Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
229/21.8T8VPC-A.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
QUOTA HEREDITÁRIA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Decidiu-se no sentido do prosseguimento dos autos para averiguação dos factos que integram a violação de direitos de personalidade que suplantam os de natureza económica, quando em conflito, e que fundamentam o procedimento cautelar.
Decisão Texto Integral:
Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães (1)

B. M., ao abrigo do disposto nos artigos 362º e sgts., do código de processo civil, intentou PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM, contra

- I. A., divorciada, residente em …, França e
- D. S., solteira, maior, residente em …, França, peticionando, provisoriamente, seja decretado, atribuindo-lhe o direito de habitar juntamente com a sua companheira e ex- cônjuge, C. C., e o filho de ambos, I. C., o imóvel supra identificado no artigo 2 desta peça processual, com exclusão de outrem, designadamente, das requeridas I. A. e D. S., até se encontrar concluído o processo principal de inventário a que este procedimento cautelar será apenso.

Alegou, em síntese, para fundamentar o seu pedido, que foi nomeado cabeça de casal, no âmbito do processo de inventário a que estes autos estão apensos, sendo requerente e requeridas, filhos, únicos sucessores e herdeiros do ali inventariado L. A., falecido no dia -/10/2018, no estado de viúvo.

Foi, igualmente, ali declarado, que o de cujus deixou, como único bem a partilhar, o prédio urbano, composto de casa de habitação de dois andares, localizado na Rua do …, freguesia de …, concelho de Mirandela, confrontando, pelo Norte, com E. R.; sul, nascente e poente, com M. M., o qual se encontra inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo …, não se encontrando descrito na Conservatória do Registo Predial; tem o valor matricial de € 3.867,15.

As requeridas vivem, há longos anos, em França, regressando a Portugal, esporadicamente, e em período de férias e, ultimamente, quando em Portugal, pernoitam no dito imóvel.

Pese embora o referido, também o requerente ali vive, após ter efetuado obras de conservação e beneficiação a expensas suas.
Ora, as requeridas, quando bem entendem pernoitam no local, assim como hóspedes seus.

As obras de beneficiação do imóvel foi objeto de acordo entre o L. A., pai do requerente e requeridas, e estas suportadas exclusivamente pelo requerente, com a condição de, quando terminassem, o pai e o filho iriam habitar o imóvel, uma vez que este é o cuidador daquele e vivia em casa arrendada.

As requeridas, quando vinham a Portugal, e se hospedavam no imóvel, depois de concluídas as obras, e o pai já ter falecido, faziam barulho, perturbando o sono, e descanso do requerente e seus familiares.
Requereu, ainda, o decretamento da providência sem a audição das requeridas, juntou documentos e arrolou testemunhas.

Oportunamente foi proferida decisão liminar a julgar improcedente a providência cautelar porque não havia indícios da existência do direito peticionado – habitar exclusivamente no imóvel – porque se estava perante um bem do património da herança aberta pela morte do pai do requerente e requeridas.

Inconformado com o decidido, o requerente interpôs recurso de apelação formulando as seguintes conclusões:

“1ª- Entendemos, modestamente, não assistir razão à M.ma Julgadora a quo, ao julgar a presente providência cautelar liminarmente improcedente, por considerar não estar preenchido, in casu, o requisito, previsto no artigo 362º, nº 1, in fine, do C. Civil, da existência do direito invocado pelo requerente, por, alegadamente, não haver demonstrado o direito de habitar, legitimamente o imóvel em causa (o qual é um bem pertencente à herança aberta óbito de L. A., em que requerente e requeridas são os únicos e universais herdeiros).

Com efeito,
2ª- Por um lado, o requerente refere expressamente no requerimento inicial, que, à data em que o requerente deu inicio à realização de obras no referido imóvel, ficou, desde logo, verbalmente acordado entre todos (o, então ainda vivo, L. A., requerente e requeridas), que, assim que as mesmas estivessem concluídas, pai e filho passariam a ali residir, uma vez que, por um lado, as obras seriam totalmente custeadas pelo requerente; por outro lado, o imóvel onde este habitava, era arrendado, e, por outro lado ainda, as requeridas residiam no estrangeiro.
3ª- Por outro lado, uma vez que, nos termos do disposto no artigo 1404º do Código Civil, as regras da compropriedade se aplicam à comunhão de quaisquer outros direitos, designadamente à comunhão hereditária, mesmo a inexistir tal acordo, sempre o requerente poderia usar e fruir do imóvel, como, de facto, sucede, porquanto, nos termos do disposto no artigo 1406º, nº 1 daquele diploma legal, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é licito servir-se dela, contando que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros do uso a que igualmente têm direito. Acresce ao exposto que o Recorrente é o Cabeça-de-Casal – com todos os direitos (designadamente, o de administração dos bens da Herança) e obrigações decorrentes - no processo de inventário que constitui os autos principais.
4ª- Afigura-se-nos, pois, salvo melhor opinião, que a questão da alegação do direito pré-existente, por parte do requerente, de habitar o imóvel em causa não constitui um pré-requisito para a procedência da presente providência cautelar, porquanto, ele decorre, quer do acordo verbal prévio celebrado com as requeridas, quer das regras decorrentes da comunhão hereditária, do mesmo modo que, o que motiva a presente providência cautelar não é o direito de as requeridas ali se instalarem quando vêm de férias a Portugal, uma vez que têm, tal como o primeiro, o direito de usar e fruir daquele bem.
5ª- O que motiva o presente procedimento cautelar e constitui o fundamento legal para poder tomar mão do presente procedimento cautelar, é o justo receio, por parte do requerente, de violação grave, por parte das requeridas, do direito ao descanso, à segurança e à reserva da intimidade da sua vida privada, os quais são ameaçados sempre que aquelas se instalam no imóvel.
6ª-Tal como o requerente alegou no requerimento inicial, são direitos que visam a tutela geral da personalidade dos indivíduos contra ofensa ou ameaça de ofensa à sua personalidade, física ou moral, sendo inquestionável o direito ao repouso e à tranquilidade da vida no seu lar, como requisitos indispensáveis à realização do direito à saúde e à qualidade de vida.
7ª- Tal como se alegou, estes direitos de personalidade, cuja ameaça de lesão grave se verifica in casu, são juridicamente superiores ao respetivo direito das requeridas, à quota hereditária do inventariado na herança aberta por óbito do seu progenitor, de usarem e fruírem do imóvel em causa sempre que se encontram em Portugal.
8ª- E, como tal, prevalecem sobre este, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 335º do C. Civil.
9ª- Afigura-se-nos, ao contrário do entendimento plasmado na douta decisão de que se recorre, estarem suficientemente demonstrados os factos que indiciam o risco de violação grave destes direitos, encontrando-se, deste modo, (igualmente) preenchido o requisito, previsto no artigo 362º, nº 1, 1ª parte do C.P.Civil, tornando possível o recurso à providência.
10ª- Ao, assim, não entender, o tribunal de primeira instância fez uma aplicação incorreta da norma contida neste artigo, e bem assim, das normas contidas nos artigos 1403º, nº 2; 1404º; 1405º, nº 1; 1406º e 335º do C. Civil, e ainda, as previstas nos artigos 25º e 26º, nº 1 da C.R.P., e 70º do C. Civil, violando-as.

Nestes termos, e nos melhores de direito, deverá, o presente recurso, obter provimento, e, em consequência, ser a douta sentença recorrida revogada e substituída por douto Acórdão que receba a presente providência cautelar, ordenando o prosseguimento dos trâmites processuais aplicáveis, assim se fazendo equilibrada e sã
JUSTIÇA!”

Das conclusões do recurso ressalta a questão de saber se a decisão recorrida deve ser revogada e o processo continuar para averiguação dos factos alegados, que não foram tidos em conta, com vista a outra decisão.

O tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de indeferimento do procedimento cautelar no facto de do requerimento e dos documentos juntos aos autos não se indiciar a existência do direito a habitar, exclusivamente, o imóvel, património da herança aberta por óbito do seu pai, L. A., de que são seus universais herdeiros o requerente e requeridas, não se verificando os requisitos do artigo 362 do CPC.

O apelante, no seu recurso, vem destacar que não está em causa o direito a habitar exclusivamente o imóvel, mas antes o direito ao descanso, sossego, saúde, intimidade da vida privada e segurança no seu lar, tutelados pelo artigo 70 do C. Civil, enquanto direitos de personalidade, e pelos artigos 25 e 26 da CRP, que supera o direito das requeridas apeladas à sua quota hereditária, ao abrigo do disposto no artigo 335 n.º 2 do C. Civil

Além disso, ficou acordado que habitaria o imóvel, com o seu pai, depois de feitas as obras de remodelação a suportar exclusivamente por si. Acordo verbal firmado entre o seu pai e irmãs, agora requeridas, que vivem no estrangeiro e o requerente numa casa arrendada, para melhor poder cuidar do seu pai. E, agora, com a abertura da herança, as requeridas têm partilhado o imóvel quando vêm passar férias a Portugal, trazendo familiares e amigos, e alteraram o ambiente de sossego que existia na casa, pondo em causa o seu direito ao descanso, colocando em risco a sua saúde e dos seus familiares e a sua segurança.

E não havendo acordo para uma partilha amigável, e as requeridas não desistindo de ocupara o imóvel quando vêm a Portugal, viu-se obrigado a propor inventário, para resolver a situação de comunhão do imóvel, tendo sido nomeado cabeça de casal, o que lhe permite administrar e usar o imóvel.

A questão a solucionar centra-se no uso exclusivo pelo requerente e familiares do imóvel, porque o seu direito ao descanso, ao sossego, intimidade da vida privada, saúde e segurança estão numa situação hierárquica superior ao das requeridas, que se traduz na sua quota hereditária (artigo 335 n.º 2 do C. Civil).

Se é certo que o requerente e as requeridas têm direito a usarem o imóvel para habitarem, de forma permanente ou esporádica, enquanto únicos herdeiros do L. A., devem fazê-lo de molde a respeitarem, mutuamente, o direito ao descanso, ao sossego, à intimidade da vida privada, à segurança e saúde. Estes direitos, de natureza pessoal, intrínsecos ao direito de personalidade previsto no artigo 70 do C. Civil, são hierarquicamente superiores ao da quota hereditária, de natureza patrimonial e prevalecem, quando em conflito ao abrigo do disposto no artigo 335 do C.Civil.

Do requerimento do procedimento cautelar apresentado pelo requerente, resulta a alegação de factos a indiciarem a violação destes direitos, que não foram tidos em conta pelo tribunal na decisão que tomou.

E a violação destes direitos é que fundamenta a providência cautelar, no sentido de restringir o direito de habitar, esporadicamente, o imóvel pelas requeridas, prevalecendo sobre o seu direito económico.

Daí que se imponha que o processo prossiga para prova dos factos alegados no sentido de se saber se os direitos invocados foram violados e fundamentam o pedido.

Concluindo. 1. Decidiu-se no sentido do prosseguimento dos autos para averiguação dos factos que integram a violação de direitos de personalidade que suplantam os de natureza económica, quando em conflito, e que fundamentam o procedimento cautelar.

Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e ordenam o prosseguimento dos autos para o apuramento dos factos alegados.

Sem custas.
Guimarães, 16-12-2021


1 - Apelação 229.21.8T8VPC.A.G1– 2ª
Proc. Cautelar comum
Tribunal Judicial Comarca Vila Real – Valpaços
Relator Des. Espinheira Baltar
Adjuntos Des. Eva Almeida e Luísa Ramos