Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
558/19.0T9CHV.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
FALSIDADE DE TESTEMUNHO
EXTRACÇÃO DE CERTIDÃO
JUIZ INTERVENIENTE EM JULGAMENTO ANTERIOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - É fundamento para deferir escusa do juiz para presidir a julgamento a circunstância de, num processo anterior no qual interveio, o mesmo ter ordenado a extracção de certidão com vista à instauração de procedimento criminal contra a então testemunha, pela prática de crime de falsidade de testemunho que ora se impõe apreciar.

II - Na verdade, nos casos específicos dos crimes de falsidade de testemunho, a questão da eventual desconfiança sobre a imparcialidade do julgador ganha uma acuidade acrescida que resulta, naturalmente, de o juiz que ouviu alguém como testemunha num determinado processo ser o mesmo que, por causa desse mesmo depoimento, o vai julgar num outro. Podendo, no caso concreto, a posição que o Exmo. Sr. Juiz plasmou na sentença que subscreveu naqueloutro processo acerca do depoimento prestado pelo ora arguido, na perspectiva do homem comum e do cidadão médio, fazê-lo suspeitar que o juiz deixe de ser imparcial e que como tal prejudique a livre apreciação da prova a produzir.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 558/19.0T9CHV, que corre termos no Juízo Local Criminal de Chaves, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, o Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. J. A., a exercer funções nesse tribunal, veio ao abrigo do disposto nos Artºs. 43º, nºs. 1, 2 e 4, e 45º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, requerer escusa de intervenção no referido processo.

O pedido mostra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição 1):

“Nos presentes autos, foi deduzida acusação contra o arguido D. C. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, n.º1 e 3 do Código Penal.

Os factos imputados ao arguido, na aludida acusação, respeitam directamente ao processo nº 591/15.1T9CHV, no âmbito do qual o ora arguido prestou depoimento na qualidade de testemunha, em julgamento que foi presidido pelo ora signatário.

Foi no contexto da audiência de julgamento, e após promoção do Ministério Público, que foi determinada pelo signatário a extracção de certidão que deu origem ao presente processo. Acresce que o Tribunal não conferiu, no âmbito daquele processo, qualquer credibilidade ao depoimento ali prestado pelo aqui arguido, por ter considerado que o mesmo o prestou de forma parcial e demonstrativa do seu intuito de desresponsabilizar os ali arguidos.

Assim, não obstante não tenha havido uma pronúncia expressa a propósito da desconformidade entre o depoimento prestado no âmbito daquele processo na fase de inquérito e na fase de julgamento, certo é que o Tribunal já valorou, em concreto, a credibilidade do depoimento ali prestado pelo arguido na fase de julgamento.

Entende-se que essa circunstância, por si só, é passível que gerar desconfiança sobre a imparcialidade do signatário, por poder constituir um indício, sério e grave, de que já foi feito um juízo prévio desfavorável à veracidade das declarações prestadas pelo arguido naquela sede.

Assim mesmo se decidiu, aliás, no Acórdão da Relação do Porto de 23.02.2011, (proc. n.º 5136/10.7TAVNG-A.P1, Relator: Desembargador Ricardo Costa e Silva, disponível em www.dgsi.pt), no qual pode ler-se que «Deve ser deferido o pedido de escusa do juiz a quem foi distribuído para julgamento um processo por crime de falsidade de testemunho, se foi esse juiz que procedeu ao julgamento onde foi prestado o imputado depoimento falso, ordenou, na audiência, a requerimento do Ministério Público, a extracção de certidão da acta para efeitos de procedimento criminal e, na sentença, considerou esse depoimento não credível».

Como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 28.06.2017, Relatora:
Desembargadora Alice Santos, in www.dgsi.pt:

“I – O princípio do Juiz natural só poderá ser afastado quando outros princípios ou regras de igual ou maior dignidade o ponham em causa, como sucede quando o Juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função.
II – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança.
III – A concreta intervenção do senhor juiz requerente no processo em que, alegadamente, o ora arguido praticou o crime de falsidade de testemunho p. e p. pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3 do CP, pelo qual irá agora ser nos presentes autos, constitui motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade num dos seus aspectos fundamentais.”

