Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
778/19.8T8BCL.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: PROCESSO DE ACIDENTE DE TRABALHO
FORMAS DA FASE CONTENCIOSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - No processo de acidente de trabalho, a redução da fase contenciosa à sua tramitação mais simples, com mera realização de perícia por junta médica, seguida de decisão sintética, só tem lugar quando a única questão controvertida seja a fixação da incapacidade para o trabalho.
II - Não havendo acordo quanto a outras questões, designadamente quanto à ocorrência de lesão e nexo de causalidade entre o evento e a lesão/sequela e incapacidade para o trabalho, a fase contenciosa não pode iniciar-se por simples requerimento, exigindo-se a apresentação de petição inicial, prosseguindo os autos com os demais articulados, despacho saneador e, se necessário, realização de audiência de julgamento, sendo permitido às partes oferecer todas as provas, correndo paralelamente apenso para fixação da incapacidade para o trabalho.
III - Tal não obsta, por economia processual, que neste apenso de fixação de incapacidade sejam formulados quesitos relativos à causalidade e que as respostas dos peritos médicos sejam aproveitadas no processo principal para decisão da correspondente matéria, após realização de julgamento.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTORA/SINISTRADA: M. F..
RÉ: X – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A
ACÇÃO - especial emergente de acidente de trabalho.

INÍCIO DO PROCESSO
A acção iniciou-se por participação da sinistrada em 19-03-2019, referindo ter sido tratada nos serviços clínicos da seguradora e ter-lhe sido dado alta sem desvalorização, com o que não se conforma.
Na participação menciona que, em 24-09-2018, sofreu um acidente de trabalho, como “auxiliar de acção directa” ao serviço da Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários ... “quando prestava serviço de apoio familiar, deslocava uma senhora idosa da cama para a cadeira higiénica, altura em que senti forte dor no ombro direito
.
PERÍCIA MÉDICA SINGULAR (105º, 106º CPT):
Foi realizada a perícia médica singular (23-09-2019) prevista para a fase conciliatória do processo, onde se concluiu por uma IPP de 4,0000%, com consolidação médico-legal das lesões em 31-01-2019, com ITA de 129 dias.
Referiram-se como lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento: “no membro superior direito: queixas de omalgia direita pós esforço ao mobilizar doente, queixas estas negadas pela examinada antes do acidente em apreço, que permitem levar a mão direita ao ombro oposto, à nuca e à região lombar”. As lesões/sequelas foram enquadradas na TNI nas rubricas I -3.2.7.3.a.
Na rubrica ANTECEDENTES consta: “nunca padeceu de queixas de omalgia direita, o que foi confirmado pela médica de família Dra. M. J. do CS de …” … “….conforme declaração da médica…datada de 15-07-2019 a qual declara que a sua utente nunca padeceu de patologia do ombro até ao acidente em apreço”.
Na rubrica “DADOS DOCUMENTAIS” consta: (i) a realização de RMN pela seguradora ao ombro direito “…Referencia sinais de tendinose do SE. Admite laceração do labrum póstero-superior…4-10-2018 data da alta curada sem desvalorização”; (ii) RMN datada de 15-02-2019, a qual confirma os dados da RMN efectuada na seguradora- “Ruptura do labrum posterior, superior e anterior, entre as 9 e as 2h, com destacamento labral e pequenos quistos para-labrais associados”.

TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO – 108º e 112º CPT
Frustrou-se por falta de acordo da sinistrada (quanto ao período de ITA e data da alta) e da seguradora (quanto ao período de ITA, data da alta, lesões, sequelas e IPP atribuída).

Na parte que releva ao recurso, consta da acta o seguinte:
Quanto à Descrição do acidente: “No dia 24 de Setembro de 2018, cerca das 10,30 horas, …a sinistrada, que exerce as funções de ajudante familiar sob as ordens, direção e fiscalização da instituição “Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ...”, cumprindo o horário de trabalho das 08:30 até às 18:00 horas, quando mobilizava um doente da cama para a cadeira de rodas sentiu dor de instalação súbita no ombro direito, que lhe provocou as lesões e sequelas descritas na perícia médica de fls. 92 a 94 verso, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos, que se consolidaram clinicamente em 29 de Janeiro de 2019 e que lhe determinaram os períodos de incapacidades temporárias indicados naquela perícia (129 dias de ITA) e a IPP de 4%.”

