Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
129/21.1T8VPC.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: ACÇÃO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
NOMEAÇÃO DO ACOMPANHANTE
CONSTITUIÇÃO DO CONSELHO DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No novo regime do maior acompanhado a regra geral é a de que compete ao acompanhado escolher quem pretende que seja o seu acompanhante, salvo se se mostrar que o beneficiário, em relação a esse ato de vontade, já não tem capacidade para compreender, discernir e avaliar a realidade e efetuar ele próprio essa escolha.
II - Ainda que a situação atual do beneficiário já não lhe permita fazer qualquer escolha, deverá ainda ter-se em conta a “vontade presumível do beneficiário, se houver elementos para a determinar, isto é, para reconstituir a ideia que o beneficiário formularia se fosse confrontado com a necessidade da escolha à luz do seu modo de ver, pensar e se relacionar com as pessoas do seu convívio”.
III - A escolha do beneficiário deve ser respeitada e acatada pois assim o impõe a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser considerada e aproveitada até ao limite do possível com vista à máxima preservação da capacidade do sujeito, visando o novo modelo jurídico vigente o acompanhamento do beneficiário, e não a sua substituição, sempre com observância e respeito pelos princípios da intervenção mínima, da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana.
IV - Tendo o beneficiário manifestado a vontade de ser acompanhando pelo seu irmão, esta vontade deve, como princípio, ser respeitada. E, por assim ser, não há que determinar quem é a pessoa cuja designação melhor salvaguarda o interesse imperioso do beneficiário, à luz do art. 143º, nº 2, do CC, visto que só há que recorrer a este critério nos casos em que o beneficiário não efetuou ele próprio a escolha ou em que a escolha tem de ser afastada.
V - A escolha poderá não ser atendida se, em concreto, se verificar que a mesma pode colocar em risco, de forma séria e relevante, o bem-estar, a recuperação e o exercício de direitos e cumprimento de deveres do beneficiário, finalidades que o acompanhamento de maior visa prosseguir, como decorre do art. 140º, nº 1, do CC.
VI - De acordo com o novo regime do maior acompanhado, não compete ao tribunal analisar se a concreta escolha feita pelo beneficiário no que concerne ao seu acompanhante é a melhor ou se existirá outra pessoa que possa exercer mais adequadamente essas funções, de acordo com uma análise do que seja o melhor interesse do beneficiário e, se assim for, substituir-se ao beneficiário, impondo-lhe um outro acompanhante contra a sua vontade. O atual modelo de acompanhamento, que veio suceder aos institutos da interdição e inabilitação que assentavam na ideia de substituição da vontade do então designado como incapaz, veda ao tribunal uma atuação desta natureza.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

O Ministério Público intentou a presente ação especial de acompanhamento de maior pedindo que seja decretado o acompanhamento de J. L. melhor identificado nos autos.
Alegou, em síntese, que, em consequência da patologia de que padece, o beneficiário não consegue realizar sozinho nenhuma das atividades básicas da vida diária, carecendo de apoio de terceiro para tudo, não estando em condições de se governar a si próprio ou aos seus bens.
Indicou para o exercício do cargo de acompanhante J. P., filho do beneficiário.
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Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 895.º do CPC.
Na impossibilidade de citação pessoal do requerido, foi nomeado e citado defensor oficioso para, em representação do beneficiário, querendo, contestar, nos termos do artigo 21º, n.º 1 do CPC.
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Foi apresentada contestação na qual o beneficiário se opôs à nomeação do seu filho J. P. como acompanhante, tendo-se igualmente oposto a que qualquer dos seus outros filhos desempenhasse tal cargo, manifestando vontade no sentido de ser nomeado como acompanhante o seu irmão A. J..
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Foi junto aos autos o relatório de perícia médico-legal.
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Procedeu-se à audição pessoal e direta do beneficiário.
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Em 26 de maio de 2022, procedeu-se à audição de:
- J. P., filho do beneficiário;
- A. J., irmão do beneficiário;
- N. R., psicóloga no Lar onde o beneficiário reside e que aí exerceu anteriormente as funções de diretora técnica;
- M. V., auxiliar no Lar onde o beneficiário reside;

Em 28 de junho de 2022, procedeu-se à audição de:

- A. C., filho do beneficiário;
- R. A., filho do beneficiário;
- M. P., filho do beneficiário;
- S. R., auxiliar no Lar onde o beneficiário reside;
- S. C., auxiliar no Lar onde o beneficiário reside.
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O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser decretado o acompanhamento do beneficiário, aplicando-se ao mesmo a medida de representação geral e designando-se para acompanhante o seu filho J. P..
Mais promoveu que seja determinada a constituição do conselho de família, o qual deverá ser composto pelo irmão do beneficiário- A. J.- e pelo filho do beneficiário- A. C..
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Foi determinada a notificação do beneficiário para se pronunciar sobre este parecer na sequência do que o mesmo apresentou requerimento no qual, por um lado, se opôs à nomeação de J. P. como seu acompanhante, por considerar que o mesmo não reúne as condições para o exercício de tal função, e, por outro lado, considerou que as funções de acompanhante deverão ser desempenhadas pelo seu irmão A. J., porquanto não só é a pessoa por si escolhida como é aquela que reúne as melhores condições para o exercício do cargo com respeito pela dignidade do acompanhado e zelo pelo seu bem-estar.
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Foi proferida sentença que julgou a ação procedente, por provada, e, na parte que aqui releva:

a) determinou a aplicação ao beneficiário J. L., da medida de acompanhamento de representação geral, consignando que tal medida se tornou necessária desde 1 de janeiro de 2021;
b) nomeou J. P., filho do beneficiário, para exercer o cargo de acompanhante e determinou que o mesmo visite o acompanhado com uma periodicidade mensal, de acordo com as regras instituídas na Instituição onde se encontra acolhido;
c) nomeou como vogais do Conselho de Família: A. J. e A. C., respetivamente irmão e filho do beneficiário.
e) determinou que o beneficiário carece de ser representado pelo acompanhante, com autorização do Ministério Público, para alterar ou fixar domicílio e residência (cfr. art.º 147.º, n.º 2 do C.Civil);
f) determinou que o beneficiário carece de ser representado pelo acompanhante, com autorização do Ministério Público, para tomar decisões sobre a sua saúde mental (cfr. art.ºs 5.º, n.º 3, e 13º da Lei n.º 36/98, de 24/07 - Lei da Saúde Mental).
g) Fixou à causa o valor de € 30 000,01.
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O requerido não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, quanto à designação de acompanhante, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“I - Da designação de acompanhante pelo beneficiário:

A - O recorrente apresentou contestação à petição de acompanhamento de maior, peticionando a nomeação como acompanhante do Sr. A. J., irmão do beneficiário.
B – Esta escolha é clara, tendo sido renovada na diligência de audição do beneficiário (Vide declarações do beneficiário, prestadas em juízo na data de 26/05/2022, gravadas em suporte digital, com início às 10:31h, e término às 10:47h, com enfoque no excerto entre o minuto 14:33 e 15:20.
C - O artigo 143.º do Código Civil estabelece que “O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.”(sublinhado nosso)
D - Ouvido pelo tribunal, na diligência de 26/05/2022, o Sr. A. J. manifestou total disponibilidade e vontade de exercer as funções de acompanhante do irmão.
E - Da prova coligida nos autos, nomeadamente a testemunhal, resulta que o Sr. A. J., tem revelado sempre interesse e preocupação pelo bem-estar do recorrente, e não existe qualquer motivo para o considerar inadequado ou inidóneo para o exercício da função de acompanhante.
F - O novo regime jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto é norteado pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível” e da “subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns”, e por um “modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade” (Vide Proposta de Lei n.º 110/XIII).
G - Assim, havendo uma escolha directa do acompanhante pelo beneficiário, essa escolha tem que ser respeitada pelo tribunal, só podendo ser descartada quando o acompanhante escolhido pelo beneficiário não possa exercer tais funções, ou se revele desajustado para o cargo.
H - Pelo que, existindo idoneidade da pessoa escolhida pelo beneficiário para exercer as funções de acompanhante (em requerimento próprio, testamento vital, procuração ou em sede de audição judicial), essa escolha é vinculativa, devendo ser designada judicialmente.
I - A sentença proferida pelo Mmo. Tribunal a quo não respeitou a vontade do beneficiário, violando o artigo 143º do Código Civil. Sendo contrária à lei, deve ser revogada a designação para acompanhante do recorrente do seu filho J. P., devendo tal designação recair sobre a pessoa indicada pelo beneficiário, isto é, o seu irmão A. J..

II - Da desadequação do acompanhante designado pelo Mmo. Tribunal a quo:

J – Por sua vez, o acompanhante designado revelou ser pessoa desajustada para exercer o cargo, pois que tem más relações com o beneficiário, tendo sido notório em face das declarações prestadas pelo próprio que não tem o bem-estar do recorrente em consideração.
K - A Digníssima Procuradora-Adjunta do Ministério Público chegou a esta conclusão na diligência de audição do beneficiário, tendo promovido o seguinte:
“Do teor de todos os depoimentos prestados na presente diligência, o Ministério Público não se encontra em condições de acompanhar a pessoa que vem indicada na petição inicial para exercer as funções de Acompanhante.
Desde logo, resultou desta diligência que a pessoa indicada como Acompanhante, o filho do Beneficiário, Sr. J. P., impedirá o Beneficiário de ter contactos com o seu irmão, A. J., sem se ter, no nosso entendimento, indicado qualquer razão válida para que tais contactos sejam impedidos. Ora, do nosso entendimento, para que esses ou quaisquer outros contactos sejam impedidos, deverão existir razões ponderosas, que não foram, no nosso entendimento, mais uma vez, indicadas nesta diligência, pelo que não nos sentimos seguros na tomada de posição de que tal pessoa seja indicada para zelar pelos interesses do Beneficiário (…)”.
L - Inquiridas, as auxiliares e responsáveis da instituição em que o beneficiário se encontra acolhido, pelas mesmas foi explanado que o recorrente não costuma ter visitas ou telefonemas. Não obstante, revelaram que, logo no início do acolhimento, o recorrente foi proibido de receber visitas e chamadas telefónicas do seu irmão A. J., por parte do filho J. P., tendo este tentado impedir também a visita da signatária. Pelas mesmas foi revelado que o filho do recorrente não adiantou os motivos de tal proibição.
M - Porém, resulta da prova testemunhal produzida que o afecto e cumplicidade que liga o recorrente ao seu irmão A. J. é enorme, e que é neste que o recorrente confia. Resultando também que esta proibição de contactos, provoca no recorrente grande tristeza, confusão e revolta.
N - O acompanhante designado pelo tribunal, não se mostrou sensível a tal situação, dizendo apenas “Do meu tio, do meu tio cortei, sim. Estou e eu respondo.”
O - Quanto ao exercício da função de acompanhante, e do motivo pelo qual fez chegar o pedido de acompanhamento junto do Ministério Público, o Sr. J. P. deixou bem claro em sede de declarações, dizendo: “As contas dele. É por causa disso que eu estou aqui. (…) O meu pai, quando estava aqui na recuperação, a Dra. da Segurança Social disse-me que ele não podia estar mais sozinho, e isto e aquilo. A única solução como ele não se dá muito bem com os filhos…(…) Levei lá um Dr. Notário, para ele assinar, para ele me dar autorização para eu movimentar aquilo que era dele. Rejeitou!” (…) Se o meu pai quiser estar comigo, ele tem que me assinar um poder, para eu ver aquilo que ele tem.”
P - O filho do recorrente, A. C., que reside no Canadá, também prestou declarações via Cisco Webex, num depoimento emocionado, e em que foi perceptível o carinho pelo pai, e a preocupação pela situação em que o pai se encontra. Questionado sobre qual a pessoa que melhor pode desempenhar as funções de acompanhante do pai, indicou o seu tio, A. J.., declarando que o acompanhante designado pelo tribunal não se dá bem com o pai, e que se desentenderam por causa de partilhas.
Q – Ao contrário do que escreve o Mmo. Tribunal a quo o Sr. J. P. não tem boas relações com o recorrente, não o visita regularmente, não zela pelo seu bem-estar, e também não reúne o consenso dos restantes filhos do beneficiário. Na verdade, o único filho que está de boas relações com o recorrente, advertiu o tribunal de que a nomeação do Sr. J. P. para o cargo de acompanhante não é adequada.
R - O Sr. J. P. não reúne, assim, as condições para ser designado acompanhante do recorrente, nos termos do artigo 146º do Código Civil, pelo que deverá ser removido dessas funções, revogando-se a decisão proferida pelo Mmo. Tribunal a quo. Nas funções de acompanhante do recorrente deverá ser investido o seu irmão, A. J., porquanto, não só é a pessoa escolhida pelo acompanhado, como também é aquela que reúne as melhores condições para exercer tais funções com respeito pela dignidade do acompanhado, e zelando pelo seu bem-estar.
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O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“a) A avaliação da pessoa que revela melhores condições para salvaguardar o interesse do beneficiário, será o único critério legal plausível na designação da pessoa que está em melhores condições para assumir as funções de acompanhamento legal do beneficiário.
b) Para esse apuramento, caberá atender a um conjunto de factos atinentes às condições e à aptidão de cada um dos familiares do beneficiário, tendo em conta a intensa prova produzida nos autos.
c) No caso em apreço, o Ministério Público defende, como se decidiu na Sentença, que o filho J. P. é a pessoa que reúne melhores condições para o exercício do cago de acompanhante, atenta a responsabilidade e funções que o cargo exige.
d) Deverá, assim, a nosso ver, ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida, devendo manter-se no cargo de acompanhante J. P., porque é a pessoa que está em melhores condições para assumir as funções desse cargo, e que seja mantida a constituição do conselho de família, nos termos decididos na douta sentença.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito suspensivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se deve ser nomeado para o exercício do cargo de acompanhante A. J..

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1. O beneficiário J. P. nasceu -.09.1934, é viúvo e tem cinco filhos, três dos quais emigrados no Canadá.
2. Reside, desde maio de 2021, no Lar de ..., Rua ..., concelho de Valpaços.
3. Apresenta sintomatologia compatível com um quadro demencial inicial, que se iniciou no ano de 2021, após acidente vascular cerebral.
4. Em consequência de tal patologia, o beneficiário não consegue realizar, por si, nenhuma das atividades básicas da vida diária, necessitando de acompanhamento permanente.
5. Não consegue vestir-se, lavar-se, alimentar-se nem tomar banho sozinho.
6. Não consegue tomar sozinho a medicação.
7. Sabe dizer o nome completo, mas não a data de nascimento.
8. Encontra-se desorientado no espaço e no tempo.
9. Reconhece o dinheiro e o seu valor facial, desconhecendo o montante da sua reforma.
10. A sua capacidade critica, e reconhecimento das suas limitações encontram-se prejudicadas, sem reconhecimento e desvalorização das dificuldades;
11. A patologia de que padece não é suscetível de tratamento ou melhorias clínicas que alterem o estado atual.
12. Necessitando de proteção e supervisão comportamental da medicação, não tendo capacidade para viver de forma autónoma.
13. Sendo tal incapacidade crónica, absoluta, permanente e irreversível desde 1 de janeiro de 2021.
14. O estado clínico do beneficiário tem piorado, manifestando episódios de confusão mental.
15. Sempre que contactava telefonicamente com o irmão, o beneficiário mostrava-se mais agitado, ansioso e contrariado por permanecer acolhido na instituição.
16. O beneficiário sofreu um AVC, no início do ano de 2021 e esteve internado na Unidade de Cuidados Continuados da Santa Casa de Misericórdia, em …;
17. Há pouco mais de 10 anos, o beneficiário teve outro AVC que demandou um período de internamento e de recuperação.
18. Em data não concretamente apurada, situada entre 2010 e 2021, o beneficiário esteve hospedado em casa do seu irmão, A. J., que reside no Seixal.
19. A. J., tem 72 anos e vive com a esposa que tem 60 anos.
20. Desde o último AVC, sofrido pelo beneficiário em 2021, A. J. (1) esteve duas vezes com o irmão;
21. A. J. não está de boas relações com os sobrinhos.
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Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