No mesmo sentido, os recentes Acórdãos da Relação de Guimarães de 8.10.2018, Relatora: Desembargadora Maria Teresa Coimbra, no processo 1036/17.8T9CHV-AG1, e de 29.04.2019, Relatora: Desembargadora Cândida Martinho, no processo 113/18.2T9CHV-A.G1, ambos não publicados.

Cumpre, portanto, ao Juiz, que não pode declarar-se voluntariamente suspeito, «pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2» (artigo 43.º, n.º4 do Código de Processo Penal).

Nesta conformidade e atentos os fundamentos de facto e de direito supra expostos, requer-se a V. Exas. se dignem escusar o ora signatário de intervir, nestes autos, no julgamento do arguido D. C..
*
Extraia-se certidão do presente despacho e, ainda, de fls. 2 a 18, 27-46, 64-66 e da certidão com a referência 2225847 para criação do correspondente apenso, remetendo-se então a mesma ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação.”.
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2. O pedido de escusa foi instruído com certidão das peças processuais atinentes ao incidente suscitado, não havendo necessidade de proceder a diligências de prova.
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3. Efectuado exame preliminar, colhidos os vistos legais, cumpre conhecer e decidir (2).
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Antes de mais, há que atentar nos seguintes elementos fácticos que os autos nos revelam:

- No dia 27/03/2019 realizou-se a 1ª sessão da audiência de discussão e julgamento no âmbito do Proc. Comum Singular nº 591/15.1T9CHV, do Juízo Local Criminal de Chaves, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, a qual foi presidida pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. J. A., ora Requerente;
- Em tal audiência foi inquirido, na qualidade de testemunha, D. C.;
- No âmbito da aludida audiência de julgamento, e após promoção do Ministério Público, o Exmo. Sr. Juiz determinou a extracção de certidão com vista à instauração de procedimento criminal contra a aludida testemunha, a qual deu origem processo do qual dimanou o presente incidente;
- Após o julgamento, foi proferida a respectiva sentença, na qual o Exmo. Sr. Juiz, em sede de fundamentação da matéria de facto, exarou o seguinte, no que ora interessa considerar:

D. C. não mereceu qualquer credibilidade, numa atitude de apenas dizer que fumava com os arguidos C. G. e E. J., querendo, visivelmente, favorecê-los, atenta a forma como prestou o seu depoimento, o mesmo acontecendo com a testemunha B. R..”.
- Na sequência da extracção da aludida certidão, na Procuradoria do Juízo Local Criminal de Chaves, Sec. Inquéritos, da Procuradoria da República da Comarca de Vila Real, foi aberto o respectivo inquérito, em cujo âmbito foi constituído arguido D. C., o qual acabou por ser acusado da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo Artº 360º, nºs. 1 e 3, do Código Penal, nos seguintes termos:

“O Ministério Público vem, nos termos do artigo 283º do CPP, deduzir acusação em processo comum, para julgamento com intervenção do Tribunal Singular, contra:
D. C., filho de … e de …, nascido a -/03/1973, natural de …, Chaves, portador do CC n.º …, com residência na Rua …, Chaves.

Porquanto indiciam suficientemente os autos:

1. O arguido D. C. foi indicado como testemunha no âmbito do inquérito nº 591/15.1T9CHV, que correu termos na Procuradoria do Ministério Publico junto do Juízo Local Criminal de Chaves da Comarca de Vila Real, onde estava a ser investigada a prática de factos susceptíveis de consubstanciarem um crime de tráfico de estupefacientes por N. J., J. J., A. M., E. J., C. G. e L. M..
2. No dia 01/07/2016, no Posto da Guarda Nacional Republicana de Chaves, o militar da GNR J. P. procedeu à inquirição de D. C., advertindo-o obrigação de responder com verdade às perguntas que lhe fossem feitas e das consequências penais em que incorreria caso faltasse à verdade ou se recusasse a depor.
3. Ficando ciente de tal advertência, no decurso de tal inquirição, o arguido D. C. disse:
"Que conhece os arguidos E. J. e C. G. há cerca de dois anos/ e que os conheceu na "noite" em Chaves.
Que nessa altura teve conhecimento, através de pessoas que não se recorda, que eles vendiam "erva", em quantidades que desconhecia.

