Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
26/15.0T8VNF-E.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: INCIDENTE DE DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A tutela legal conferida pelo incidente de diferimento da desocupação e consequente limitação do direito de propriedade do adquirente no processo de insolvência, é considerada "ultra-vigência" de um direito anteriormente reconhecido, admitindo-se o prolongamento dos seus efeitos em face da boa-fé do respetivo titular e das suas necessidades e das pessoas que vivam consigo;

2- Visa salvaguardar o direito à habitação, constitucionalmente consagrado no art. 65º, da Constituição da República, podendo o insolvente, proprietário de casa de habitação apreendida para a massa insolvente, requerer o diferimento da desocupação dessa habitação, por razões sociais imperiosas e verificados determinados fundamentos - cfr. als, a) e b), do nº2, do art. 864°, do Código de Processo Civil, aplicável por força do nº 5, do artº 150°, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

3- Pressuposto essencial do direito ao diferimento da desocupação é a verificação de tais razões sociais imperiosas que o justifiquem, sendo que o propósito do legislador, ao estabelecer a possibilidade do diferimento da desocupação, foi fazer face a casos excecionais em que se justifica impor aos proprietários do imóvel o retardar do cumprimento da obrigação de entrega do imóvel, por motivos que se prendem com a dignidade humana;

4- Embora sejam apontados critérios decisórios a seguir, confia a lei a decisão ao prudente arbítrio do Tribunal (bom senso e racionalidade do juiz);

5- Apesar do direito à habitação ser um direito fundamental, o mesmo não pode ser conseguido à custa da violação da lei (como seria o diferimento sem a comprovação dos requisitos, e, designadamente, por mais de cinco meses) e de direitos legítimos de outrem, sendo que o assegurar daquele direito fundamental, de natureza social, é incumbência do Estado e não de particulares.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Vieram os insolventes Fernando e Maria interpor recurso do despacho que lhes indeferiu o incidente de diferimento da desocupação do imóvel, pretendendo que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que ordene que seja proferido despacho a deferir a desocupação do imóvel por um período de 180 dias.

Formularam os recorrentes, as seguintes CONCLUSÕES:

1. O imóvel, casa de habitação e morada de família dos aqui Recorrentes, foi adjudicado ao Banco A, SA, em 11/04/2017 pelo valor de 115.000.00 €.
2. A Senhora Administradora da Insolvência celebrou escritura de compra e venda do imóvel, em 14 de Junho de 2017.
3. Só a partir dessa data foi requerida a entrega das chaves e do imóvel livre de pessoas e bens.
4. Os aqui Recorrentes obviamente que se não opõem à entrega das chaves do imóvel, no entanto necessitam de algum tempo para procederem à entrega e abandono do mesmo.
5. Os Recorrentes não dispõem de outra habitação, sendo pessoas de bem e respeitadores da Lei e da Ordem, no entanto necessitam de tempo para encontrarem uma outra habitação onde possam residir.
6. O Insolvente marido está desempregado, encontrando-se inscrito no respetivo Centro de Emprego, não auferindo rendimentos (prestação de subsidio de desemprego) desde Agosto de 2016.
7. A Insolvente mulher aufere uma prestação de subsídio de desemprego no valor de 421,00 € mensais, prestação essa que termina no corrente mês de Outubro de 2017.
8. Deste modo e salvo melhor opinião, os Insolventes devem beneficiar do estatuído nos artigos 862º, 864º e 865º todos do C.P.C., por força da remição operada no artigo I7º e 150º ambos do CIRE.
9. Tendo em conta que a adjudicação do bem imóvel em causa e a escritura de compra e venda apenas ocorreu a 14 de Junho de 2017, tendo os insolventes apenas conhecimento de tal facto, em momento posterior, e desde então tudo têm feito para encontrar uma habitação alternativa para arrendamento.
10. Assim entendem os insolventes, ser de aplicar ao caso em concreto o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação.
11. Sendo uma salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar o direito à habitação, artigo 650º da C.R.P ..
12. Com as devidas adaptações deve-se seguir o estatuído nos artigos 862º a 865º do C.P.C., por força do 150º nº5 do CIRE, na perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo aos insolventes tal como se permite no processo executivo para entrega de coisa certa ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação num prazo que de acordo com o prudente arbítrio do Tribunal, para procurar um alojamento alternativo, nunca inferior a seis (6) meses.
13. Tem sido entendimento da jurisprudência, nesse sentido acórdão da Relação do Porto de 14/06/2016, processo nº 277/1/, sendo Relator Rodrigues Pires, no site do www.dgsi.pt./jtrp.
14. Ainda recentemente no processo 7856/15.0T8VNF-D.Gl, da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em decisão singular da Veneranda Juiz Desembargadora Maria Cristina Cerdeira, foi reconhecido o deferimento de entrega de uma imóvel que constitui a casa de habitação dos insolventes por um período de 90 dias.
15. Assim entendem os insolventes ser de aplicar ao caso em concreto o beneficio do diferimento da desocupação da casa de habitação.
16. Sendo uma salvaguarda de direitos fundamentais de ordem social e familiar o direito á habitação, artigo 65º da C.R.P..
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O Banco A, S.A. ofereceu contra-alegações pugnando por que seja mantida, na íntegra, a decisão recorrida pelas seguintes razões:
A 7 de Dezembro de 2016, a Senhora Administradora de Insolvência informou o ora Recorrido que a sua proposta para adjudicação do imóvel apreendido nos autos foi aceite, tendo-se realizado a respetiva escritura pública a 14 de Junho de 2017.
Sucede que, à data adjudicação do referido imóvel, o mesmo permanecia ocupado pelos Insolventes. Face à exigência por parte da Senhora Administradora de Insolvência no sentido da entrega do imóvel pelos Insolventes, foi por estes requerido o diferimento da desocupação do imóvel por prazo não inferior a 180 dias.
Entendeu o douto Tribunal a quo julgar tal pretensão improcedente, decisão da qual vêm os Insolventes, ora Recorrentes, apresentar recurso.