a) O beneficiário alimenta-se sozinho, e está progressivamente a ganhar mais autonomia nas atividades diárias.
b) Não está totalmente dependente, além de que é capaz de expressar as suas vontades
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A única questão controversa nos presentes autos prende-se com a escolha da pessoa que deve ser nomeada como acompanhante do beneficiário, pois não é questionada a necessidade de o beneficiário ser sujeito a medida de acompanhamento nem a concreta medida que no caso foi decretada.
Em concreto, o que se impõe apurar é se deve ser nomeado como acompanhante do beneficiário o seu irmão A. J. ou se deve ser mantida a nomeação do filho do beneficiário J. P. que foi efetuada na sentença recorrida.
Esta decisão tem de ser tomada em função dos critérios legais e à luz da matéria factual provada nos autos.
Porém, lendo a factualidade dada como provada, verifica-se que a mesma é muito escassa sobre a questão da nomeação de acompanhante não permitindo uma decisão de forma minimamente segura e consciente.
Como tal, impõe-se a ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 662º, nºs 1 e 2, al. c), do CPC, a qual não implica a anulação da decisão da 1ª instância porquanto constam do processo todos os elementos probatórios que permitem que essa ampliação seja efetuada por este tribunal, uma vez que todos os depoimentos e declarações prestados se encontram gravados.

Assim sendo, ao abrigo das disposições citadas, amplia-se a matéria de facto e aditam-se os seguintes factos:

22. Desde que o beneficiário foi residir para o Lar, em maio de 2021, e até 7 de junho de 2022, foi visitado pelo seu filho J. P. em 10.6.2021, 22.8.2021 e 5.12.2021 e pelo seu irmão A. J. em 28.7.2021 (documento junto em 7.6.2022, ref. Citius 2957973).
23. J. P. reside em Marco de Canavezes.
24. J. P. proibiu que o seu pai J. L. recebesse visitas e telefonemas no Lar onde reside, designadamente de A. J., irmão do beneficiário.
25. J. P. proibiu também inicialmente a visita ao beneficiário por parte da defensora nomeada nestes autos, Dr.ª C. M., só tendo permitido que a mesma tivesse lugar depois de a defensora se ter recusado a sair do local e de ter dito que se a impedissem de ver o beneficiário pediria a intervenção da GNR.
26. O beneficiário J. L. tem uma relação afetiva forte com o irmão A. J..
27. A. J. tem uma relação afetiva forte com o beneficiário J. L., seu irmão, mostrando-se preocupado com o seu estado de saúde e bem-estar, tendo-se disponibilizado para exercer o cargo de seu acompanhante.
28. Quando J. L. ainda vivia na sua própria casa, A. J. mantinha com ele contactos telefónicos regulares.
29. J. P. tentou que J. L. lhe outorgasse uma procuração para tratar dos seus assuntos patrimoniais, mas este recusou-se a outorgar a mesma. Na sequência desta recusa, J. P. pediu ao Ministério Público a instauração do presente processo de maior acompanhado.
30. J. P., R. A. e M. P, filhos do beneficiário, consideram que o cargo de acompanhante deve ser exercido por J. P. por este ser filho.
31. A. C., filho do beneficiário, considera que o cargo de acompanhante deve ser exercido por A. J., irmão do beneficiário, porque ambos têm uma boa relação e o irmão, no passado, já tomou conta dele.
32. O beneficiário J. L. manifestou vontade que fosse nomeado como seu acompanhante o seu irmão A. J. e não o seu filho J. P..

O facto 22 resulta do documento junto em 7.6.2022 onde o Lar confirma a realização das visitas aí referidas.
O facto 23 resulta da morada que está indicada nos autos na p.i.
O facto 24 foi confirmado pelo próprio J. P., tendo ainda a sua veracidade sido confirmada por N. R., psicóloga do Lar onde o beneficiário reside e que também aí exerceu as funções de diretora técnica, e por M. V. e S. C., ambas auxiliares no Lar onde o beneficiário reside, as quais confirmaram a proibição das visitas.
O facto 25 foi confirmado por N. R. que relatou a situação ocorrida com a visita da defensora oficiosa, na qual teve intervenção pessoal e direta e confirmou o que foi dado como provado.
O facto 26 resulta das declarações de J. P. que confirmou a existência dessa relação entre o beneficiário e o irmão, tendo inclusivamente chegado a afirmar que para ele (referindo-se ao beneficiário, seu pai) “o irmão é o rei”. Essa relação foi igualmente corroborada pelas declarações do próprio beneficiário, de onde resulta ter grande estima e apreço pelo irmão, e também pelas declarações de A. C., filho do beneficiário, e S. C., auxiliar do Lar.
Os factos 27 e 28 resultam das declarações de A. J..
O facto 29 resulta das declarações de J. P. o qual, espontaneamente, relatou em tribunal a situação descrita.
O facto 30 resulta das declarações nesse sentido prestadas por J. P., R. A. e M. P.
O facto 31 resulta das declarações prestadas por A. C..
O facto 32 resulta das declarações prestadas por J. L..

