Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
721/17.9T8GMR-F.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
VENDA
NULIDADE
MEIO PROCESSUAL PRÓPRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - A preterição de formalidades legais na venda efectuada pelo administrador da insolvência não constitui fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da venda.

2 - A declaração da ineficácia do acto, só pode ser declarada nos termos do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, for reconhecido que a violação do disposto nos artigos 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo administrador da insolvência e as do adquirente do bem.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

P. T., nos autos em que foi declarado insolvente, veio interpor recurso de despacho proferido no apenso de liquidação, com o seguinte teor: “Ref. 6610968: Indefere-se o requerido atento o disposto no artigo 163.º do CIRE. Notifique.”

Apresentou alegação, que finalizou com as seguintes

Conclusões:

1. Pretende aqui indagar-se directamente se o modus operandi da Senhora Administradora de Insolvência violou os direitos legalmente atribuídos ao Devedor ou a terceiros com interesse na causa, designadamente, o exercício do Direito de Remição dos titulares desse mesmo direito e, nessa esteira, discutir-se e apurar-se, no âmbito do caso sub judice, se a AI levou em conta todos os procedimentos legais que lhe eram exigíveis e que levaram à adjudicação do imóvel que constitui a casa de morada de família do Insolvente ao Banco A (Banco A), designadamente, se efectuou as notificações a que está obrigada ao Insolvente, na pessoa do seu mandatário, tudo passível de levar à Nulidade da adjudicação;
2. Por outro lado pretende-se chamar à colação se, mesmo tendo sido violado esses direitos e obrigações da AI - como parece derivar tacitamente da Douta Decisão em crise do Tribunal a quo - é aplicável à situação em apreço o disposto no art.º 163.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante ClRE) que refere que a violação do art.º 161.º e 162.º do CIRE "não prejudica a eficácia dos actos do administrador de insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte";
3. Por fim, com relevância para o caso, pretende-se aquilatar se no Douto Despacho de que se recorre subsequente ao requerimento de 30.Jan.2018 e, bem assim, do Despacho que emergiu do requerimento que o Insolvente também depositou nos autos no dia 24.Nov.2017, existiu omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo passíveis de levar à nulidade daquelas decisões;
4. Como é consabido, nos termos do disposto no artigo 247.º do Código de Processo Civil (CPC), as notificações às partes que constituíram mandatário, são feitas na pessoa dos seus mandatários, sendo certo que estes são notificados nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do art.º 132 do mesmo diploma. - art.º 248.º do diploma supra citado;
5. Na verdade, tratando-se os Senhores Administradores de Insolvência de figuras que se encontram ao serviço do direito e da justiça e que, pelo exposto, exercem a função de auxiliares da justiça, não se encontrando numa situação de paridade com os outros intervenientes processuais (insolventes e credores), dúvidas não restam que deverão ser aplicáveis as normas processuais supra referidas;
6. Sendo certo que mesmo que a notificação eletrónica não fosse possível (o que se admite apenas por efeito académico, porque no caso era), as mesmas notificações deveriam ter sido efectuadas ao mandatário constituído por correio registado ou, sem prescindir, por notificação do Tribunal;
7. No caso em análise, o mandatário subscritor, pura e simplesmente, foi levado como incógnito nas diversas notificações efectuadas pela Senhora AI e que conduziram à adjudicação dos imóveis ao Banco A;
8. Na verdade, a senhora AI havia escolhido como modalidade de venda para os bens imóveis que constituíam a casa de morada de família do Insolvente a Venda Por Propostas em Carta Fechada;
