Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
124620/12.5YIPRT.G1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Não se mostra cumprido o dever comunicação e informação, referidos nos art.ºs 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, quando o contratante que submete as cláusulas a outrem não as envia com antecedência nem entrega aos aderentes um exemplar do contrato, para que possam tomar conhecimento efetivo do alcance das mesmas.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

Apelante: C… (autora).
Apelada: M… (ré).

Tribunal Judicial de Fafe – 2.º Juízo.

1. A A. intentou ação especial declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato contra F…e M…, casados entre si, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 5 383,70, correspondendo € 3 249,60 ao capital em dívida e € 1 492,10 aos juros de mora.
Alega, em síntese, que a pedido dos réus disponibilizou-lhes a quantia global de € 6 544,00 através de crédito na sua conta corrente.
O valor em causa teria que ser reembolsado à autora em prestações mensais por débito na respetiva conta bancária. Acontece que os réus, a partir do dia 1 de setembro de 2010 não mais procederam ao pagamento da quantia em causa, não obstante terem para tanto sido interpelados.
Regularmente citados, apenas a ré veio contestar a ação alegando da forma que consta do respetivo articulado, junto a fls. 6 e seguintes dos autos e onde, em resumo, entende que não deve qualquer quantia à autora porquanto, em setembro de 2010, em virtude da doença do seu marido, foi acionado o seguro de saúde que tinham celebrado com a autora no momento do recebimento do dinheiro. Referem, a esse propósito, que enviaram vários documentos para a autora e que a mesma nunca lhes disse que o seguro não estava em vigor. Por esse motivo, pensaram que todas as prestações se encontravam a ser asseguradas pela companhia de seguros.
A ré entende ainda que o contrato em causa é nulo uma vez que nunca lhe foi explicada qualquer cláusula e que a mesma não tinha a mínima noção do que estava em causa, nomeadamente, no que respeita ao montante dos juros.
Ainda na contestação, a ré suscita o incidente de intervenção principal provocada da companhia de seguros com quem efetuou o respetivo contrato.
A intervenção principal provocada foi indeferida.
Posteriormente, setembro de 2012, morreu o requerido, marido da requerida.
A instância foi declarada suspensa mas a autora apresentou nos autos um requerimento de desistência da instância quanto ao falecido marido da autora.
Esta decisão mereceu oposição por parte da ré, que entendeu que se tratava de uma situação de litisconsórcio necessário passivo.
A desistência veio a ser homologada por decisão final transitada em julgado.
Prosseguindo os autos os seus trâmites apenas contra a ré/apelada, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades exigidas pelo NCPC, como consta da ata.
Foi proferida sentença com a seguinte decisão:
Em face do exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolvo a R. de todos os pedidos formulados.

2. Inconformada, veio a A. interpor recurso de apelação, terminando s suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
(…)

3. Não foram apresentadas contra-alegações.

4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

5. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são as seguintes:
1.ª – Verificar se estão assinadas pela ré (e seu falecido marido) as condições gerais do contrato.
2.ª – Verificar se a A. deu a conhecer à R. (e seu marido) todo o conteúdo do contrato e se esta ficou com um exemplar.
3.ª – Verificar se é nulo o contrato e se a ré/apelada incorreu em abuso do direito.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A) Fundamentação de facto

