Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
85/12.7DBRG.G1
Relator: PAULA ROBERTO
Descritores: TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
DESCONTO NA PENA DE MULTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O período de tempo de trabalho a favor da comunidade, prestado em sede de suspensão provisória do processo, deve ser descontado na pena de multa em que o arguido foi condenado.
Decisão Texto Integral: Acordam Relatora em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
O arguido R. P., foi julgado em processo comum, com intervenção do tribunal singular, constando da respetiva sentença o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o Tribunal julga procedente a acusação e, em consequência, decide:
(…)
- condenar o arguido R. P. pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6º e 105º nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos);
- condenar o arguido R. P. pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 6º, 107º, nº 1 e 105º nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei 15/2001, de 5 de Junho, e 30º, nº 2 e 79.º do Código Penal, ex vi do art.º 3.º, al. a) do RGIT, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos),
- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido R. P. na pena única de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).
- proceder ao desconto na pena de multa aplicada ao arguido R. P. das 50 (cinquenta) horas de trabalho a favor da comunidade prestadas em sede de suspensão provisória do processo, pelo que terá o mesmo de cumprir a pena de multa remanescente, correspondente a 270 (duzentos e setenta) dias, à taxa diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz a quantia de € 2.025,00 (dois mil e vinte e cinco euros);
(…)
- condenar o arguido R. P. a pagar ao Instituto da Segurança Social I.P. a quantia de € 42.184,90 (quarenta e dois mil cento e oitenta e quatro euros e noventa cêntimos), a título de capital, acrescido dos juros vencidos e vincendos, à taxa aplicável às dívidas ao Estado e outras entidades públicas, que, em cada momento, vigorar, desde a data de vencimento de cada uma das prestações e até integral pagamento”.
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O Ministério Público, notificado desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:
“1 – O arguido R. P. foi condenado, em cúmulo jurídico, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a segurança social, pº e pº pelos artigos 6º, 105º, nº 1, do RGIT, e 107º, nº 1, do RGIT, respectivamente, na pena única de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à razão diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), no total de € 2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros), na qual se procedeu ao desconto do período de 50 (cinquenta) horas de trabalho a favor da comunidade prestadas pelo arguido em sede de suspensão provisória do processo.
2- Dentro do actual quadro legislativo não é possível proceder ao desconto na pena principal de multa o período de horas de serviço de interesse público cumprido pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo.
3- O serviço de interesse público a que o arguido voluntariamente se sujeitou não tem a natureza de pena principal.
4- Quando o arguido procedeu à prestação do serviço de interesse público, fê-lo de modo voluntário, no âmbito do cumprimento de uma injunção com a qual concordou, no âmbito do mecanismo de “diversão” que é a suspensão provisória do processo.
5- Nos termos do disposto no artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal, as prestações feitas não podem ser repetidas no caso de incumprimento das condições de suspensão provisória do processo.
6- Sendo a injunção um instrumento processual que visa a composição e pacificação social e, por outro, visando a pena criminal, detentiva ou não detentiva, fins próprios de prevenção especial e geral e cumprindo uma função preventiva adjuvante da pena principal, uma não pode ser descontada na outra.
7- Tal entendimento não viola o princípio ne bis in idem, porquanto o despacho de suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da questão.
8- Não deve assim ser efectuado qualquer desconto à pena principal de multa em que foi condenado o arguido, mormente as 50 horas de serviço de interesse público que o mesmo cumpriu em sede de suspensão provisória do processo.
9 - Foram, assim, violados os artigos 281º, 47º, nº 1, 48º, nº 2, 58º, nº 3, e 80º, todos do Código Penal, por errada interpretação.
Termos em que se conclui no sentido supra exposto, julgando-se o presente recurso procedente e proferindo-se douto acórdão que revogue a sentença sindicada na parte colocada em crise, substituindo-a por outro que não determine a realização do desconto na pena de multa o período de serviço de interesse público cumprido no âmbito da injunção aplicada na suspensão provisória do processo, como é de toda a JUSTIÇA.
