Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1726/06-2
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
CONVOLAÇÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/15/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Sumário: Do acórdão
I - O Direito tem também uma função conformadora da sociedade, podendo impor a todos os seus membros determinados comportamentos, mesmo que alguns não se sintam ética ou moralmente vinculados a eles.
II - São hoje inadmissíveis castigos pretensamente correctivos que seriam aceites (e até louvados) há 100 ou 200 anos.
III - Castigar habitualmente menores de tenra idade, por urinarem na cama, consistindo tais castigos em agressões com um cinto, ultrapassa em muito as finalidades de correcção.
IV - Sendo uma arguida pronunciada, tal como o arguido, seu marido, pela prática de quatro crimes de maus tratos p. e p. pelo art. 152 nº 1 do Cod. Penal e entendendo-se que quanto a ela, não se verifica a existência de “uma relação de subordinação existencial, traduzida pelo facto destes (os menores) se encontrarem ao seu cuidado, à sua guarda, ou sob a responsabilidade da sua educação”, não pode ocorrer a condenação por tais crimes.
V - Também se não pode condenar a arguida pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada, pois era necessário que na acusação os factos estivessem suficientemente discriminados (quanto a tempo, modo e lugar) de forma a permitirem a condenação pelo um crime de ofensa à integridade física.
VI - No crime de maus tratos é indiferente, para que se possa afirmar estarem verificados os elementos típicos, determinar com exactidão quantas vezes foi reiterado o comportamento, pois o que está em causa, não é a punição autónoma de cada um dos actos que integram os maus tratos, mas um comportamento reiterado ao longo do tempo e a pronúncia balizou as circunstâncias em que tal comportamento persistiu.
VII - Porém, não é assim no crime de ofensa à integridade física em que, em princípio, a cada agressão corresponde a prática de um crime e, para que possa ocorrer a “convolação”, é necessário que a acusação pelos maus tratos contenha uma narração de factos compatível com a condenação por um (ou vários) crimes de ofensa à integridade física e isso faz-se, normalmente, discriminando os episódios concretos.
VIII - Além disso, a sentença não diz se os menores eram acordados em plena noite para serem submetidos ao castigo do banho frio, ou se este era dado de manhã quando acordavam e nada se diz também sobre se os episódios em causa ocorreram no Verão ou no Inverno, não tendo o mesmo desvalor penal um banho frio dado na madrugada duma noite gélida de Inverno e um banho (igualmente frio) que tiver sido ministrado numa manhã de Verão.
Do voto de vencido
IX - A relação de subordinação prevista no nº 1 do artº 152º é a que deriva de determinadas condições factuais concretas, abrangendo todas aquelas situações em que, com carácter estável ou mesmo temporário, alguém tem o encargo da protecção, guarda ou orientação educacional ou laboral de um menor ou de pessoa particularmente indefesa.
X - Entender a “confiança” consignada nesse tipo legal apenas como aquela que deriva de um acto judicial ou institucional é, por exemplo, deixar fora da punição, além de outros casos, os pais que não têm a guarda dos filhos por estes terem sido “confiados” à guarda e cuidados das mães e também os padrastos, não fazendo sentido, com o devido respeito se afirma, que se faça depender a “confiança” da situação de dependência material, tal como se diz no acórdão do S.T.J. ao qual a decisão recorrida aderiu.
XI - No caso concreto, a confiança, por via judicial, apenas ao arguido, visou satisfazer determinadas exigências legais, que não restringir a acção protectora e orientadora apenas a esse familiar, estando implícito que essa acção se estendia à pessoa com quem o avô vivia, em união matrimonial.
XII - A mulher do avô não era apenas - e que fosse - a empregada doméstica dos menores, derivando a sua função tutelar do simples facto de ser casada com o arguido.
XIII - Se a conduta da arguida foi considerada estranha à função de protecção, guarda e orientação, pelo menos não pode deixar de ser considerada reveladora de uma muito especial perversidade, a integrar a previsão do artº 146º, cujas circunstâncias típicas são meramente exemplificativas.
XIV - No caso, a especial censurabilidade da arguida está ostensivamente revelada, porquanto, as vítimas, além de serem crianças e, portanto, naturalmente indefesas, encontravam-se numa situação de grande proximidade com a arguida, vivendo em casa desta, com a sua família.
XV - A localização temporal das condutas da arguida vem, para o que interessa, bem delimitada entre 10 de Outubro de 2001 e 7 de Novembro de 2002, sendo impossível melhor determinação e esta forma de alegação do Ministério Público, que, tendo em vista o crime de maus tratos, não tinha outros elementos, é bastante para a integração do citado crime do artº 146º, sem que se mostre violado o tema acusatório e qualquer direito de defesa, notando-se que o artº 283º do C.P.Penal estabelece, compreensivelmente, que o lugar e o tempo da prática dos factos devem ser incluídos na narração, se possível e não com precisão rigorosa.
XVI - Quanto à questão suscitada no acórdão em causa sobre a não punição por tantos crimes quantos os banhos de água fria dados pela arguida aos menores, e sobre as hipóteses das condições climatéricas abordadas, apenas relembraremos que os menores estiveram com a arguida desde Outubro de 2001 até Novembro de 2002, e não é crível que apenas “tomassem banho” no Verão e, mesmo que assim fosse, parece-nos não haver dúvidas de que, apesar do menor choque físico, a malvadez era exactamente a mesma, tanto mais qoe os relatórios psicológicos dos menores, também eles fundamento da matéria de facto, são claros: as crianças foram recorrente e violentamente vitimizadas, quer física, quer psicologicamente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No 3º Juízo Criminal de Guimarães, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. 11.488/02.5TAGMR), foi proferida sentença que:
A) Absolveu o arguido A da prática do crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152º, n.º 1 do Código Penal, praticado sobre a pessoa da menor S.