Posto isto,
Os Recorrentes entendem que ao julgar improcedente o diferimento de desocupação do imóvel, a decisão do Tribunal a quo foi proferida "com lapso/erro na apreciação da prova e em desacordo com os preceitos legais adequados" enferma de erro / lapso na apreciação das provas e na aplicação do direito. ".
Com o devido respeito, as Alegações ora apresentadas pelos Recorrentes carecem de todo e qualquer fundamento, como se irá demonstrar.
Senão vejamos,
Alegam os Recorrentes que lhes deverá ser concedido um prazo de 180 dias para procederem à desocupação do imóvel adjudicado no âmbito do processo de insolvência, uma vez que, até à data, não lograram encontrar uma alternativa habitacional.
Ora, nos termos do artigo 864º nº 2 do CPC (aplicável no âmbito do processo de insolvência por força do artigo 150º nº5 do CIRE), o juiz deverá ter em consideração, entre outros factores, "a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação ".
Sucede que, no caso concreto, a concessão do benefício de diferimento da desocupação do imóvel revelar-se-ia abusiva.
Senão vejamos,
A 2 de Janeiro de 2015, os ora Recorrentes requereram a sua declaração de insolvência, reconhecendo assim a respetiva incapacidade de cumprir com as responsabilidades por si assumidas. Ora, desde então, os Recorrentes não poderiam ignorar que o imóvel no qual residiam seria vendido com vista à satisfação dos respetivos Credores.
Acresce que,
Em sede de assembleia de credores, realizada a 10 de Março de 2015, foi decidido o prosseguimento dos autos para liquidação.
Em cumprimento do decidido, a Senhora Administradora de Insolvência promoveu a venda do imóvel supra referido mediante negociação particular, tendo designado como data limite para apresentação de propostas o dia 2 de Dezembro de 2016.
Na sequência da referida diligência de venda, a Senhora Administradora de Insolvência aceitou a proposta apresentada pelo Recorrido, no valor de 115.900,00 €, tendo-se realizado a respetiva escritura pública a 14 de Junho de 2017.
Com toda a tramitação processual, os Insolventes dispuseram de tempo mais do que suficiente para encontrar uma nova casa, pelo que não poderá ser atendido o argumento de que existe uma impossibilidade de encontrarem uma nova habitação condigna.
Ora, ao aguardarem pela concretização da venda do imóvel ao Recorrido, os Insolventes demonstram evidentemente uma atitude de passividade, a qual não poderá deixar de ser valorada para efeitos de consideração das exigências de boa-fé impostas pelo artigo 864º, nº 2, do CPC.
Os próprios Insolventes reconhecem nas suas Alegações que, somente após a realização de escritura pública de compra e venda do imóvel, ou seja, 29 meses após pedido de declaração de insolvência, iniciaram a procura de nova habitação.
Acresce que,
A concessão do diferimento de desocupação do imóvel por um prazo de 180 dias, para além de infundada e excessiva, revela-se prejudicial para o ora Recorrido.
O Recorrido não é um investidor imobiliário, pelo que apenas adjudicou este imóvel (assim como o faz noutros processos) para libertar as provisões para o crédito vencido, que foi obrigado a prestar, junto do Banco de Portugal, numa tentativa de minorar os danos uma vez que inexistiam propostas de aquisição do bem.
O Recorrido adjudicou o bem tendo por base preço e condições do imóvel naquela data.
O deferimento do diferimento de desocupação coloca em causa os pressupostos da adjudicação, uma vez que permite a degradação do imóvel - através do uso - bem como a possível desvalorização do mesmo.
Pelo que, a ser deferida tal pretensão, causa-se um dano injustificado ao aqui Recorrido.
Por todo o exposto, deve a decisão do Tribunal a quo manter-se e, consequentemente, deverá ser ordenada a imediata desocupação do imóvel pelos Recorrentes.
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O despacho em causa tem o seguinte teor:

Req. 26648139: Diferimento de desocupação
I.
Pretendem os insolventes o diferimento da desocupação do imóvel vendido em sede de liquidação, pelo prazo de 180 dias.
Em resposta, o credor adquirente pugnou pelo indeferimento daquela pretensão, ou subsidiariam ente, pela fixação do pretendido diferimento pelo prazo máximo de 30 dias.
Nos termos do disposto no artigo 150º, nº5, do CIRE à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º, do CP'C.
Por via da aludida remissão, e no que para o caso revela, são aplicáveis as normas vertidas nos artigos 864º a 866º, do CPC. Entre as quais, refere o disposto no artigo 865º, nº 1, alínea c) que a petição de deferimento da desocupação é liminarmente indeferida quando for manifestamente improcedente. Sujeito que está à tramitação dos incidentes, com o requerimento inicial deve o requerente oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de 3 (cfr. artigo 864.º, nº 1 do CPC).
Percorrendo quer o requerimento inicial, quer a oposição já manifestada nos autos, nem os insolventes, nem o credor adquirente indicaram prova.
Por conseguinte, nada obsta ao imediato conhecimento do mérito da pretensão.
II.
Dos autos consta que:
1. A insolvente é trabalhadora por conta de outrem, auferindo vencimento base ilíquido de 558 €, acrescido de subsídio de alimentação (c.fr. recibo de vencimento junto afls. 21- req.18390235). 2. Em 20/11/2014 o insolvente auferia subsídio de desemprego no valor mensal de 923,10 € (c.fr.fls. 20- req. 18390235)
3. Têm duas filhas, nascidas em 02/09/1999 e 12/02/2002 (cfr. cartões de cidadão defls. 22 e 23 - req.18390235).
4. Foram declarados insolventes por sentença de 07/01/2015 (c.fr.fls. 52 - rej 137280457).
5. Por decisão proferida em 10/03/2015 foi determinada a prossecução dos autos para liquidação do ativo, no qual se incluía o imóvel que constituía a casa de habitação dos insolventes (c.fr. ata de assembleia de credores de fls. 116 - rej 138922341 e auto de apreensão de bens junto ao apenso C- req. 21759032).
III.
Decorre do artigo 864º, nº 2 do CPC que o diferimento de desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de os requerentes não disporem imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: ocorra a carência de meios dos requerentes, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igualou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; os requerentes sejam portadores de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
No que às exigências da boa fé concerne, refira-se que em 10/03/2015 foi determinada a prossecução dos autos para a liquidação do ativo dos insolventes, no qual se incluía o imóvel onde habitam. Desde então, estavam os insolventes em poder de todos os elementos necessários a prover pelo suprimento das suas necessidades habitacionais, posto que se tornaria inevitável, num futuro próximo, a venda do imóvel. Por conseguinte, a ser verdade o que alegam - de terem aguardado pela concretização da venda para procurarem aturadamente uma habitação condigna (cfr. artigo 2º do requerimento inicial) - não podemos senão concluir que a falta de alternativa habitacional - a existir (posto que não provada) - decorre da inércia a que, conscientemente, se votaram.
Quanto aos invocados problemas de saúde, nada se provou.
No que à situação económica do agregado familiar concerne, apenas podemos concluir que a insolvente exerce profissão remunerada.
Em concreto, desconhece-se se, no momento atual, o insolvente permanece desempregado e se aufere qualquer subsídio de desemprego, posto que o elemento documental de fls. 20 remonta a 20/11/2014.
Isto posto, pressuposto essencial do direito ao diferimento da desocupação é a verificação de razões sociais imperiosas que o justifiquem. O propósito do legislador, ao estabelecer a possibilidade do diferimento da desocupação foi o de acudir a casos excecionais em que se justifica impor aos proprietários do imóvel o retardar do cumprimento da obrigação de entrega do imóvel, por motivos que se prendem com o reduto intransponível da dignidade humana.
É inegável o direito à habitação, constitucionalmente consagrado, mas tal direito não pode ser obtido ou conseguido à custa da violação da lei (como seria a decisão do diferimento sem a comprovação dos requisitos a que está sujeita) e dos direitos legítimos de outrem.
Em suma, por manifestamente improcedente, face à factualidade apurada, impõe-se julgar improcedente a pretensão deduzida pelos insolventes.
IV.
Por tudo o exposto, julgo improcedente, por não provada, a pretensão dos insolventes, pelo que indefiro o diferimento da desocupação do imóvel peticionada nos autos.
Registe.
Notifique.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
- OBJETO DO RECURSO