Foi proposto:
“Em face do exposto, são devidas ao sinistrado as seguintes prestações: a) 2.204,98€ de diferença na indemnização por ITA; b) 263,60€ de pensão anual e vitalícia, com início em 30 de janeiro de 2019, obrigatoriamente remível; c) 20,00€ de despesas com transportes em deslocações obrigatórias d) Juros de mora….
Posição da sinistrada …” foi dito que: Aceita a descrição do acidente, as lesões e sequelas descritas na perícia médica e a retribuição anual ilíquida de 9.414,34€ (590,00€ x 14 + 4,77€x 22 x 11). Não aceita o período de ITA, nem a data da alta. Por isso, não aceita conciliar-se nos termos supra propostos…”

Posição da seguradora “…foi dito que:
Aceita a descrição do acidente, a retribuição anual ilíquida 9.414,34€ (590,00€ x 14 + 4,77€x 22 x 11) e o pagamento das despesas com transportes.
Não aceita as lesões e sequelas descritas na perícia médica, nem o período de ITA, a data da alta e a IPP de 4%. Por isso, não aceita conciliar-se.”
A acta termina com a menção: “Visto que não possível conciliar as partes, aguardem os autos o decurso do prazo previstos nos art. ºs 117.º, n.º 1, als. a) e b) e 138.º, nºs 1 e 2 do CPT.”

REQUERIMENTO DE JUNTA MÉDICA – 138º CPT.

A seguradora requereu exame pericial por junta médica, formulando os seguintes quesitos:
“1 – Quais as lesões sofridas no acidente dos autos? Fundamentem.
2 – Resultaram sequelas? Fundamentem.
3 – Em caso afirmativo, identifiquem-nas, estabeleçam o respetivo nexo de causalidade clínico, integrem-nas na TNI e, fundamentadamente, indiquem qual o grau de IPP a atribuir.
4 – Qual o período de incapacidade temporária a considerar? Fundamentem.
5 – Qual a data da alta? Fundamentem.”

PERÍCIA POR JUNTA MÉDICA
Foi determinado a realização de junta médica da especialidade de ortopedia, realizada em 6-04-2021. Os peritos responderam por unanimidade do seguinte modo:
“Quesito 1- Segundo informação relatada pela sinistrada e os dados constantes do processo resultou omalgia de esforço à direita. Segundo RMN efectuada havia sinais de tendinose do supra espinhoso. Na RMN efectuada em 15-02-2019 consta rotura do labrum posterior, superior e anterior e com pequenos quistos para labrais associados, lesões essas que não são imutáveis ao mecanismo descrito pela sinistrada.
Quesito 2- Do evento participado não resultaram sequelas, conforme o descrito no artigo anterior
Quesito 3 – Prejudicado.
Quesito 4 – 27-09-2018 a 27-10-2018. Assume-se como lesão agravamento transitório de estado prévio da sinistrada, passível de recuperação no tempo definido.
Quesito 5 – 28-10-2018. Ver quesito 4.

DECISÃO – 140º/1, CPT
Seguidamente proferiu-se a seguinte decisão ora alvo de recurso:
Nestes termos e, pelo exposto, condeno X, Companhia de Seguros, S.A. a pagar à sinistrada M. F., sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Cód. Proc. Trabalho):
- a pensão anual e vitalícia de €263,60 (duzentos e sessenta e três euros e sessenta cêntimos), com início em 01/02/2019;
- a quantia de €2.205,51 (dois mil duzentos e cinco euros e cinquenta a um cêntimos), a título de diferença na indemnização por IT’s;
- a quantia de €20,00 (vinte euros), a título de despesas de deslocações; Valor da ação: €6.484,78 (art.º 120.º do Cód. Proc. Trabalho).
Custas pela seguradora.

