, a acção defensiva necessária é a que é idónea para a defesa e constitui o meio menos prejudicial para o agressor. A avaliação da necessidade depende do conjunto de circunstâncias nas quais ocorre a agressão e a reacção – especialmente a intensidade do concreto meio ofensivo e da ofensa, as características pessoais do agressor em contraposição com as características pessoais do defendente (idade, compleição, experiência em situações de confronto, perigosidade e modo de actuação), bem como dos meios disponíveis para a defesa – e deve valorar-se sob uma perspectiva objectiva, isto é, tal como um homem médio colocado na posição do agredido teria valorado as circunstâncias da agressão.
XVI - A necessidade liga-se ao próprio fundamento teleológico da causa de exclusão da ilicitude – não ceder perante o ilícito; a acção defensiva não será necessária quando, por exemplo, se verifique uma «crassa desproporção» entre a natureza, qualidade ou intensidade da agressão e a gravidade das consequências da reacção. Agressões irrelevantes não poderão ser repelidas causando a morte; não pode existir, analisada caso a caso, uma desproporção intolerável entre a natureza da agressão e a gravidade das consequências da reacção (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 430, e Claus Roxin, ob. cit., pág. 663).
XVII - A ponderação da necessidade (menor lesividade) tem, porém, de ser compreendida nas circunstâncias do caso: a defesa pode ser intensa para fazer terminar rápida e completamente a agressão ou a eliminação do perigo, não sendo exigível que o agredido apenas utilize tímidos intentos de defesa que podem fazer correr o risco de continuação ou de intensificação da agressão.
XVIII - A interpretação da exigência de “necessidade” deve conduzir ao resultado político-criminalmente desejável de que os erros objectivamente insuperáveis sobre a necessidade do meio defensivo sejam tomados em prejuízo do agressor.
XIX - Na ponderação sobre a necessidade dos meios não deve, porém, entrar-se em linha de conta com a possibilidade de fuga; escapar não é repelir a agressão (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 419, e Claus Roxin, ob. cit., pág. 631-633).
XX - A necessidade e o exame sobre a necessidade surgem ex ante e não supõem uma ponderação de proporcionalidade dos bens jurídicos implicados. É esta a posição maioritária na doutrina nacional, que nos últimos cinquenta anos não parece atender ou considerar a exigência de proporcionalidade dos bens, fundamentando-se, para tanto, no princípio de que «o direito não tem que ceder ao ilícito» (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 428, Américo A. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, 1995, págs. 423-424, e, sobre as diversas posições na questão, Teresa Quintela de Brito, Homicídio Justificado em Legítima Defesa e em Estado de Necessidade, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, pág. 185 e ss.).
XXI - O uso de um meio não necessário constitui excesso de meios ou excesso intensivo que não exclui a ilicitude do facto defensivo – art. 33.º do CP.”.
Isto posto, percorrendo a materialidade dada como assente no acórdão recorrido, afigura-se-nos que a mesma suporta claramente todos os aludidos requisitos, como ali se decidiu.
Efectivamente, como se provou, o arguido A. S. manteve um relacionamento amoroso com M. S., no âmbito da qual, no dia - de Novembro de 2002, nasceu A. M..
Mais se provou que este relacionamento amoroso terminou em dia que, em concreto, não foi possível apurar, mas situado em Novembro de 2016.
Que a aludida M. S., nessa mesma altura, iniciou um relacionamento amoroso com o arguido J. N., o que não foi do agrado do arguido A. S..
Que, nessa sequência, no dia 31 de Dezembro de 2016 ou no dia 1 de Janeiro de 2017, este arguido abordou A. C. – tio do arguido J. N. –, e, em tom sério, grave e consciente, disse-lhe “o teu sobrinho anda com a minha companheira, tenho que lhe dar uma coça”.
Que no dia 2 de Janeiro de 2017, o mencionado A. S. abordou J. F. – mãe do identificado J. N. – e, depois de dizer-lhe que o filho desta andava com a sua mulher e que lhe estava a tirar o amor da sua vida, afirmou “eu a ele vou-lhe fazer a folha”.
Que desde então, o arguido A. S. passou a vigiar a residência do arguido J. N..
Que aquele A. C., ao ouvir a supra referida expressão, proferida pelo aludido A. S., no tom em que a proferiu, ficou receoso, temendo que este arguido viesse, num futuro próximo, a atentar contra a integridade física do seu sobrinho J. N..