Depois e nessa mesma altura falou com o E. J. e lhe perguntou isso, sendo que
ele lhe disse que sim, tendo então trocado 05 números de telemóvel, que não sabe de cabeça, mas guarda na agenda do seu telemóvel como sendo o …….
Desde então e quando pretendia consumir "erva", ligava ou mandava SMS para esse número, marcando encontro com o E. J. em vários locais de Chaves, mas que frequentemente eram num parque de estacionamento perto da escola secundária Dr. …, local que costumam chamar de "…" e num outro local ali perto, que designam por "…".
Que costumava comprar 5/10 euros de cada vez, que correspondiam a cinco/10 cigarros de "erva", respectivamente, que vulgarmente designam por "charros"
( ... )
Por lhe ter sido perguntado, diz que desconhecia se a namorada do E. J. vendia
"erva", mas ela presenciava as transacções entre ambos, pelo que julga que ela sabia perfeitamente."
4. Sucede que no dia 27/03/2019, no decurso da audiência de discussão e julgamento que teve lugar no Juízo Local Criminal de Chaves, ao ser inquirido na qualidade de testemunha indicada pelo Ministério Público e depois de ter sido ajuramentado e advertido das consequências penais em que incorria se faltasse à verdade, o arguido D. C. prestou depoimento diverso do que anteriormente havia prestado.
5. Com efeito, após ter dito que conhecia os ali arguidos E. J., C. G., disse:
"Não sei o que é que eles faziam, conhecia-os do bar de irem lá beber um copo com
mais amigos e pouco mais.
( ... )
Se eles vendiam não sei se vendiam ou não, sei que de vez em quando tinham, sim.
( ... )
Porque cheguei a fumar com eles também.
( ... )
Eu fumava esporadicamente e sim, fumava... o que me arranjasse fumava geralmente com ele."
6. Questionado se ligava ao arguido E. J. quando pretendia fumar erva para lhe vender disse: "Não, que vendesse não."
5. Não obstante por diversas vezes ter sido advertido das consequências legais em que incorria, o arguido D. C. sempre negou ter comprado, recebido de E. J. a
8. O arguido D. C., agindo livre e deliberadamente, não se absteve de produzir declarações que não correspondiam à verdade, bem sabendo que, como testemunha, estava obrigado a dizer a verdade dos factos sobre os quais foi inquirido, advertência que lhe foi devidamente efectuada.
9. Bem sabia o arguido que com tal atitude prejudicava o interesse do Estado na boa administração da justiça.
Pelo exposto, o arguido F. F. incorreu na autoria material e na forma consumada de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, nºs 1 e 3 do Código Penal.
(…)”; e
- Remetidos os autos a Juízo, o Exmo. Sr. Juiz Requerente, titular do Juízo Local Criminal de Chaves, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, suscitou o presente incidente.
*
2. Posto isto, analisemos então, a pretensão do Exmo. Sr. Juiz Requerente.

As regras da independência e imparcialidade do tribunal são inerentes ao princípio constitucional do acesso ao direito e tutele jurisdicional efectiva, consagrado pelo Artº 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e bem assim uma importante dimensão das garantias de defesa do processo criminal e do princípio do juiz natural (Artºs. 32º, nº 1, e 32º, nº 9, da Constituição da República Portuguesa).

Nessa perspectiva, a imparcialidade do tribunal constitui, pois, um dos elementos integrantes da garantia do chamado processo equitativo, com consagração expressa no Artº 6º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no Artº 20º, nº 4, da nossa lei fundamental.

Ora, tendo em vista assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C.P.Penal regula, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.

No que concerne às recusas e escusas, prescreve o Artº 43º:

“1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.
2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.

Recusa e escusa são, assim, duas figuras processuais que visam o mesmo objectivo: obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Sendo certo que o que as distingue é a diferente legitimidade para a respectiva dedução: a recusa pode ser deduzida pelo Mº Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (Artº 43º, nº 3, do C.P.Penal, ao passo que a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo preceito legal).

Porém, e como vem sendo afirmado pela doutrina e pela jurisprudência, a imparcialidade deve ser avaliada sob duas perspectivas: uma perspectiva subjectiva, e uma perspectiva objectiva.

Efectivamente, como salienta Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2016, 2ª Edição Revista, págs. 110/113, “na perspectiva subjectiva, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, e pressupõe a determinação ou a demonstração sobre aquilo que um juiz, que integre o tribunal, pensa no seu foro íntimo perante um certo dado ou circunstância, e se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão”. Acrescentando que “a dimensão subjectiva, por princípio, impõe que existam provas que permitam demonstrar ou indiciar relevantemente uma tal predisposição, e, por isso, a imparcialidade subjectiva presume-se até prova em contrário (...)”.

Já na perspectiva objectiva – diz – “em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulação de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, que seja objectivamente justificado quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra os seus interesses”.

Na mesma senda pronuncia-se Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, págs. 132/133, em anotação ao artigo 43º e citando jurisprudência do TEDH, quando refere que “a imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção”. Por outro lado, explica o mesmo autor: “O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (…). A perspectiva do queixoso pode ser importante, mas não é decisiva”.

E, a nível jurisprudencial, citamos, a título meramente exemplificativo, o acórdão deste TRG de 29/11/2010, proferido no âmbito do Proc. nº 728/09.0PBGMR-A.G1, in www.dgsi.pt, no qual se afirma:

“A questão tem duas componentes. Uma subjectiva, atinente à posição pessoal do juiz e àquilo que ele, perante um certo dado ou circunstância, guarda em si e possa representar motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão. Deste ponto de vista subjectivo impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer/desfavorecer um interessado na decisão e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário; e outra objectiva, relacionada com as aparências susceptíveis de serem avaliadas pelos destinatários da decisão, suscitando motivo sério e grave acerca da imparcialidade da intervenção do juiz.”.

Como se alcança do transcrito Artº 43º, nº 4, do C.P.Penal, para que o juiz possa pedir escusa torna-se necessário que:

- A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
- Por se verificar motivo, sério e grave;
- Adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Como lapidarmente se expende no Ac. da Relação de Évora, de 5/12/2000, in CJ XXV-V-284, “O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstancias, a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador; o que importa é, pois, determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado deixe de ser imparcial e injustamente o prejudique.”.

Ora, tendo em conta as considerações jurídicas supra sumariamente explanadas, atentemos na situação sub-judice.

Desde logo se dizendo, numa perspectiva subjectiva de imparcialidade, que não está minimamente em causa qualquer comportamento concreto do Exmo. Sr. Juiz Requerente susceptível de levantar suspeita da sua imparcialidade, tanto mais que, como se viu, tendo sido o mesmo a suscitar este incidente, tal é claramente revelador de uma conduta irrepressível e escrupulosa.

E à luz da perspectiva objectiva de imparcialidade, o que nos dizem os autos?

Como supra se referiu, foram os presentes autos distribuídos ao Exmo. Sr. Juiz Requerente tendo em vista o julgamento do arguido D. C., acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo Artº 360º, nºs. 1 e 3, do Código Penal.