9. Subsequentemente, foi marcada a abertura de propostas para o dia 14.Jul.2017, sendo que não existiu qualquer proposta;
10. Durante praticamente 4 meses, a Senhora AI não desenvolveu mais qualquer diligência para a venda dos bens;
11. Não promoveu a venda segundo a modalidade que havia escolhido por um valor inferior;
12. Não notificou o Devedor, na pessoa do seu mandatário, de qualquer alteração da modalidade de venda;
13. Não promoveu a venda por negociação particular;
14. Apenas compulsados os autos, se constata que, por Requerimento que fez chegar aos mesmos no dia 05.Out.2017, (ou seja praticamente 4 meses depois da frustrada venda por propostas em carta fechada) e após notificação do Tribunal para informar da liquidação do activo, informou o seguinte "Atento tal facto (sendo que tal facto era a inexistência de propostas no dia 14.Jul.2017)- notificou a administradora judicial o credor hipotecário com vista a averiguar do interesse na aquisição dos imóveis em causa.";
15. A senhora AI não respondeu às questões levantadas na comunicação que o mandatário lhe enviou no dia 24.Nov.2017, com conhecimento do Tribunal;
16. Já o Tribunal a quo, relativamente ao supra citado requerimento, proferiu o seguinte despacho: "Notifique a Senhora AI para informar do estado da liquidação. Prazo: 10 dias.", ou seja, também não se debruçou sobre as questões suscitadas;
17. Atendo o silêncio da senhora AI e do próprio Tribunal, concatenados e compulsados os autos, constata-se que no dia 05.Jan.2018, a Senhora AI havia depositado nos mesmos um requerimento através do qual juntou o "Auto de Adjudicação de bens imóveis apreendidos pela massa insolvente ao Banco A já no dia 03.Jan.2018 e um extrato bancário da conta da massa insolvente, documento comprovativo do depósito de 20% do preço.";
18. Sendo que essa decisão - apenas anteriormente aventada decisão -não foi comunicada ao mandatário do Insolvente;
19. As notificações omitidas pela Senhora AI revestem de extrema importância, precisamente, para que o mandatário pudesse transmitir ao seu constituinte os seus direitos, designadamente, de que assistia a qualquer seu descendente ou ascendente o Direito a exercer a Remição dos imóveis vendidos nas condições oferecidas e negociadas entre a senhora AI e a credor hipotecário;
20. Existindo, assim um NULIDADE ao abrigo do disposto no art.º 195.º do CPC, que o Insolvente não prescindiu de invocar caso não fossem - como não foram - observados os direitos que a Lei lhe confere;
21. Foram, assim, violadas as disposições ínsitas nos artigos 247.º, 248.º e 132.º, todos do CPC, tudo que forçosamente levará à Nulidade de todo o processado subsequente à abertura de propostas em carta fechada datada de 14.07.2017, incluindo a adjudicação da venda dos imóveis ao Banco A.
22. Sem prescindir, quanto à preterição dos procedimentos legais previstos nos art.º 161.º e 162.º em confronto com o disposto no art.º 163.º, todos do CIRE, refere o art.º 164.º do CIRE que cabe ao Administrador de Insolvência escolher a modalidade da alienação dos bens;
23. Dispõe por outro lado o n.º 4 do artigo 161.º do mesmo diploma que "a intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular, bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio, deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção" - negrito e itálico nosso;
24. Por sua vez refere o art.º 163.º que a violação desta exigência legal não prejudica a eficácia dos actos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte.
25. Do exposto resulta, com a devida vénia que, in casu, teremos de saber o verdadeiro significado de dois conceitos que a Lei refere de forma subjectiva: o primeiro: o que é um acto de especial relevo, tal como a Lei o prevê; o segundo: em que situações as obrigações assumidas pelo Administrador de Insolvência excedem manifestamente as da contraparte;
26. Na verdade, dependendo do enquadramento do caso em análise nestes dois conceitos, deriva a obrigatoriedade do AI comunicar a venda por negociação previamente ao Insolvente, sendo que, a eficácia do acto, mesmo omitindo, depende da interpretação da segunda parte do art.º 163.º do CIRE;