B) Condenou o arguido A pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152º, n.º2, na pessoa da menor C, na pena de 18 meses de prisão;
C) Condenou o arguido A pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152º, n.º2, na pessoa do menor J, na pena de 18 meses de prisão;
D) Condenou o arguido A pela prática de um crime de maus tratos, previsto e punível pelo artigo 152º, n.º2, na pessoa do menor D, na pena de 18 meses de prisão;
E) Em cúmulo jurídico, condenou o arguido A na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
F) Absolveu a arguida M da prática dos quatro crimes de maus tratos a menor, previstos e puníveis, pelo artigo 152º, n.º 1, do Código Penal, pelos quais vinha pronunciada.
G) Por convolação, condenou a arguida M pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 143º,n.º1, 146º e 132º, n.º 2, alínea b) do Código Penal na pessoa da menor C, na pena de 200 dias de multa,
H) Por convolação, condenou a arguida M pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 143º,n.º1, 146º e 132º, n.º 2, alínea b) do Código Penal na pessoa da menor J, na pena de 200 dias de multa,
I) Por convolação, condenou a arguida M pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelo artigo 143º,n.º1, 146º e 132º, n.º 2, alínea b) do Código Penal na pessoa da menor D, na pena de 200 dias de multa,
J) Em cúmulo jurídico, condenou a arguida M na pena de 380 dias de multa, à razão diária de 4 euros, o que perfaz a multa global de 1.520,00 euros.
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Desta sentença interpuseram recurso os arguidos A e M.
Suscitam as seguintes questões:
- impugnam a decisão sobre a matéria de facto;
- argúem a violação do princípio in dubio pro reo;
- questionam o enquadramento dos factos na previsão do crime de maus tratos p. e p. pelo art. 132 nº 1 do Cod. Penal;
- questionam o enquadramento dos factos na previsão do crime de ofensa à integridade física qualificada – arts. 143 nº 1, 146 e 132 nº 2 al. b) do Cod. Penal;
- impugnam as penas concretas e únicas.
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Respondendo, o magistrado do MP junto do tribunal recorrido e o demandante defenderam a improcedência do recurso.
Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.
Colhidos os vistos, realizou-se a audiência.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
2. Os arguidos são casados entre si.
3. Por decisão proferida, em 10 de Outubro de 2001, nos autos de promoção e protecção n.º 27/97, a correr termos neste 3° Juízo Criminal do Tribunal…, foram entregues à guarda e cuidados do seu avô materno e ora arguido A, os seguintes menores:
- J, nascido em 09/07/1993, filho de Ana e de J;
- D, nascido em. 05/10/1995, filho de Ana e de J;
- C, nascida em 03/03/2000, filha de Ana e de J.
4. Naquela ocasião já se encontrava a viver com os arguidos a menor S, nascida em 03/03/2000, filha de Ana e de José.
5. Em 7 de Novembro de 2002, na sequência de procedimento de urgência, a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Guimarães, retirou os menores ao avô, ora arguido, tendo os mesmos sido provisoriamente acolhidos em Instituição, concretamente, no Lar...
6. Tal procedimento de urgência foi desencadeado em virtude de ter sido sinalizada pela Escola frequentada pelos menores J e D, uma eventual situação de risco e maus tratos.
7. Por decisão proferida, em 11 de Junho de 2003, nos autos de promoção e protecção n.º 2939/97.TBGMR, deste 3º Juízo Criminal do Tribunal…, foi determinado aplicar aos menores J e D, "a medida de acolhimento em instituição, mais concretamente no Centro…, até atingirem a maioridade" e às menores C e S, a medida de acolhimento familiar, tendo sido confiadas ao casal constituído por Alda e Manuel, até atingirem a maioridade.
8. Durante o período em que os menores viveram com os arguidos, estes revelaram sempre uma postura fortemente repressiva e punitiva para com aqueles.
9. Era habitual o arguido A, quando os menores C, J e D urinavam na cama, durante a noite, o que sucedida com frequência, como forma de os castigar, lhes bater com a mão e de cinto.
10. Era habitual a arguida M, quando os menores C, J e D urinavam na cama, durante a noite, o que sucedida com frequência, como forma de os castigar, levá-los para a casa de banho e dar-lhes banho de água fria.
11. Tais situações ocorriam no interior da residência dos arguidos.
12. Os menores C, J e D costumavam ser fechados no quarto, à chave, como forma de castigo.
13. Raramente lhes eram dados brinquedos.
14. Após terem sido retirados de casa do arguido, como procedimento de urgência, pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Guimarães, os menores foram sujeitos a exames médicos, tendo-se constatado que:
- a menor C apresentava lesões cicatriciais na região frontal de aspecto antigo, equimoses recentes no dorso e outra mais pequena na zona do joelho, e ferida na pálpebra superior do olho esquerdo, ferida essa que era consequência de castigo físico infligido, num dos dias anteriores, pelo arguido A;
- o menor J apresentava lesões residuais na face e região dorsal e um hematoma na região dorso-lombar, as quais eram consequência dos castigos físicos infligidos pelo arguido.
15. O arguido A sabia que tinha à sua guarda e cuidados os aludidos menores e que ao agir do modo descrito, criava e alimentava um clima de intimidação, desrespeito e mal estar em casa, infligindo maus tratos aos netos C, J e D.
16. A arguida M sabia que os menores se encontravam à guarda e cuidados do seu marido e ora arguido A, bem como que ao agir do modo descrito colaborava na criação e alimentação de um clima de intimidação, desrespeito e mal estar em casa, ofendendo o corpo e saúde dos menores C, J e D.