FOI INTERPOSTO RECURSO PELA RÉ SEGURADORA. CONCLUSÕES:
1 – Enquanto que, em sede de exame médico singular, na fase conciliatória do processo, o Senhor Perito (generalista) atribuiu à Sinistrada 4% de IPP, ITA de 129 dias, fixando como data da alta 31/01/2019, a Junta Médica da especialidade de Ortopedia, na fase contenciosa do processo, considerou, por unanimidade, a inexistência de sequelas, indicando uma ITA de 30 dias e como lesão um agravamento transitório do estado prévio da Sinistrada, passível de recuperação no tempo definido.
2 – Contudo, a Meritíssima Juiz a quo proferiu sentença aderindo ao exame médico singular generalista e afastando-se do laudo pericial unânime de especialidade.
3 – Para tanto, justificou:
Assim, se é certo que a patologia que a sinistrada apresenta não foi provocada pelo acidente, dada a doença degenerativa evidenciada pelos exames médicos realizados, foi pelo menos por este agravada, dado que foi com a ocorrência do acidente, ou seja, com o esforço desenvolvido pela sinistrada para mobilizar o utente do Centro de Dia onde trabalhava e por causa disso, que a sinistrada passou a estar limitada no exercício da sua atividade profissional, por limitação conjugada da mobilidade, que lhe permite levar a mão à nuca, ao ombro oposto e região lombar, limitação essa que não é apenas temporária, mas também definitiva – Cap. I.3.2.7.3.a) - avaliando-se tal incapacidade como se fosse, toda ela, resultante do acidente, conforme dispõe o art.º 11º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
4 – Ora, ao invés de aderir ao parecer unânime de 3 médicos especializados em avaliação do dano corporal, da especialidade de Ortopedia, que responderam sem margem para dúvidas, a Meritíssima Juiz a quo desvaloriza-o e prefere sustentar a sua posição num exame feito apenas por um médico generalista, que não é especialista na área da medicina indicada para avaliar a sinistrada.
5 – De facto, salvo o devido respeito, que é muito, a Recorrente não consegue compreender:
Se as lesões constatadas não são imputáveis ao acidente em apreço, como se justifica a sentença em crise?
Se do evento dos autos não resultaram sequelas, como se justifica que a sentença em crise fixe um grau de incapacidade permanente à sinistrada?
Se é assumido como lesão o “agravamento transitório de estado prévio da sinistrada, passível de recuperação no tempo definido”, como se justifica que o tribunal a quo considere que há sequelas e atribua uma IPP de 4%?
Havendo um agravamento temporário de um estado anterior da sinistrada passível de recuperação no tempo definido para a ITA, qual a razão para o tribunal a quo considerar a sinistrada limitada definitivamente na sua atividade profissional?
Não faz sentido e é contraditório.
6 - Apesar de a Recorrente reconhecer que a prova pericial em que se traduzem os exames médicos realizados no âmbito das ações emergentes de acidente de trabalho está sujeita à livre apreciação do julgador, tal apreciação tem de, pelo menos, fazer sentido, estar devidamente sustentada e minimamente fundamentada do ponto de vista factual e clínico, e estar assente em elementos confiáveis, algo que, in casu, não sucede.
7 – O exame por junta médica serve para responder a questões de índole clínica, ou seja, de natureza essencialmente técnica, estando, por isso, os peritos médicos que a compõem mais vocacionados para sobre elas se pronunciarem.
…10 - O julgador só deverá divergir quando tenha à disposição elementos seguros que lhe permitam fazê-lo…”
11 - … o tribunal a quo não dispõe dos referidos elementos seguros para divergir da Junta Médica de especialidade, com o resultado unânime conhecido.
12 – A sentença em crise contraria, portanto, a lógica dos autos, olvida de forma muito pouco convincente a prova pericial, demonstrando ambiguidade e ininteligibilidade, e padecendo, quiçá, de nulidade.
13 - Em face do exposto, a sentença sob recurso viola o ensinamento jurisprudencial, o art.º 140º do C.P.T., o princípio da justa reparação dos acidentes de trabalho estabelecido no art.º 59º, nº 1, al. f), da C.R.P., sendo igualmente nula, por força do art.º 615º, nº 1, als. b) e c) e d) do C.P.C., devendo, por isso, ser substituída por acórdão que a corrija em conformidade (aderindo ao parecer unânime da junta médica de especialidade). Termos em que, revogando a douta sentença recorrida…