27. Importaria pois, sempre salvo melhor opinião, apurar-se os factos concretos e singulares no caso patente nos presentes autos, para se concluir por tal desiderato, o que o Tribunal a quo, não fez;
28. O modus procedendi da Administradora de Insolvência, nesta parte da liquidação do activo, é, à luz dos princípios mais basilares da Justiça e do Direito, alguns constitucionalmente consagrados, totalmente incompreensível e inexplicável;
29. Como já foi referido, a Ilustre AI decidiu que a venda dos bens imóveis que constituíam a casa de morada de família do Insolvente seria efectuada na modalidade de propostas em carta fechada;
30. Com esse desiderato, marcou a abertura de propostas para o dia 14.Jul.2017, sendo que não se logrou obter qualquer proposta;
31. Durante mais de 4 meses não promoveu qualquer outra venda;
32. Sendo certo que, passado esse tempo, de motu proprio, decidiu propor ao referido Banco A a adjudicação dos bens àquela instituição bancária;
33. Construindo a adjudicação, negociada com o Banco A no dia 03.Jan.2017 e da mesma dando conhecimento aos autos no dia 5 do mesmo mês;
34. Fazendo - perdoe-se-nos o desabafo - tábua rasa de todos os direitos por si amplamente conhecidos, ao não informar por qualquer meio o mandatário do Insolvente do que lhe havia sido solicitado;
35. O que, no modesto entendimento do Recorrente, era uma obrigação legal que se impunha, e à qual a Distinta AI estava obrigada, tanto mais que os imóveis em venda eram - como são e nunca é demais referir - a casa de morada de família do Insolvente;
36. Em resultado desta situação, inexplicavelmente, o mandatário do Insolvente teve conhecimento, apenas através da consulta ao CITIUS, que a casa de morada de família do seu constituinte havia sido adjudicada apenas após a realização da referida adjudicação;
37. Sendo certo que o relaxamento processual demonstrado pela AI na fase imediatamente a seguir à frustração da venda sob a modalidade de propostas em carta fechada, que se prolongou por mais de 4 meses, não teve eco na fase posterior quando a própria AI propôs a adjudicação desse mesmo imóvel ao credor hipotecário;
38. Razões pelas quais, sempre com o devido respeito, não podemos deixar de classificar as referidas omissões da Ilustre AI como intensamente censuráveis, com prejuízo directo para o Devedor, mas, igualmente, para Massa Insolvente, excluindo, pelas razões referidas, o credor hipotecário;
39. Nunca sendo de mais referir que o Direito de habitação merece maior protecção jurídica do que o direito de propriedade, com a agravante de, in casu, a pessoa que adquiriu os imóveis ser uma instituição bancária que os destina revender;
40. Tudo factos que a Senhora AI não levou em linha de conta, mas que o Tribunal a quo também não aquilatou, o que está patente nos, aliás, Doutos Despachos em crise, datados de 18.Dez.2017 e 08.Fev.2018, mas que deveria tê-lo feito para concluir, no caso em análise, se a venda por negociação particular ao Banco A era ou não um acto de especial relevo;
41. ln casu, essa venda com todos os circunstancialismos e omissões que a rodeou não poderá deixar de constituir um acto jurídico que assume especial relevo;
42. Na verdade, a Lei, no enquadramento jurídico do que considera um acto de especial relevo, utiliza uma técnica mista de qualificação que visa conferir flexibilidade ao preceito;
43. Se por um lado apresenta índices de qualificação no n.º 2 do art.º 161.º do CIRE, por outro enuncia, no n.º 3 do mesmo preceito legal, tipos de actos que se presumem ter especial relevo, de onde resulta que implica ter especial relevo quer um acto relativamente ao qual se preenchem os índices do n.º 2, quer um acto que se apresente como análogo àqueles que estão enunciados no n.º 3;
44. Tanto dos índices como nos casos expressamente previstos, resulta que terão especial relevo actos que influenciem decisivamente o processo de insolvência, quer porque têm especial impacto na massa insolvente (como é o caso), quer porque repercutem efeitos no conjunto das dívidas da insolvência.