17. Os arguidos agiram de modo livre, consciente e voluntário, bem sabendo da censurabilidade da sua conduta.
Quanto à situação socio-económica e pessoal dos arguidos provou-se que:
18. O arguido é reformado, auferindo uma pensão de reforma no valor de 400,00 euros mensais;
19. A arguida trabalha como costureira, na fábrica de confecções P, auferindo cerca de 380,00 euros, por mês.
20. Os arguidos vivem numa casa arrendada, pagando a renda mensal de 3,50 euros.
21. Os arguidos têm a seu cargo uma filha de 9 anos de idade, que frequenta ATL, pelo qual pagam mensalmente 50,00 euros.
22. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
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Considerou-se não provado:
1. Os arguidos ameaçassem os menores com agressões físicas caso os mesmos contassem ou revelassem a terceiros os males infligidos.
2. Era habitual os arguidos indistintamente baterem aos menores com as mãos ou com qualquer outro objecto que tivessem na ocasião nas imediações.
3. Era habitual a arguida M, quando os menores C, J e D urinavam na cama, durante a noite, o que sucedida com frequência, como forma de os castigar, lhes bater com a mão e de cinto.
4. Era habitual o arguido A, quando os menores C, J e D urinavam na cama, durante a noite, o que sucedida com frequência, como forma de os castigar, levá-los para a casa de banho e dar-lhes banho de água fria.
5. Durante o período em que os menores viveram com os arguidos estes os agredissem com uma tábua, ou os arrastarem pelos cabelos até à casa de banho, onde os obrigavam a permanecer de pé, nus e ao frio na casa de banho por períodos longos de tempo.
6. Era frequente os arguidos ausentarem-se à noite de casa, sendo que nessas ocasiões ali deixavam os menores sozinhos e fechados à chave.
7. Os arguidos agredissem física ou psicologicamente a menor S.
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FUNDAMENTAÇÃO
1 – A impugnação da matéria de facto
Na sentença recorrida deu-se como provado o seguinte facto, sob o ponto nº 2:
2 - Por decisão proferida, em 10 de Outubro de 2001, nos autos de promoção e protecção n.º 27/97, a correr termos neste 3° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, foram entregues à guarda e cuidados do seu avô materno e ora arguido A, os seguintes menores:
- J, nascido em 09/07/1993, filho de P e de F;
- D, nascido em. 05/10/1995, filho de Ana e de João;
- C, nascida em 03/03/2000, filha de Ana e de João”.
Porém, da certidão do assento de nascimento junta a fls. 471 consta que a menor C nasceu em 20 de Novembro de 1997.
Assim, naquele facto, onde se escreveu 03/03/2000 passará a constar 27/11/1997.
*
Os recorrentes impugnam os factos considerados provados sob os nºs 7, 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15 e 16.
Porém, a motivação do recurso parece partir de um equívoco. O de que, em sede de recurso da matéria de facto, o tribunal da Relação pode fazer um novo julgamento, indicando, mediante a leitura das transcrições feitas, os factos que considera provados e não provados.
Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99.
Não concretiza aquele Professor a que vícios se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.
Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anot., vol. IV, pags. 566 e ss.
O art. 127 do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Tudo o que ficou dito está em harmonia com as normas processuais que regulam o recurso em matéria de facto.
Dispõe o art. 412 nº 3 do CPP:
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; e
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) ....
Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
A sentença recorrida motivou a decisão da matéria de facto, no que para aqui interessa e no essencial, da seguinte forma:
No que respeita aos comportamentos dos arguidos descritos nos pontos 7. a 13 dos factos provados, a convicção do Tribunal alicerçou-se, fundamentalmente nas declarações da menor C.
Com efeito, a menor C relatou, de modo espontâneo, que, enquanto viveu com os arguidos, o avô lhe batia com um chicote / cinto, sempre que ela urinava na cama e que, nessas alturas, a arguida, para a castigar, a levava para a casa de banho e lhe dava banho de água fria.
A pequena C esclareceu que o mesmo comportamento era mantido pelos arguidos em relação aos seus irmãos J e D, quando estes urinavam na cama, sendo que não se referiu à menor S.
Destaque-se que os arguidos afirmaram que os menores, quando lhes foram entregues usavam todos fraldas para dormir e que, frequentemente, lhe tiravam as fraldas para se habituarem a dormir sem elas, mas muitas dessas vezes eles urinavam na cama, de onde se pode retirar que os castigos tinham alguma frequência, como já decorria do depoimento da C.
A C asseverou também ao Tribunal que quando ela ou os irmãos faziam alguma asneira eram mandados de castigo para o quarto, onde eram fechados à chave.
Note-se que, neste ponto, o depoimento da petiz foi confirmado pela Técnica Superior do Serviço Social – a testemunha Maria – que garantiu que, no âmbito da elaboração do relatório social referente aos menores, em entrevista ao seu avô, ora arguido, este se queixou que aqueles eram crianças muito difíceis e que a forma que tinha de os controlar era mantendo-os fechados no quarto. A testemunha afirmou que ficou com a ideia clara que os menores ficavam fechados à chave no quarto.
Contou também a menor C um episódio em que o arguido A lhe bateu com um taxo no olho, causando-lhe uma nódoa negra. Disse a C que tal aconteceu numa altura em que estavam na cozinha, ela na mesa a comer a sopa, o avô a cozinhar e a M a lavar a loiça, explicando que tudo sucedeu porque ela não queria comer a sopa, facto que terá enervado o avô que, abeirando-se dela, lhe deu com o taxo, que tinha na mão, no olho.