CONTRA-ALEGAÇÕES DA SINISTRADA:
1. A decisão proferida pelo douto tribunal recorrido, contrariamente ao alegado pela Recorrente, não merece qualquer reparo ou censura…..
4. …é ao julgador que compete fixar a natureza e grau de desvalorização sofrido tendo por base toda a prova carreada para os autos, nomeadamente, perícias singulares, exames médicos, não tendo de cingir a decisão da causa apenas com base no parecer emitido pela perícia por junta médica.
…6. Porquanto, ainda que a resposta dos peritos que intervieram na junta médica seja unânime, no sentido de que do evento participado (sinistro) não resultaram sequelas, nada impede que o julgador que presidiu à junta médica perante todos os elementos de que dispõe decidir que o sinistro sofrido pela Recorrida foi causa e consequência de um agravamento do seu estado de saúde, uma vez que foi por ocorrência deste que a Recorrida passou a esta limitada para o exercício da sua atividade profissional.
Como tal, a fixação de uma IPP. de 4 %, é resultado da ponderação das sequelas sofridas e resultado da perícia médica realizada no dia 23-09-2019.
….11. Ademais da sentença recorrida, deve-se atender aos motivos pelos quais o Tribunal a quo divergiu dos resultados da perícia realizada pela junta médica, de acordo com os quais “se é certo que a patologia que a sinistrada apresenta não foi provocada pelo acidente, dada a doença degenerativa evidenciada pelos exames médicos realizados, foi pelo menos por este agravada, dado que foi com a ocorrência do acidente (…) que a sinistrada passou a estar limitada no exercício da sua atividade profissional (…) avaliando-se tal incapacidade como se fosse, toda ela resultante de acidente, conforme dispõe o art.11º, nº2 da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro de 2009.“
12. Não obstante, também se constata que os relatórios médicos juntos aos autos não são coincidentes, isto porque na perícia realizada no dia 23-09-2019 admitiu-se existir um “(…) nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e e exclui a pré- existência do dana corporal.”, tendo-se fixado uma incapacidade temporária absoluta de 129 dias e uma incapacidade permanente parcial de 4, 0000%.
13. Contudo, na perícia por junta médica, realizada no dia 26-04-2021, conclui-se que “do evento participado não resultaram sequelas (…)”; e “Assume-se como lesão agravamento transitório de estado prévio da sinistrada, passível de recuperação no tempo definido”.
14. Ora, confrontando os resultados obtidos com as duas perícias realizadas à sinistrada, bem como de acordo com a RMN datada de 15-02-2019, facilmente se depreende que a contradição é notória, pelo que neste caso tem todo cabimento o juiz lançar mão daquele que é o princípio da livre apreciação da prova, sendo-lhe possível como já adiantado supra optar por um dos laudos ou afastar-se mesmo de todos eles, no caso de frequente divergência de peritos como o é o caso em crise.
…18. Pelo que, deve o presente recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, e em consequência, deve ser mantida na sua integra tal qual proferida pelo tribunal a quo.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de revogação da decisão recorrida.
A sinistrada respondeu propugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, sem prejuízo das questões de natureza oficiosa (1)):
(i) nulidade da decisão;
(ii) a lesão, a sequela e a incapacidade para o trabalho; nexos de causalidade entre evento e lesão, entre a lesão/sequela e incapacidade para o trabalho e a interferência de doença pré-existente.

I.I FUNDAMENTAÇÃO

FACTUALIDADE
Os factos a considerar são os constantes do relatório.

NULIDADE DA SENTENÇA
A recorrente pese embora invoque as alíneas b), c) e d) do nº1 do 615º do C.P.C, limita-se a afirmar que a decisão se mostra ambígua e ininteligível, pelo que será sob este prisma que a arguição de nulidade da decisão será apreciada.
No mais, o requerido é inepto não estando alicerçado em nada mais do que a mera referência às alíneas do normativo em causa, sendo imperscrutáveis as razões que lhe subjazem.
Segundo o artigo 615º, 1, e 613º,3, CPC é nula a decisão quando: …c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
A contradição entre os fundamentos e decisão refere-se a um vício de raciocínio lógico que ocorre quando os fundamentos invocados não condizem com o resultado que é a decisão final. Trata-se de um erro de contradição lógica porque o fundamento em que a decisão final se baseia leva necessariamente a conclusão oposta à proferida (2). Distingue-se, assim, do erro de julgamento que se reporta a uma errada apreciação dos factos ou a uma errada aplicação do direito aos factos e que é sindicável por via de recurso.

