Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
677/19.3T8BCL.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESMAIO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – É acidente de trabalho o evento súbito, imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, ou por ocasião do trabalho.
II – A causa do desmaio, não resultou provada e seria decisiva para afastar ou não, a sua ligação com o trabalho, sendo certo que a sua prova à Ré incumbia por se tratar de facto impeditivo do direito da autora (cfr. art.º 342.º n.º 2 do C. Civil).
III - Não tendo a Ré Seguradora alegado e provado que o desmaio da sinistrada ocorreu em consequência de doença de que padecia ficamos sem saber qual a causa que esteve na origem da queda inopinada, que por isso, deverá ser considerada como um evento súbito e inesperado causador do acidente.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: AA
APELADA: A... SEGUROS S.A.,

I – RELATÓRIO
           
No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo do Trabalho ..., AA, residente na Rua ... ... ..., instaurou ação especial emergente de acidente de trabalho contra “A... S.A.”, com sede na Av. ..., ..., ... ..., e L..., LDA., com sede na Rua ..., ..., ... e formula os seguintes pedidos:

a) Condenar-se a Ré a pagar à Autora a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, que se vier a fixar, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, com início a 03.05.2019;
b) Condenar a Ré, a pagar à Autora os períodos de ITA’S e ITP’s que se vierem apurar e não pagos.
c) E ainda, condenar a Ré a pagar à A. a quantia de €145,50, referente a despesas com exames e consultas, bem como deslocações obrigatórias ao Gabinete Médico-Legal do Cávado para a realização de perícias médicas e a este tribunal para a realização da tentativa de conciliação.
d) Condenar-se as RR a pagar à Autora a quantia de 1579,69€ a título de remunerações não auferidas nos períodos em que esteve incapacitada de 10.10.2018 a 17.12.2018.
           
Tal como alega a sentença recorrida, a autora sofreu um acidente de trabalho, de que lhe resultaram lesões, tendo ficado curada, com uma IPP, tendo estado incapacitada para o trabalho, com perda de remunerações, para além de ter tido despesas com a realização de exames médicos. Para justificar o pedido formulado contra a sua entidade patronal, alega a sinistrada que esta lhe pagava um prémio mensal, não tendo sido transferida para a entidade responsável (seguradora) a responsabilidade pelo seu pagamento.
Devidamente citadas as Rés, contestaram. A Ré Seguradora impugnou a ocorrência do acidente alegado pela Autora e a Ré empregadora negou a existência do pagamento de um prémio mensal.
Foi proferido despacho saneador e procedeu-se ao desdobramento do processo, com realização de Junta Médica da Autora.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e no início da mesma, a autora reconheceu a inexistência do pagamento regular de qualquer quantia a título de prémio, por parte da entidade patronal, desistiu do pedido formulado contra o empregador, desistência essa que foi homologada por sentença.
           
Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente por não provada absolvendo a Ré Seguradora de todos os pedidos contra si formulados.
*
A Autora, AA inconformada, interpôs recurso da sentença, no qual formula as seguintes conclusões:

“I. Do depoimento prestado pela testemunha BB única testemunha que estava no local do acidente, prestado em 14/10/2022 – ata ...16 concretamente minutos 01:28 a 10:57 – resulta que esta: a) nega a versão que consta do documento apresentado pela recorrida na sua contestação; b) reconhece a sua assinatura naquele documento, embora negue que o tenha redigido; c) afirma que não sabe ler e nega ter-lhe sido lido o conteúdo do documento na data em que o assinou.
II. Com maior acuidade nega mesmo que a recorrente tenha mesmo desmaiado e/ou perdido os sentidos.
III. A testemunha CC nega o depoimento da testemunha BB, atribuindo (contra scriptum) a autoria do documento a uma terceira pessoa cuja identidade não esclareceu e complementando a sua “investigação” com supostas declarações da autora, sem que estas estejam juntas nos autos ou sequer sejam alegadas, senão na data audição da referida testemunha.
IV. Dito isto e salvo o devido respeito, a prova produzida nos autos impunha mesmo ao Tribunal a quo desse, como provado, que «no dia 09/10/2018, pelas 10H00, no circunstancialismo aludido em B), a Autora tropeçou e caiu no chão, magoando-se na cabeça, maxilar e queixo
Mas ainda que se entenda que não deva ser alterada a matéria de facto (o que não se concede mas se equaciona por mera cautela de patrocínio) sempre se deveria ter decidido diferente do da douta decisão proferida.
V. Em bom rigor, o digno Tribunal a quo dá como provado dá como provado que o evento infortunistico se dá em horário e no local de trabalho da autora e que deu origem a danos.
VI. Mas não dá como alegado e provado que a queda foi consequência de uma doença pré-existente da autora, o que não aconteceu.
VII. Assim, a eventual perda de sentidos que esteve na origem da queda da autora (tal qual se encontra provado na douta sentença recorrida) deve ser havido como um evento súbito, inesperado, causador do acidente que, por ter ocorrido no local e no horário de trabalho da autora é, nos termos do disposto no artigo 8º da LAT, acidente de trabalho.
VIII. Pelo que os danos que dela decorrem são, nos termos do artigo 10º da LAT são igualmente resultantes desse acidente de trabalho.
IX. Pelo que ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 8.º n.º 1 e 10º n.º 1 da LAT conjugados com o disposto no artigo 324º n.º 1 do Código Civil.
X. Devendo, em ambos os casos, a douta decisão ser revogada e substituída por outra que reponha a legalidade invocada, o que se requer.”
A Recorrida/Apelada respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
*
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunto emitido douto parecer no sentido da total procedência da apelação.
A Recorrida veio responder ao parecer, manifestando a sua discordância e pugnando pela manutenção da sentença recorrida.  
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87º n.º 1 do CPT), as questões trazidas à apreciação deste Tribunal da Relação são as seguintes:

- Modificação da decisão sobre a matéria de facto;
- Da ocorrência do Acidente de Trabalho;
- Da reparação do Acidente de Trabalho

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância deram-se os seguintes factos como provados:

a) A Autora AA nasceu em .../.../1982 (doc. de fls  14).
b) No dia 09/10/2018, a Autora encontrava-se no seu local de trabalho, na freguesia ..., ..., a exercer funções de empregada de balcão sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré “L..., Lda”, cumprindo o horário de trabalho das 07H00M, até às 13H30M.
c) No dia 09/08/2018, a ré “L..., Lda” tinha transferida a sua responsabilidade infortunística laboral para a ré seguradora, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...58, garantindo o valor da retribuição anual ilíquida de €9.153,34 (salário de €580,00 x 14 meses + subsídio de alimentação de €93,94 X 11 meses)
d) No dia 09/10/2018, pelas 10H00, no circunstancialismo aludido em B), a Autora, perdeu os sentidos, desmaiando, tendo caído no chão, magoando-se na cabeça, maxilar e queixo.
e) Como consequência directa e necessária da queda aludida em 1), a autora sofreu, na face, ferida na língua e ferida do mento, fractura da mandíbula, ao nível do 3º quadrante, com dois pequenos traços de fractura oblíquos na vertente esquerda da mandíbula sem desfasamento inter-fragmentário, traços que atingem essencialmente a cortical e região medular inferior; e um outro traço de fractura oblíquo mais anterior, que atinge o alvéolo dentário do dente 3.4 e atravessa o foramentoniano esquerdo – risco de lesão do nervo mentoniano.
f) a autora apresenta ausência do dente 3.4 e fratura coronal de dente 2.3 já sujeitos a reabilitação fixa, sequelas a que cabe a IPP de 0 (zero), dado que a perda dentária não é superior a 2 dentes, conforme Cap. XV.1.2.4.2. da TNI.
g) A autora é portadora de sequelas que lhe determinam uma IPP de 1% (0,0100), pela cicatriz mentoniana (Cap. II.1.2.1. da TNI);
h) Tendo-se encontrado numa situação de ITA desde 10/10/2018 até 17/12/2018 (69 dias) e ITP de 20% desde 18/02/2018 até 02/05/2019 (136 dias) 5) A que corresponde uma incapacidade permanente parcial de 1% (IPP).
i) A autora gastou a quantia de €145,00 em exames e consultas médicas e deslocações ao GMLF do ... para realização de perícias médicas e ao tribunal para realização da tentativa de conciliação.

Em 1ª instância não se provaram os seguintes factos:

a) que no dia 09/10/2018, pelas 10H00, no circunstancialismo aludido em B), a Autora, o pretender sentar-se, tenha tropeçado nos sacos das revistas para venda;
b) que a autora fosse portadora das lesões apresentadas antes de 09/10/2018

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO
           
1. Da impugnação da matéria de facto
(…)
É de manter o ponto a) dos pontos de facto não provados, com a consequente improcedência do recurso nesta parte, deixando consignado que se mantém inalterada a matéria de facto apurada pela 1ª instância.

2. Do Acidente de Trabalho
Como resulta quer das alegações, quer das conclusões de recurso a Recorrente/Apelante vem por em crise a subsunção jurídica que foi efectuada na sentença recorrida aos factos dados como provados.
Importa por isso averiguar se a factualidade provada nos permite concluir, que a autora logrou provar, tal como lhe compete (cfr. art.º 342.º do C. Civil), a ocorrência de um acidente qualificável como de trabalho.
Prescreve o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09 (doravante NLAT), no que respeita ao conceito de acidente de trabalho e situações de exclusão e redução da responsabilidade:
Artigo 8.º “Conceito”
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Artigo 10.º “Prova da origem da lesão”
1 - A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho.
2 - Se a lesão não tiver manifestação imediatamente a seguir ao acidente, compete ao sinistrado ou aos beneficiários legais provar que foi consequência dele.
De acordo com o que ensina Maria do Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª edição, pp. 872 e ss, a noção legal de acidente de trabalho permite recortar a figura com recurso a um critério subjectivo, a um critério geográfico, a um critério temporal e ainda ao dano típico que resulta daquele, para além de se exigir um adequado nexo de causalidade entre o evento acidentário e o dano, nos termos gerais da responsabilidade civil.
Nos termos do citado art.º 8.º da NLAT é acidente de trabalho todo aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza o dano típico, ou seja, a qualificação não exige que o acidente ocorra na execução do contrato de trabalho ou por causa dessa execução, bastando que ocorra por ocasião da mesma, estando pressuposto nessas circunstâncias que o trabalhador se encontra directa ou indirectamente sujeito ao controlo do empregador.
A alegação e prova dos pressupostos que integram o acidente de trabalho compete àquele que reclama a respectiva reparação (sinistrado), já que estão em causa factos constitutivos do direito invocado – cfr. art.º 342.º do C. Civil.
Acresce dizer que o citado artigo 10.º da NLAT visa apenas facilitar o encargo alegatório e probatório a cargo do sinistrado ao estabelecer uma presunção de natureza ilidível entre o acidente e as suas consequências, ficando assim o sinistrado dispensado de demonstrar o nexo causal entre o evento (acidente) e a lesão reconhecida na sequência do evento, contudo não o desonera da prova da verificação do próprio evento causador das lesões – cfr. entre outros Ac.do STJ de 19-11-2008, proc.º 08S2466 (relator Mário Pereira), consultável em www.dgsi.pt.
Em suma, para fazer funcionar a presunção de forma a poder considerar-se que determinada lesão é consequência do acidente, antes de mais importa que se possa concluir que determinado evento é havido como “acidente de trabalho”.
No caso em apreço, podemos afirmar que as lesões sofridas pela sinistrada que lhe vieram a determinar uma IPP de 1%, são consequência direta da queda ao chão por si sofrida no seu local de trabalho, pois está provado que como consequência directa e necessária da queda no chão do quiosque, a autora sofreu, na face, ferida na língua e ferida do mento, fractura da mandíbula, ao nível do 3º quadrante, com dois pequenos traços de fractura oblíquos na vertente esquerda da mandíbula sem desfasamento inter-fragmentário, traços que atingem essencialmente a cortical e região medular inferior; e um outro traço de fractura oblíquo mais anterior, que atinge o alvéolo dentário do dente 3.4 e atravessa o foramentoniano esquerdo – risco de lesão do nervo mentoniano (alínea e) dos pontos de facto provados)
Contudo, o que se importa apurar é saber se aquela queda no chão sofrida pela autora no local e no tempo de trabalho, antecedida de desmaio, é de caracterizar como acidente de trabalho,
Centremo-nos por isso na definição de acidente de trabalho
Como é sabido, o legislador não definiu o que deve entender-se por acidente de trabalho, tendo apenas fornecido alguns critérios tais como o lugar e tempo de trabalho e o nexo de causalidade. Para além destes pressupostos importa que ocorra um evento que possa ser considerado como “acidente”.
Vítor Ribeiro in Acidentes de Trabalho – Reflexões e notas práticas, pág. 219-220, refere que o  acidente de trabalho é «uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos estejam entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem de «resultar» da «relação de trabalho»; como a lesão, perturbação ou doença, terão que «resultar» daquele evento; e, finalmente, a morte ou a incapacidade para o trabalho deverão filiar-se causalmente na lesão, perturbação ou doença. De tal forma que, se esse elo causal se interromper em algum dos momentos do encadeado fáctico acima descrito, não poderemos sequer falar – pelo menos em relação àquela morte ou àquela incapacidade – em «acidente de trabalho»
Contudo para que o evento possa ser caracterizado como acidente importa que o mesmo seja ocasional, súbito e com origem externa. Importa que estejamos perante acontecimento de carácter súbito, na medida em que inesperado na vida do trabalhador, que ocorra no exercício da sua actividade profissional ou por causa dela, acontecimento que seja, directa ou indirectamente, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde do trabalhador, que se traduzam na redução da capacidade de ganho
Neste sentido se tem vindo a pronunciar a jurisprudência designadamente do STJ ao sustentar que a qualificação como “acidente de trabalho” “reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa, que provoca directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador, encontrando-se este no local e no tempo de trabalho, ou nas situações em que é consagrada a extensão do conceito de acidente de trabalho.” – cfr. Ac. do STJ de 13.01.2010, processo 1466/03.2 TTPRT.S1 (relator Sousa Grandão) em www.dgsi.pt. e Ac. RG de 13-07-2021, processo n.º 2585/18.6T8VCT.G1, em www.dgsi.pt.
Quando falamos em evento/acontecimento relevante para a qualificação de acidente de trabalho, falamos de um evento naturalístico, ou uma causa exterior – estranha à constituição orgânica da vítima -, súbito (que actua num espaço de tempo breve) e que produza uma acção lesiva do corpo humano (v. Carlos Alegre, Acidentes de trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., pags. 34 e segs.).
A propósito da causa exterior refere Carlos Alegre, na mesma obra, pág 36 (…) “em torno da causa exterior se levantam inúmeras dúvidas: se a origem da lesão tinha que resultar de uma acção directa sobre o corpo humano ou se bastava uma acção indirecta; se ela tinha que ser clara, visível, evidente ou se podia actuar insidiosamente, se devia ser de percepção imediata; se tinha que actuar de forma violenta, através de choque, de golpe ou de qualquer outro contacto semelhantemente violento ou se podia insinuar-se sem violência. A verdade é que, nem o acontecimento exterior directo e visível, nem a violência são, hoje, critérios indispensáveis à caracterização do acidente. A sua verificação é extremamente variável e relativa, em muitas circunstâncias. Além disso, a causa exterior da lesão tende a confundir-se com a causa do acidente de trabalho, num salto lógico, nem sempre evidente” (…) – Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ªedição, página 36.
Trata-se de uma ocorrência anormal, em geral súbita, pelo menos de curta duração ou limitada que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano. A título meramente exemplificativo, um esforço excessivo que origina uma lesão no corpo é, em si mesmo, uma causa exterior, estranha à constituição orgânica da vítima e súbita, já que actua num espaço de tempo breve.
Constituirá acidente qualquer “facto”, ainda que não violento, um acontecimento súbito exterior ao lesado, lesivo do corpo deste. vd. Martinez, Pedro Romano, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp. 797 ss. e continuando refere ainda o Prof.º que, “um dos pressupostos básicos para a existência de responsabilidade civil é o facto, que em termos de responsabilidade delitual terá que ser um facto humano“. Na responsabilidade sem culpa, o facto humano poderá “ser substituído por uma situação jurídica objetiva que esteve na origem dos danos. Na realidade, como o facto gerador da responsabilidade não se baseia numa atuação culposa e ilícita, basta que se identifique uma situação geradora de dano. Na responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, o facto gerador nem sempre corresponderá a uma conduta humana; sendo a responsabilidade objetiva, o que desencadeia o dano é o acidente de trabalho.
Pode, assim, concluir-se que o facto gerador da responsabilidade objetiva do empregador é o “acidente de trabalho”.
São assim complexas e enumeras as causas dos acidentes de trabalho, tendo-se presente que se trata sempre de um acontecimento não intencionalmente provocado, de caráter anormal, súbito e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma actividade profissional, ou por ocasião do trabalho, de que é vitima um trabalhador.
Resumindo é acidente de trabalho o evento súbito, imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, ou por ocasião do trabalho.
Será que no caso estamos perante um acidente?
Tendo presente os factos provados, deles resulta inequívoco que a sinistrada, quando se encontrava no seu local de trabalho, dentro do seu horário de trabalho a desempenhar as suas funções, perdeu os sentidos, desmaiou, caiu no chão, magoando-se na cabeça, maxilar e queixo, nada mais se tendo provado com relevo para apreciação da questão.
Assim, ficamos sem saber quais as razões pelas quais a sinistrada desmaiou. Será que foi consequência de doença de que padecia? Não sabemos e por isso podemos afirmar desconhecer o que esteve na origem do desmaio e subsequente queda e assim sendo estamos perante um evento súbito inesperado e causador do acidente.
Cabe referir que o desmaio se traduz numa perda súbita de consciência e consequentemente do uso da razão, devida a diminuição do fluxo sanguíneo no cérebro e pode ter diversas causas tais como, o cansaço, o estar em pé muito tempo, o levantar repentinamente ou de forma abrupta, perturbação emocional ou stress, febre alta ou calor, ritmos cardíacos anormais, doença ou alguns medicamentos, ou ainda situação de dor muito intensa.
Por outro lado, prescreve o art.º 14 nº 1, al. c) da LAT determina que “O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação”.

Da citada disposição resulta que ainda que seja a privação do uso da razão que esteja na origem do acidente, este, ainda assim, poderá dar lugar a reparação desde que se verifique uma das seguintes circunstâncias:

1 - que a privação acidental do uso da razão derive da própria prestação do trabalho;
2 - que tal privação seja independente da vontade do sinistrado;
 3- que o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado inadequado à prestação do trabalho da vítima, consinta essa prestação.  (Caros Alegre, obra citada, pág. 63 e 64)

No caso dos autos apenas resulta que a sinistrada desmaiou e caiu, não se fazendo qualquer prova que o desmaio tenha ocorrido por qualquer facto intrínseco ao próprio corpo, nem se provou que o desmaio resultasse de doença de que a sinistrada padecia. A Ré Seguradora não alegou e por isso também não provou que o acidente tivesse resultado de doença de que a autora padecesse ou de qualquer facto intrínseco ao corpo da sinistrada
Apenas se apurou que a perda dos sentidos foi involuntária e esteve na origem da queda inopinada da sinistrada, que lhe causou lesões, não sendo possível afirmar que a lesão resultou de doença que ela padecia, ficando por apurar a que se deveu a queda da sinistrada.
Em suma, a causa do desmaio, não resultou provada e seria decisiva para afastar ou não a sua ligação com o trabalho, sendo certo que a sua prova à Ré incumbia por se tratar de facto impeditivo do direito da autora (cfr. art.º 342.º n.º 2 do C. Civil).
A autora provou o que lhe competia, ou seja, provou que estava a laborar no seu local e no tempo de trabalho a desempenhar as suas tarefas e sofreu lesões e incapacidades, presumindo-se o nexo de causalidade entre o evento e a lesão.
A factualidade provada permite afirmar que estamos perante um evento súbito e inesperado, causador de lesão, tendo este ocorrido no local e no tempo de trabalho, é de considerar como acidente de trabalho.
Como se sumariou no Acórdão da Relação do Porto de 09-10-2017 (processo n.º 326/14.6T8PNF.P1, relatora Fernanda Soares, consultável em www.dgsi.pt), num caso idêntico ao dos presentes autos “Não tendo a seguradora alegado e provado que o desmaio do sinistrado foi a consequência de uma doença de que ele padecia, pode-se afirmar que a perda de sentidos foi involuntária e como tal estamos perante um evento súbito, inesperado causador do acidente, de trabalho.”
E ainda como se sumariou mais recentemente no Acórdão da Relação do Porto de 18-02-2019 (processo n.º 326/14.6T8PNF.P1, relator Jerónimo de Freitas consultável em www.dgsi.pt) a propósito de um desmaio de um sinistrado no local de trabalho “ (…) III - Não tendo a apelante alegado e provado que o desmaio do sinistrado foi a consequência de uma doença de que ele padecia, pode afirmar-se que a perda de sentidos foi involuntária e como tal estamos perante um evento súbito, inesperado, causador do acidente.
Nestes mesmo sentido também decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 12-06-2019 (processo n.º 822/12.0TTALM.L1-4, Relatora Paula Santos, consultável em www.dgsi.pt) no qual se sustenta que “Não tendo a apelante provado que o sinistrado desmaiou, ou que, tendo desmaiado, esse facto foi consequência de doença de que ele padecia, podemos afirmar desconhecer a que se deveu a inopinada queda do sinistrado e como tal estamos perante um evento súbito, inesperado, causador do acidente.
Em síntese, não tendo a Ré Seguradora alegado e provado que o desmaio da sinistrada ocorreu em consequência de doença de que padecia ficamos sem saber qual a causa que esteve na origem da queda inopinada, que por isso, deverá ser considerada como um evento súbito e inesperado causador do acidente.
 O evento traduzido na queda ao chão Autora, quando se encontrava a exercer as suas tarefas no seu local de trabalho é de qualificar como acidente de trabalho e consequentemente é de revogar a sentença recorrida.

3. Da Reparação do Acidente
Importa agora proceder à reparação do sinistro, tendo presente os seguintes itens:
- a retribuição auferida pela sinistrada no montante anual ilíquido de €9.153,34 (salário de €580,00 x 14 meses + subsídio de alimentação de €93,94 X 11 meses) estava totalmente transferida para a Ré Seguradora.
- A autora é portadora de sequelas que lhe determinam uma IPP de 1% (0,0100), pela cicatriz mentoniana (Cap. II.1.2.1. da TNI);
- A Autora esteve na situação de ITA desde 10/10/2018 até 17/12/2018 (69 dias) e ITP de 20% desde 18/02/2018 até 02/05/2019 (136 dias)
- A autora gastou a quantia de €145,00 em exames e consultas médicas e deslocações ao GMLF do ... para realização de perícias médicas e ao tribunal para realização da tentativa de conciliação.
 - A Ré Seguradora nada liquidou à Autora.
Da conjugação da factualidade apurada refletida nos itens acima mencionados conjugados com o prescrito nos artigos 23.º, 25.º, 28.º, 48.º ns,º 1, 2, 3 als. c), d) e e), 50.º , 71.º n.º 1, 75.º n.º 1 e 39.º todos da NLAT são devidas à sinistrada os seguintes direitos:
- pensão anual obrigatoriamente remível de €64,03, devida desde 03/05/2019, a cargo da Ré Seguradora, acrescido dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos desde que a pensão é devida e até integral pagamento;
- indemnização por ITA desde 10/10/2018 a 17/12/2018 (69 dias), no montante de €1.210,95, a cargo da Ré, acrescida dos respectivos juros de mora a contar do vencimento de cada uma das prestações e até integral pagamento;
- indemnização por ITP de 20% desde 18/02/2018 até 02/05/2019 (136 dias), no montante de €477,36, a cargo da Ré, acrescida dos respectivos juros de mora a contar do vencimento de cada uma das prestações e até integral pagamento;
- Reembolso das quantias despendidas em exames, consultas médicas e deslocações ao GMLF do ... para realização de perícias médicas e ao tribunal para realização da tentativa de conciliação, no valor global de €145,50, a cargo da Ré seguradora.
Quanto ao mais improcede o pedido da autora, uma vez que não logrou provar qualquer factualidade que o sustentasse.

V - DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do C.P.T. e 663.º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em dar provimento ao recurso de apelação interposto por AA, e consequentemente se decide condenar a Ré A... S.A.:

 a) a pagar à sinistrada a pensão anual e obrigatoriamente remível de €64,03, devida desde 03/05/2019, acrescida de juros de mora à taxa legal, devidos desde a mencionada data e até integral pagamento;
c) a pagar à sinistrada a título de indemnização por ITA o montante global de €1.210,95, acrescido de juros de mora à taxa legal a contar do vencimento de cada uma das prestações.
d) a pagar à sinistrada a título de indemnização por ITP de 20% desde o montante global de €477,36, acrescido dos respectivos juros de mora a contar do vencimento de cada uma das prestações e até integral pagamento.
e) a pagar à sinistrada a título de despesas realizadas em exames, consultas médicas e deslocações ao GMLF do ... para realização de perícias médicas e ao tribunal para realização da tentativa de conciliação, a quantia global de €145,50, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a citação.
Custas a cargo da Recorrida.
Notifique.
Guimarães, 03 de Março de 2023

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Francisco Sousa Pereira