A1) Matéria de facto que a sentença recorrida deu como provada, não provada e respetiva fundamentação, que se transcreve:
Factos provados
1. A requerente é uma sociedade comercial cujo objeto consiste, nomeadamente, em operações de financiamento por conta de terceiros com exceção de operações de caráter puramente bancário.
2. A requerente disponibilizou aos requeridos a quantia global de € 6 544,00, creditando tal dinheiro na conta à ordem dos requeridos em 01 de julho de 2004.
3. Consta do documento junto aos autos, intitulado, “contrato de crédito em conta corrente” que o valor em dívida teria de ser reembolsado à requerente em prestações mensais, por débito em conta dos requeridos.
4. Consta dos autos um documento intitulado “Vida Livre”, junto a fls. 57, cujo teor ora se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, no qual se encontra aposta a assinatura dos requeridos.
5. O marido da requerida ficou doente em junho de 2010 e veio a falecer de tal doença em setembro de 2012.
6. Os requeridos procederam ao pagamento da prestação mensal como reembolso da quantia atrás referida até setembro de 2010, altura em que não mais procederam a tal pagamento.
7. Os requeridos recebiam muitas vezes mensagens escritas nos respetivos telemóveis com ofertas de crédito por parte de instituições, entre as quais, a C….
8. A requerida tem como instrução a 4.ª classe antiga.
9. Em 2004, na sequência de mais uma oferta de crédito ao consumo por parte da “C…”, conjuntamente com o “de cujus”, a requerida assinou o documento constante de fls. 57 remetido pela “C…” onde se encontrava, também incluso, um envelope de resposta RSF.
10. Os requeridos, depois de assinarem o documento em causa, remeteram-no no envelope RSF para a requerente.
11. Passados alguns dias, o dinheiro estava creditado na conta à ordem de ambos.
12. A requerente não explicou aos requeridos o conteúdo do documento junto a fls. 57, nomeadamente, qual a taxa de juro a aplicar ao negócio.
13. Os requeridos fizeram um contrato de seguro, a favor e através da “C…”, em caso de verificação de qualquer impossibilidade no pagamento pontual das prestações contratuais, resultante de uma situação de morte ou invalidez permanente de algum dos mutuários.
14. Tal apólice foi titulada pelo Contrato de Seguro “Vida-Grupo”, n.º 8718-B, da “C…S.A. (C… Portugal)”, com sede à Av. de Berna, n.º 52, 1069-046 Lisboa.
15. Em junho de 2010, a requerida comunicou à requerente de que o seu marido se encontrava doente e que, por isso, pretendia acionar o contrato de seguro.
16. A requerente solicitou à requerida o envio de uma série de documentos comprovativos do estado de impossibilidade para trabalhar por parte do requerido.
17. A requerida enviou por escrito, à requerente, os documentos solicitados.
18. A requerente nunca informou a requerida de que as prestações mensais não se encontravam a ser pagas pela companhia de seguros.
19. A requerida é operária têxtil, aufere o salário mínimo nacional e dois filhos a seu cargo, sendo um menor.
20. A requerente não entregou aos requeridos qualquer cópia assinada do documento junto a fls. 57 ou do documento junto a fls. 58.
*
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos alegados, com interesse para a causa.
Nomeadamente, que a requerente tenha resolvido o contrato ou interpelado os requeridos.
*
(…)