Ora, no caso não se verifica qualquer contradição lógica entre a premissa e a conclusão. A senhora juiz considerou que, pese embora a ” patologia que a sinistrada apresenta não foi provocada pelo acidente, dada a doença degenerativa evidenciada pelos exames médicos realizados, foi pelo menos por este agravada, dado que foi com a ocorrência do acidente, ou seja, com o esforço desenvolvido pela sinistrada para mobilizar o utente do Centro de Dia onde trabalhava e por causa disso, que a sinistrada passou a estar limitada no exercício da sua atividade profissional, por limitação conjugada da mobilidade, que lhe permite levar a mão à nuca, ao ombro oposto e região lombar, limitação essa que não é apenas temporária, mas também definitiva – Cap. I.3.2.7.3.a) - avaliando-se tal incapacidade como se fosse, toda ela, resultante do acidente, conforme dispõe o art.º 11º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.”
A senhora juíza a quo atribuiu à sinistrada pensão e indemnização, por considerar que a doença anterior de que a sinistrada padecia foi, pelo menos, agravada pelo acidente e porque, a ser verdade este pressuposto, a lei determina que se considere a incapacidade totalmente resultante do acidente.
Donde, não há qualquer contradição na decisão. A discordância da recorrente prende-se, antes, com o mérito da apreciação da prova pericial (julgamento da matéria de facto) e com o julgamento de direito. O mecanismo adequado a sindicar este tipo de discordância é recurso e não a arguição de vício de nulidade.
A ambiguidade ou obscuridade são casos de ininteligibilidade que se reportam unicamente à parte decisória da sentença e não se estendem à fundamentação e que relevam quando um declaratário normal não consiga alcançar um sentido inequívoco, ainda que por recurso à fundamentação da decisão (3). Ocorre obscuridade quando a decisão é ininteligível e se presta a dúvidas. Ocorre ambiguidade quando alguma passagem da decisão não é clara por comportar vários sentidos ou diferentes interpretações (4).
Ora, a decisão não padece destes vícios, porque é inequívoco quem foi condenada (a ré), no que foi condenada (em pensão, indemnização e em despesas de deslocação) e em que valores.
Improceda a arguição.