Considerando o teor das conclusões do recurso, que delimitam o seu objeto e, de forma reflexa, o thema decidendum da decisão a proferir pelo Tribunal Superior, salvo, como é sabido, as questões de conhecimento oficioso, a concreta questão a decidir na presente apelação é:
- Se se verificam os pressupostos condicionantes do incidente de diferimento da desocupação.
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II.A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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II.B- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da verificação dos pressupostos condicionantes do incidente de diferimento da desocupação
Concluem os Recorrentes, insolventes, que se deve seguir o estatuído nos artigos 862° a 865°, do Código de Processo Civil, sendo deste diploma todos os preceitos que doravante citaremos sem outra referência, aplicáveis por força do nº5, do art. 150°, do CIRE, (que, na perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitem aos insolventes, tal como se permite no processo executivo para entrega de coisa certa ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação) tendo, designadamente, em vista manter as condições de habitação, pelo prazo de 180 dias, para procurarem alojamento.
Cumpre, pois, analisar os pressupostos do referido incidente de diferimento da desocupação do imóvel vendido, previsto nos artigos 864.° e 865.° do CPC, aplicável ao processo de insolvência, com as necessárias adaptações, por força do disposto no nº 5 do art. 150.°, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante abreviadamente designado, CIRE, e se os mesmos se verificam no caso concreto.
Vejamos o enquadramento jurídico.
No processo de insolvência, uma vez proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que tenham sido arrestados, penhorados, apreendidos, detidos ou objeto de cessão aos credores, ... - cfr.nº1, do art. 149°, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), devendo, em regra, os bens ser, imediatamente, entregues ao administrador da insolvência, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados - cfr. nº1, do art. 150°, do CIRE. Sem prejuízo da apreensão, o nº 5, do art. 150°, do CIRE, estatui que “à desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862º, do atual CPC”.
Dispõe este preceito que “à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863° a 866°”.
O art. 864°, com a epígrafe “diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, consagra no nº 1 que “no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três” (negrito e sublinhado nosso).