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Nos presentes autos não se encontra questionada a necessidade de o beneficiário ser sujeito a acompanhamento nem a escolha da medida de acompanhamento decretada, razão pela qual não nos deteremos na análise de tais matérias.
A questão controversa prende-se unicamente com a escolha do acompanhante.
O tribunal a quo decidiu nomear como acompanhante J. P., filho do beneficiário.
O beneficiário/recorrente discorda da decisão e considera que deve ser nomeado como acompanhante o seu irmão A. J..
No essencial, assenta esta sua pretensão no facto de lhe competir a si fazer essa escolha, de essa escolha ser vinculativa e de a pessoa que escolheu reunir as condições para o exercício desse cargo, situação que não ocorre com a pessoa que foi nomeada como acompanhante.
Vejamos se lhe assiste razão, para o que se torna necessário compreender o novo paradigma em que assenta o regime jurídico do maior acompanhado.
Como é sabido, a Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, veio criar o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil.
Este novo regime assentou no reconhecimento de que o anterior sistema dualista e rígido alicerçado nas figuras da interdição e inabilitação se mostrava desadequado e desajustado à realidade, face à evolução socioeconómica e demográfica do país, e visou dar concretização aos instrumentos internacionais vinculantes para a República Portuguesa, com relevo para a Convenção das Nações Unidas de 30 de março de 2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada em Nova Iorque (2), em cujo artigo 1º se estabelece que o seu objeto é “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”, comprometendo-se os Estados Partes, nos termos do artigo 4º, “a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência sem qualquer discriminação com base na deficiência”.
Como se pode ler na Proposta de Lei n.º 110/XIII (3), a qual esteve na génese da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, assumem-se como objetivos prosseguidos com o novo regime “a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade (...), a flexibilização da interdição/inabilitação, dentro da ideia de singularidade da situação; (...) o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais”.
Pretendeu-se uma “radical mudança de paradigma” e a introdução de um modelo que “é o que melhor traduz o respeito pela dignidade da pessoa visada, que é tratada não como mero objeto das decisões de outrem, mas como pessoa inteira, com direito à solidariedade, ao apoio e proteção especial reclamadas pela sua situação de vulnerabilidade”.
O novo regime do Código Civil relativo aos maiores acompanhados “pretende ser a realização infraconstitucional das liberdades e direitos das pessoas portadoras de deficiência com vista a encontrar soluções individualizadas, que ultrapassem a rigidez da interdição e da inabilitação, garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito” (Acórdão do STJ, de 17.12.2020, Relatora Maria Clara Sottomayor, in www.dgsi.pt).
Neste novo paradigma considera-se a pessoa com deficiência como pessoa igual, sem prejuízo das suas necessidades especiais, elege-se como objetivo estratégico a inclusão das pessoas com deficiência ou incapacidade e institui-se “um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade” (Proposta de Lei n.º 110/XIII).
“Proteger sem incapacitar” constitui, hoje, a palavra de ordem, de acordo com os princípios perfilhados pela referida Convenção da ONU e em conformidade com a transição do modelo de substituição para o modelo de acompanhamento ou de apoio na tomada de decisão. Há́, assim, (...) uma mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos. (...)
De um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, (...), sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana”(António Pinto Monteiro, Das incapacidades ao maior acompanhado - Breve apresentação da Lei n.º 49/2018, E-book CEJ O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, págs. 31 e 33).
E neste novo paradigma, assente nos princípios referenciados, aos quais acrescem ainda os princípios da subsidiariedade e da necessidade, abandona-se a adoção de medidas generalistas, rígidas, tipificadas, inflexíveis, aplicáveis indistintamente a todos os beneficiários, e privilegia-se a adoção de soluções individualizadas, adaptadas às especificidades e necessidades da concreta pessoa que delas irá beneficiar, dando primazia à criação de uma “solução à sua medida” a qual deve respeitar a sua vontade e autodeterminação, deve limitar-se ao necessário e contribuir para alcançar o objetivo do acompanhamento que é o de assegurar o bem-estar, a recuperação e o pleno exercício da capacidade de agir.
Estas linhas orientadoras aplicam-se transversalmente a todo o regime do maior acompanhado, sendo válidas quer no que toca à definição da concreta medida a decretar, quer no que concerne à escolha do acompanhante.
Neste enquadramento, estabelece o artigo 140º, nº 1, do CC, que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
O que se visa não é incapacitar a pessoa, mas auxiliá-la, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica.
No que concerne ao acompanhamento dispõe o art. 143º, nº 1, do CC que o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
Portanto, em harmonia com os princípios que presidem ao novo regime, designadamente o da primazia e respeito pela vontade do acompanhado, a regra geral é a de que compete ao acompanhado escolher quem pretende que seja o seu acompanhante.
Compreende-se que assim seja, pois, a dignidade do beneficiário, como pessoa, implica que se respeite a sua vontade quanto aos aspetos da sua vida privada, salvo se se mostrar que o beneficiário, em relação a esse ato de vontade, já não tem capacidade para compreender, discernir e avaliar a realidade e efetuar ele próprio essa escolha.
Mas, ainda que tal ocorra, ou seja, que a situação atual do beneficiário já não lhe permita fazer qualquer escolha, cremos que deverá ainda ter-se em conta a “vontade presumível do beneficiário, se houver elementos para a determinar, isto é, para reconstituir a ideia que o beneficiário formularia se fosse confrontado com a necessidade da escolha à luz do seu modo de ver, pensar e se relacionar com as pessoas do seu convívio” (Acórdão da Relação do Porto, de 24.10.2019, Relator Aristides Rodrigues de Almeida).
Não tendo sido efetuada qualquer escolha pelo beneficiário, ou, tendo-o sido, mas numa situação em que se verifica que já não possui capacidade para a efetuar, e não sendo possível saber qual a sua vontade presumível, haverá então que recorrer ao disposto no nº 2 do art. 143º, do CC, o qual determina que, nessa hipótese, o acompanhamento é deferido à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.