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O arguido apresentou resposta com as seguintes conclusões:
“1ª O Tribunal a quo condenou o arguido, ora recorrido, em cúmulo jurídico, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos artigos 6.º, 105.º, n.º 1, do RGIT, e 107.º, n.º 1, do RGIT, respetivamente, na pena única de 320 (trezentos e vinte) dias de multa, à razão diária de 7,50 € (sete euros e cinquenta cêntimos), no total de 2.400,00 € (dois mil e quatrocentos euros), na qual procedeu ao desconto do período de 50 (cinquenta) horas de trabalho a favor da comunidade prestadas em sede de Suspensão Provisória do Processo.
2 ª O Tribunal a quo operou ao desconto das 50 (cinquenta) horas de trabalho a favor da comunidade realizadas no âmbito da suspensão provisória do processo, na pena aplicada por sentença e, fê-lo seguindo a posição jurisprudencial maioritária.
3ª A sentença recorrida não merece qualquer censura, sendo de aplaudir a fundamentação e a posição seguida pelo Tribunal de 1.ª instância uma vez que, determina o artigo 282.º, n.º 4, do CPP que “o processo prossegue e as prestações feita não podem ser repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; (…)”.
4ª A injunção que o arguido cumpriu, de serviço de interesse público no âmbito da suspensão provisória do processo, tem natureza diferente da pena de multa prevista no artigo 47.º do Código Penal mas, se é certo que estamos perante natureza jurídica diferente da injunção e da pena principal, o certo é que, a suspensão provisória do processo é uma medida de diversão processual que apenas constitui um desvio à tramitação normal que conduziria ao julgamento.
5ª A distinta natureza da pena aplicada e da injunção não basta para fundamentar que não se proceda ao respetivo desconto. Pois, a pena aplicada ao arguido em sentença condenatória proferida nos autos teve por objeto o mesmo facto que constituiu o objeto da injunção que lhe foi imposta na suspensão provisória do processo.
6ª Os efeitos substantivos de uma e de outra, projetados na vida do arguido, serão precisamente os mesmos, pois o seu cumprimento será realizado da mesma forma.
7ª Existe aqui, a mesma justificação, o mesmo modo de execução e, a condenação na pena principal teve em vista a prática de um facto sendo que a injunção imposta ao arguido em sede de suspensão provisória do processo teve em vista exatamente o mesmo facto, tendo sido cumprida da mesma forma como o seria na pena em cujo cumprimento foi condenado.
8ª Apesar de não existir norma a prever o desconto, tal circunstância não poderá constituir impedimento à sua realização. Prevalecendo-se aqui a justiça material.
Assim, nos termos da lei em vigor, deverá entender-se que é aplicável, por analogia, o instituto do desconto, nos termos nos termos dos artigos 48º, nº 2, 58º, nº 3, e 80.º, todos do Código Penal, por identidade de razão.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exa. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a sentença proferida pelo tribunal a quo, só assim se fazendo JUSTIÇA!”
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O arguido notificado do despacho de fls. 817 e segs. que julgou improcedente a nulidade invocada por falta de promoção do processo pelo Ministério Público, veio interpor o recurso constante de fls. 883 e segs., com as seguintes conclusões:
“1ª – Vem o presente recurso interposto do despacho prolatado nestes autos que considerou não existir caso julgado assim como considerou não existir nulidade e inconstitucionalidade do inquérito.
2ª – No caso dos autos, veio a Segurança Social peticionar por via do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal o pagamento de uma dívida, na pendência de processo executivo para cobrança da mesma dívida, previamente instaurado e que se encontra a correr termos, pelo que existe litispendência, devendo a mesma ser declarada e em consequência nos termos do disposto no artigo 576º n.º 2 ex vi a al. i) do art.º 577º do Código de Processo Civil, seja o demandado absolvido da instância.
3ª – Seja declarada a nulidade insanável de falta de promoção do processo por parte do Ministério Público nos termos do art.º 119º al. b do Código de Processo Penal.
4ª – Seja declarado inconstitucional o art.º 40º do RGIT, quando interpretado no sentido de que o inquérito pode ter início sem conhecimento do Ministério Público, sendo este levado a seu conhecimento posteriormente ao seu início.
5ª – A decisão recorrida violou ou fez errada interpretação e/ou aplicação inter alia, dos art.º s 576º n.º 2 ex vi a al. i) do art.º 577º do Código de Processo Civil, 40º do RGIT, art.º 119º al b do Código de Processo penal, não podendo pois manter-se.”
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O Ministério Público veio apresentar resposta concluindo que:
“1- Os órgãos da administração tributária e da segurança social assumem, no processo penal tributário, os poderes e funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos e às autoridades de polícia criminal, actuando, por isso, sob a directa orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional.
2- Por outro lado, quer a autoridade tributária quer a segurança social comunicaram atempadamente a instauração do inquérito ao Ministério Público e realizaram as diligências investigatórias após tal comunicação.
3- Pelo exposto, entende o Ministério Público não se verificar qualquer das inconstitucionalidades ou nulidades invocadas, mormente por falta de promoção do processo
4- Não foram violados quaisquer preceitos legais.
Termos em que se conclui sufragando a posição adoptada pela Mm.ª Juiz a quo no douto despacho proferido, julgando-se o recurso interposto pelo arguido R. P.dos Santos Sousa Reis improcedente, como é de toda a JUSTIÇA.”
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O demandante ISS, IP veio também responder, concluindo que não assiste qualquer razão ao invocado pelo recorrente, devendo improceder o presente recurso.
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O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 1146 e segs., no sentido de que “o recurso do arguido não deverá ser conhecido por verificar-se uma causa superveniente de inutilidade e o recurso do Ministério Público deverá ser julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida”.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P..
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
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II – Fundamentação
a) Matéria de facto provada constante da sentença recorrida:
1. A primeira arguida é uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Esposende, com sede na Rua da …, com o objeto social de confeção de vestuário interior e exterior em série, a que corresponde o CAE 14131.
2. Por força da sua atividade, cujo início foi declarado à Administração Fiscal em 19/01/2009, foi-lhe atribuído o número de pessoa coletiva … tendo igualmente ficado vinculada ao cumprimento das obrigações que, na qualidade de contribuinte, lhe cabem perante a Segurança Social, sendo-lhe atribuído, por esta Instituição, em 21/01/2009, o nº ….
3. Para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), a aludida sociedade comercial encontra-se enquadrada no regime normal, de periodicidade trimestral.
4. A gerência da sociedade arguida, desde a constituição da sociedade, está a cargo de R. P..
5. O arguido R. P., enquanto legal representante da sociedade arguida, era responsável pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente, pelo pagamento de impostos ao Estado, e efetuou o pagamento dos salários dos trabalhadores ao serviço daquela, inscritos no regime geral de trabalhadores por conta de outrem bem como aos membros dos órgãos estatutários remunerados e procedeu à entrega das correspondentes folhas de remuneração mensais destinadas a mencioná-los.
6. No exercício da referida atividade, a primeira arguida, por intermédio do seu gerente, realizou operações tributáveis, tendo procedido a apuramento de IVA e ao envio das respetivas declarações periódicas.
7. Porém, não entregou aos cofres do Estado juntamente com as declarações periódicas, a(s) quantia(s) indicada(s) na tabela seguinte, na(s) data(s) a que estava obrigada, nos termos da lei, também indicada(s) na tabela, nem dos noventa dias subsequentes a tal data, não obstante a(s) terem(em) recebido.
Período a que respeita a infração
Montante da prestação tributária em falta
Data limite de pagamento
3.º trimestre de 2011
€ 14 315,44
2011.11.16
8. A sociedade e o seu gerente foram notificados pessoalmente nos termos e para os efeitos previstos no art. 105º, nº 4, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributárias, não tendo reposto, no prazo legal de 30 dias, nem posteriormente, as quantias em dívida.
9. A primeira arguida, por intermédio do segundo arguido, que dirigia as atividades de gestão e administração da sociedade arguida, administrando-a e decidindo em seu nome e interesse, atuou com a intenção de integrar no seu património as quantias supra referidas, calculadas como impostos em falta, que efetivamente recebeu, sabendo que as mesmas pertenciam ao Estado Português e a este as deviam fazer chegar.
10. Mais sabiam que ao utilizá-las para outros fins, causavam prejuízos ao Estado, como efetivamente causaram, agindo contra a vontade daquele.
11. No âmbito da sua atividade a sociedade arguida, apesar de ter descontado nas remunerações pagas aos trabalhadores ao seu serviço, inscritos no regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, e nas remunerações pagas aos sócios gerentes, as contribuições devidas por estes à Segurança Social, não efetuou a sua entrega, nos períodos que a seguir se discriminam:
De outubro de 2009 a outubro de 2012: € 40 108,77
De dezembro de 2012 a janeiro de 2013: € 1 088,54
De março de 2013 a maio de 2013: € 987,53
Num total de € 42 184,90 (quarenta e dois mil cento e oitenta e quatro euros e noventa cêntimos).
12. A sociedade arguida não efetuou a entrega desses montantes à Segurança Social dentro dos prazos legais, nem nos noventa dias subsequentes.
13. No dia 7 de novembro de 2014, os arguidos foram notificados, por si e na qualidade de legais representantes da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do art.º 105.º do RGIT, não tendo procedido ao pagamento das contribuições devidas à Segurança Social.
14. No período atrás referido, o arguido R. P. foi o único responsável pela gerência da sociedade “…, Lda.”, sendo por quem passaram todas as decisões de gestão corrente, assumindo quer a gestão de facto quer de direito daquela.
15. No exercício das suas funções, o arguido R. P. agiu sempre por conta e ordem dessa sociedade, atuando em conjugação de esforços e mediante plano previamente traçado ou a que posteriormente aderiu.
16. O arguido atuou com a intenção de integrar no património da sociedade que representa, a quantia supra referida, sabendo que a mesma pertencia à Segurança Social e a esta a devia fazer chegar nos prazos legais, ao invés de a utilizar para outros fins.
17. Mais sabia que ao utilizá-la para outros fins, causava prejuízos à Segurança Social, como efetivamente causou, agindo contra a vontade de tal entidade.
18. Atuaram sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram proibidas por lei e que constituíam crimes.
19. Decorreram mais de 90 dias sobre o termo legal do prazo de entrega das prestações tributárias deduzidas e devidas pelos arguidos, nos montantes referidos e mais de 30 dias sobre a notificação para pagar.
20. Durante o lapso de tempo referenciado, o arguido R. P. reiterou sucessivamente o mesmo propósito, cometendo de forma homogénea os repetidos atos, aproveitando-se do facto de a Segurança Social não ter exigido, de imediato, o pagamento das quantias devidas, e servindo-se do mesmo método que sucessiva e repetidamente se foi revelando apto para atingir os seus fins.
21. Encontra-se, atualmente, em dívida, a título de IVA relativo ao 3º trimestre de 2011, a quantia de € 7.335,94, acrescida de juros de mora e custas.
22. Em 03.12.2012, a sociedade arguida deu entrada de um processo especial de revitalização, que correu termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Esposende.
23. Por despacho de 02.07.2013, não foi homologado o plano de revitalização relativo à sociedade arguida, por ter sido entendido que os votos favoráveis eram inferiores a 2/3 do quórum deliberativo.
24. Por acórdão transitado em julgado em 22.10.2013, foi tal decisão revogada e homologado o plano de revitalização.
25. Face ao hiato temporal referido em 22. a 24., sem possibilidade de obter crédito bancário, a sociedade arguida apresentou-se à insolvência.
26. Por sentença de 07.08.2014, transitada em julgado, a sociedade arguida foi declarada insolvente, no âmbito do Proc. 701/14.6TBEPS, a correr termos na Instância Central 2ª Secção Comércio, V. N. Famalicão.
27. As quantias supra referidas foram utilizadas para pagar salários aos trabalhadores e outras despesas necessárias para à manutenção do funcionamento da empresa, face às dificuldades de tesouraria da sociedade arguida.
28. Em sede de suspensão provisória do processo, o arguido cumpriu 50 horas de trabalho a favor da comunidade.
29. Em sede de suspensão provisória do processo, a arguida depositou € 200,00 para entrega a uma IPSS.
30. O arguido é bem considerado pelas pessoas que o rodeiam.
31. A sociedade arguida foi condenada, por sentença transitada em julgado em 24.03.2014, pela prática, em 08.2012, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º do RGIT, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 10,00.
32. O arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 24.03.2014, pela prática, em 08.2012, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º do RGIT, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00.
33. O arguido reside com os pais. Não tem filhos. É proprietário de uma lavandaria, auferindo € 530,00 mensais. É licenciado.
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b) - Discussão
De acordo com a jurisprudência fixada pelo acórdão do plenário das secções do STJ de 19/10/1995 (DR série I-A de 28/1271995) e conforme resulta do n.º 1, do artigo 412.º, do CPP, bem como, entre outros, do acórdão do STJ de 27/05/2010, disponível em www.dgsi.pt, o âmbito do recurso é delimitado pelas suas conclusões, com exceção das questões de conhecimento oficioso (artigo 410.º, do CPP).
Questão prévia:
O recurso interposto pelo arguido do despacho supra referido foi admitido para subir a final, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Na verdade, sobem imediatamente os recursos previstos nos n.ºs 1 e 2, do artigo 407.º, do CPP e, <<quando não deverem subir imediatamente, os recursos sobem e são instruídos e julgados conjuntamente com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa>>. – n.º 3, do mesmo normativo.
Acontece que, para que um recurso retido suba a final é necessário que o recorrente também interponha recurso da decisão final.
É certo que a lei não o determina de forma expressa, no entanto, é o que resulta da conjugação do disposto nos artigos 406.º, n.º 1, 407.º, nº 3 e 412.º, n.º 5, todos do CPP, posto que, além do mais, havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente quais os que mantêm interesse.
Como refere o Prof. Germano Marques da Silva Direito Processual Penal, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335., <<havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse (art. 412.º, n.º 5). A falta de especificação dos recursos retidos que mantêm interesse implica a desistência dos que não forem especificados>>.
<<Pode, pois, concluir-se que os recursos interlocutórios retidos pressupõem, para serem objecto de conhecimento pelo tribunal recorrido, que seja interposto recurso, pelo mesmo recorrente, da decisão final, que os leve, por arrastamento, ao tribunal superior. E pressupõem ainda que, com a subida do recurso que os arrasta ao tribunal competente para julgamento conjunto, o recorrente especifique se e em quais ainda mantém interesse no seu conhecimento. Isto porque, entretanto, o recorrente pode ter alcançado, por outras vias processuais, a mesma finalidade que pretendia obter com o ou os recursos retidos. Destinando-se aquela especificação a evitar o julgamento de recursos que perderam relevância ou interesse com o desenrolar do processo. E sendo o recorrente o titular do interesse prosseguido nos recursos retidos, a ele compete o ónus de especificar se esse seu interesse ainda se mantém>> Acórdão desta Relação, de 11/06/2008, disponível em www.dgsi.pt. .
<<I – O recurso interlocutório retido só sobe e é julgado com o recurso interposto da decisão que tiver posto termo à causa se o sujeito (e só ele) que interpôs aquele recurso intercalar também recorrer da decisão final.
II – Se o recorrente do recurso interlocutório retido, podendo recorrer da decisão que põe termo ao processo, não o faz, conclui-se que não só aceita o resultado final como também as decisões interlocutórias>> Acórdão da RE, de 11/11/2015, disponível em www.dgsi.pt. .
Assim sendo, não tendo o arguido interposto recurso da decisão final, mas tão só do citado despacho, tal implica a desistência deste recurso retido Neste sentido, cfr. o acórdão da RP de 29/04/2009, disponível em www.dgsi.pt. e que, consequentemente, não será apreciado.
Pelo exposto, julga-se, nesta parte, extinta a presente instância de recurso, por impossibilidade superveniente da lide (artigo 277.º, alínea e), do CPC).
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Cumpre, então, apreciar a questão suscitada pelo recorrente, qual seja:
- Se as 50 horas de trabalho a favor da comunidade prestadas pelo arguido em sede de suspensão provisória do processo não devem ser descontados na pena de multa em que o arguido foi condenado.
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Alega o recorrente que dentro do atual quadro legislativo não é possível proceder ao desconto na pena principal de multa do período de horas de serviço de interesse público cumprido pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, serviço que não tem a natureza de pena principal e que prestou de forma voluntária; as prestações feitas não podem ser repetidas no caso de incumprimento das condições de suspensão provisória do processo; visando a injunção a composição e pacificação social e a pena criminal fins próprios de prevenção geral e especial, uma não pode ser descontada na outra e tal entendimento não viola o princípio ne bis in idem, porquanto o despacho de suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o mérito da questão.
Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente.
A este propósito consta da sentença recorrida o seguinte:
No cumprimento desta pena deverão ser descontadas as 50 horas de trabalho a favor da comunidade prestadas pelo arguido em sede de suspensão provisória do processo.
(…)
Nestes acórdãos o desconto em apreço dizia respeito à proibição de condução de veículos motorizados.
Por identidade de razão, deve proceder-se ao desconto na pena de multa, e tendo em conta o critério estabelecido nos artigos 48º, nº 2, e 58º, nº 3, do Código Penal, das horas de prestação de trabalho a favor da comunidade também prestadas no âmbito da suspensão provisória do processo.
Descontando-se na pena de multa em que o arguido R. T. vai condenado as 50 horas de trabalho a favor da comunidade que já prestou, terá o mesmo de cumprir a pena de multa remanescente, ou seja, 270 (duzentos e setenta) dias.” – fim de citação.
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Apreciando a pretensão do recorrente:
Conforme resulta dos artigos 281.º e segs. do CPP, se o crime for punível com pena de prisão não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os pressupostos descritos no n.º1 do citado artigo 281.º.
Acresce que, são oponíveis ao arguido as injunções e regras de conduta previstas no n.º 2, do artigo 281.º, do CPP, nomeadamente, efetuar prestação de serviço de interesse público (alínea c).
Estamos perante o instituto da suspensão provisória do processo que constitui uma manifestação do princípio do consenso mas situada dentro dos limites da legalidade, posto que está sujeita aos pressupostos legalmente fixados, trata-se de “uma forma alternativa de processamento do inquérito, na sua fase final” Cfr. Conselheiro Maia Costa, CPP comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 939..
As injunções e regras de conduta a que alude o artigo 281.º, do CPP, não são sanções penais, desde logo, porque impostas pelo Ministério Público. “Trata-se antes de medidas que impõem deveres (positivos ou negativos) ao arguido, como condição da suspensão, sendo a sua aceitação por parte deste necessária para a suspensão” Conselheiro Maia Costa, obra e página citadas., no entanto, é necessária a concordância do juiz.
Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta ou, dentro do prazo de suspensão do processo cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas – n.º 4, do artigo 282.º, do CPP.
Pois bem, face ao disposto nestes normativos, a questão em apreciação não tem merecido um tratamento uniforme por parte da jurisprudência.
Na verdade, uma corrente jurisprudencial tem entendido que a lei não permite que se proceda ao desconto do período de inibição de conduzir imposto em sede de suspensão provisória do processo, na pena acessória de proibição de conduzir imposta ao arguido por força do disposto no artigo 69.º, n.º 1, do CP, antes resultando do n.º 4, do citado artigo 282.º que o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas.
Mais invocam a diferente natureza das injunções ou regras de conduta em sede de suspensão provisória do processo e das penas impostas por força do julgamento. Neste sentido, cfr., entre outros, os acórdãos da RL de 06/03/2012 e de 17/12/2014 e da RP de 28/05/2014, de 22/04/2015 e de 13/04/2016, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Já outra parte da jurisprudência, à qual aderimos, entende que deve proceder-se a tal desconto, apelando a um critério de justiça material, que atenda à equivalência de ambas as prestações numa perspetiva prática, substantiva e funcional.
Como se decidiu no acórdão da RP de 07/04/2016, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos, pese embora a propósito da proibição de conduzir:
A injunção e a pena em causa decorrem da prática do mesmo crime. Tratando-se de uma proibição de condução de veículos motorizados, afectam de igual modo os direitos de circulação rodoviária do arguido.
Apesar da sua diferente natureza conceitual, têm funções de prevenção especial e geral equivalentes. A ausência do desconto em causa levaria a sancionar duplamente a mesma conduta (mesmo que não se considere, rigorosamente, que estamos perante uma violação do princípio ne bis inidem).
Invoca esta corrente, no que se refere à voluntariedade da injunção, por contraposição às penas, a redacção introduzida recentemente no n.º 3 do Art.º 281.º do Código de Processo Penal decorrente da Lei nº 20/2013, de 21 de fevereiro: “…tratando-se de crime para o qual esteja legalmente prevista pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, é obrigatoriamente oponível ao arguido a aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor”.
Daqui decorre a obrigatoriedade desta injunção.
Quanto à regra decorrente do n.º 4 do Art.º 282.º do Código de Processo penal acima referida, entende esta corrente que o conceito de “repetição” tem o sentido que lhe é dado no direito civil e, por isso, dela decorre que não será possível reaver o que foi satisfeito (indemnizações já pagas ou contributos para instituições já entregues), mas não que prestações de facto (positivas ou negativas) já efectuadas tenham de ser efectuadas outra vez.
Em resposta à invocação da diferente natureza das injunções e das penas, invoca esta corrente jurisprudencial, por outro lado, que a inquestionavelmente diferente natureza da detenção e das medidas de coacção privativas da liberdade, por um lado, e das penas, por outro lado, não impede que o cumprimento daquelas seja descontado nestas, nos termos do Art.º 80.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. E é assim, porque, apesar dessa diferença, há uma substancial equivalência entre elas. Substancial equivalência que também se verifica entre as injunções e as penas”.
Neste sentido, entre outros, os acórdãos desta RG de 22/09/2014, de 10/10/2016 e de 21/11/2016; da RP de 19/11/2014, de 25/03/2015, de 22/04/2015, de 16/12/2015, de 21/01/2016 e de 20/04/2016; da RL de 21/04/2016; da RC de 10/12/2014 e da RE de 11/07/2013.
Em suma, e porque todos os argumentos expendidos valem de igual forma para a injunção de prestação de serviço público e pese embora a diferente natureza da desta (n.º 2, c), do artigo 281.º, do CPP) e da pena de multa aplicada ao arguido na sentença recorrida, uma vez que ambas emanam do mesmo crime e foram aplicadas ao arguido em fases distintas do mesmo processo e porque o desconto em causa se nos afigura mais justo e equitativo face à lei penal e aos princípios constitucionais consagrados nos artigos 29.º e 30.º, da CRP, impunha-se o desconto na pena única de 320 dias de multa em que o arguido foi condenado, do período de 50 horas de trabalho a favor da comunidade já cumprido pelo mesmo em sede de suspensão provisória do processo, tal como consta da sentença recorrida.
Improcedem, assim, as conclusões do recorrente, impondo-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.
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III – DECISÃO
Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, em conferência, em:
- julgar extinta a instância no que concerne ao recurso interlocutório retido, por impossibilidade superveniente da lide e
- na improcedência do recurso, em manter a sentença recorrida.
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Sem custas.
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* Guimarães, 2017/03/06
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(Paula Maria Roberto)
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(Fernando Pina)