Realce-se que as lesões (nódoa negra) no olho esquerdo da C (comprovadas no relatório médico de fls. 61 a 64 dos autos) foram justificadas pelos arguidos, apresentando ambos ao Tribunal a versão de que a menor se terá magoado com uma colher. As versões dos arguidos não foram, todavia, totalmente coincidentes já que o arguido afirmou que tal se terá passado enquanto a menina batia com a colher num velho tambor, ao passo que a arguida afirmou que a menina batia com a colher na mesa, fingindo estar a bater um tambor, uma vez que foi na altura das festas do Pinheiro.
Cumpre salientar as declarações da Coordenadora da Escola EB1 n.º 3, a testemunha MJosé e da professora do J, a testemunha MM. Atente-se, contudo, que os depoimentos destas testemunhas apenas foram valorados pelo Tribunal no que tange estritamente aos factos por elas constatados e não já quanto àquilo que ouviram dizer das crianças.
Asseverou a directora que, no dia em que as crianças foram retiradas de casa do avô, a C, que nos dias anteriores havia faltado ao jardim-de-infância que integra a escola EB1 n.º 3, apareceu no dito infantário com uma marca no olho. Disse a testemunha que, tendo constatado tal lesão no olho da menor, tentou averiguar o que estaria na sua origem, tendo perguntado directamente à criança, que porém nada lhe respondeu.
A coordenadora explicou que a nódoa negra apresentada pela C lhe despertou a atenção pois, embora nunca antes tivesse visto quaisquer marcas de violência física quer na C, quer nos seus irmãos, já tinha sido alertada pela professora do J para o facto do menor manifestar bastante ansiedade e receio quando se sujava no recreio.
De facto, a professora MM, confirmou ao Tribunal que, a certa altura, o J sujou a roupa enquanto brincava no recreio e que, por esse motivo, desatou a chorar em pranto, revelando-se perturbado e muito amedrontado, facto que a deixou alertada para a situação do menor e dos seus irmãos. Tanto mais que, acrescentou a testemunha, falava-se na escola que os menores não tinham brinquedos, sendo que numa ocasião as professoras juntaram-se para lhes oferecer alguns brinquedos. (Note-se que a menor C afiançou que não tinham brinquedos)
Na verdade, foi a circunstância da C surgir com uma nódoa negra no olho que fez despoletar uma averiguação, por parte destas, junto dos menores, que conduziu à sinalização efectuada à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Guimarães e que culminou com a retirada das crianças de casa do avô.
Ora, o depoimento da pequena C, na sua simplicidade e espontaneidade, logrou convencer o Tribunal, permitindo firmar a convicção de que tudo se terá passado conforme se deu como provado.
Realmente, nada permite desvalorizar o depoimento da criança, tanto mais que o mesmo é corroborado, tanto pelas testemunhas a que se fez referência, como pelos elementos objectivos contidos nos autos, como sejam os relatórios médico-legais e os registos hospitalares de fls. 57 a 60 e 61 a 64, no que se refere às lesões apresentadas pelos menores C e J - descritas no ponto 13. dos factos provados - e nexo causal com as agressões que lhes foram infligidas” (…) (sublinhado do relator).
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Há uma alegação na motivação do recurso que poderia apontar para a existência de um «vício» no julgamento da matéria de facto com as características acima indicadas.
Como se viu, as declarações da menor C são nucleares na fundamentação da decisão da matéria de facto. Na sentença recorrida deu-se como provado que ela nasceu em 3-3-2000. Sendo os factos situados antes de 7-11-2002, a menor teria relatado comportamentos que teriam ocorrido quando ela tinha apenas 2 anos e 8 meses, ou menos. As referidas «regras da experiência» indicam-nos que muito dificilmente, três anos e meio depois (o julgamento teve lugar em 8-5-06), uma criança consegue relatar factos ocorridos naquela idade.
Porém, a menor nasceu em 20 de Novembro de 1997. Os factos ocorreram quando ela já tinha cinco anos. As mesmas regras da experiência mostram que aos cinco anos uma criança já tem uma percepção da realidade e um discurso suficientemente claros que lhe permitem contar acontecimentos que se passaram com ela.
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No mais, os recorrentes não alegam que a descrição que a sentença faz do conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que na realidade foi dito, nomeadamente pela C.
O que fazem é diferente.
À fundamentação da sentença contrapõem que nela são referidos depoimentos de testemunhas que disseram nunca terem visto os arguidos a agredirem os menores, pelo que estaríamos perante “depoimentos indirectos, os quais nos termos do preceituado no art. 129 do CPP, não têm qualquer valor, não podendo os mesmos servirem como meio de prova”.
Sobre estes depoimentos escreveu-se na sentença: “Atente-se, contudo, que os depoimentos destas testemunhas apenas foram valorados pelo Tribunal no que tange estritamente aos factos por elas constatados e não já quanto àquilo que ouviram dizer das crianças”.
A alegação do recurso pressupõe o entendimento de que, se a testemunha não tiver presenciado o facto provado, o seu depoimento será sempre imprestável e, se for valorizado, haverá violação da norma do art. 129 nº 1 do CPP. Não é assim, porque a prova deve ser toda conjugada e relacionada, de tal modo que, muitas vezes, um elemento que, se considerado isoladamente, é inócuo, ganha relevância porque é coerente e dá força à demais prova produzida. No caso em apreço, a decisão baseou-se em primeira linha nas declarações da menor C. Os demais depoimentos são de pessoas que contactaram com os menores e descrevem comportamentos compatíveis com a existência das agressões e maus tratos, que relatam factos coerentes com a versão apresentada pela C e que, nessa medida, lhe são consistência e credibilidade.
Por outro lado, é certo que existem depoimentos de pessoas que contactaram com os menores, já quando os factos ocorriam, que referem que não se terem apercebido dos mesmos. Mas as regras da experiência indicam-nos que nem sempre os menores verbalizam e relatam imediatamente os maus tratos e abusos de que são vítimas. Muitas vezes sentem-se até culpabilizados pelo que lhes aconteceu, passam por fases em que negam os factos, só os conseguindo contar, de forma progressiva, depois de tecnicamente acompanhados. A existência de disparidades entre atitudes anteriores e o que a C contou no julgamento, não é, assim, de molde a afectar irremediavelmente a credibilidade do que disse.
Afirmam também os recorrentes que o depoimento da C não foi “espontâneo”. É questão já acima tratada, incindível da oralidade e imediação com que ele foi prestado.
Finalmente, indicam algumas omissões e contradições nas declarações da C. Por exemplo, não sabe precisar o dia em os factos ocorreram; primeiro disse que quando foi ao hospital, o arguido foi para o café, afirmando depois que ele a acompanhou na ambulância; primeiro disse que lhe batia com um chicote e depois com um cinto, etc. Mas a função do julgador não é a de achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a espinhosa missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. Como, aliás, já há muito ensinava o prof. Enrico Altavilla “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” – Psicologia Judiciária, vol. II, 3ª ed. pag. 12.

2 – A violação do princípio in dubio pro reo.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido – ac. STJ de 24-3-99 CJ stj tomo I, pag. 247.
Ora no texto do sentença não se vislumbra que a sra. juiz tenha tido dúvidas sobre a prova de qualquer dos factos que considerou provado, pelo que improcede a invocada violação.

3 – Os crimes de maus tratos p. e p. pelo art. 132 nº 1 do Cod. Penal
Diz o art. 152 nº 1 do Cod. Penal:
1 – Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente;
b) …
c) …
é punido com a pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo art. 144”.
Suscitam os recorrentes a questão de saber se os factos são enquadráveis naquele conceito de «maus tratos».
Fazem afirmações, umas próprias outras que são citações, que todos subscreverão, tal é a evidência da razão do que é afirmado. “É legítimo aos pais, que têm a seu cargo a educação do menor, a correcção e educação deste, mediante a utilização do castigo físico”; “A finalidade educativa pode justificar uma ou outra leve ofensa corporal simples” (Prof. Faria Costa); “de acordo com o ponto de vista maioritário a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção” (Paula Ribeiro de Faria).
Como também bem dizem os recorrentes “a linha de fronteira passa por dois pontos: um reportado à finalidade da correcção; outro à sua adequação à educação do menor”. “A relevância penal de uma dada conduta deve aferir-se em cada caso concreto…”.
Apenas se acrescentará mais uma ideia. No juízo sobre se determinado comportamento deve ser qualificado de «maus tratos», não pode deixar de se ter em consideração as condicionantes sociais, culturais, económicas e outras dos indivíduos envolvidos. Comportamentos vulgares num círculo social podem não ser aceitáveis para outras pessoas. Mas esta ponderação das diversas condicionantes tem como limites as exigências mínimas interiorizadas pelo Direito e pela generalidade dos cidadãos. O Direito tem também uma função conformadora da sociedade, podendo impor a todos os seus membros determinados comportamentos, mesmo que alguns não se sintam ética ou moralmente vinculados a eles. São hoje inadmissíveis castigos pretensamente correctivos que seriam aceites (e até louvados) há 100 ou 200 anos.
Posto isto, os factos provados não podem deixar de ser enquadrados no conceito de maus tratos. Castigar habitualmente menores, com tão tenra idade, por urinarem na cama, consistindo tais castigos em agressões com um cinto (facto nº 8), ultrapassa em muito as apontadas finalidades de correcção. A existência de “feridas cicatriciais de aspecto antigo” (facto nº 13) também aponta para a reiteração dos comportamentos. Nesse sentido, também, as lesões examinadas aos menores C e J Pedro (facto nº 13), entre as quais sobressai uma ferida na pálpebra superior do olho esquerdo da C, que demonstra que nem sequer havia o “cuidado” de não serem visadas zonas do corpo onde não houvesse risco de serem causadas lesões graves e irreversíveis.
Finalmente, argumentam os recorrentes com a circunstância da sentença, aquando da determinação da medida da pena, aferindo a ilicitude do comportamento, ter considerado “a gravidade média das lesões físicas apresentadas…”.
Não pode proceder esta argumentação, porque o que está em causa é o comportamento que existiu ao longo de um determinado período de tempo. Como decorre dos factos provados, estes não consistiram apenas em ofensas corporais. Além de que as “lesões físicas apresentadas” foram examinadas no final do período em que aconteceram os comportamentos e nem as sequelas apresentadas podem constituir o único critério para aferir da gravidade de uma agressão.

4 – Os crimes de ofensa à integridade física qualificada – arts. 143 nº 1, 146 e 132 nº 2 al. b) do Cod. Penal
A arguida M foi pronunciada, tal como o arguido A, pela prática de quatro crimes de maus tratos p. e p. pelo art. 152 nº 1 do Cod. Penal.
A sentença absolveu a arguida destes crimes por, em relação a ela, não se poder afirmar a existência de “uma relação de subordinação existencial, traduzida pelo facto destes (os menores) se encontrarem ao seu cuidado, à sua guarda, ou sob a responsabilidade da sua educação”.
Porém, considerou que os factos, em relação à arguida M, integram a prática de três crimes de ofensa à integridade física qualificada. Tendo sido desencadeado o mecanismo previsto no art. 358 do CPP, condenou-a como autora de tais crimes. Cita a propósito um acórdão da Relação do Porto de 3-11-99 (CJ tomo V, pag. 223) que decidiu que “não existe obstáculo legal a que se proceda à convolação do crime de maus tratos a cônjuge no de ofensas à integridade física, uma vez que este ilícito é um “minus” em relação àquele, verificando-se entre ambos uma relação de especialidade”.
Não se discorda desta formulação.
Contudo, é necessário que na acusação os factos estejam suficientemente discriminados (quanto a tempo, modo e lugar) de forma a permitirem a condenação pelo um crime de ofensa à integridade física.
Explicitando.
O art. 283 nº 3 al. b) do CPP (aplicável à pronúncia – art. 308 nº 2 do CPP) dispõe que a acusação contém sob pena de nulidade “a narração, ainda que sintética dos factos (…), incluindo, se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática…”.
No crime de maus tratos é indiferente, para que se possa afirmar estarem verificados os elementos típicos, determinar com exactidão quantas vezes foi reiterado o comportamento. O que está em causa, não é a punição autónoma de cada um dos actos que integram os maus tratos, mas um comportamento reiterado ao longo do tempo. A pronúncia balizou as circunstâncias em que tal comportamento persistiu – entre Outubro de 2001 e Novembro de 2002.
Não é assim no crime de ofensa à integridade física em que, em princípio, a cada agressão corresponde a prática de um crime.
Para que possa ocorrer a “convolação” acima referida é necessário que a acusação pelos maus tratos contenha uma narração de factos compatível com a condenação por um (ou vários) crimes de ofensa à integridade física. Isso faz-se normalmente discriminando os episódios concretos.
Ora, o único facto da sentença individualmente imputado à arguida M é o seguinte:
8 – “Era habitual a arguida M, quando os menores C, J e D urinavam na cama, durante a noite, o que sucedida com frequência, como forma de os castigar, levá-los para a casa de banho e dar-lhes banho de água fria”.
Esta indeterminação de factos relevantes não permite a condenação por um crime de ofensa à integridade física qualificada.
A sentença não indica porque considerou apenas existir um crime por cada menor, em vez de um crime por cada banho ministrado.
Por outro lado, a frase transcrita, na sua singeleza, não esclarece, por exemplo, se os menores eram acordados em plena noite para serem submetidos ao castigo do banho frio, ou se este era dado de manhã quando acordavam. Nada se diz também sobre se os episódios em causa ocorreram no Verão ou no Inverno. Não têm o mesmo desvalor penal um banho frio dado na madrugada duma noite gélida de Inverno e um banho (igualmente frio) que tiver sido ministrado numa manhã de Verão. O primeiro poderá permitir um juízo de especial censurabilidade e a consequente condenação pelo crime de ofensa à integridade física qualificada do art. 146 do Cod. Penal. Diferentemente, o segundo talvez possa ainda ser enquadrado nos poderes de correcção que se reconhece aos pais e educadores, embora se afigure manifesta sua desadequação pedagógica. No “meio” fica a possibilidade do crime de ofensa à integridade física simples, que traz consigo problemas inultrapassáveis, face à matéria provada, como seja a fixação da data em que se extinguiu o direito de queixa.
Por último. Como acima se disse, nas ofensas à integridade física o que está em causa é a prática de cada uma das agressões concretamente perpetradas. Sem estas serem minimamente balizadas no tempo e sem serem indicadas, ainda que resumidamente, as circunstâncias em que ocorreu cada agressão, está-se a postergar o direito ao contraditório, pois o arguido só se pode defender cabalmente se lhe forem comunicados os factos concretos que integram o crime.
Em resumo, a acusação por crime de maus tratos nem sempre permite a “convolação” para o crime de ofensa à integridade física. É necessário que nela sejam narrados factos que, quando considerados autonomamente, configurem de forma inequívoca o novo crime. Pelas razões apontadas isso não acontece quanto à arguida M, pelo que esta terá de ser absolvida.

5 - A pena concreta
Face à absolvição da arguida M, há só que tratar da pena do arguido A.
Numa moldura de prisão de 1 a 5 anos, foi fixada a pena de 18 meses de prisão para cada crime e, em cúmulo jurídico das três penas parcelares, a pena única de dois anos de prisão.
Alega-se na motivação que o tribunal não teve em conta que o arguido não tem antecedentes criminais e que está perfeitamente integrado familiar, social e profissionalmente.
Pretender-se-á aqui invocar as poucas exigências de prevenção especial.
Mas tais razões já foram generosamente contempladas quer nas penas parcelares fixadas, que se situam muito abaixo do meio da moldura penal abstracta (o meio está situado nos três anos de prisão), quer na decisão de suspender a execução da pena única. Por outro lado, a culpa – entendida como o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316) – é pelo menos de grau médio, dado o grau de parentesco com os menores, pelo que nenhuma violação houve do comando da norma do art. 40 nº 2 do Cod. Penal – “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Também são relevantes as exigências de prevenção geral positiva, dada a crescente sensibilidade social relativamente a este tipo de comportamentos, que acentua a necessidade de afirmação da norma violada.
Finalmente, a pena única está de tal forma próxima das penas parcelares (o seu limite máximo era 4 anos e 6 meses de prisão – art. art. 77 nº 2 do Cod. Penal), que não permite qualquer redução. Aliás o recorrente nada argumenta, em concreto, no sentido de demonstrar que a fixação da pena única não teve em conta os critérios estabelecidos no art. 77 nº 1 do Cod. Penal.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento parcial ao recurso, absolvem a arguida M, mantendo, no mais, a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente A, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs, sem prejuízo do decidido quanto ao apoio judiciário.
***
VOTO DE VENCIDO

Apesar do devido respeito, não podemos, de modo algum, concordar com a solução encontrada para as condutas da arguida M.
Lamentavelmente, o Ministério Público não recorreu da decisão convolatória e, por isso, nada haveria a fazer.
É mais que evidente que a relação de subordinação prevista no nº 1 do artº 152º é a que deriva de determinadas condições factuais concretas, abrangendo todas aquelas situações em que, com carácter estável ou mesmo temporário, alguém tem o encargo da protecção, guarda ou orientação educacional ou laboral de um menor ou de pessoa particularmente indefesa.
Entender a “confiança” consignada nesse tipo legal apenas como aquela que deriva de um acto judicial ou institucional é, por exemplo, deixar fora da punição, além de outros casos, os pais que não têm a guarda dos filhos por estes terem sido “confiados” à guarda e cuidados das mães e também os padrastos, não fazendo sentido, com o devido respeito se afirma, que se faça depender a “confiança” da situação de dependência material, tal como se diz no acórdão do S.T.J. ao qual a decisão recorrida aderiu.
No caso concreto, a confiança, por via judicial, apenas ao arguido A, visou satisfazer determinadas exigências legais, que não restringir a acção protectora e orientadora apenas a esse familiar, estando implícito que essa acção se estendia à pessoa com quem o avô vivia, em união matrimonial.
A mulher do avô não era apenas - e que fosse - a empregada doméstica dos menores, derivando a sua função tutelar do simples facto de ser casada com o arguido.
Simplesmente, como se disse, isto escapou à sensibilidade de quem decidiu e de quem tinha o poder de recurso, pelo que, neste aspecto, não podia este Tribunal alterar, in pejus, a decisão recorrida, mesmo que as pessoas se interroguem, legitimamente, sobre as razões de impunidade de um daqueles que tinha iguais funções e responsabilidade do que veio a ser condenado.
Todavia, ainda assim, a decisão de absolvição da arguida não tem razão de ser.
Vejamos.
A decisão de convolação foi assim justificada:
Afastado que está o enquadramento jurídico do comportamento da arguida no crime especial do artigo 152º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, subsistem, no entanto, os crimes de ofensa à integridade física simples e de ofensa à integridade física qualificado, previstos e puníveis, no artigo 143º, do Código Penal e 146º, conjugado com o artigo 132º, alínea b), do mesmo diploma.
Já acima nos pronunciamos sobre a relação de especialidade que envolve os crimes de maus tratos e de ofensa à integridade física simples, referindo a existência de um concurso aparente entre as duas incriminações. Assim, faltando, como sucede nos autos, os elementos específicos do tipo especial deve este convolar-se no tipo fundamental que protege o mesmo bem jurídico lesado.
Não é outro o sentido da decisão do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de Novembro de 1999, onde se lê:
«I – No crime de maus tratos ao cônjuge [leia-se menor], protege-se a saúde física e mental do cônjuge.
II – Esse bem jurídico pode ser violado por todo o comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge, designadamente por ofensas corporais simples.
III – A punição dirige-se, porém, tão-somente aos comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade pessoal do cônjuge, e não a ofensas corporais isoladas, ainda que de duração prolongada.
IV – Não existe obstáculo legal a que se proceda à convolação do crime de maus tratos a cônjuge no de ofensas à integridade física, uma vez que este ilícito é um minus em relação àquele, verificando-se entre ambos uma relação de especialidade.» In Colectânea de Jurisprudência , V, p. 223.

Não se vislumbra no caso dos autos qualquer óbice à punição da arguida pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punível pelo artigo 143º e 146º, com referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea b), do Código Penal, pois encontrando-se os factos constitutivos deste crime convenientemente circunstanciados (as agressões ocorreram todas durante o período em que os menores estiveram a residir em casa dos arguidos), o mesmo representa, efectivamente, um minus em relação ao crime de maus tratos.
No acórdão deste Tribunal reconhece-se que os factos provados não podem deixar de ser enquadrados no conceito de maus tratos, pois, castigar habitualmente menores, com tão tenra idade…, ultrapassa em muito as apontadas finalidades de correcção.
Ora, se a conduta da arguida foi considerada estranha à função de protecção, guarda e orientação, pelo menos não pode deixar de ser considerada reveladora de uma muito especial perversidade, a integrar a previsão do artº 146º, cujas circunstâncias típicas são meramente exemplificativas.
A explicação da malvadez das condutas como a da arguida não carece ou é de difícil demonstração, mas é imediatamente apreendida e assumida por quem tenha um mínimo de sensibilidade e atente em que, devendo o lar familiar ser o berço do afecto e da harmonia, qualquer atitude agressiva, física ou moral, é aberrante e deveras traumatizante. Como diz Ilan Kutz (Psiquiatra Israelita), os maus pais são mais perigosos do que os terroristas, acrescentando que não há trauma maior do que o que é infligido nos nossos lares.
A este propósito, diz-se na decisão recorrida o seguinte, acrescentando-se agora os sublinhados:
No que tange à punibilidade da conduta da arguida é pertinente ponderar-se da sua eventual inclusão na previsão do artigo 146º, do Código Penal, o qual como já se afirmou supra nos parece, tal como sucede com o crime do artigo 143º, encontrar-se numa relação de especialidade em face do crime de maus tratos, consubstanciando ainda um minus em relação a este.
Tratando-se os ofendidos de crianças, sobretudo no que toca à C, de tenra idade, não podemos deixar de equacionar se a ofensa à integridade física perpetrada deve ou não qualificar-se por força das disposições conjugadas dos artigos 143º, 146º e 132º, n.º 2, alínea b), todos do Código Penal.