45. Pelo que se impõe, sempre salvo melhor opinião que, no caso sub judice o acto realizado pela AI seja classificado como um acto de especial relevo e, derivadamente, a sua alienação por negociação particular, obrigasse à comunicação do devedor das condições do negócio e identidade do adquirente nos termos e antecedência prevista no n.º 4 do art.º 161.º do CIRE.
46. Acresce que, para que se opere a invalidade do acto, impõe o art.º 163.º do CIRE, igualmente, que as obrigações assumidas pela Senhora AI teriam de exceder manifestamente as da contraparte;
47. Ora, pelos factos supra alegados que, brevitatis causa, se dão aqui como integralmente reproduzidos, parece-nos que não poderão resultar dúvidas que, no caso em análise, as obrigações assumidas pela mesma excederam em muito as da contraparte, existindo um benefício excessivo para o comprador do imóvel (ao qual lhe foi proposta a compra e negociado o valor da mesma), ou seja, existe uma desconformidade manifesta na prestação e contraprestação dos intervenientes no negócio, tudo em prejuízo da Massa Insolvente e, em última análise, do próprio devedor;
48. Violou assim o Tribunal o disposto no art.º 161.º, 162.º e 163.º, todos do CIRE;
49. Por fim, é entendimento do Recorrente que no Douto Despacho de que se recorre subsequente ao requerimento de 30.Jan.2018 e, bem assim, do Despacho que emergiu do requerimento que o Insolvente também depositou nos autos no dia 24.Nov.2017, existiu omissão de pronúncia por parte do Tribunal a quo;
50. Se o primeiro dos referidos Requerimentos, já anteriormente transcritos, mereceu do Tribunal o Despacho data de 08.Fev.2018: "Ref. 66110968: Indefere-se o requerido atento o disposto no art.º 163º do ClRE. Notifique."
51. Já o Requerimento formulado no dia 24.Nov.2017, havia merecido o Despacho: "Notifique a Sra. A. I. para informar do estado da liquidação. Prazo: 10 dias.";
52. Como é consabido, o vício processual de omissão de pronúncia reconduz-se a uma ausência de emissão de um juízo apreciativo sobre uma questão processual ou de direito material-substantivo que os sujeitos tenham, expressamente, suscitado ou posto em equação perante o tribunal e que este, em homenagem ao princípio do dever de cognoscibilidade, deva tomar conhecimento;
53. Sendo certo que, no caso sob análise, e sempre sem prejuízo de melhor e mais avalizada opinião, impunha-se ao Tribunal que justificasse de facto e de iure a decisão ou omissão que fez recair sobre os Requerimentos apresentados pelo mandatário do Insolvente;
54. Na verdade, a lei impõe que sejam conhecidas e justificadamente dirimidas as questões colocadas pelos sujeitos processuais e ainda as que são de conhecimento oficioso, o que no caso não aconteceu.
55. O que é, sempre na modesta opinião do Recorrente, gerador de nulidade, pois que os Doutos Despachos em crise não só não tratam das questões colocadas como também não respondem - como é seu apanágio - a cada um dos motivos e argumentos invocados pelo Insolvente;
56. Cumpria assim ao M.mo juiz do Tribunal a quo apreciar as questões jurídicas levantadas e carecidas de resolução e conhecer de todas as questões.
57. Com efeito, dispõe o n.º 1 do art.º 154.º do CPC que "as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas." - itálico e sublinha nosso
58. Por outro lado, postula o art.º 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
59. A Constituição revista deixa transparecer uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
60. Razões pelas quais os referidos Despachos não podem deixar de ser declarados nulos, por violação minifesta do art.º 154.º do CPC e do art.º 205.º da CRP, nulidade essa que, igualmente, aqui se argui para todos os efeitos legais.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, assim se revogando a douta decisão proferida pelo tribunal a quo e, em consequência, devendo a mesma ser substituída por outra que declare a venda efetuada nos autos como sem efeito, ou seja, nula, com todas as consequências legais.