LESÃO/SEQUELA/IPP
A seguradora insurge-se contra o facto de na decisão recorrida se ter valorizado a existência de lesões, de se ter considerado que estas eram decorrência do acidente e, bem assim, que originaram sequelas geradoras de incapacidade parcial para o trabalho de 4%. Mais referindo que a junta médica concluiu pelo oposto, não havendo razões para prevalecer o exame pericial singular sobre o plural, tanto mais que este foi integrado por junta médica da especialidade de ortopedia.
Está em causa a ocorrência de um alegado acidente de trabalho regulado- atenta a sua data - pela Lei 98/2009, de 4-09 (NLAT).
Conforme artigo 8º deste diploma, são elementos do conceito de acidente de trabalho: a relação jurídica laboral entre o acidentado e o dador do trabalho; o evento em sentido naturalístico; a lesão, perturbação funcional ou doença (dano); a redução na capacidade de trabalho/ganho ou a morte; o nexo de causalidade entre o evento e a lesão; o nexo de causalidade entre a lesão e a sequela geradora de redução na capacidade de trabalho/ganho ou morte.
Destes elementos releva particularmente ao caso, a lesão, doença ou perturbação funcional, a sequela e a causalidade sucessiva entre estes elementos da cadeia e a eventual incapacidade para o trabalho.
A lesão é o efeito causado pelo acidente (evento). “Em medicina, lesão é um termo não específico usado para descrever qualquer dano ou mudança anormal no tecido de um organismo vivo. Tais anomalias podem ser causadas por doenças, traumas ou simplesmente pela prática de esportes, por exemplo.”- Wikipédia, online.
Pode manifestar-se logo a seguir ao acidente, algum tempo depois ou, mesmo, muito tempo depois. O que importa é que haja um nexo de causalidade entre o acidente e a lesão corporal - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Profissionais, Almedina, 2ª ed., p. 39.
Porém, se a lesão for constatada no tempo e local de trabalho (ou in itinere), ou seja, tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, presume-se consequência deste. Caso contrário, se a sua manifestação for posterior, compete ao sinistrado/beneficiários a prova do nexo de causalidade – 10º NLAT.
A lesão pode deixar, ou não, sequelas.
A sequela é o efeito permanente da lesão. Segundo a - Wikipédia, online “….é uma alteração anatómica ou funcional permanente, sendo causada por uma doença ou um acidente, ou seja, não é congénita”.
O acidente é uma cadeia de factos sucessivamente interligados de forma ininterrupta, obedecendo a uma ordem lógica em que cada um dos referidos elos estão ligados por um nexo causal.
Em particular a lesão, perturbação ou doença terá de resultar do evento naturalístico. A incapacidade para o trabalho/morte deverá resultar da lesão, perturbação funcional ou doença e dos seus efeitos (permanentes ou temporários). Se um dos elos da cadeia se interrompe não há acidente de trabalho.
Em especial, se não existir lesão, ou se esta não deixar sequelas, fica prejudicada a questão da incapacidade (permanente) para o trabalho.
Os elementos fácticos necessários ao reconhecimento do acidente de trabalho podem resultar de acordo das partes ou, na sua falta, da actividade de prova na fase contenciosa feita, ou através de junta médica nas questões eminentemente técnicas, ou através da audiência de julgamento com recurso a todos os meios de prova admissíveis, se houverem outras questões controvertidas.
Neste particular a tentativa de conciliação assume papel determinante, na medida em que nela as partes são obrigadas a tomar posição e declarar os aspetos essenciais que aceitam ou não acerca do acidente. Esta tomada de posição vincula as partes, visa clarificar e reduzir a controvérsia. E repercute-se na marcha posterior do processo, na medida em que, se for unicamente controvertida a questão da natureza e fixação da incapacidade, o processado é muito mais simples. Já se forem controvertidos outros aspectos o processado é mais complexo, mormente exigindo a apresentação de articulados e a realização de audiência de julgamento, podendo estar em causa a existência de relação laboral, a entidade responsável, a retribuição, a própria ocorrência do evento causador do acidente, a existência de lesão e de nexo causal, a existência de patologia anteriores, etc…
Frustrando-se a conciliação, no respetivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída – 112º, 1, CPT.
Consta do relatório deste acórdão, que na tentativa de conciliação não houve acordo por parte da seguradora, nem sobre as lesões, nem sobre as sequelas, nem sobre a ITA, nem sobre a data da alta, nem sobre a incapacidade para o trabalho. Toda esta matéria era, assim, controvertida.
Na cadeia dos elementos sucessivos de acidente de trabalho não houve, assim, acordo sobre o dano (lesão, doença ou perturbação funcional), a lesão osteoarticular do ombro com omalgia de esforço e limitação da mobilidade.
Repare-se que não se trata de simples enquadramento de sequelas na TNI. É inclusive referenciado nos autos a questão da doença anterior (laceração de labrum) e se o acidente contribuiu para o seu agravamento. Na decisão recorrida considerou-se precisamente que ocorreu o agravamento de patologia - o que a seguradora não aceita-, descurando-se o facto de a fixação da lesão e da sua causalidade depender da produção de outra prova que não uma simples junta médica.