Que o arguido A. S. proferiu tais expressões, junto de A. C. e de J. F., com o objectivo de criar medo e receio ao J. N., pois que tinha a plena consciência de que devido à relação de proximidade – familiar – existente, tais expressões chegariam ao seu conhecimento, como chegaram.
Que essas expressões foram acompanhadas da passagem frequente do identificado A. S. pela casa do J. N., adequadas a criar-lhe medo e receio da probabilidade séria de concretização do mal que lhe era anunciado.
Que o J. N., em virtude dessas expressões, sentiu-se intimidado, amedrontado e experimentou um forte sentimento de insegurança, tendo receado pela sua integridade física.
Que, como resultado de tais expressões, o J. N. ficou seriamente abalado e perturbado na sua paz, sossego e tranquilidade da vida quotidiana, pois que passou a ter medo de sair da sua habitação, sobretudo durante a noite, vivendo em permanente estado de ansiedade e sobressalto, com fobias e medo constantes, o que também foi sentido por aqueles que mais de perto conviviam consigo, pois que passou a ser uma pessoa mais acanhada e fechada e a ter uma atitude mais receosa e desconfiada em geral.
Que o estado de ansiedade supra referido provocou no J. N. perda de sono, maior irritabilidade e dificuldades de concentração.
Que o J. N., devido àquelas expressões, passou a evitar cruzar-se com o arguido A. S. e a frequentar os mesmos locais, designadamente, os cafés da aldeia, passando ainda a fazer outros caminhos para sair e regressar à sua residência.
E que o J. N., desde que teve conhecimento das ameaças proferidas pelo A. S., passou a andar apavorado e a temer ser abordado por este último, vivendo com receio que viesse a concretizar os intentos anunciados, por si ou por interposta pessoa, pois que conhece-o bem há várias décadas.
Outrossim, ficou demonstrado que, no dia 6 de Janeiro de 2017, o arguido J. N., em hora que, em concreto, não foi possível determinar, mas situada no período compreendido entre as 20 horas e 30 minutos e as 21 horas, deslocou-se à residência da mencionada M. S., sita na Rua ..., nº 41, da freguesia ... (actual União de Freguesias de ... e ...), do concelho de Amares, fazendo-se transportar no veículo automóvel da marca ‘Renault’, modelo ‘Clio’, com a matrícula DM, que estacionou junto dessa habitação, a uma distância de cerca 15m/20m, num acesso situado fora da faixa de rodagem da referida Rua.
Que este arguido permaneceu na identificada moradia até cerca das 22 horas e 30 minutos / 22 horas e 45 minutos.
Que o arguido A. S., por sua vez, ao passar no seu veículo automóvel junto da habitação daquela M. S., avistou a viatura DM.
Que, nessas circunstâncias, o aludido A. S. prosseguiu a sua marcha até à sua residência, após o que dirigiu-se apeado até à habitação da identificada M. S..
Que este arguido, uma vez aí chegado, decidiu permanecer no local à espera que o arguido J. N. saísse desta habitação, o que fez com o objectivo de emboscá-lo e agredi-lo fisicamente.
Que, nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido A. S. estava munido com um objecto não concretamente identificado, mas em tudo idêntico a uma chave de fendas.
Que, entretanto, o arguido J. N. abandonou a residência daquela M. S., dirigiu-se para o veículo DM, abriu a porta desta viatura, colocou-se no lugar do condutor, fechou essa porta, inseriu a chave na ignição e accionou-a – com o que se acenderam as luzes de estrada –, após o que engrenou a marcha-atrás.
Que, quando assim se encontrava, o arguido J. N. foi abordado pelo arguido A. S. que, após abrir a porta do DM, segurou-a com a mão esquerda e posicionou-se entre essa porta e a entrada para o banco do condutor. Que, acto contínuo, o arguido A. S., fazendo uso da sua mão direita, desferiu um murro na face do arguido J. N., causando-lhe dores físicas.
Que após este murro, aquele A. S., dirigindo-se ao arguido J. N., disse-lhe “passa para o outro lado”, o que este último recusou.
Que, em seguida, o arguido A. S., com a sua mão direita, desferiu um novo murro na face do arguido J. N. com o que lhe causou mais dores físicas.
Que, nestas circunstâncias o aludido A. S. mantinha-se a empunhar na sua mão esquerda o objecto supra referido (não concretamente identificado, mas em tudo idêntico a uma chave de fendas).
Que o arguido J. N., perante as descritas agressões, após aperceber-se da existência desse objecto e desconhecendo se o mencionado A. S. se fazia acompanhar, receou pela sua integridade física e mesmo pela sua própria vida, pelo que aproveitou-se do facto de a marcha-atrás estar engrenada para arrancar com o veículo DM, recuando num total de cerca de 5m.
Que o arguido A. S., por seu turno, assim que o arguido J. N. iniciou esse trajecto, agarrou-se à porta da viatura DM.
E que, no momento em que esta viatura saiu do acesso supra referido e entrou na faixa de rodagem da Rua ..., o A. S., devido ao desnível aí existente, acabou por cair ao chão, ficando deitado de barriga para baixo, altura em que a roda dianteira esquerda do veículo DM passou por cima da sua perna esquerda, em concreto do seu tornozelo, bem como pelo lado esquerdo do seu tronco e por cima do seu braço esquerdo, causando-lhe as seguintes lesões: [i] diversas feridas na face e cabeça; [ii] escoriações nos 4 (quatro) membros; [iii], fractura dos arcos costais (nos 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 7º anteriores direitos, nos 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º e 10º posteriores direitos, fractura da junção costocondral do 2º esquerdo, e 3º, 4º, 6º, 7º e 8º esquerdos); [iv] pneumotórax bilateral; [v] fractura dos ossos do nariz; [vi] fractura da apófise transversa de L3; e [vii] fractura do maléolo medial esquerdo.
Ora, da conjugação desta factualidade resulta para nós claro que estão verificados os pressupostos da legítima defesa.
Efectivamente, no aludido circunstancialismo, o arguido J. N. estava a ser ilicitamente agredido fisicamente pelo arguido A. S., que se fazia munir de um objecto não concretamente identificado, mas em tudo idêntico a uma chave de fendas, e a defesa por ele encetada era necessária, pois que indispensável à salvaguarda de um interesse juridicamente protegido (a sua integridade física e a sua vida). Não havendo dúvidas de que agiu, como se diz no acórdão recorrido, “com a (única) intenção de se defender, sem que a sua acção defensiva – que radicou no uso do veículo automóvel DM – tenha ultrapassado o que se afigurava razoavelmente necessário para repelir tal agressão, na medida em que encontrava-se no interior da viatura, na posição de sentado, com os movimentos, portanto, mais limitados que o identificado A. S. e impedido pelo corpo deste de poder sair, além de desconhecer se se fazia acompanhar (ou não) por mais pessoas.”
Sendo certo que “o comportamento do arguido J. N. foi expectável e contém-se nos padrões da actuação do homem médio colocado nas mesmas circunstâncias factuais, onde se revelam, forçosamente, medos e receios sobre a sua integridade física e até a vida.”.
Ademais, o recurso a diferente meio (nomeadamente o recurso às autoridades policiais), para o propósito visado, não se mostrava, então, disponível e exequível para o arguido J. N., sendo que, na circunstância, a sua acção se revelou minimamente necessária e idónea.
E não se argumente que o arguido J. N. não actuou com intenção defensiva relativamente à agressão de que estava a ser alvo por banda do arguido A. S..
Pois, salvo o devido respeito, esse “animus defendendi” resulta manifesto de todo o quadro fáctico supra descrito, com especial acuidade para o ponto 24 no qual expressamente se consignou que “O arguido J. N., perante as descritas agressões, após aperceber-se da existência desse objecto e desconhecendo se o mencionado A. S. se fazia acompanhar, receou pela sua integridade física e mesmo pela sua própria vida, pelo que aproveitou-se do facto de a marcha-atrás estar engrenada para arrancar com o veículo DM, recuando num total de cerca de 5m.”
Finalmente, também se nos afigura pacífico que o facto dado como provado no ponto 31, segundo o qual “O arguido J. N., ao actuar do modo supra descrito, representou como possível atingir o arguido A. S., pelo menos, na sua integridade física, resultado com o qual se conformou”, não exclui a intenção defensiva, afastando a legítima defesa.
Pois, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27/10/2018, proferido no âmbito do Proc. nº 971/09.1JAPRT, relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Henriques Gaspar, “A vontade de defesa concorrerá, necessariamente, quando objectivamente se verifiquem os pressupostos de actuação e quando o agente actue no quadro desses pressupostos. A confluência ou a agregação de elementos de vontade e de outras finalidades não exclui a vontade de defesa. Não pode, pois, perante as circunstâncias objectivas provadas, ser afastado o animus defendendi. Mas a actuação com vontade de defesa depende dos bens jurídicos ameaçados pela agressão. Existindo o conhecimento de uma situação objectiva de legítima defesa, não tem sentido a exigência adicional, como se fosse autónoma, de uma co-motivação de defesa.”.