Se prescindir, deve ser declarada a nulidade de todo o processado subsequente à abertura de propostas em carta fechada datada de 14/07/2017, incluindo a adjudicação da venda dos imóveis ao Banco A por omissão das notificações omitidas ao mandatário do insolvente.
Ainda sem prescindir, deve ser revogado o douto despacho datado de 08 de fevereiro de 2018 e, em consequência, seja determinado que o tribunal deve oferecer às partes, incluindo ao requerente, um despacho devidamente fundamentado.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.

Respondeu a Administradora da Insolvência, dando conta das diligências que empreendeu para concretizar a venda, designadamente, tendo-se reunido três vezes com o mandatário do insolvente após a ausência de propostas na diligência de abertura de propostas em carta fechada e tendo notificado o insolvente da proposta apresentada pelo Banco A, notificação essa que efetuou através de carta registada com aviso de recepção, para além de ter falado com o devedor, várias vezes, pelo telefone, sobre o estado da venda dos bens.

O Banco A, credora reclamante, contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se os termos do despacho de que recorre o insolvente, considerando-se as diligências de venda conformes à lei, mantendo todo o processado até então, incluindo a adjudicação dos imóveis à ora recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata no apenso de recurso e efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a nulidade do despacho por omissão de pronúncia e falta de fundamentação e com a questão de saber se a violação de regras procedimentais por parte do AI prejudica a eficácia dos atos por si praticados na liquidação do ativo.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Resulta do apenso de liquidação que:

- em 14/07/2017, teve lugar a diligência de abertura de propostas em carta fechada, pera venda dos imóveis apreendidos pela massa insolvente, não tendo sido apresentada qualquer proposta;
- em 05/10/2017, a AI informou o tribunal que “inexistindo interessados na aquisição dos bens apreendidos, notificou o credor hipotecário com vista a averiguar do seu interesse na aquisição dos imóveis em causa”;
- em 08/11/2017, a AI veio aos autos juntar a proposta apresentada pelo credor hipotecário para adjudicação dos bens apreendidos pela massa insolvente (24/10/2017), cópia do correio electrónico enviado aos credores em cumprimento do artigo 161.º do CIRE, dando conhecimento da proposta, informando que fica a aguardar o parecer no prazo máximo de 15 dias e que, caso não haja oposição dos credores, os bens serão adjudicados ao credor hipotecário (08/11/2017) e cópia da carta enviada ao devedor em que dá conhecimento da proposta apresentada pelo credor hipotecário;
- em 24/11/2017, o mandatário do devedor deu entrada de um requerimento em que alerta que pediu esclarecimentos à AI e que, até que os mesmos sejam prestados se impõe a suspensão da liquidação;
- em 18/12/2017, foi proferido despacho ordenando a notificação da AI para informar o estado da liquidação;
- em 05/01/2018, a AI requereu a junção aos autos do auto de adjudicação dos bens imóveis apreendidos pela massa insolvente ao Banco A e do extrato bancário da conta da massa insolvente comprovativo do depósito de 20% do preço;
- em 30/01/2018, o mandatário do devedor deu entrada de um requerimento em que pede a notificação da AI para que “proceda a todas as notificações exigíveis e previstas na lei ao devedor na pessoa do seu mandatário e que levaram à adjudicação do imóvel que constitui a casa de morada de família daquela ao Banco A (…), ficando a entrega da casa suspensa até decisão de mérito da questão que ora se coloca”;
- sobre tal requerimento incidiu o despacho recorrido, proferido a 06/02/2018: “Indefere-se o requerido atento o disposto no artigo 163.º do CIRE”.

Comecemos por avaliar o despacho recorrido sob a perspetiva da sua nulidade por falta de fundamentação ou omissão de pronúncia.

Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil, é nula a sentença – aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no artigo 613.º, n.º 3 do mesmo Código – quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que deveria apreciar.

No caso dos autos, estes vícios estão intimamente ligados.

Não pode dizer-se que o despacho não está fundamentado. O Sr. Juiz indeferiu o requerido, sustentando-se, para o efeito no disposto no artigo 163.º do CIRE. De acordo com este normativo: “A violação do disposto nos dois artigos anteriores não prejudica a eficácia dos atos do administrador da insolvência, excepto se as obrigações por ele assumidas excederem manifestamente as da contraparte”.