Na verdade, a fase contenciosa deveria ter tido inicio com a apresentação de petição inicial e não través de simples requerimento para junta médica. Seguindo-se os demais articulados, com posterior elaboração de despacho saneador, ou conhecendo do mérito se o estado do processo o permitisse, ou, caso contrário, fixando os factos sobre os quais houvesse acordo na tentativa de conciliação e nos articulados, enunciando o objecto do litigio/temas de prova, prosseguindo com realização de audiência de julgamento e, simultaneamente, ordenando o desdobramento do processo em apenso para fixação de incapacidade – 131º/1/c/e/2, CPT.
A fase contenciosa só se resume a realização de junta médica seguida de decisão mais simplificada nos casos em que apenas esteja controvertida a questão da fixação da natureza (temporária ou permanente) e grau da incapacidade para o trabalho – 117º/b, 138º/2, 140º, CPT. O que se justifica porquanto apenas está em causa uma abordagem eminentemente técnica.
A fixação das lesões e dos nexos de causalidade entre o acidente e as lesões e entre estas e as incapacidades deve, pois, ser discutida e decidida em julgamento no processo principal (arts. 118º, 126º, 1 e 132º do CPT). Sobre tal matéria sendo admissíveis todos os meios de prova, mormente periciais, testemunhais e documentais, e até depoimentos/esclarecimentos dos peritos médicos que intervieram nos exames médicos, devendo o juiz, nesse caso, determinar a sua comparência na audiência de discussão e julgamento - art. 134º do CPT.
Tem sido referido pela jurisprudência superior que, em rigor, não é correcto formular quesitos à junta médica sobre estas questões, porque apenas lhe compete pronunciar-se sobre a natureza da incapacidade e o grau de desvalorização-126º, 2, 132º, 1, 140º, n.º 2 do CPT – ac. RL 2-05-07, www.dgsi.pt
Defendemos, contudo, que no apenso de fixação de incapacidade se poderão formular quesitos sobre essa matéria, por economia processual, mas tendo presente que a perícia da junta médica é apenas mais um elemento de prova, entre outros, livremente apreciada pelo tribunal, sem que, contudo, se coarte a possibilidade de produzir prova em audiência de julgamento- ac. RG de 3-12-2020, www.dgsi.pt
Ademais, no caso a junta médica apresenta um relatório demasiado simplificado, com conclusões genéricas e diminuta fundamentação. Refere-se que as lesões não são imputáveis ao acidente, mas sem aprofundar minimamente a questão, o que era exigível tanto mais que existem elementos clínicos que referem que antes do acidente a autora não manifestava patologia do ombro (declaração da médica do centro de saúde). Acresce que a laceração do labrum, ao contrário do que se menciona na junta médica, não foi abordada pela primeira vez na RMN de 15-02-2019, mas é logo mencionada na anterior RMN da seguradora, portanto muito próxima e contemporânea da data do acidente. Acresce que a autora, após a seguradora lhe ter alta, permaneceu inactiva, tendo sido emitido certificado de incapacidade para o trabalho (CIT) pelo Centro de Saúde até 16.12.2018, muito após a alta da seguradora. Referindo dificuldades na execução das tarefas, tendo recorrido a médico ortopedista que terá equacionado intervenção cirúrgica e tendo feito, no entretanto, fisioterapia prescrita pela médica de família, conforme relatado na perícia singular. Este circunstancialismo exigia maior fundamentação à junta médica, que é assim deficiente – 485º, 4, CPC e TNI, instruções gerais- 8.
Tudo isto inviabiliza que se passe para a fase seguinte de valoração da incapacidade, impondo-se a anulação da decisão recorrida e a remessa dos autos à 1ª instância a fim de se efectuarem as diligências necessárias ao apuramento de toda a matéria supra referida -662º/2/c, CPC. – acórdão RC, de 26-04-2012, www.dgsi.pt
Deverá ser apurada a lesão, nexo de causalidade entre o evento e a lesão e entre a lesão/sequela e a incapacidade, bem como a interferência de patologia pré-existente e seu agravamento pelo acidente. Com vista a tal desiderato deve o tribunal aguardar que seja apresentada petição inicial, seguindo-se os demais articulados e processado que se revele necessário, mormente audiência de julgamento e desdobramento do processo quanto à questão de fixação de incapacidade.

III. DECISÃO

Pelo exposto, embora por diferentes fundamentos, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso (87º, CPT, 662º/2, al. c), e 663º CPC) e anular a decisão recorrida e os actos praticados após a tentativa de conciliação, remetendo-se os autos à 1ª instância, aguardando-se que seja apresentada petição inicial, seguindo-se depois a tramitação da fase contenciosa em conformidade com o acima exposto.
Custas a cargo de quem for condenado nas custas da acção final.
Notifique.
18-11-2021

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.
2. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito de Processo Civil, vol. II, 2ª ed., p 434-5.
3. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, volume 2, 4ª ed., p. 734-5.
4. António Santos Abrantes Geraldes, CPC Anotado, vol. I, p. 738.