Subscrevendo-se, também, as observações que o arguido J. N. teceu a este propósito na sua resposta ao recurso do Ministério Público:

“(...) quando uma pessoa está a ser agredida a pontapés; se a vitima reagir, para se defender, com socos, sabe de antemão, com as suas capacidades normais de homem médio, que a zona atingida do agressor pelo soco ficará maltratada, no entanto, tal não retira à sua actuação de legitima defesa e necessária a afastar um mal a si dirigido.
Ora, face à “emboscada” preparada pelo arguido A. S., o recorrido só teve como alternativa fugir do local onde se encontrava em perigo.
Atento o pânico e aflição sentidas pelo recorrido e os brevíssimos momentos dentro dos quais teve de decidir, o uso do veiculo automóvel DM para sair do local mostra-se expectável e dentro dos padrões da actuação do homem médio colocado nas mesmas circunstâncias factuais.
A legítima defesa, enquanto reacção humana não se pode medir ao milímetro “a régua e esquadro”, porque aquele que se defende não pode raciocinar friamente e pesar com perfeito e incomensurável critério a sua actuação, pois no estado emocional em que se encontra não dispõe de reflexão precisa para exercer a sua defesa de qualquer outra forma.”.
Preenchidos que estão, pois, todos os requisitos da legítima defesa, não é criminalmente punível o facto perpetrado pelo arguido J. N., atento o que preceituam os supra citados Artºs. 31º, nºs. 1 e 2, al. a) do Código Penal, e 21º da Constituição da República.
Não merecendo qualquer crítica o tribunal a quo quando julgou verificada a figura jurídica em questão e, na sua consequência, absolveu aquele arguido, não só quanto à parte criminal, como em relação ao pedido cível deduzido pelo demandante A. S..
E em face desta conclusão, também se torna manifesta e evidente a falência da tese dos recorrentes, quando preconizam a condenação do mesmo arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física (qualificada ou simples).
Sendo certo que, como bem adverte o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu douto parecer, perante a factualidade considerada não provada, constante da alínea h), sempre o elemento subjectivo de qualquer um daqueles ilícitos criminais escaparia ao preenchimento de qualquer um dos aludidos crimes de ofensa corporal.
Soçobram, pois, nesta parte, os recursos do Ministério Público e do arguido A. S..
*
3.4. Da pena aplicada ao arguido A. S. pela prática do crime de ofensa à integridade física (9)