No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada, e mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o tribunal considere adequada (art. 146º, do CC).
Quer na designação do acompanhante quer no exercício das respetivas funções a tónica é sempre colocada na salvaguarda do interesse imperioso do beneficiário, no seu bem-estar e na sua recuperação, sendo estes os critérios norteadores das decisões a tomar sobre as aludidas matérias e tendo sempre em consideração as especificidades e particularidades do caso concreto.
O elenco de pessoas indicadas nas várias alíneas do nº 2 do artigo 143º do CC é meramente exemplificativo, como claramente decorre do uso da expressão “designadamente”.
A sequência pela qual elas são indicadas também não constitui uma ordenação que importe uma regra de precedência obrigatória para o tribunal. No entanto, a ordem apresentada revela uma graduação decorrente das regras da experiência que traduz a proximidade e a existência de relações afetivas entre as pessoas indicadas e o beneficiário devendo, nessa medida, ser atendida, ainda que sem caráter de obrigatoriedade.
O critério norteador da escolha há-de ser sempre o interesse imperioso do beneficiário, devendo ser nomeada como acompanhante a pessoa que, perante a concreta situação do beneficiário, analisada em todas as suas vertentes e especificidades, melhor possa garantir o seu bem-estar e a sua recuperação, independentemente do lugar onde o acompanhante se encontre posicionado no elenco exemplificativo do art. 143º, nº 2, do CC.
Assim, como consta do sumário do Acórdão da Relação do Porto, de 26.9.2019, Relator Joaquim Correia Gomes (in www.dgsi.pt)A designação judicial do(s) acompanhante(s) deve estar igualmente centrada na pessoa maior que em concreto, e não em abstracto, vai ser legalmente acompanhada, concluindo-se que aquela está em melhor posição para assumir as funções de acompanhamento legal, o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respectivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidas.”
Na verdade, o acompanhamento “pressupõe a constituição de uma relação jurídica fiduciária de cuidado dos interesses e direitos do beneficiário”, devendo o acompanhante ser um “verdadeiro curador dos interesses do beneficiário”, e “pressupõe, necessariamente, a inclusão do beneficiário no processo de decisão e governo dos seus interesses e assuntos” (Geraldo Rocha Ribeiro, in O conteúdo da relação de cuidado: os poderes-deveres do acompanhante, sua eficácia e validade, Revista Julgar nº40, Janeiro-Abril, 2020, pág. 75).
“Mesmo nas situações em que a vontade ou desejo manifestado seja viciado pela condição de deficiência, nem por isso é de todo irrelevante. A preservação da capacidade jurídica e a recusa de um modelo de substituição exigem a conformação da actuação do acompanhante e o que se entende por melhores interesses objectivos do beneficiário. Há lugar a um esforço de concordância prática entre uns e outros, porque não se pode descartar a relevância da concretização dos próprios interesses do beneficiário, o destinatário último dos efeitos da decisão tomada pelo acompanhante” (Geraldo Rocha Ribeiro, ob. cit, pág. 74).
A pessoa que, em concreto, esteja em melhores condições para cumprir este conjunto de deveres deverá ser a escolhida para exercer o cargo de acompanhante.
Porém, convém precisar que “a relação de cuidado que emerge do acompanhamento é distinta do cuidado material ou de facto. Os actos materiais de cuidado e supervisão diária do beneficiário, as prestações de cuidados de saúde não constituem o objecto do acompanhamento, antes os poderes-deveres que asseguram a realização destes actos materiais de cuidado. (...) Ao acompanhante exige-se a organização dos meios para suprimento das necessidades do beneficiário, contudo, em princípio, não é a ele que caberá prestar o cuidado material” (Geraldo Rocha Ribeiro, ob. cit, pág. 76.)
Assentes nestas premissas, e volvendo ao caso concreto, vejamos se deve ser nomeado acompanhante o filho do beneficiário, como decidiu o tribunal a quo, ou o seu irmão, como pretende o beneficiário/recorrente.
O beneficiário escolheu como seu acompanhante o seu irmão, vontade que manifestou na contestação, na audição direta e no requerimento em que se pronunciou sobre a promoção do Ministério Público.
Para além da referida escolha, o beneficiário opôs-se à nomeação do seu filho como acompanhante.
O tribunal a quo desconsiderou a vontade manifestada pelo beneficiário dizendo que não se pode concluir “que essa vontade do beneficiário, e por um lado, tenha sido expressada no uso esclarecido de todas as suas faculdades mentais, posto que até se apurou que, desde que se encontra acolhido na instituição referida em 3) dos factos provados, e até após o exame pericial a que foi submetido, as suas funções cognitivas têm vindo a deteriorar-se, manifestando alguma confusão e dificuldade de entendimento e perceção da realidade, sobretudo das suas limitações físicas e condição de saúde e, por outro, ficou este Tribunal convencido de que, mais do que tal cargo – de acompanhante - ser atribuído ao irmão, A. J., o que o beneficiário manifestou, de facto, vontade foi em sair da instituição onde se encontra acolhido e regressar a casa. E assim, precisamente, porque manifesta evidente confusão e dificuldade de entendimento e perceção da realidade, sobretudo das suas limitações físicas e condição de saúde.
Ou seja, não percecionou o Tribunal que a vontade manifestada pelo beneficiário se ativesse a quem de facto poderá exercer as funções de acompanhante – e tanto que não rejeitou a ideia de tal cargo caber ao filho indicado pelo requerente – mas sim à sua vontade em sair da instituição, vontade essa que o irmão terá até incentivado.”
