Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
90/14.9GAMGD.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: COMPARTICIPAÇÃO CRIMINOSA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
QUEIXA CONTRA UM DOS ARGUIDOS
FALTA DE LEGITIMIDADE DO Mº Pº PROCEDIMENTO CRIMINAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/26/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) A norma do artigo 114.º do Código Penal permite ao titular do direito de queixa alargar a mesma aos demais comparticipantes, cuja identificação ou existência desconhecia, independentemente de já ter decorrido o prazo de seis meses previsto no n.º 1 do 115.º.
II) Porém, já não tem aplicação quando o queixoso sabia quem eram os autores dos factos de que foi vítima e tinha possibilidade de os identificar, na totalidade ou por mera indicação ao processo, mas para os quais, em qualquer caso, sempre poderia manifestar, desde logo, a intenção de procedimento criminal.
III) Nesses casos, o queixoso já não pode beneficiar da possibilidade de extensão do direito de queixa posto que a mesma radica no seu desconhecimento em relação à existência ou identificação dos outros comparticipantes.
IV) Se o titular do direito de queixa tem pleno conhecimento que outras pessoas intervieram nos factos e tem a possibilidade de os identificar, então tem o dever de, desse modo, os referenciar no processo, cabendo-lhe, no prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal, contra eles deduzir a respectiva queixa, sob pena de extinção desse direito.
V)No caso em apreço, estamos perante uma situação de comparticipação criminosa, pois há na queixa referência a factos praticados pelo arguido conjuntamente com a sua mulher, irmã do assistente, sucedendo, todavia, que no rosto do auto de denúncia que então foi lavrado consta apenas como denunciado o nome do arguido.
VI) E lido e explicado que foi ao assistente o conteúdo do auto de notícia, este assinou-o, resultando da assinatura aposta a concordância como o seu teor, sendo que posteriormente, nomeadamente aquando da realização de uma acareação, acto em que esteve assistido pelo seu mandatário, o assistente também não manifestou qualquer intenção de desejar procedimento criminal contra a sua irmã, apesar de constar expressamente do respectivo auto que esta interveio na diligência apenas na qualidade de ofendida e de o auto se encontrar assinado e rubricado quer pelo assistente, quer pelo seu advogado.
VII) Daí que o não exercício tempestivo da queixa por parte do recorrente em relação à sua irmã, aproveita ao arguido seu comparticipante nos actos delitivos, pois também ele não pode ser perseguido criminalmente sem a existência atempada de queixa, nos termos do n.º 3 do artigo 115.º do Código Penal.
VIII) Assim sendo, carece o Mº Pº de legitimidade para a promoção do procedimento criminal contra os arguidos relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, por não ter sido apresentada queixa contra a arguida.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Nos autos de instrução n.º 90/14.9GAMGD que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Mogadouro – Instância Local – Secção de Competência Genérica – J1 foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos Rui L. e Conceição C., no termo da instrução requerida pelo assistente António J. – visando a pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples – face ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público.
2. Inconformado com a decisão, recorreu o assistente António J., retirando da sua motivação as seguintes conclusões:
«1- A Ilustre Decisora não captou com fidelidade o conteúdo do requerimento de abertura de instrução: aí o recorrente não defendeu que a legitimidade e a extensão dos efeitos da queixa se bastarem com a apresentação de queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes nem se limitou a discutir a extensão dos efeitos da queixa;
2- O entendimento prévio do Tribunal de que o assistente, António J. configurando embora uma comparticipação criminosa apenas apresentou queixa contra Luís L., sendo que só contra ele o Ministério Público tinha legitimidade para investigar, mas não a apresentou contra a irmã Conceição C. inquinou irremediavelmente os autos de instrução e a decisão final;