Assim, o nº 1, do art.º 864.°, para o caso de execução para entrega de imóvel arrendado para habitação, permite que, por razões sociais imperiosas, o juiz difira para momento posterior a desocupação, sendo que o diferimento, nos termos do nº 4, do art. 865.° não pode exceder o prazo de 5 meses, a contar da data do trânsito em julgado da decisão que conceder a desocupação do imóvel.
Deste modo, o referido regime é aplicável à desocupação da casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente, por força do disposto no nº 5, do artº 150.°, do CIRE.
Conforme se refere no Acórdão do TRP de 24/11/2011 (proc. nº 1924/l0.2TJPRT-C.P1, acessível em www.dgsi.pt) "ao remeter para ali, através do art.º 150°, nº 5, o CIRE manda seguir aquele regime, numa perspectiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos (como sejam os nºs 2 e 3 ainda do artº 930°-C), procura novo espaço habitacional." , preceitos estes a que correspondem, presentemente, os nºs 2 e 3, do art. 864°, do atual CPC.

A lei, no nº2, do referido artigo, confia a decisão ao prudente arbítrio do tribunal, apelando, desse modo ao bom senso e racionalidade do juiz, mas aponta critérios decisórios, prescrevendo que devem ser tomadas em consideração:
- as exigência da boa-fé;
- a circunstância de o insolvente não dispor, imediatamente, de outra habitação;
- o número de pessoas que com ele habitam;
- a sua idade;
- o estado de saúde;
- a situação económica e social das pessoas envolvidas.
Acresce que a invocação das referidas "razões sociais imperiosas" não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de, pelo menos, um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do referido nº2, do art. 864°.

Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cfr. nº 4, in fine do art.º 152.°), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do insolvente:
a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.°).

Assim, na apreciação do pedido deve o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância do insolvente não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas - cfr. 1ª parte, do nº2, do art. 864°.
A tutela legal conferida e consequente limitação do direito de propriedade do adquirente no processo de insolvência é considerada "ultra-vigência" de um direito anteriormente reconhecido, admitindo-se o prolongamento dos seus efeitos em face da boa-fé do respetivo titular e das suas necessidades e das pessoas que vivem consigo. Dada a boa-fé, a legítima confiança na produção dos efeitos desse direito anterior por parte do arrendatário ou dos insolventes, designadamente quanto à expectativa de ocupação e habitação no imóvel a entregar, o legislador protege os anteriores titulares relativamente a uma perda súbita do seu direito, em determinadas circunstâncias. Faculta-lhes mais algum tempo para que possam suprir a perda do direito à habitação no prédio que legitimamente e de boa-fé ocupavam.

Assim, decorre do nº2, do artigo 864.°, que o diferimento de desocupação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de os requerentes não disporem imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) ocorra a carência de meios dos requerentes, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) os requerentes sejam portadores de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.

Como se decidiu, no que às exigências da boa fé concerne, refira-se que em 10/03/2015 foi determinada a prossecução dos autos para a liquidação do ativo dos insolventes, no qual se incluía o imóvel onde habitam. Desde então, estavam os insolventes em poder de todos os elementos necessários a prover pelo suprimento das suas necessidades habitacionais, posto que se tomaria inevitável, num futuro próximo, a venda do imóvel. Por conseguinte, a ser verdade o que alegam - terem aguardado pela concretização da venda para procurarem uma habitação condigna (cfr. artigo 2.° do requerimento inicial) - conclui-se que a falta de habitação - a existir (o que se não encontra provado) - decorre da sua inércia.
O nº 5, do art. 150°, do CIRE, ao remeter para este procedimento, está a determinar que se deve seguir aquele regime, para salvaguardar a dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se concede no processo executivo para entrega de coisa certa ao arrendatário habitacional, verificados os requisitos legalmente estabelecidos, usar um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, visando-se manter as condições de habitação por um prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal em função das necessidades, mas com obediência ao limite temporal imposto, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos.
Visa-se a salvaguarda do direito à habitação, constitucionalmente consagrado no art. 65°, da Constituição da República Portuguesa, podendo o insolvente, proprietário de casa de habitação apreendida para a massa insolvente, requerer o diferimento da desocupação dessa habitação, por razões sociais imperiosas, com um dos seguintes fundamentos: carência de meios (que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igualou inferior à retribuição mínima garantida, ou de rendimento social de inserção) ou se for portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% - cfr. art. 864°, n" 2, als. a) e b).
Os pressupostos condicionantes têm de se verificar na pessoa do insolvente, tendo de ser ponderados factos - se forem alegados e demonstrados - que permitam subsumir a situação a alguma das referidas alíneas.