É unanimemente aceite que as circunstâncias previstas no artigo 132º do Código Penal, não são de funcionamento automático, nem taxativas, tratando-se, antes, de uma técnica legislativa designada de «exemplos padrão».
Significa isto que as circunstâncias aí enunciadas, entre as quais se conta a da vítima ser pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, só podem ser compreendidas enquanto elementos de culpa, exigindo-se, por isso, que elas exprimam, no caso concreto, insofismavelmente, uma especial perversidade ou censurabilidade do agente.
Ora, no caso sub judicio, parece-nos que a especial censurabilidade da arguida se encontra ostensivamente revelada, porquanto, as vítimas, além de serem crianças e, portanto, naturalmente indefesas, encontravam-se numa situação de grande proximidade com a arguida, vivendo em casa desta, com a sua família.
De facto, é indesmentível que estas crianças se encontrariam de algum modo ligadas emocionalmente à arguida, mulher do seu avô, a quem estavam confiadas.
Realce-se que as vítimas em causa são crianças com um percurso de vida difícil, marcado pelo abandono e pela insegurança, pelo que, ainda que contra a sua vontade, a arguida representaria, naquele momento, a sua figura feminina de referência.
Dessa figura de referência, essas crianças, especialmente carentes de afectos, esperariam, de certo, amor, carinho, atenção e compreensão, mas não já os castigos que frequentemente lhes eram infligidos, quando urinavam na cama (o que não é se não uma manifestação da sua insegurança e carência profunda) ou quando eram mais irrequietas ou buliçosas.
Os banhos de água fria a meio da noite e demais castigos perpetrados pela arguida, deixaram, com toda a certeza, nestas crianças, cicatrizes tão ou mais profundas quanto as marcas das agressões de cinto com que o avô as presenteava. È que estes episódios, frequentes, de violência não apenas física mas, sobretudo, psicológica, são susceptíveis «de causar um impacto nocivo ao nível psico-ecomocional, sendo este por vezes mais intenso do que aquele que é vivenciado na experiência de controlo físico violento», impacto que é exponencialmente aumentado pelo facto da violência ocorrer no contexto familiar, espaço privilegiado e de fulcral importância no desenvolvimento integral da criança. Não esqueçamos que a família é o espaço de socialização da criança, por excelência, constituindo o elemento primordial da estruturação social e do desenvolvimento humano e, durante o período em que os menores ofendidos viveram em casa do avô, a arguida e sua família constituíam também a única família daqueles.
Com estes fundamentos, não se compreende a relutância em se aceitar a convolação formulada.
E quanto à localização temporal das condutas da arguida, cremos que ela vem, para o que interessa, bem delimitada entre 10 de Outubro de 2001 e 7 de Novembro de 2002, sendo impossível melhor determinação.
Esta forma de alegação do Ministério Público, que, tendo em vista o crime de maus tratos, não tinha outros elementos, é bastante para a integração do citado crime do artº 146º, sem que se mostre violado o tema acusatório e qualquer direito de defesa, notando-se que o artº 283º do C.P.Penal estabelece, compreensivelmente, que o lugar e o tempo da prática dos factos devem ser incluídos na narração, se possível e não com precisão rigorosa.
A acusação, e agora a sentença, contêm factos bastantes para a citada integração, revelando uma conduta ilícita materializada numa pluralidade de factos praticados ao longo do tempo, unificados por uma mesma disposição criminosa, reafirmada e mantida sempre que as circunstâncias a propiciavam, pelo despertar do ânimo malvado inicial, pelo que houve uma prática criminosa reiterada.
Assim se obvia à questão suscitada no acórdão em causa sobre a não punição por tantos crimes quantos os banhos de água fria dados pela arguida aos menores, e sobre as hipóteses das condições climatéricas abordadas apenas relembraremos que os menores estiveram com a arguida desde Outubro de 2001 até Novembro de 2002 e não é crível que apenas “tomassem banho” no Verão. Mesmo que assim fosse, porém, parece-nos não haver dúvidas de que, apesar do menor choque físico, a malvadez era exactamente a mesma. Os relatórios psicológicos dos menores, também eles fundamento da matéria de facto, são claros: as crianças foram recorrente e violentamente vitimizadas, quer física, quer psicologicamente.
Por último, é ainda suscitada a questão, no referido acórdão, da indeterminação das datas dos factos, para efeitos de procedimento criminal pelo simples crime de ofensas à integridade física.
Sem prejuízo de em circunstância alguma admitirmos a comissão de tal crime, a verdade é que, atentas as circunstâncias, o procedimento poderia, como aconteceu, ser exercido pelo Ministério Público ao abrigo do disposto nos nºs 5 e 6 do artº 113º do CPenal.
Porém, mesmo que assim se não entendesse, caberia, então, reenviar-se o processo para as devidas averiguações em audiência, aproveitando-se para se tentar determinar quem é que fechava os menores no quarto, à chave, como forma de castigo (facto nº 12), sem que se conceda, obviamente, que também esta prática não revela especial perversidade por não implicar danos significativos.
É que, relembra-se mais uma vez, como se diz num relatório do Conselho da Europa, violência é qualquer acto, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, directa ou indirectamente, por meio de enganos, ameaças, coacção ou qualquer outro meio, e tendo por objectivo e como efeito intimidar as vítimas, puni-las ou humilhá-las, ou recusar-lhe a dignidade humana, a integridade física, mental e moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir a suas capacidades físicas ou intelectuais”.
Pelo exposto, e pelo menos, manteria a decisão recorrida ou reenviaria o processo para as averiguações pertinentes.

Anselmo A Lopes