3- De acordo com o estatuído nos arts. 113.º e 114.º do C. Penal, a legitimidade e a extensão dos efeitos da queixa dizem-nos que basta a sua apresentação contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes; mais do que o autor do crime, nessa fase interessa essencialmente a queixa pelo crime;
4- Em crimes de natureza semi-pública o M.P. tem o dever de praticar os actos de inquérito necessários ao apuramento da responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito;
5- A validade da queixa não exige nenhuma fórmula nem uma declaração expressa com utilização do termo «queixa»; nem exige a forma escrita, mas apenas uma manifestação de vontade inequívoca de pretender desencadear o procedimento criminal;
6- O recorrente manifestou a sua vontade de que fosse instaurado procedimento criminal contra ambos os agressores, Conceição C. e Rui L., pela ocorrência que narrou; é quanto basta para se concluir que foi exercido o direito de queixa;
7- O facto de a interveniente Conceição não ter sido constituída arguida não impede que seja pronunciada;
8- No caso presente, o receptor da queixa incluiu no auto actos de comparticipação de ambos os elementos do casal agressor;
9- Assinalou com uma cruz o item do formulário onde consta que "declara desejar procedimento criminal contra o(s) autor(es) do crime";
10- Não aparece nesse formulário nenhuma hipótese de desejo de procedimento criminal apenas contra algum ou alguns dos autores do(s) crime(s), nem tal faria sentido;
11- Não consta do auto nenhuma referência ou indício de manifestação de vontade do denunciante no sentido de renunciar ao direito de queixa contra nenhum dos comparticipantes;
12- Resulta evidente que o guarda da GNR não estava familiarizado com o tema das denúncias e por isso referiu no local do formulário destinado à identificação dos denunciados apenas um dos comparticipantes, por mero lapso;
13- Apesar de diversos erros e lapsos formais, o inquérito contém elementos consistentes e suficientes quanto aos actos praticados e quanto à participação das três pessoas envolvidas;
14- Numa primeira fase do inquérito o M.P. tomou a queixa do recorrente como válida e ordenou a organização do respectivo inquérito;
15- Quando ordenou a realização de um encontro entre os três intervenientes a que chamou "acareação", tendo-se apercebido de que a interessada Conceição não fora constituída arguida, tinha que ter esclarecido a situação, mas actuou no sentido contrário, servindo-se da ignorância do recorrente sobre o conteúdo do inquérito;
16- Nessa "acareação" os intervenientes apenas declararam que não tinham nada a acrescentar ao que já tinham expressado no inquérito e o recorrente fê-lo no pressuposto de que a sua irmã e o seu cunhado tinham o estatuto de arguidos;
17- A testemunha H. confirmou firmemente e sem dúvidas quanto à credibilidade das suas declarações que a queixa foi verbalizada contra os dois participantes Conceição e Rui;
18- O mesmo fez o guarda que recebeu a queixa, espontaneamente, na instância do advogado do recorrente, antes de perceber que o seu trabalho de elaboração do auto de denúncia estaria a ser posto em causa;
19- Na instância do M.P. foi conduzido a desdizer essa primeira versão genuína;
20- As declarações que prestou nessa fase não têm o mínimo de credibilidade;
21- Resulta claro que o recorrente efectuou atempadamente a queixa, sem exclusão de nenhum dos participantes no cometimento dos crimes que ele afirma terem sido praticados contra si;
22- Os indícios de prática de crime são idênticos a respeito de cada um dos três intervenientes;
23- Existem indícios suficientes da prática de crime de ofensa à integridade física do recorrente por parte dos intervenientes Conceição e Rui, pelo que devem ser como tal pronunciados;
24- A decisão recorrida, para além de errónea quanto à matéria de facto conforme se ressaltou no texto desta peça e nas conclusões anteriores, violou ainda designadamente o preceituado nos arts. 113.º, n.º 1, 114.º e 116.º, n.º 1, do C. Penal;
25- Essas normas foram interpretadas no sentido de que o recorrente não se queixou dos actos praticados pela interveniente Conceição e deviam ter sido aplicadas no sentido contrário e de que não existiu renúncia de queixa em relação a ninguém.