Sucede que tais autos tiveram a sua origem na certidão extraída do Proc. Comum Singular nº 591/15.1T9CHV, do Juízo Local Criminal de Chaves, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, em cujo âmbito, no dia 27/03/2019, se realizou a 1ª sessão da audiência de discussão e julgamento, presidida precisamente pelo ora Exmo. Sr. Juiz Requerente, o qual, na sentença aí proferida, em sede de motivação da decisão de facto, valorou negativamente o depoimento do ora arguido, ali testemunha, sustentando que “D. C. não mereceu qualquer credibilidade, numa atitude de apenas dizer que fumava com os arguidos C. G. e E. J., querendo, visivelmente, favorecê-los, atenta a forma como prestou o seu depoimento, o mesmo acontecendo com a testemunha B. R..”.

Ora, em situações como a presente, de casos específicos dos crimes de falsidade de testemunho, afigura-se-nos que a questão da eventual desconfiança sobre a imparcialidade do julgador ganha uma acuidade acrescida que resulta, naturalmente, de o juiz que ouviu alguém como testemunha num determinado processo ser o mesmo que, por causa desse mesmo depoimento, o vai julgar num outro. Podendo, no caso concreto, a posição que o Exmo. Sr. Juiz plasmou na sentença que subscreveu naqueloutro processo acerca do depoimento prestado pelo ora arguido D. C., na perspectiva do homem comum e do cidadão médio, fazê-lo suspeitar que o juiz deixe de ser imparcial e que como tal prejudique a livre apreciação da prova a produzir.

Na verdade, é razoável supor que o arguido, e até o cidadão comum, suscite dúvidas e fique de algum modo apreensivo se confrontado com o mesmo juiz que interveio em julgamento anterior no qual considerou num determinado sentido o depoimento que então prestou na qualidade de testemunha e que o vai julgar tendo precisamente em vista apreciar se, na realidade, faltou ou não à verdade.

Assim sendo, perante o circunstancialismo acabado de relatar, afigura-se-nos estarem verificados os enunciados requisitos relativos à imparcialidade objectiva.

Pois - e repetindo-nos -, sem pormos em questão a idoneidade da Exmo. Sr. Juiz Requerente, cremos que, a ter de intervir nos presentes autos, a sua actuação poderia colocar em crise o reconhecimento público da sua imparcialidade enquanto juiz (de julgamento) do processo, sendo adequada a levar um cidadão médio, representativo da comunidade a, fundadamente, suspeitar que o Requerente, pelas invocadas circunstâncias, possa não manter uma posição de isenção na audiência de discussão e julgamento a que teria de presidir.

Não sendo demais salientar que a doutrina nacional coloca o acento tónico da salvaguarda da imparcialidade precisamente nesta vertente objectiva, como sucede com Manuel Cavaleiro Ferreira (3), que a propósito afirma:

“(...) Não importa, aliás, que, na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial; interessa, sobretudo, considerar se em relação ao processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados. É este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza: a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios; mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento de suspeição (...)”.

Pelo que, sendo este o plano em que se deve situar e decidir a questão, entendemos existir fundamento para a escusa que vem solicitada a este tribunal.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em deferir o pedido de escusa formulado pelo Exmo. Sr. Juiz de Direito, Dr. J. A., relativamente ao Processo Comum Singular nº 558/19.0T9CHV, do Juízo Local Criminal de Chaves, do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, devendo ser cumprido o disposto no Artº 46º do C.P.Penal.

Sem custas.

Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 27 de Abril de 2020

António Teixeira (Relator)
Paulo Correia Serafim (Adjunto)


1. Transcrição em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Nos termos do disposto no Artº 44º do C.P. Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate. No caso vertente, o pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pelo Exmo. Sr. Juiz a quem compete tramitar os autos, e designadamente presidir ao julgamento. Por outro lado, conforme dispõe o Artº 45º, nº 1, al. a), do C.P.Penal, o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior. Estando em causa o pedido de escusa de um Sr. Juiz de Direito, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante este TRG, o competente para o apreciar.
3. In “Curso de Processo Penal”, I, pág. 237.