Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5542/19.1T8BRG-C.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
RÉU FALECIDO EM DATA ANTERIOR À PROPOSITURA DA AÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/27/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- No n.º 2 do artigo 351.º do Código de Processo Civil manteve-se, tal como o Código de 1961 já o havia feito, a solução que foi inicialmente adotada pelo artigo 376.º § único do Código de 1939, que permite a habilitação dos sucessores de um réu que faleceu em data anterior à da propositura da ação.
II- E à luz do disposto nesse n.º 2, a habilitação, tanto tem lugar no caso de a notícia da morte só surgir na pendência da lide, como na hipótese de o autor dela já ter conhecimento quando inicia o processo.
III- Assim, não obstante se trate de uma situação insólita, a circunstância de, no momento em que desencadeia a demanda, o autor já saber que o réu faleceu, não inviabiliza, per se, a efetivação da habilitação dos herdeiros deste.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I
Na presente ação declarativa, que corre termos no Juízo Central Cível de Braga, instaurada por J. C. e sua mulher M. A. contra J. J., E. S., M. B. e J. D., foi deduzido o incidente de habitação dos sucessores do réu J. J., no qual se alegou que este faleceu a .. de Outubro de 2019 e que deixou como únicas herdeiras as suas filhas M. B.(1) e A. G..
As requeridas M. B. e A. G. contestaram defendendo, nomeadamente, que "o presente incidente de Habilitação de Herdeiros [deve] ser julgado totalmente improcedente e em consequência não serem as Requeridas habilitadas a prosseguir a ação até final".
Para tal alegaram, em síntese, que "os Autores, aqui Requerentes, têm conhecimento direto e pessoal da ocorrência do óbito do Réu J. J. no dia 27 outubro de 2019. Não obstante tal facto, no dia 29 de outubro de 2019 (…) os Autores, aqui Requerentes, instauraram os presentes autos, indicando o Senhor J. J. como 1.º Réu, bem sabendo que o mesmo já havia falecido e como tal não possuía nem personalidade nem capacidade judiciária".
Os autores responderam sustentando, em suma, que sendo "demandado pessoa falecida, isto é, desprovida de personalidade jurídica e, portanto, também de personalidade judiciária, a única reação legal a descoberta de tal facto será o da suspensão da instância para que se promova o incidente de habilitação."

Foi proferida sentença em que se decidiu:

"Pelo exposto, e nos termos do preceituado nos arts. 351, n.º 1, e 353.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, declaram-se habilitadas M. B., e A. G. para prosseguirem nestes autos, como sucessoras do corréu J. J.."

Inconformada com esta decisão, a requerida M. B. dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida em separado e efeito devolutivo, findando a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

I. O Tribunal a quo decidiu, por sentença proferida em 10 de novembro de 2020, julgar improcedente a exceção arguida pela Recorrente no que concerne á inadmissibilidade legal da dedução do presente incidente de habilitação de herdeiros pelos Recorridos dado, o conhecimento prévio por aqueles, do óbito do Corréu J. J..
II. Por forma a fundamentar e a justificar o sentido da sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou ser irrelevante para a admissibilidade do presente incidente o facto dos Recorridos saberem, previamente á instauração dos autos principais, do óbito de um dos Réus, óbito esse ocorrido em data anterior, e mesmo assim terem decidido instaurar a ação contra aquele, bem sabendo que o mesmo já não poderia ser parte processual.
III. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo, na douta sentença recorrida, fez uma incorreta aplicação e interpretação do direito e da lei, motivo pelo qual apresenta o presente recurso, para que Vossas Excelências do alto da vossa sapiência, reponham a justiça!!
IV. No caso concreto, os Recorridos, em 29 de outubro de 2019, decidiram instaurar os autos principais - Ação Pauliana, contra, entre outros, o Corréu J. J., quando bem sabiam que o mesmo já havia falecido em 27.10.2019, decidindo, assim, por sua por única e exclusiva vontade e responsabilidade instaurar os presentes autos contra alguém que já não possuía nem capacidade nem personalidade judiciária e como tal era insuscetível de ser parte processual
V. Segundo a teoria perfilhada pelo Tribunal a quo, o facto dos Recorridos terem decidido nesse sentido é manifestamente irrelevante para a admissibilidade legal do incidente de habilitação de Herdeiros, podendo sempre, os mesmos, "lançar mão" do referido incidente, independentemente do óbito da parte não ter ocorrido na pendência da ação e bem assim dos mesmos terem conhecimento desse facto previamente á instauração dos autos principais.
VI. Ao admitir-se como admissível o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, tal significará, que não existirão situações de ilegitimidade quando as ações foram instauradas por e/ou contra partes eventualmente falecidas, mesmo que esse óbito tenha ocorrido anteriormente e seja conhecido da parte contrária, uma vez que se poderá sempre "recorrer" ao incidente da habilitação de herdeiros para "colmatar e corrigir" essa mesma ilegitimidade.
VII. Essa não é, de todo, a finalidade do incidente de habilitação de herdeiros, nem tal interpretação resulta da lei, mormente, do disposto no artigo 351.º, n.ºs 1 e 2 do CPC., sendo claro que das disposições supra citadas resulta que o incidente de habilitação apenas pode ser instaurado ou quando o óbito da parte falecida ocorra na pendência da ação ou quando, embora o falecimento seja anterior á propositura da ação do mesmo só se tenha conhecimento aquando das diligências de citação do Réu. A contrario, não se verificando nenhuma destas duas situações, o incidente de habilitação legal em causa não pode ser admitido.
VIII. No caso concreto, os próprios Recorridos, aceitaram, reconheceram e confessaram que, aquando da instauração dos presentes autos, os mesmos já tinham conhecimento do óbito do Corréu J. J..
IX. Os Recorridos, não obstante notificados para exerceram o direito ao contraditório quanto aos factos invocados pela Recorrente na contestação ao presente incidente, limitaram-se a referir que era indiferente para a admissibilidade do mesmo o facto dos Recorridos saberem do óbito antes da instauração dos autos, não impugnando por falsidade os factos alegados pela Recorrente em sede do articulado por aquela apresentado no que concerne ao conhecimento prévio por aqueles ( pelo menos desde o dia 27.10.2019) do óbito deste Corréu J. J., aceitando-os e confessando-os.
X. A confissão dos Recorridos quanto ao conhecimento prévio do óbito, nos termos em que foi efetuada, espelhada no próprio articulado daqueles (não impugnando expressamente os factos alegados pela Recorrente) possui força probatória plena contra o confitente. Vide artigos 352.º, 353.º, 355.º, 356.º n.º 1 e 358.º, n.º 1 do Código Civil.
XI. In casu, nem o óbito do Corréu J. J. ocorreu na pendência da ação principal nem os Recorridos dele tiveram conhecimento por via das diligências de citação dos Réus, tendo os mesmos confessado que já o sabiam pelo menos desde o dia do falecimento daquele (27.10.2019). Vide artigo 351.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
XII. Os Recorridos, quando apresentam os presentes autos no dia 29 de outubro de 2019 contra o Réu J. J., bem sabendo que o mesmo já havia falecido, sabiam e não podiam ignorar que estavam a instaurar os presentes autos contra uma pessoa que não podia ser parte nos autos (dado que já não possuía personalidade nem capacidade judiciária) e como tal seria parte ilegítima, ilegitimidade essa que desde já se invoca para os devidos e legais efeitos de artigo 11.º do CPC.
XIII. Os Recorridos, confessadamente, tinham conhecimento pessoal e direto do óbito do Corréu J. J., em data, muito anterior á propositura dos presentes autos, pelo que, ao terem optado por ter apresentado os presentes autos nos termos em que o fizeram, contra aquele concreto Réu, bem sabendo que o mesmo não era suscetível de figurar como parte processual dado o seu falecimento, ficaram impedidos de, tal como é a sua pretensão agora, deduzir o incidente de habilitação de herdeiros, previsto e plasmado no artigo 351.º do C.P.C., por manifesta e evidente inobservância dos requisitos legais para o efeito.
XIV. O objetivo do incidente em causa é o de assegurar a legitimidade da parte falecida mas só quando o seu óbito ocorra na pendência da ação ou apenas seja conhecido com as diligencias de citação, não podendo servir, de todo, tal como parece ser o entendimento do Tribunal a quo, para "sanar" uma ilegitimidade processual porque a parte que instaurou a ação ( não obstante saber do óbito e dos herdeiros da parte) decidiu, por sua exclusiva vontade, instaurar aquela contra alguém que bem sabia que já não podia ser parte processual, por não ter capacidade nem personalidade judiciária.
XV. No caso concreto, verificando-se como se verifica que o Corréu J. J., devido ao seu prévio e conhecido falecimento antes da instauração dos autos, deveria o Tribunal a quo ter, de imediato concluído que o mesmo, por tal facto "era destituído de personalidade judiciária," e/ou como tal não podia figurar como parte processual, sendo que quando o juiz constate que alguma das partes é ilegítima ou é destituída de personalidade judiciária tem que decidir a absolvição da instância do Réu. Vide artigo 278.º, n.º 1, alíneas a) e d) do C.P.C.
XVI. Atenta a inadmissibilidade da dedução do incidente de habilitação de herdeiros pelo Recorrido, esta era a decisão que se impunha que o Tribunal a quo tivesse tomado na sentença recorrida: a absolvição da instancia do corréu J. J., com a consequente necessidade dos Recorridos, se assim o entendessem de, instaurar nova ação contra as partes legitimas nos presentes autos, tudo nos termos do artigo 279.º do C.P.C..
XVII. Ao admitir-se o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo, e bem assim, admitir-se a dedução do incidente de habilitação de herdeiros pela parte que já sabia do óbito da parte falecida antes da instauração da ação estaria a permitir-se que tal incidente fosse utilizado para que aqueles pudessem sanar a situação de ilegitimidade processual, o que nos parece ser inadmissível.
XVIII. No caso concreto, porque o óbito do Corréu J. J. não correu na pendência dos presentes autos, mas em data anterior (27.10.2019) e porque os Recorridos, confessadamente, sabiam da ocorrência do óbito em data muito anterior á data em que decidiram instaurar os presentes autos (não resultando esse conhecimento de qualquer diligencia levada a cabo para a citação desse mesmo Corréu), não se encontram verificados os pressupostos legais para que os Recorridos pudessem, em 28.04.2020, deduzir o presente incidente de habilitação de herdeiros, pelo que o Tribunal a quo deveria ter liminarmente rejeitado o presente incidente e consequentemente julgar procedente a exceção invocada pela Recorrente. Vide artigo 351.º do C.P.C.
XIX. Os Recorridos instauraram os autos principais (ação pauliana) formulando os seguintes pedidos: " a) Declarar-se impugnada a escritura de doação outorgada no dia 29 de Outubro de 2014, no Cartório Notarial de M. G., em Braga referida no artigo 52 da Petição Inicial; b) Seja decretada a ineficácia em relação aos Autores do ato de doação referido no artigo 52.º da Petição Inicial, c) Reconhecer aos Autores o direito de praticar os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei, tendentes à satisfação dos seus crédito, nos termos do artigo 8.º do Código do Registo Predial, se ordene o cancelamento do registo de doação sobre o referido imóvel a favor da 3.ª Ré, d) Devem os Réus serem condenados no pagamento das custas e demais encargos processuais."
XX. Perante a situação supra descrita, não tendo os Recorridos instaurado os presentes autos contra quem deveria figurar efetivamente como parte processual, por opção própria dado o conhecimento antecipado do respetivo óbito, não pode de todo, a presente ação ser considerada instaurada contra os eventuais herdeiros e sucessores do falecido, na data de 29 de Outubro de 2019, motivo pelo qual os mesmos teriam que instaurar nova ação contra os eventuais sucessores deste Corréu, a qual seria, obrigatoriamente, interposta após o decurso do prazo legal plasmado no artigo 618.º do C.C. dado que pretendem impugnar um negócio celebrado em 29 de Outubro de 2014, motivo pelo qual, sempre e pelo menos quanto a esta concreta parte processual, estaria verificada a exceção de caducidade do direito de impugnação, o que expressamente se invoca.
XXI. Caso assim não se entenda, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca, sempre se teria que, in casu, atender que a dedução do incidente de habilitação de herdeiros é admissível uma vez verificada uma das seguintes situações: a) ocorrência do óbito na pendência dos autos ou tendo o óbito da parte processual ocorrido antes da instauração da ação, o seu conhecimento para as partes resulte apenas das diligências levadas a cabo para a citação dos Réus.
XXII. No caso concreto, não existem dúvidas de que o óbito do corréu J. J. antes da propositura da ação, uma vez que o mesmo ocorreu em 27.10.2019 e a ação foi instaurada em 29 de outubro de 2019, assim como na opinião da Recorrente dúvidas também não subsistem de que tal facto era do conhecimento dos Recorridos, pelo menos, o dia 27.10.2019, facto que os próprios Recorridos confessaram nos autos.
XXIII. Na eventualidade de se admitir que, não obstante a confissão dos Recorridos, não existe prova bastante para se considerar provado, desde já, o conhecimento prévio por parte dos Recorridos de tal óbito antes de realizadas as diligencias de citação deste concreto Réu, o que não se admite, sempre o Tribunal a quo, ao invés de ter considerado que no caso concreto estaríamos perante uma questão meramente de direito ( que não estamos) teria que ter ordenado a realização e produção da prova requerida pela Recorrente para prova de tal facto.
XXIV. Se, no caso concreto, o óbito ocorreu em data anterior à instauração dos autos e não na sua pendência, o Tribunal a quo, teria que verificar, obrigatoriamente, para apurar e decidir sobre a admissibilidade deste incidente, quando é que os Recorridos tiveram conhecimento de tal óbito, nomeadamente se em data anterior á instauração ou se através das diligencias de citação, tal como plasmado e exigido no artigo 351.º n.º 2 do C.P.C.
XXV. Uma vez que no caso concreto a admissibilidade da dedução do presente incidente só ocorreria se resultasse provado que os Recorridos apenas tiveram conhecimento do óbito do Corréu por via das diligencias para citação daquele ( o que não sucedeu) e que esse concreto facto era suscetível de ser provado ou impugnado por via da produção da prova requerida pela Recorrente, o Tribunal a quo, se alguma duvida tivesse quanto a essa concreta questão de facto, o que não se admite, teria que ter permitido á Recorrente realizar as diligências probatórias por si requeridas, sendo que, apenas após a realização de tais diligências é que o Tribunal a quo se poderia pronunciar sobre a admissão ou rejeição da dedução do presente incidente pelos Recorridos.
XXVI. A sentença recorrida deverá, atento o supra exposto, ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a exceção de inadmissibilidade da dedução do incidente de habilitação de herdeiros por inobservância dos requisitos legais plasmados no artigo 351.º do C.P.C.. e em consequência não julgar habilitada a aqui Recorrente e a sua irmã, tendo os Recorridos que, pretendendo, instaurar nova ação contra esta, na qualidade de herdeira do falecido Co-Réu, a qual seria, obrigatoriamente, interposta após o decurso do prazo legal plasmado no artigo 618.º do C.C., motivo pelo qual, pelo menos quanto a esta concreta parte processual, sempre estará verificada a exceção de caducidade do direito de impugnação, o que expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.
XXVII. Caso assim não se entenda, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca, sempre a presente sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que permita à Recorrente realizar as diligências probatórias por si requeridas, sendo que, apenas após a realização de tais diligências é que o Tribunal a quo se deverá pronunciar sobre a admissão ou rejeição da dedução do presente incidente de habilitação de herdeiros pelos Recorridos.
XXVIII. A douta sentença recorrida violou, além do mais, os artigos 11.º, 12.º, 15.º, 30.º, 269.º, 270.º, 276.º, n.º 1 alínea a), 278.º, alíneas c) e d), 279.º, 354.º, n.º 1 do C.P.C. e 352.º, 353.º, 355.º, 356.º, n.º 1, 358.º, n.º 1 618.º do C.C.
Os exequentes contra-alegaram sustentado que "deve o presente recurso de apelação ser julgado totalmente improcedente e manter-se inalterada a douta sentença proferida".

As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil (2), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) a habilitação não é admissível por os autores terem apresentado "os presentes autos no dia 29 de outubro de 2019 contra o Réu J. J., bem sabendo que o mesmo já havia falecido" (3);
b) "sempre a presente sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que permita à Recorrente realizar as diligências probatórias por si requeridas, sendo que, apenas após a realização de tais diligências é que o Tribunal a quo se deverá pronunciar sobre a admissão ou rejeição da dedução do presente incidente de habilitação de herdeiros pelos Recorridos" (4).

II
1.º
Na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1- No dia ..-10-2019, faleceu J. J. no estado de divorciado.
2- M. B. e A. G., são filhas de J. J..
2.º
Para além destes factos, convém ter ainda em consideração que esta ação declarativa foi instaurada a 29 de outubro de 2019, ou seja, dois dias depois do falecimento de J. J..
Segundo a requerida M. B. "não existem dúvidas de que o óbito do corréu J. J. antes da propositura da ação, (…) [e] dúvidas também não subsistem de que tal facto era do conhecimento dos Recorridos, pelo menos, [desde] o dia 27.10.2019" (5). E na sua perspetiva, "do disposto no artigo 351.º, n.ºs 1 e 2 do CPC (…) resulta que o incidente de habilitação apenas pode ser instaurado ou quando o óbito da parte falecida ocorra na pendência da ação ou quando, embora o falecimento seja anterior à propositura da ação do mesmo só se tenha conhecimento aquando das diligências de citação do Réu. A contrario, não se verificando nenhuma destas duas situações, o incidente de habilitação legal em causa não pode ser admitido." (6)
Os autores contrapõem afirmando que "o incidente [de habilitação] pode ser provocado não pela morte na pendência da causa, mas pela morte anterior à proposição da ação, como é o presente caso" e que "nem aceitaram nem confessaram os factos mencionados pela Requerida/recorrente mas apenas se pronunciaram no sentido de que é irrelevante a data de conhecimento do óbito para admissibilidade do incidente de habilitação de herdeiros".
Vejamos.
A habilitação incidental por morte de uma das partes "destina-se a colocar o sucessor ou sucessores do falecido no lugar que este ocupava no processo" (7), o que, como resulta do n.º 1 do artigo 351.º, em princípio ocorrerá "quando, na pendência de uma ação, falecer uma das partes" (8).
Contudo, o n.º 2 deste artigo dispõe que "se, em consequência das diligências para citação do réu, resultar certificado o falecimento deste, pode requerer-se a habilitação dos seus sucessores (…) ainda que o óbito seja anterior à proposição da ação."
Fica, assim, claro que, não obstante a regra que emerge do n.º 1, também é possível proceder-se à habilitação de uma parte que, afinal, tinha falecido antes de se ter iniciado a demanda. E para que isso suceda o preceito apenas exige que, "em consequência das diligências para citação do réu, resultar certificado o falecimento deste". O legislador não nos diz que para esse efeito é relevante apurar igualmente se o autor tinha conhecimento de tal morte quando desencadeou o processo; dito de outra forma, nada se encontra na letra do n.º 2 do artigo 351.º que impeça suscitar o incidente de habilitação dos sucessores do réu quando o autor instaurou a ação com plena consciência de que nesse momento aquele já tinha falecido.
Neste n.º 2 manteve-se, tal como o Código de 1961 já o havia feito (9), a solução que foi introduzida no nosso ordenamento jurídico pelo artigo 376.º § único do Código de 1939, que, como se viu, permite expressamente a habilitação dos sucessores de um réu que faleceu em data anterior à da propositura da ação.
Ora, relativamente a esse § único dizia Alberto dos Reis que "é absolutamente indiferente que o autor, ao apresentar em juízo a petição inicial, ignorasse o falecimento do réu ou tivesse conhecimento do facto. Por outras palavras, o autor, para ser admitido a deduzir o incidente, não tem de alegar e provar que desconhecia o facto da morte do réu e só foi informado dele pela certidão do oficial de diligências. É natural que o autor, quando tenha conhecimento da morte do seu antagonista, dirija a ação, não contra ele, mas contra os seus sucessores, habilitando-os na petição inicial; é mesmo esse o seu interesse, porque foge às demoras e complicações do incidente de habilitação. Mas se tiver o capricho ou cometer a irreverência de demandar o falecido, nem por isso incorre em qualquer responsabilidade ou sanção; os habilitandos não podem opor-se ao incidente com o fundamento de que o autor, ao intentar a ação, já sabia que o réu estava morto." (10)

Como se depreende das palavras de Alberto dos Reis (11), a consagração de forma expressa no § único do artigo 376.º do Código de 1939 da possibilidade de se realizar a habilitação dos sucessores de um réu falecido antes do início da lide surge como resposta ao Assento de 21 de julho de 1931, uma vez que neste se tinha adotado a doutrina de que, no âmbito do artigo 342.º do Código de 1876, só era admissível a habilitação por morte de quem já fosse "litigante" (12) de facto; isto é, à luz desse assento tal possibilidade não se estendia aos casos em que a morte do réu ocorrera anteriormente à propositura da ação.
Desde o Código de 1939 que, bem ou mal, o legislador, "essencialmente dominado por um justo critério de economia processual" (13), não alterou a sua posição quanto a esta matéria. "No rigor dos princípios, a verificação do óbito do réu antes de ser proposta a ação, na medida em que é causa de extinção da sua personalidade jurídica e da personalidade judiciária, justificaria que fosse julgada finda a instância por falta deste pressuposto processual. O legislador, porém, seguiu outra via mais pragmática" (14).
Evidentemente que quando o autor demanda um réu que sabe que já morreu ficamos perante uma situação insólita, "anómala" (15) ou até que "não está bem" (16), que poderá justificar uma cuidada análise no plano da litigância de má-fé, mas que, no entanto, per se, não inviabiliza a efetivação da habilitação dos seus herdeiros.
Aqui chegados, acompanhamos a Meritíssima Juiz a quo quando, neste contexto, concluiu que "o conhecimento da data em que os autores tiveram conhecimento do óbito do corréu, J. J., (…) é inócua", na medida em que daí nunca resultará qualquer obstáculo para a tramitação e procedência da habilitação de herdeiros.
3.º
Sendo assim, no presente incidente é de todo inútil produzir a prova oferecida na contestação da requerida M. B., visto que aquela tinha por única finalidade demonstrar que, à data da introdução do feito em juízo, os autores tinham conhecimento da morte de J. J.. Na sequência do que acima se disse, a prova dessa realidade não origina "a inadmissibilidade da dedução do incidente de habilitação de herdeiros" (17).
Aliás, nesta parte há alguma contradição entre a pretensão da requerida M. B. (18) e a sua repetida afirmação de que o facto em causa foi confessado pelos autores (19).

III
Com fundamento no atrás exposto julga-se improcedente o recurso, pelo que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela requerida M. B..
27 de maio de 2021

António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes


1. Esta sua filha já era ré nos autos, pois é a pessoa a quem foi feita a doação do imóvel que é objeto da impugnação pauliana.
2. São deste código todos os artigos adiante mencionados sem qualquer outra referência.
3. Cfr. conclusão XII.
4. Cfr. XXVII.
5. Cfr. conclusão XXII.
6. Cfr. conclusão VII.
7. Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, 1964, Vol. II, pág. 623.
8. Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5.ª Edição, Vol. I, 709.
9. Cfr. artigo 371.º.
10. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 1948, pág. 577 e 578. Dentro desta linha de raciocínio veja-se, para além da doutrina e jurisprudência citadas pelos autores nas suas contra-alegações, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 426, Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 3.ª Edição, pág. 228 e Eurico Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 296.
11. Obra citada.
12. Ou "parte" como lhe chama hoje o n.º 1 do artigo 351.º.
13. Eurico Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 296. No mesmo sentido veja-se Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 1948, pág. 577.
14. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 426.
15. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 3.ª Edição, pág. 228.
16. Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. II, 3.ª Edição, pág. 143.
17. Cfr. conclusão XVI.
18. Cfr. conclusão XXVII.
19. Cfr. conclusões VII, IX, X, XI, XIII, XVIII e XXII.