JUSTIÇA»
3. O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
«1. A Ilustre Decisora não podia apreciar a questão indiciária dos factos praticados, porque desde logo faltava um dos pressupostos essenciais no crime semi-público que era o exercício do direito de queixa;
2. O entendimento do Tribunal foi consistente ab initio porquanto não constituiu a Conceição como arguida, assumindo não existir queixa contra a mesma;
3. O art. 115º, n.º 3 do Código Penal diz "O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa", sendo que esse direito de queixa foi feito apenas contra o Luís e não a Conceição, não funcionando o Processo Penal em presunções de queixas;
4. Efectivamente, a queixa pode ser contra desconhecidos, mas nesse caso, há um número indeterminado de pessoas, e quando há uma queixa o queixoso não indica ninguém de forma expressa, antes se refere que não sabe quem cometeu o crime e que deseja procedimento criminal contra quem o fez, deixando em aberto o número de perpetradores;
5. A vontade inequívoca do procedimento criminal implica identificar, na medida do possível os denunciados, o que não aconteceu neste caso, porquanto apenas consta como denunciado o Luís no rosto da participação;
6. Não se podendo considerar que o direito de queixa foi efectivamente exercido contra a Conceição, comparticipante dos factos ilícitos;
7. Faltando os pressupostos do processo penal, no caso, o exercício tempestivo do direito de queixa, claramente não poderia a Conceição ser pronunciada pelo crime de ofensas à integridade física, uma vez que é de natureza semi-pública;
8. O formulário é igual para todas as situações, daí aparecer o plural entre parênteses;
9. O facto de não haver uma renúncia, não significa que haja a manifestação da vontade da queixa;
10. A GNR tem toda a mesma preparação e formação, mesmo para preencher os autos de queixa, participação ou denúncia;
11. A questão da intervenção dos três elementos torna-se irrelevante após todo o exposto;
12. A acareação estava presente o recorrente e o Advogado do mesmo, assinaram o auto, onde constava expressamente a qualidade de ofendida da Conceição, ao passo que do Luís e do recorrente arguido/ofendido;
13. E não terem acrescentado nada, foi por confirmarem o que já haviam dito, o que é diferente de recusar prestar declarações;
14. O Guarda não se recordava da situação, pelo que caiu em contradição, não se podendo credibilizar todo o depoimento;
15. Mais uma vez, atenta isto, os indícios da prática dos factos deixam de ser apreciáveis, por questões processuais/formais.
16. Não havendo, assim, lugar a revogação e substituição da decisão de não pronúncia de Luís L. e de Conceição C., pelos motivos explanados.
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Pelo exposto, concluímos que a douta decisão recorrida não violou qualquer dispositivo legal, mostrando-se justa e adequada, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.».
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada a decisão de não pronúncia.
5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
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II - Fundamentação
1. A decisão instrutória objecto de recurso (transcrição):
«Declaro o encerramento da instrução requerida pelo assistente/arguido, ANTÓNIO J..
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O Ministério Público, a fls. 126 a 137, proferiu despacho de arquivamento, em particular, naquilo que para o caso interessa, quanto ao crime de ofensas à integridade física, alegadamente praticado por Rui L. e Conceição C. contra António J., tendo por base os fundamentos de facto e de direito enunciados no respectivo despacho e que damos aqui por integralmente reproduzidos.
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Perante o sobredito despacho de Arquivamento o assistente/arguido António J. veio requerer a abertura da Fase de Instrução, visto que não se conformou com aquele desfecho. Desta feita, teve lugar a respectiva produção de prova e a realização de Debate Instrutório, com respeito dos legais formalismos.
Em jeito de súmula, o assistente suportou a sua pretensão numa mera questão processual que se prende com o facto de a legitimidade e a extensão dos efeitos da queixa se bastarem com a apresentação de queixa contra um dos comparticipantes para tornar o procedimento criminal extensivo aos restantes, alegando que, no caso em concreto, a queixa que o requerente apresentou no próprio dia da sua ocorrência contra Rui L. é extensível a Conceição C..
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No que concerne aos actos de instrução permitidos pelo art. 290.º e ss do CPP, foram praticados os seguintes:
a) Prova Testemunhal:
- Inquirição da testemunha H.;
- Inquirição da testemunha Ângelo P.;
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Aqui chegados, praticados que estão todos os actos de Instrução que se mostraram pertinentes, é altura de proferir decisão instrutória, como estipula o n.º 1 do art. 307.º do CPP.
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O Tribunal é competente.
Não existem excepções, nulidades ou questões prévias que cumpra apreciar.
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A fase de Instrução foi moldada como uma fase facultativa de controlo jurisdicional da decisão de Acusar ou de Arquivar tomada, no final na fase de Inquérito, pelo Ministério Público.
Muito embora o legislador tenha procedido a sucessivas alterações legislativas, o fito da Instrução manteve-se inalterado até ao momento presente.