Recordemos, mais uma vez, que em face dos factos dados como assentes, o tribunal a quo condenou o arguido A. S. pela prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efectivo, real e heterogéneo, de:

a) Dois crimes de ameaça, na pessoa do arguido/assistente J. N. (por via de A. C. e J. F.), p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº 1, 26º, 1ª proposição, 30º, nº 1, 77º e 153º, nº 1, todos do CP, na pena parcelar de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 360,00 (trezentos e sessenta euros), para cada um;
b) Um crime de ofensa à integridade física simples, na pessoa do assistente/arguido J. N., p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 143º, nº 1, todos do CP, na pena parcelar de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de € 660,00 (seiscentos e sessenta euros); e
d) Em cúmulo jurídico das aludidas penas, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), num total de € 900,00 (novecentos euros).

Que, neste âmbito, defende o recorrente A. S. que, em relação ao crime de ofensa à integridade física simples, deveria ter beneficiado do instituto da dispensa de pena, já que, em seu entender, a ilicitude do acto praticado é diminuta, o grau de culpa é reduzido, e que da agressão não resultaram consequências significativas, não havendo sequer uma lesão física a reportar.
E que, para a hipótese de assim não se entender, o Tribunal a quo não ponderou, de forma correcta, os critérios legais previstos nos Artºs. 70º e 71º do Código Penal, na escolha e determinação da medida da pena com que sancionou o recorrente, quer em termos de culpa, quer em termos das exigências de reprovação e prevenção, podendo e devendo ter optado por uma pena mais baixa, situada no mínimo legal.
Apreciando, liminarmente se adianta não estarem minimamente verificados os pressupostos que permitam a aplicação ao recorrente A. S. do instituto da dispensa da pena relativamente àquele ilícito penal, o qual - recorde-se -, é abstractamente punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 143º, nº 1, e 47º, do Código Penal.
Mas convoquemos as duas normas legais com base nas quais a vexata quaestio deve ser solucionada.

Desde logo, o Artº 74º do Código Penal, que sob a epígrafe “Dispensa de pena” prescreve:

“1 - Quando o crime for punível com pena de prisão não superior a 6 meses, ou só com multa não superior a 120 dias, pode o tribunal declarar o réu culpado mas não aplicar qualquer pena se:
a) A ilicitude do facto e a culpa do agente forem diminutas;
b) O dano tiver sido reparado; e
c) À dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção.
2 - Se o juiz tiver razões para crer que a reparação do dano está em vias de se verificar, pode adiar a sentença para reapreciação do caso dentro de 1 ano, em dia que logo marcará.
3 - Quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do nº 1.”.

Depois, o Artº 143º, nº 3, do mesmo diploma legal, que estatui:

“3 - O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”.

Ora, na situação em apreço, constata-se que no acórdão recorrido não consta qualquer factualidade que permita sustentar a tese esgrimida pelo recorrente, no sentido de integrar os requisitos a que aludem as transcritas normas legais.

Desde logo não se verificam os requisitos a que alude o Artº 143º, nº 3, do Código Penal, pois que não se demonstrou a existência de lesões recíprocas e que o arguido A. S. tivesse unicamente exercido retorsão sobre o agressor, sendo certo que, pelo contrário, ficou provado ter sido o recorrente quem abordou o arguido J. N. e lhe desferiu dois murros na cara.
Por outro lado, também não estão verificados os requisitos que cumulativamente constam do transcrito Artº 74º, nº 1, do Código Penal.
Em primeiro lugar, porque o dano causado pelo arguido recorrente não foi reparado.
Depois, porque, contrariamente ao que alega, não são diminutos quer o grau de ilicitude, quer a culpa do recorrente, concordando-se com o raciocínio expendido pelos Mmºs. Juízes que integram o tribunal colectivo quando, a propósito da determinação da medida concreta da pena, afirmaram no acórdão recorrido que o crime em causa, de ofensa à integridade física simples, “foi cometido na sequência de uma emboscada que o mencionado A. S. preparou ao identificado J. N., aproveitando-se do facto de ser já de noite para permanecer escondido e surpreendê-lo quando se encontrava no interior do veículo DM e se preparava para regressar à sua residência, assim diminuindo, sobremaneira, a sua capacidade de defesa”, e que “Depõe, igualmente, contra aquele A. S. a intensidade do dolo (...), consubstanciada na sua modalidade mais grave – o dolo directo –, projectando a sua actuação e as suas imediatas consequências e conformando-se com a sua actuação ilícita (...), facto que fazendo elevar a ilicitude inerente à sua conduta (...), acentua o grau de premência das referidas exigências de prevenção, ao mesmo tempo que acentua o juízo de censurabilidade penal a fazer impender sobre o arguido.”.
Finalmente, também se nos afigura que são elevadas as exigências de prevenção, maxime de prevenção geral, urgindo reafirmar perante a comunidade a validade das normas que tutelam o respeito pela integridade física de terceiros.
Consequentemente, torna-se manifesto e evidente que o recorrente A. S. não podia, nem pode, beneficiar da aplicação de tal instituto, dado não se verificarem os respectivos requisitos legais.
Quanto à pena concreta aplicada pelo tribunal a quo relativamente ao crime em causa, de ofensa à integridade física simples, sustenta o recorrente A. S., como se viu, a sua excessividade, preconizando a aplicação da pena mínima legalmente prevista.
Mais uma vez, e adiantando já a nossa resposta, não tem viabilidade a sua pretensão.
Nos termos do disposto no Artº 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a protecção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afectados.
Na protecção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.

No caso concreto, a finalidade de tutela e protecção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afectados.

Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do Artº 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.

A operação de determinação da pena, dentro dos apontados limites, faz-se, segundo o Artº 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:

- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a);
- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).

No caso vertente, o tribunal a quo, em sede de determinação das penas concretas a aplicar ao arguido, expendeu o seguinte:

“Assim, depõe contra o arguido o grau da ilicitude do seu comportamento, o modo de execução do facto e a gravidade das suas consequências que não é susceptível de extravasar os elementos medianos do tipo: [i] quanto aos crimes de ameaça: atenta a seriedade e o teor das ameaças que dirigiu ao assistente/arguido J. N., provocando-lhe medo, insegurança e intranquilidade inusitados; e [ii] quanto ao crime de ofensa à integridade física simples: tendo em conta que, como resultado da conduta do aludido A. S., o assistente/arguido J. N. sofreu dores físicas e mal-estar, não se tratando, portanto, de consequências muito graves, nem duradouras, que se curaram por si próprias, sem que fosse necessário recorrer a assistência médica e/ou medicamentosa, nem adviesse qualquer incapacidade permanente ou temporária (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP).
Não poderemos, contudo, deixar de ter em consideração que este último crime foi cometido na sequência de uma emboscada que o mencionado A. S. preparou ao identificado J. N., aproveitando-se do facto de ser já de noite para permanecer escondido e surpreendê-lo quando se encontrava no interior do veículo DM e se preparava para regressar à sua residência, assim diminuindo, sobremaneira, a sua capacidade de defesa (cfr. artigo 71º, nº2, alínea a), do CP).
Depõe, igualmente, contra aquele A. S. a intensidade do dolo nos crimes cometidos, consubstanciada na sua modalidade mais grave – o dolo directo –, projectando a sua actuação e as suas imediatas consequências e conformando-se com a sua actuação ilícita (cfr. artigos 14º, nº1 e 71º, nº2, alínea b), do CP), facto que fazendo elevar a ilicitude inerente à sua conduta (é menor a sensibilidade à pena que lhes venha a ser aplicada), acentua o grau de premência das referidas exigências de prevenção, ao mesmo tempo que acentua o juízo de censurabilidade penal a fazer impender sobre o arguido.
Da mobilização probatória resultou demonstrado que a motivação primária do arguido está relacionada com a falta de aceitação do fim do seu relacionamento amoroso com M. S., agindo, portanto, movido por ressentimento pessoal, egoísmo e ciúme, o que merece repúdio (cfr. artigo 71º, nº 2, alínea c), do CP).
Os factores relativos à sensibilidade à pena e susceptibilidade de por ela ser influenciado, qualidades da personalidade manifestadas no facto e conduta anterior e posterior ao facto, não favorecem a responsabilidade criminal do arguido (artigo 71º, nº 2, alínea e), do CP).
Na verdade, nos termos do artigo 71º, nº 2, alínea e), do CP, depõe, ainda, contra o arguido, o facto de apresentar antecedentes criminais pela prática: [i] em Dezembro de 2001, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, punido com pena de multa (cfr. Processo Comum Singular nº71/07.9TAAMR); e [ii] em Dezembro de 2009, de um crime de tráfico de estupefacientes, punido com pena de prisão suspensa na sua execução (cfr. Processo Comum Singular nº472/09.8GAAMR).
Contudo, as necessidades de ressocialização do aludido A. S. e a sua sensibilidade à pena criminal que lhe venha a ser aplicada resultam mitigadas atenta a diferente natureza dos crimes ora sob discussão, a par do considerável lapso temporal verificado entre os acontecimentos dos presentes autos e aqueles que sustentam as enunciadas condenações, superior a 10 (dez) anos.
A favor do arguido depõe o apoio familiar de que dispõe – refez a sua ligação amorosa com a identificada M. S., participa na educação e formação da filha de ambos e mantém com os 3 (três) filhos mais velhos uma relação de maior proximidade – e social – pois que é reconhecido como pessoa bem inserida, além de que executa sazonalmente tarefas agrícolas (colheita de fruta) e presta apoio a um amigo numa oficina de mecânica onde exerce tarefas diferenciadas (cfr. artigo 71º, nº2, alínea d), do CP).
Deste modo, as relações familiares e sociais do arguido, bem como o tempo que tem disponível mostram-se adequadamente estruturados.
Acresce manifestar adequadas capacidades para reconhecer a ilicitude e formular juízos críticos acerca dos factos ora sob censura – sem prejuízo da propensão que evidenciou para colocar-se na posição de vítima.

Face ao exposto, não obstante a conduta do arguido A. S. merecer um juízo ético-jurídico de censura, considera-se que retomará uma atitude fiel ao Direito, pelo que se julga justo, adequado e equitativo concluir que merece uma censura penal concreta que, não ultrapassando a medida da culpa e observando as finalidades e limites da prevenção geral e as necessidades de prevenção especial, se deve situar:

(...)
Crime de ofensa à integridade física simples: na pena parcelar de 110 (cento e dez) dias de multa.”.
Subscrevemos estas considerações do tribunal a quo a propósito desta questão.
Assim, ponderados todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à intensidade da culpa e, sobretudo, à necessidade da pena, mostra-se que só a pena aplicada pelo tribunal de primeira instância conseguirá satisfazer as sentidas necessidades de afirmação do bem jurídico violado, bem como a de procurar que o arguido não volte a delinquir.
Aliás, a propósito da controlabilidade da pena em sede de recurso, também Figueiredo Dias ensina que, sobre a determinação do seu quantum, a sindicância recursória deverá reservar-se para as hipóteses em que tiveram sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (10).
Ademais, há que referir que, tendo o Tribunal recorrido beneficiado da imediação e oralidade, este Tribunal de recurso apenas deveria intervir nas pena(s), modificando-a(s), se detectasse evidentes incorrecções ou distorções no seu processo de aplicação, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Sendo certo que, nesta sede, o recurso não deve visar nem pretender eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.
Em suma, tendo sido correctamente observados todos os critérios estabelecidos na lei, não se vislumbrando qualquer distorção na determinação da medida da(s) pena(s) levada a cabo pelo tribunal recorrido, improcede o recurso, nessa parte.
*
Assim, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, conclui-se que não foi violada nenhuma das normas legais invocadas pelos recorrentes, nem qualquer outra, e que nenhuma censura nos merece o douto acórdão recorrido, que se confirma, improcedendo in totum os presentes recursos.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:
a) Rejeitar o recurso da parte cível interposto pelo demandado A. S.;
b) Negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido A. S., confirmando-se, consequentemente, o acórdão recorrido.

Custas pelo arguido/recorrente A. S., fixando-se em 4 UC a taxa de justiça, delas estando isento o recorrente Ministério Público (Artºs. 513º, 514º e 522º, do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 8 de Fevereiro de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Diploma ao qual pertencem todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Cfr., neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e sgts., e o Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém actualidade.
4. Recorde-se que o recorrente Ministério Público conformou-se com a decisão sobre a matéria de facto, não a questionando minimamente no seu recurso.
5. Como relembra o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, primeiro volume, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, a págs. 229 e sgts., a oralidade e a imediação são dois princípios gerais do processo penal, sendo considerados como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual português. Acrescentando que o processo é dominado pelo princípio da oralidade quando o juiz profere a decisão com base em uma audiência de discussão oral da matéria a considerar, e consistindo a imediação como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
6. Ibidem, pág. 201 e sgts..
7. Sobre estas questões, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J., de 23/05/2007, proferido no âmbito do Proc. nº 07P1498 (relatado pelo Exmo. Sr. Conselheiro Henriques Gaspar), disponível in www.dgsi.pt.
8. Cfr. Ricce Bitti/Bruna Zanu; “A comunicação como Processo Social”; Editorial Estampa; Lisboa; 1997.
9. Neste ponto, por razões metodológicas, vamos abordar neste ponto as duas questões supra enunciadas, relacionadas com esta matéria, a saber: - A dispensa da pena no que tange ao crime de ofensa à integridade física; e a medida da pena.
10. In “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, 3ª Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 197.