Ora, in casu, quanto aos invocados problemas de saúde, nada se provou e quanto à situação económica dos requerentes, apenas podemos concluir que a insolvente exerce profissão remunerada. Em concreto, desconhece-se se, no momento atual, o insolvente permanece desempregado e se aufere qualquer subsídio de desemprego, posto que o elemento documental de fIs. 20 remonta a 20/11/2014 (mais de três anos).
Pressuposto essencial do direito ao diferimento da desocupação é a verificação de razões sociais imperiosas que o justifiquem. O propósito do legislador, ao estabelecer a possibilidade do diferimento da desocupação foi o de fazer face a casos excecionais em que se justifica impor aos proprietários do imóvel o retardar do cumprimento da obrigação de entrega do imóvel, por motivos que se prendem com a dignidade humana. É certo que o direito à habitação é um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, mas não pode ser conseguido à custa da violação da lei (como seria a decisão do diferimento sem a comprovação dos requisitos e por mais de cinco meses) e dos direitos legítimos de outrem.
Sendo certo que o direito à habitação goza de tutela constitucional - cfr. artigo 65.° da Constituição da República Portuguesa, que proclama, no seu art.º1.º "Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar", também o é que assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado e não de particulares (cf. nºs 2, 3 e 4 do preceito).

Nestes termos, não assiste aos recorrentes o direito que pretendem lhes seja reconhecido ao diferimento da desocupação, já que apesar de deterem a qualidade de insolventes, a quem o legislador entendeu conferir tal tutela legal, nos termos definidos pelas als. a) e b) do n.º 1 do art. 864.°, não preenchem os requisitos condicionantes.
Na verdade, tendo os Recorrentes sido declarados insolventes por sentença de 7/1/2015 e em 10/3/2015 sido determinada a prossecução dos autos para liquidação do ativo, no qual se incluía o imóvel que constituía a casa de habitação dos insolventes, o período posterior (de mais de dois anos) foi suficiente para que os insolventes pudessem ter encontrado uma residência alternativa.
Acresce que os insolventes não ofereceram provas das "razões sociais imperiosas" a justificar o diferimento, em obediência ao que dispõe o n.º l, do art. 864°.
Com efeito, nenhuma prova ofereceram os insolventes, e para além de não provarem a carência económica impeditiva de obter novo local para residirem, não demonstram ter feito o que quer que seja para encontrarem outro local para o fazerem, sendo, até que 180 dias para desocuparem o imóvel, sempre ultrapassaria o prazo consagrado no nº4, do art. 865º - no máximo 5 meses (tendo desde a abertura de propostas e desde que foi celebrada a escritura pública - esta em 14 de junho de 2017- tido tempo para diligenciarem por outra habitação, sendo que estamos já em março de 2018).
Ora, consagrando o n.º 1, do artigo 342°, do Código Civil, que regula a questão do ónus da prova, que Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado e não tendo os Requerentes, ora Recorrentes, logrado provar os factos que alegaram, constitutivos do direito de que se arrogam, têm de sofrer as consequências desvantajosas de o não terem conseguido.

Assim, e sem necessidade de mais considerações, verifica-se que não têm os Recorrentes o direito de que se arrogam já que não lograram provar os factos em que fundamentam a sua pretensão - o pedido de diferimento da desocupação -, cujo ónus da prova sobre si impendia.
Têm, pois, de improceder as conclusões, assim como a apelação em apreço, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes, pois que ficaram vencidos – art. 527º, nº1 e 2.
Guimarães, 1 de março de 2018

Eugénia Marinho da Cunha)
José Manuel Alves Flores
Sandra Melo