Nesta medida, estabelece o n.º1 do art. 286.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP): “ a instrução visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Como tal, a fase de Instrução dirige-se, estritamente, à fiscalização da decisão proferida no encerramento da fase de Inquérito, de realçar que não se destina a sindicar o modo como o Ministério Público actuou na fase de Inquérito, isto é, como desenvolveu a actividade de investigação, da mesma forma que não deve ser vista como um complemento da investigação levada a cabo no Inquérito.
Assim, a Instrução é encarada, do lado do ofendido/assistente, como um meio de tutela do seu interesse legítimo na submissão a julgamento e na condenação daquele que cometeu um facto ilícito típico e, na perspectiva diametralmente oposta do arguido, a Instrução tutela o seu interesse legítimo em não ser submetido a julgamento.
Como dispõe o art. 288.º do CPP, a Instrução é dirigida pelo Juiz de Instrução, podendo ser assistido pelos órgãos de polícia criminal, sendo certo que, o objecto da Instrução se encontra delimitado pelo Requerimento de Abertura de Instrução, que não obstante, a desnecessidade de formalidades especiais, deve conter uma súmula das razões de facto e de direito que estão na base da discordância da decisão final tomada em Inquérito, de igual modo, devem ser elencados os actos de instrução e os meios de prova, assim como os factos que o sujeito processual visa provar, como esclarece o nº 2 do art. 287.º, coadjuvado pelo n.º 4 do art. 288.º, ambos do CPP.
Por força do art. 308.º, 2 do CPP, tem aplicação na fase de Instrução o art. 283.º, 2 do CPP, pelo que, deverá ser feito um juízo de prognose com vista a aferir da existência de indícios suficientes. A jurisprudência e a doutrina batem-se numa tentativa de concretizar este conceito indeterminado, porém, consideramos ser de atender à posição que delimita que, para efeitos de pronúncia, à semelhança do que acontece na fase de Inquérito, indícios suficientes são aqueles que conduzem a uma probabilidade de condenação superior à de absolvição.
Na tentativa de balizar o juízo de prognose a fazer, adianta o aresto do Tribunal da Relação do Porto, datado de 22.10.2008, Processo n.º 08P14910: “ a probabilidade de condenação é maior que a de absolvição quando, num juízo de prognose antecipada, se possa afirmar que, se os elementos de prova existentes no inquérito ou na instrução se repetirem em julgamento e aí não forem abalados ou infirmados por outros aí produzidos, o arguido será seguramente condenado”.
É este o espírito plasmado no n.º1 do art. 308.º do CPP, sob a epígrafe “ despacho de pronúncia ou de não pronúncia”. Assim, dita o legislador: “ se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
É importante ter em linha de conta que a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas, sendo sempre um incómodo e algo francamente indesejável.
Como tal, é necessário aferir, criteriosamente, se o conceito de indícios suficientes se encontra preenchido, com vista a desencadear uma possibilidade razoável de condenação e de aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, devendo o despacho de pronúncia ter suporte nos elementos de prova analisados no seu todo, desde logo, de uma forma articulada entre si, com vista a conduzir a uma probabilidade razoável de que, em sede de julgamento, aquele arguido será condenado.
Além do exposto, importa nesta fase e, muito particularmente, no caso dos autos, aferir se estão, concretamente, preenchidos os pressupostos processuais.

Do direito de queixa e da indivisibilidade do mesmo:
Temos então, que o assistente, António J. configurando embora uma comparticipação criminosa apenas apresentou queixa contra Rui L., sendo que só contra ele o Ministério Público tinha legitimidade para investigar, mas não a apresentou contra a irmã Conceição C..
A omissão da queixa contra um dos participantes, levou o Ministério Público para o âmbito do art. 115.º n.º3 que dispõe “o não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa”.
Esta norma é um reflexo da indivisibilidade da queixa, que se traduz em negar-se a titular do direito de queixa, em caso de comparticipação criminosa, a faculdade de escolher a pessoa que há-de ser punida.
A este princípio está subjacente a ideia de política criminal informadora do nosso sistema jurídico de que em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime, ou seja a violação do bem jurídico protegido com a incriminação, e, reflexamente, os seus autores, de tal modo que em caso de comparticipação o titular do bem ofendido com o crime não pode escolher a ou as pessoas que hão-de ser punidas em detrimento de outras (salvo casos excepcionais de relações familiares que aqui não se verificam, com acontece por exemplo no furto praticado por familiares directos – que aqui não tem aplicação). Solução contrária seria de todo irrazoável, pois que permitiria situações de vingança privada, o que o direito penal moderno repudia. O que está em causa é a perseguição de um crime e só reflexamente a satisfação de interesses de natureza pessoal.
Citando o Prof. Marques da Silva “A queixa traduz-se na manifestação de vontade de instauração de um processo para a averiguação da notícia do crime e do respectivo procedimento contra os agentes responsáveis” (Processo Penal, vol I, 2ªed, verbo, pag. 59), constituindo assim um direito que deve ser exercido contra todos os comparticipantes, pois, tratando-se de crime de natureza semi-pública, como é o caso do crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, 1 do CP, se o assistente apenas acusa alguns dos comparticipantes, renuncia ao direito de perseguir criminalmente os demais, renúncia que nos termos dos arts. 116 n.º3 e 117 do CP, aproveita aos restantes.
Não podendo a queixa ser renovada por há muito ter decorrido o prazo a que se reporta o art. 115.º n.º1 do mesmo diploma, e tendo já sido formulada acusação apenas contra o arguido e ora assistente António J., operou a extinção do direito de queixa quanto a Rui L. e Conceição, não podendo, consequentemente, os mesmos ser perseguidos criminalmente.
Por outro lado, no que concerne ao desempenho do Ministério Público no presente caso, somos do entendimento que não releva o conhecimento do “historial processual” por parte do Ministério Público, o que se extrai, no caso concreto é que, efectivamente, a queixa apenas foi apresentada contra Rui L., pelo que, não obstante a condescendência do legislador o que respeita à formalização da queixa, certo é que o queixoso tem de, pelo menos, identificar contra quem apresenta a queixa, sob pena de cairmos na alçada do n.º 3 o art. 115.º do CP, como aconteceu no presente caso. De igual modo, consideramos que não cabia ao Ministério Público a efectivação de qualquer acto, porquanto as suas competências apenas são despoletadas, nomeadamente, com a apresentação de queixa perante crimes semi-públicos, não tendo quaisquer ónus face às omissões dos denunciados/queixosos no que respeita à apresentação de queixa, porquanto este é um direito daquele lesado que pode ou não ser exercido (em crimes de igual natureza ao que se encontra aqui em questão), não cabendo ao Ministério Público suprir qualquer omissão nestes casos, menos ainda quando os sujeitos processuais se encontram devidamente representados por mandatário, como ocorre nos presentes autos.

Na fase de Instrução:
Chegados a este ponto, há que atender às diligências instrutórias que foram requeridas pelo assistente e que obtiveram deferimento do Tribunal. Foram, então, recolhidos os depoimentos das testemunhas.
Resumidamente, a testemunha H., companheira do assistente/arguido disse-nos que acompanhou o assistente ao posto da GNR de Mogadouro e que este pretendia efectivar a queixa contra a sua irmã e o seu cunhado, não manifestando qualquer vontade em apresentar apenas queixa cunhado.
Por seu turno, o militar da GNR que se encontrava de serviço e que tomou conta da ocorrência, não obstante uma fase inicial de alguma confusão, disse-nos que, naturalmente, já não se lembrava do caso em concreto mas que é prática corrente passarem para o auto aquilo que os denunciantes dizem, logo, se na queixa apresentada pelo assistente apenas foi identificado Rui L. e apenas contra este foram narrados os factos, a queixa formalizou-se apenas contra este denunciado. A mais disso, disse a testemunha que as declarações são sempre lidas aos queixosos, como foi no caso, e só posteriormente assinadas por estes, o que demonstra a sua concordância com o escrito.
Do cotejo de ambos os depoimentos e tendo em conta a demais prova constante dos autos, em particular tendo em conta a própria queixa apresentada pelo assistente, entende o Tribunal que o depoimento do militar da GNR nos merece maior credibilidade, além do que, face a um juízo de normalidade, sempre se diria que não faz sentido que o assistente pretendesse apresentar queixa contra a irmã e contra o cunhado e depois de lhe se lido o auto se conformar com a mera a lusão a denunciado por parte de Rui L.. Além do que, a própria relação de parentesco entre as partes nos conduz à intenção do assistente de não apresentar queixa contra a irmã.
*
Face ao exposto e, salvo melhor opinião, o despacho de Arquivamento não nos merece censura, razão pela qual e tendo em conta tudo o acima exposto, decido:
Não pronunciar para Julgamento Rui L. e Conceição C., mantando integralmente a decisão final de inquérito proferida pelo Ministério Público.
*
Custas pelo assistente António Carvalho, art. 514.º, 1, al. a) do CPP.
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Notifique.»

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2. Apreciando
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No caso em apreço, está em causa saber se o Ministério Público carece de legitimidade para a promoção do procedimento criminal contra os arguidos Rui L. e Conceição C. relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, por não ter sido apresentada queixa contra a arguida Conceição.
Trata-se de um crime de natureza semi-pública pelo que a legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal depende do regular e tempestivo exercício do direito de queixa - artigos 143.º, n.º 2 do Código Penal, 49.º do Código de Processo Penal e 113.º a 115.º do Código Penal.
A queixa traduz-se na manifestação de uma vontade de instauração de um processo para a averiguação da notícia e do respectivo procedimento contra os agentes responsáveis( - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, pág. 59.), constituindo um direito que deve ser exercido, sob pena de extinção, no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores (artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal).
Em caso de comparticipação no crime, a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes torna o procedimento criminal extensivo aos restantes, assim como a desistência da queixa e o seu não exercício tempestivo em relação a um dos comparticipantes no crime aproveitam aos restantes, nos casos em que estes também não possam ser perseguidos sem queixa – artigos 114.º, 115.º, n.º 3 e 116º, n.º 3 todos do citado diploma.
A justificação destas normas (aplicáveis aos casos em que o procedimento criminal depender de acusação particular – artigo 117.º do Código Penal) é pretender obstar a que o titular do direito de queixa escolha apenas um dos participantes, perdoando aos demais, caso em que a perseguição teria então mais natureza pessoal do que em razão do crime praticado( - Germano Marques da Silva, obra citada, volume I, pág. 265.).
Estas normas são a concretização do princípio da indivisibilidade, o qual significa que em matéria criminal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime( - Maia Gonçalves, Código Penal Português, Anotado e Comentado, anotação ao artigo 115º.).
Sendo inquestionável que, nos termos do artigo 114.º do Código Penal, a apresentação da queixa contra um dos comparticipantes no crime torna o procedimento criminal extensivo aos restantes, esta norma pressupõe que o titular do direito de queixa desconheça os restantes agentes do crime.
Ao deduzir uma queixa contra uma ou mais pessoas, o respectivo titular, ou anuncia logo que existiam outras pessoas envolvidas de que desconhece a sua identidade, ou nada refere sobre esta matéria.
No âmbito do inquérito então instaurado, a autoridade policial, ou consegue identificar os demais envolvidos nos factos criminosos, ou descobre que, afinal, o autor do crime não agiu isoladamente, referenciando os outros comparticipantes.
Nestas situações, deve o titular do direito de queixa ser informado, para, querendo, usar da faculdade de estender a queixa contra os indivíduos que só então foram identificados, não sendo necessária a apresentação de nova queixa contra os arguidos então descobertos.
A norma do artigo 114.º do Código Penal permite ao titular do direito de queixa alargar a mesma aos demais comparticipantes, cuja identificação ou existência desconhecia, independentemente de já ter decorrido o prazo de seis meses previsto no n.º 1 do 115.º.
Porém, já não tem aplicação quando o queixoso sabia quem eram os autores dos factos de que foi vítima e tinha possibilidade de os identificar, na totalidade ou por mera indicação ao processo, mas para os quais, em qualquer caso, sempre poderia manifestar, desde logo, a intenção de procedimento criminal.
Nesses casos, o queixoso já não pode beneficiar da possibilidade de extensão do direito de queixa posto que a mesma radica no seu desconhecimento em relação à existência ou identificação dos outros comparticipantes.