Dissentimos destas conclusões. Em primeiro lugar, da audição a que se procedeu das declarações do beneficiário verifica-se de forma evidente que o mesmo tem um discurso confuso e desorientado, nem sempre respondendo àquilo que lhe é perguntado. Tal situação decorre do facto de o beneficiário apresentar sintomatologia compatível com um quadro demencial inicial, estar desorientado no tempo e no espaço e apresentar episódios de confusão mental. No entanto, em nossa opinião, a qual se alicerça na audição das suas declarações, tal patologia não lhe retira por completo a capacidade de compreensão e de expressão de manifestação de vontade. Ficámos com a convicção de que o beneficiário expressou claramente que pretende que o cargo de acompanhante seja exercido pelo seu irmão, em vez de o ser pelo seu filho, e que quando fez tal afirmação não pretendia manifestar vontade de sair da instituição onde se encontra acolhido e regressar a casa. Concorda-se que o beneficiário tem esta vontade de regressar a casa e manifestou-a. E concorda-se que esta vontade, embora compreensível, não pode ser atendida pois o beneficiário não tem condições atuais de saúde que lhe permitam viver com autonomia, pois está dependente de terceiros para a generalidade das atividades da vida diária. Porém, já não se concorda com a conclusão de que o beneficiário não estava a expressar a vontade de ser acompanhando pelo seu irmão. Foi essa a vontade que o mesmo expressou e que, pese embora a patologia demencial de que se encontra afetado, deve ser tida em conta.
Na verdade, a dada altura, foi explicado ao beneficiário qual a finalidade do presente processo e foi-lhe perguntado se tivesse que escolher a pessoa que gostaria que olhasse por ele, cuidasse dele, o visitasse e zelasse pelo seu bem-estar se escolheria o seu filho ou seu irmão ao que o beneficiário respondeu que preferia o irmão. Acrescentou, como motivo, que está há muito tempo no lar e o filho nunca o visitou.
Esta resposta só pode ser interpretada como a escolha do beneficiário sobre quem pretende que seja seu acompanhante e não como “a sua vontade em sair da instituição, vontade essa que o irmão terá até incentivado”, interpretação que foi acolhida pelo tribunal a quo.
Assim sendo, dada a escolha efetuada pelo beneficiário, a mesma, em princípio, deve ser atendida pelo tribunal só assim não sendo se a escolha recair sobre pessoa que objetivamente não detém condições para o exercício do cargo, o que não é o caso, de acordo com a matéria factual provada, como infra analisaremos de forma mais detalhada.
Por outro lado, admitindo, apenas para efeitos de raciocínio, que a escolha feita pelo beneficiário não poderia ser atendida por estar totalmente afetada pela patologia demencial de que padece, sempre haveria que ter em conta a sua vontade presumível, ou seja, a vontade que o mesmo manifestaria se fosse confrontado com a necessidade da escolha à luz do seu modo de ver, pensar e se relacionar com as pessoas do seu convívio.
Estamos convictos que essa vontade presumível iria no sentido de ser nomeado como acompanhante o seu irmão. Tal resulta, em nosso entender, da relação afetiva forte que existe entre ambos, a qual foi confirmada pelo seu filho A. C. o qual referiu ainda que o beneficiário não fala com os filhos J. P., M. P e R. A., tendo ainda referido que, na sua opinião, o cargo de acompanhante deveria ser exercido pelo irmão porque ambos se dão bem e o irmão já no passado tomou conta dele. O próprio filho nomeado acompanhante referiu que para o beneficiário “o irmão é o rei”, o que aponta igualmente no sentido de que a sua vontade presumível seria a de ser apoiado pelo seu irmão.
Por outro lado, existem nos autos elementos objetivos para crer que a vontade presumível do beneficiário é no sentido de o seu filho não ser nomeado acompanhante. É o que resulta do facto provado nº 29 pois quando o filho J. P. tentou que o beneficiário lhe outorgasse uma procuração para tratar dos seus assuntos patrimoniais, este recusou-se a outorgar a mesma, situação que levou à instauração do presente processo.
Portanto, quer à luz da vontade declarada quer à luz da vontade presumível, a escolha do beneficiário para o cargo de acompanhante recai sobre o irmão.
Essa escolha do beneficiário deve ser respeitada e acatada pois assim o impõe a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível com vista à máxima preservação da capacidade do sujeito, visando o novo modelo jurídico vigente o acompanhamento do beneficiário, e não a sua substituição, sempre com observância e respeito pelos princípios da intervenção mínima, da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana que já acima desenvolvemos.
A preservação da capacidade jurídica e a recusa de um modelo de substituição exigem que se tenha sempre em consideração a vontade real ou presumível do beneficiário, a qual pode até nem coincidir com os melhores interesses objetivos do beneficiário.
Quando tal ocorrer, ou seja, quando a vontade manifestada pelo beneficiário não coincidir com os seus melhores interesses objetivos há que efetuar então um esforço de concordância prática entre ambos.
Como refere Geraldo Ribeiro (in ob. cit, pág. 75), “a igualdade exprime-se também no acantonar dos caprichos e interesses próprios da pessoa que levam a decisões, quando avaliadas sobre um parâmetro objectivo, como não sendo as melhores. No entanto, resultam da manifestação da vontade, mesmo que imperfeita, e enquanto tal devem ser reconhecidas com os limites de um prejuízo claro ou grave para o beneficiário”.
Portanto, a escolha do beneficiário no sentido de o cargo de acompanhante ser exercido pelo seu irmão deve ser respeitada e acolhida, independentemente de saber se a mesma corresponde aos seus melhores interesses objetivos, só assim não sendo se se puder concluir que o irmão não tem condições para o exercício das funções inerentes ao cargo de acompanhante. De acordo com o novo regime do maior acompanhado já explanado, não compete ao tribunal analisar se a concreta escolha feita pelo beneficiário no que concerne ao seu acompanhante é a melhor ou se existirá outra pessoa que possa exercer mais adequadamente essas funções, de acordo com uma análise do que seja o melhor interesse do beneficiário e, se assim for, substituir-se ao beneficiário, impondo-lhe um outro acompanhante contra a sua vontade. O atual modelo de acompanhamento, que veio suceder aos institutos da interdição e inabilitação que assentavam na ideia de substituição da vontade do então designado como incapaz, veda ao tribunal uma atuação desta natureza.
Por conseguinte, tendo o beneficiário manifestado a vontade de ser acompanhando pelo seu irmão, esta vontade deve, como princípio, ser respeitada. E, por assim ser, não há que determinar quem é a pessoa cuja designação melhor salvaguarda o interesse imperioso do beneficiário, à luz do art. 143º, nº 2, do CC, visto que só há que recorrer a este critério nos casos em que o beneficiário não efetuou ele próprio a escolha ou em que a escolha tem de ser afastada. O que significa que não há que determinar, no caso, se quem salvaguarda melhor o imperioso interesse do beneficiário é o seu filho ou o seu irmão. O que se impõe é que se respeite a escolha do beneficiário no sentido de ser acompanhado pelo irmão, escolha essa que só poderá não ser atendida se, em concreto, se verificar que a mesma pode colocar em risco, de forma séria e relevante, o bem-estar, a recuperação e o exercício de direitos e cumprimento de deveres do beneficiário, finalidades que o acompanhamento de maior visa prosseguir, como decorre do art. 140º, nº 1, do CC.
Esta análise tem de ser feita em concreto, designadamente apurando se o irmão apresenta condições para cumprir a concreta medida que foi decretada pelo tribunal relativamente ao beneficiário.
No caso, foi aplicada ao beneficiário a medida de acompanhamento de representação geral.
O beneficiário encontra-se a residir num Lar, desde maio de 2021, visto que não consegue realizar, por si, nenhuma das atividades básicas da vida diária, necessitando de acompanhamento permanente.
O irmão não tem que dispor ele próprio de condições físicas e logísticas que lhe permitam prestar os cuidados de que o beneficiário necessita dada a sua atual situação física e psíquica, pois apenas lhe compete garantir que os cuidados são prestados, podendo sê-lo por terceiro.
Ora, estando já o beneficiário a residir num Lar, local onde lhe estão a ser prestados os cuidados de que necessita, sendo certo que o irmão, enquanto acompanhante, não o pode retirar desse local, pois a alteração do domicílio ou residência do beneficiário carece de autorização do Ministério Público, conforme decidido na al. h) da sentença, não vemos na matéria factual a existência de qualquer circunstância que seja impeditiva que o irmão execute a medida de acompanhamento decretada, não constituindo óbice nem o facto de o irmão ter 72 anos de idade nem a circunstância de residir no …, localidade que dista de Valpaços cerca de 418 Km.
Estando o beneficiário a residir no Lar, as funções de representação do acompanhante, na prática e em concreto, acabam por se traduzir em tratar de assuntos de natureza burocrática e patrimonial os quais podem ser facilmente tratados à distância, por meios não presenciais. E, quando exista necessidade de tratamento presencial de algum assunto, o irmão do beneficiário poderá deslocar-se a Valpaços para tal efeito pois a distância, sendo grande, não é impeditiva de tal situação e em cerca de 4 a 5 horas poderá ser efetuada a viagem necessária.
As más relações existentes entre A. J. e os seus sobrinhos, filhos do beneficiário, em nada relevam para aferir se aquele dispõe ou não de condições para exercer as suas funções de acompanhante, tanto mais que estas não pressupõem nem implicam quaisquer necessidades de contacto entre uns e outros visto que o beneficiário reside num Lar.
Entre o beneficiário e o irmão existe uma recíproca relação afetiva forte, mostrando-se este preocupado com o estado de saúde e bem-estar do beneficiário e tendo-se disponibilizado para exercer o cargo de seu acompanhante.
Provou-se que A. J., desde o último AVC, sofrido pelo beneficiário em 2021, esteve duas vezes com o irmão (facto 20). Porém, daqui não decorre qualquer situação que se possa qualificar como revelando desinteresse pela situação do beneficiário pois importa ter em conta que J. P. proibiu que o seu pai J. L. recebesse visitas e telefonemas no Lar, onde se encontra a residir desde maio de 2021, designadamente de A. J., irmão do beneficiário (factos 2 e 24).
Assim, em nosso entender, não existe na factualidade provada nenhuma circunstância que permita concluir que a nomeação de A. J. como acompanhante pode colocar em risco, de forma séria e relevante, o bem-estar, a recuperação e o exercício de direitos e cumprimento de deveres do beneficiário.
Por assim ser, impõe-se respeitar a escolha feita pelo beneficiário no sentido de ser nomeado como seu acompanhante o seu irmão A. J..
Perante esta conclusão, o cargo de vogal do conselho de família que era desempenhado por A. J. deverá agora ser desempenhado por J. P., filho do beneficiário.
Deste modo, procede o recurso e a sentença tem que ser revogada no que concerne à nomeação do acompanhante e à constituição do conselho de família.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, e, em consequência, revogam as alíneas b) e c) da sentença recorrida e, quanto à nomeação de acompanhante e constituição do conselho de família, decidem:

b) nomear A. J., irmão do beneficiário, para exercer o cargo de acompanhante, determinando que o mesmo visite o acompanhado com uma periodicidade mensal, de acordo com as regras instituídas na Instituição onde se encontra acolhido;
c) nomear como vogais do Conselho de Família: J. P. e A. C., filhos do beneficiário.
O presente processo encontra-se isento de custas, nos termos do art. 4º, nº 2, al. h) do RCP.
Notifique.
*
Guimarães, 17 de novembro de 2022.

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas.



1. Por lapso de escrita, que se corrigiu no texto, na sentença consta A. C., o qual é o filho e não o irmão do beneficiário.
2. Aprovada pela Resolução da Assembleia da República n° 56/2009, de 7 de maio, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho.
3. Disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=42175.