B) Fundamentação de direito
(…)
Os factos provados parecem dar corpo a um contrato de adesão e de cláusulas contratuais gerais, previamente elaboradas pela mutuante, sem prévia negociação individual, que os aderentes se limitam a aceitar ou rejeitar em bloco (art. 1º do DL. n.º 446/85, de 25/10, com as alterações posteriores).
O art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, com as alterações posteriores, prescreve que as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las (n.º 1); devendo a comunicação ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência (n.º 2); e o ónus da prova da comunicação adequada e efetiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais (n.º 3).
O art.º 6.º do mesmo diploma legal estabelece o dever de informar a outra parte, de acordo com as circunstâncias, sobre aspetos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais, se tal aclaração se justificar e prestar todos os esclarecimentos solicitados.
É inquestionável que o ónus da prova da comunicação adequada e efetiva impende sobre a A..
O legislador visa com este regime o afastamento de dúvidas quanto à inteligência das cláusulas do contrato por parte dos contraentes mais fracos e ao mesmo tempo evitar que estes últimos, ao aderirem, sejam posteriormente surpreendidos com cláusulas surpresa, cujo significado e alcance desconheciam.
Sobre esta questão, além do mais, está assente que: consta do documento junto aos autos, intitulado, “contrato de crédito em conta corrente” que o valor em dívida teria de ser reembolsado à requerente em prestações mensais, por débito em conta dos requeridos; consta dos autos um documento intitulado “Vida Livre”, junto a fls. 57, subscrito pela apelada e seu marido; o marido da requerida ficou doente em junho de 2010 e veio a falecer de tal doença em setembro de 2012; os requeridos procederam ao pagamento da prestação mensal como reembolso da quantia atrás referida até setembro de 2010, altura em que não mais procederam a tal pagamento; os requeridos recebiam muitas vezes mensagens escritas nos respetivos telemóveis com ofertas de crédito por parte de instituições, entre as quais, a C…; a requerida tem como instrução a 4.ª classe antiga; em 2004, na sequência de mais uma oferta de crédito ao consumo por parte da “C…”, conjuntamente com o “de cujus”, a requerida assinou o documento constante de fls. 57 remetido pela “C…” onde se encontrava, também incluso, um envelope de resposta RSF; os requeridos, depois de assinarem o documento em causa, remeteram-no no envelope RSF para a requerente; passados alguns dias, o dinheiro estava creditado na conta à ordem de ambos; a requerente não explicou aos requeridos o conteúdo do documento junto a fls. 57, nomeadamente, qual a taxa de juro a aplicar ao negócio; a requerida é operária têxtil, aufere o salário mínimo nacional e dois filhos a seu cargo, sendo um menor; a requerente não entregou aos requeridos qualquer cópia assinada do documento junto a fls. 57 ou do documento junto a fls. 58.
Face aos factos provados que referimos, podemos concluir que a autora não cumpriu o seu dever de comunicação na íntegra e na forma adequada e efetiva das cláusulas contratuais gerais com antecedência, nem entregou um exemplar do contrato aos requeridos, ónus que impendia sobre si.
A apelada tem a 4.ª classe antiga e é operária têxtil. Uma pessoa normal, colocada na situação da demandada e com as suas habilitações, dificilmente compreenderia cabalmente as cláusulas contratuais gerais de fls. 58, sendo que nem sequer ficou com elas na sua posse para se poder informar. As condições gerais estão rubricadas pela A. e delas não consta qualquer assinatura ou rubrica dos beneficiários do crédito.
A A. deveria ter providenciado para que os requeridos pudessem ter pedido esclarecimentos caso não compreendessem o clausulado e ter-lhes entregue um exemplar antes de assinarem.
As cláusulas contratuais têm que ser conhecidas e negociadas pelos contraentes antes da assinatura do contrato (art.º 232.º do CC). No caso dos autos não foi isso que ocorreu.
Ao omitir este seu dever jurídico, a A. deixou de cumprir a obrigação a que estava adstrita nos termos do art.º 6.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 359/91 de 21 de setembro e art.ºs 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, pelo que se consideram excluídas as cláusulas não comunicadas ou comunicadas com violação do dever de informação, de molde a que fosse conhecido o seu conteúdo efetivo (art.º 8.º alíneas a) e b)) ou inseridas em formulários, depois da assinatura dos contratantes demandados nestes autos (art.º 8.º alínea d)), e ainda sem a entrega de um exemplar.
Daí que o contrato denominado “Vida Livre”, seja nulo, uma vez que se provou que não foi entregue um exemplar aos beneficiários do crédito e que as cláusulas gerais do contrato não foram dadas a conhecer aos requeridos e tal omissão torna impossível suprir os aspetos essenciais do contrato (art.º 9.º n.º 2 do regime da RCCG).
A apelante conclui que a apelada incorre em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, ao invocar a nulidade do contrato, depois de decorridos oito anos de vigência.
O abuso do direito existe quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.º do Código Civil).
Tem-se entendido que o abuso do direito equivale à ausência de direito e à prática de um ato que não se tem o direito de realizar. O exercício do direito neste contexto tem como fim apenas prejudicar outrem.
No caso dos autos, a apelada invocou na contestação a nulidade do contrato, pela falta de entrega de um exemplar do contrato e pela não comunicação das suas cláusulas gerais, nem explicação.
A A. contrapõe que ao fim de oito anos de vigência do contrato confiou que a ré não viesse invocar a falta de entrega do exemplar do contrato e a comunicação das condições gerais e sua explicação.
Face aos factos assentes, por um lado, a R. parece ter confiado em que a doença do marido e posterior morte deste levasse ao acionamento do contrato de seguro que subscreveu para o caso de tal evento ocorrer, como efetivamente fez ao comunicar à A. o facto e de ter entregue os elementos por esta pedidos. Por outro lado, a R. não podia contar com as condições gerais do contrato, que desconhecia.
Assim, não podemos dizer que a ré ao invocar a nulidade do contrato agiu contra a conduta que teve ao longo de oito anos, porquanto durante esse tempo ignorava qual eram as consequências do inadimplemento, a que acresce a convicção de que a seguradora pagaria as prestações ainda em dívida.
De facto, a A. nunca informou a R. se a seguradora estava a pagar ou não as prestações ainda em falta. Um contraente de boa fé, colocado na posição da apelante, perante a existência de um contrato de seguro que garantia o pagamento das prestações em caso de morte de um dos beneficiários do crédito, não deixaria de comunicar à demandada se a seguradora estava a pagar ou não, tendo em conta a existência do seguro e a comunicação da ré à A. do facto que despoletava o acionamento da garantia.
A R. foi surpreendida com a ação da A. e defendeu-se dentro dos princípios do ordenamento jurídico considerado na sua globalidade. Não podemos dizer que a R. quis apenas prejudicar a A.. Quis defender-se da pretensão deduzida contra si dentro do quadro legal e dos factos que foram dados como provados,
Neste contexto, entendemos que o comportamento da R. não é abusivo.
Assim, improcede a apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Sumário: não se mostra cumprido o dever comunicação e informação, referidos nos art.ºs 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, quando o contratante que submete as cláusulas a outrem não as envia com antecedência nem entrega aos aderentes um exemplar do contrato, para que possam tomar conhecimento efetivo do alcance das mesmas.

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Guimarães, 19 de junho de 2014

Moisés Silva (Relator)

Jorge Teixeira

Manuel Bargado

___________________
(1) Monteiro, Pinto, Revista da Ordem dos Advogados, 46.º, pp. 733 e ss..
(2) Ac. STJ, de 07.07.2009, processo n.º 369/09.01YFLSB, www.dgsi.pt/jstj e doutrina e jurisprudência aí citada no mesmo sentido.
(3) Serra, Vaz, RLJ, 111.º, p. 296 e Varela, Antunes, RLJ, 114.º, p. 75.