Ora, uma vez que o requerimento do devedor era no sentido de que fosse determinada a notificação da AI para proceder a todas as notificações “exigíveis e previstas na lei ao devedor na pessoa do seu mandatário e que levaram à adjudicação do imóvel que constitui a casa de morada de família daquele ao Banco A”, bem como para que se determine “que a entrega da casa de morada de família do insolvente fica suspensa até decisão de mérito da questão que ora se coloca”, só pode entender-se do despacho proferido que o Sr. Juiz considerou que tais questões não poderiam prejudicar a eficácia dos actos do administrador da insolvência, motivo pelo qual indeferiu o requerido.

Ou seja, apesar da fundamentação ser sucinta, ela não é inexistente (única razão pela qual se pode considerar nulo o despacho por falta de fundamentação), sendo possível perceber o raciocínio jurídico do julgador que conduziu ao indeferimento do requerimento.

Também não pode dizer-se que há omissão de pronúncia, uma vez que, apenas sendo requerido que se ordenem as notificações em falta e que se determine a suspensão da entrega da casa, o indeferimento com base no disposto no artigo 163.º do CIRE, dá resposta às questões colocadas, ao afirmar que tais questões não são susceptíveis de prejudicar a eficácia dos actos praticados pela AI.

Podemos admitir que, sobretudo a questão do pedido de suspensão poderia ter merecido uma resposta mais aprofundada, mas ela não deixa de estar contida no despacho proferido, ao entender que as questões suscitadas não tinham razão de ser face ao que prescreve o referido artigo 163.º do CIRE.

A questão que agora se coloca é a de saber se se decidiu bem.

E cremos que sim.

A violação das formalidades legais previstas nos artigos 161º e 162º do CIRE – designadamente, para o que aqui nos importa, quanto à alegada falta de comunicação ao devedor da intenção de efetuar alienações que constituam actos de especial relevo, por negociação particular (n.º 4 do artigo 161.º) -, não geram, só por si, a ineficácia da venda efectuada sem o cumprimento das mesmas, a menos que venha a gerar obrigações para a massa insolvente que excedam manifestamente as do adquirente do bem.

Nesta situação devem distinguir-se os efeitos ao nível interno, isto é, entre o administrador, o insolvente e os credores, em que o administrador, para além de poder ser destituído, é chamado a responder pelas consequências da sua actuação ilícita e terá de indemnizar os danos resultantes para os credores, dos efeitos ao nível externo, isto é, ao nível das relações com terceiros, estranhos ao processo de insolvência, em que se mantém a validade e eficácia do acto praticado.

Verificando-se que as obrigações assumidas pelo AI excederam manifestamente as da contraparte – o que não parece ser o caso dos autos, uma vez que os bens foram adjudicados ao credor hipotecário por valores muito próximos dos valores resultantes da avaliação efetuada, tendo aquele, de imediato, depositado os 20% desse valor, nos termos legais – poderia a eficácia da alienação ficar comprometida mas, nesse caso, não consagrando o CIRE meio processual para o efeito, tanto a pretensão de declaração de ineficácia dos actos do administrador da insolvência, deitando mão do disposto no n.º 1 do artigo 163.º do CIRE, como da sua responsabilização por violação do disposto nos n.ºs 2 e 3, do artigo 164.º do CIRE, teriam que ser deduzidas em acção declarativa a correr por apenso ao Processo de Insolvência - cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3.ª edição, pág. 614 e 615 - não podendo, assim, o juiz do processo decidir essa matéria de forma incidental, no processo principal.

Veja-se, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 30/01/2017, processo n.º 530/16.2T8AVR-F.P1 (Manuel Fernandes), in www.dgsi.pt, aí se citando Acórdão da mesma Relação, datado de 29/05/2014: “Feito este percurso pelas normas legais atinentes podemos assim concluir que fora dos casos em que o administrador está condicionado pelas deliberações dos credores e dependente do consentimento destes, onde se não inclui a escolha da modalidade da venda e dos procedimentos a adoptar para a sua concretização, o administrador tem competências próprias para proceder, de acordo com o seu critério, a todos os actos de venda dos bens da massa insolvente, podendo para o efeito, realizá-los conforme bem entender, designadamente no tocante às modalidades e formalidades a adoptar para concretizar a venda”.