Se o titular do direito de queixa tem pleno conhecimento que outras pessoas intervieram nos factos e tem a possibilidade de os identificar, então tem o dever de, desse modo, os referenciar no processo, cabendo-lhe, no prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal, contra eles deduzir a respectiva queixa, sob pena de extinção desse direito.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 8/9/2010, «[o] Ministério Público tem legitimidade para praticar os actos de inquérito necessários para apurar a responsabilidade daqueles que se indicie terem sido comparticipantes do crime, ainda que contra eles não tenha sido apresentada queixa, se vierem a ser identificados no decurso do inquérito; mas já não a terá para deduzir acusação sem precedência de queixa contra todos os comparticipantes, já que assume preponderância a natureza semi-pública do crime, tornando-se exigível na fase de acusação a verificação dos pressupostos do procedimento criminal relativamente a todos os comparticipantes. É esse, precisamente, o significado e alcance prático da norma constante do artigo 115.º, n.º 3, do Código Penal.
Averiguada em inquérito por crime semi-público a existência de comparticipantes não denunciados, deve o Ministério Público, antes de deduzir acusação, notificar o queixoso para, querendo, apresentar queixa também contra eles, sob pena de extinção do procedimento criminal contra todos.»( - Processo n.º 142/08.4GDSCD.C1, disponível em www.dgsi.pt. ).
No caso em apreço, como pode ver-se de fls. 2 e 3, tal como o assistente António J. apresentou a queixa, estamos perante uma situação de comparticipação criminosa, pois há na queixa referência a factos praticados por Rui L. conjuntamente com a sua mulher Conceição, irmã do ora assistente.
Sucede, todavia, que no rosto do auto de denúncia que então foi lavrado consta apenas como denunciado o nome de Rui L..
Alega o recorrente que expressou clara e inequivocamente, por via oral, ao agente da GNR que elaborou o auto, a sua vontade de que fosse instaurado procedimento criminal contra ambos os agressores, Conceição C. e Rui L., pela ocorrência que narrou.
As diligências probatórias realizadas a este respeito na instrução não são conclusivas, conforme resulta da transcrição das declarações efectuada pelo recorrente, pois enquanto a testemunha H., companheira do assistente António J., referiu que o acompanhou ao posto da GNR e que ele pretendia efectivar a queixa contra a irmã e o cunhado, o que resulta do depoimento da testemunha Ângelo M., Militar da GNR, que procedeu à elaboração do auto de fls. 2 e 3, é que a prática corrente consiste em passarem para o auto aquilo que os denunciantes dizem e, portanto, se na queixa apenas foi identificado como denunciado Rui L. e apenas contra este foram narrados os factos, a queixa foi formalizada apenas contra este denunciado.
Acrescentou a testemunha que o auto de denúncia é sempre lido e explicado ao queixoso, como sucedeu no caso, sendo posteriormente assinado por ele.
Ao contrário do que parece entender o recorrente, não assume qualquer relevo o facto de estar assinalado com uma cruz o item do formulário onde consta que “declara desejar procedimento criminal contra o (s) autor (es) do crime”, pois o formulário é igual para todas as situações, assim como a circunstância de não resultar do auto a renúncia ao direito de queixa não significa necessariamente que haja a manifestação da vontade de queixa.
Deste modo, sendo certo que, lido e explicado ao assistente o conteúdo do auto de denúncia nos termos que constam de fls. 2 e 3, este o assinou, resultando da assinatura aposta a concordância com o seu teor, não menos certo é que posteriormente, nomeadamente aquando da realização da acareação de fls. 95 a 96, acto em que esteve assistido pelo seu ilustre advogado, o assistente também não manifestou qualquer intenção de desejar procedimento criminal contra a sua irmã Conceição C., apesar de constar expressamente do respectivo auto que esta interveio na diligência apenas na qualidade de ofendida e de o auto se encontrar assinado e rubricado quer pelo assistente, quer pelo seu ilustre advogado.
O não exercício tempestivo da queixa por parte do ora recorrente em relação à sua irmã, aproveita ao arguido Rui L., seu comparticipante nos actos delitivos, pois também ele não pode ser perseguido criminalmente sem a existência atempada de queixa, nos termos do n.º 3 do artigo 115.º do Código Penal.
Por conseguinte, não merece censura o despacho recorrido ao considerar verificada a falta de um pressuposto positivo da punição que conduz à extinção do procedimento criminal relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples imputado aos arguidos Rui L. e Conceição C., ficando, por via disso, prejudicada a apreciação da suficiência dos indícios da prática dos factos.
Improcede, portanto, o interposto recurso

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III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente António J. e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães, 26 de Setembro de 2016