Ou seja, a preterição das formalidades invocada pelo apelante não é, por si só, fundamento da declaração de ineficácia do acto de alienação dos bens nem de nulidade da dita venda, só podendo vir a ser declarada a ineficácia do acto relativamente à massa falida, nos termos do n.º 1 do artigo 163.º do CIRE se, em acção declarativa, a instaurar, nomeadamente pelo Apelante, for reconhecido que a violação do disposto nos art.º 161º e 162º do CIRE conduziu a um manifesto desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelo Sr. Administrador da Insolvência e as do adquirente do bem.
Idêntica posição vem sustentada pelo Professor Menezes Leitão em Direito da Insolvência, Almedina, p. 251.

Veja-se, aliás, que, até para a hipótese de o administrador não aceitar a proposta do credor garantido e proceder à venda por valor mais baixo, tal não consubstancia nulidade que afete a validade e eficácia da alienação, pois que, segundo resulta do regime do nº3 do artigo 164º, neste caso, o administrador fica apenas “obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação” ao preço por ele oferecido.

Isto porque, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ”CIRE Anotado”, Ed. 2005, Vol. I, pág.556, o intuito da norma “é o de tutela do direito de crédito e não de qualquer outro interesse que, paralelamente, pudesse assistir ao credor garantido na compra do bem objecto da garantia” – cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 28/07/2008, processo n.º 1566/08-2 (Rosa Tching).

Idêntica posição vem sustentada no Acórdão da Relação de Guimarães de 31/03/2016, processo n.º 8579/09.5TBBRG-E.G1 (Espinheira Baltar), in www.dgsi.pt: “O certo é que qualquer irregularidade no cumprimento do artigo 164 n.º 1 a 3, por parte do AI, não afecta a validade da alienação, se esta vier a concretizar-se. Apenas haverá responsabilidade do AI perante o credor garantido ou credores em geral, caso sejam prejudicados nos seus interesses (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, I Vol. 2005, Quid Juris pag. 555 a 559, anotação ao artigo 164 do CIRE; Ac. RP. 9.06.2015; Ac. RP. 21.05.2013 em www.dgsi.pt e Ac.RG. 28/07/2008, CJ. 2008, Tomo III, pag. 291)”.

Não deve, aliás, esquecer-se, nesta questão que cabe ao AI gerir o processo de alienação dos bens com vista à liquidação do activo. É livre na forma como o deve conduzir. Tal é o que resulta da leitura conjugada destes artigos do CIRE que registam uma desjudicialização do respetivo procedimento, cabendo ao AI uma maior autonomia, com vista a uma maior dinamização da liquidação do ativo

Veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 23/01/2017, processo n.º 571/12.9T2AVR-H.P1 (Cura Mariano): “Assim, não só o Administrador da Insolvência tem competência para escolher a modalidade da venda que entender ser a mais adequada para o bem a vender, nos termos do artigo 164.º, n.º 1, do CIRE (apesar das autorizações e condicionamentos relativos à venda por negociação particular previstos no artigo 161.º, n.º 4 e 5, do CIRE), como também, em regra, deixou de existir um meio para no processo de insolvência se reagir contra os seus atos, em termos de os poder afetar, designadamente, anulando-os - Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, em CIRE anotado, pág. 603, 3.ª ed., Quid iuris. No CPEREF estava prevista no artigo 184.º a possibilidade de dedução de reclamação contra os atos irregulares praticados no decurso da liquidação que poderia conduzir à anulação dos atos impugnados”.

Daí que se possa concluir que, mesmo que se verificasse a omissão culposa que o apelante assaca à AI, esta não integraria uma nulidade processual que tivesse como consequência a anulação da venda realizada e a consequente adjudicação dos bens ao Banco A, pelo que improcede o recurso, sendo de confirmar a decisão recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 17 de dezembro de 2018

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes