Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
19210/18.8T8PRT.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I- A competência internacional do Tribunal para o litígio afere-se atendendo ao pedido e à causa de pedir expostos no requerimento inicial.

II- Entre os dois regimes gerais de atribuição de competência internacional –o interno e o comunitário- se a ação cair no âmbito do segundo regime, este prevalece sobre o regime geral interno, face à ressalva do artº. 59º do C.P.C..

III- O Regulamento nº. 1215/2012 de 12/12 prevê uma regra geral de competência no artº. 4º, nº. 1 segundo a qual as pessoas domiciliadas num Estado- Membro devem ser demandadas no Tribunal desse Estado; prevê competências especiais, designadamente no que se refere ao contrato de compra e venda, sendo nesse caso competente o Tribunal do local onde foi ou deva ser cumprida a obrigação, correspondendo ao lugar, num Estado – Membro, onde nos termos do contrato os bens foram ou devam ser entregues, relevando o seu destino final, como decorre dos artºs. 5º, nº. 1, e 7º, nº. 1 a), e b). Prevê ainda normas de competência exclusiva, o pacto explícito de jurisdição, e extensões de competência, cabendo nestas a prevista no artº. 26º e que resulta da aceitação tácita de jurisdição.

IV- O momento da entrega dos bens verifica-se quando o comprador tem o poder material sobre os mesmos, podendo deles dispor como entender, sendo o local em que tal se dá o relevante para a aplicação da norma especial enunciada.

V- Este “pacto implícito de jurisdição” colide com a possibilidade (ou impede) de apreciação oficiosa da exceção de incompetência internacional que resultaria da aplicação das normas especiais.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

“(…) LDA.” com sede (…) Vila Nova de Famalicão instaurou providência de injunção europeia para exigir o pagamento da quantia de € 20.463,15 contra “.”, com sede em (…) Espanha.
Após dedução de oposição pela requerida, seguiram os autos sob a forma de processo comum, tendo, além do mais, a requerida sido convidada a aperfeiçoar a sua contestação, o que esta fez nos termos do articulado de fls. 55 e ss.
Havia a Autora alegado que, no âmbito da sua atividade, procedeu ao fornecimento de vários materiais do seu comércio à Ré, mediante encomenda desta, as quais foram entregues à Ré, nas instalações da Autora, sendo o transporte das mesmas a cargo da Ré e por sua conta e risco.
Concedida às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses com fundamento na aplicação do Regulamento n.º 1215/2012 do parlamento Europeu e do Conselho de 12.12.2012, apenas a Autora se pronunciou, pugnando pela sua improcedência, para o que alegou que os materiais foram entregues nas suas instalações e o transporte seria assegurado pela Ré.
De seguida foi proferida decisão que apreciou a incompetência internacional dos tribunais portugueses, julgando-a verificada e em consequência absolveu a R. da instância. Mais determinou que as custas seriam a cargo da requerente.

Inconformada, veio a Autora interpor recurso apresentando alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES-

1. A decisão recorrida entendeu que o tribunal da comarca de Braga é internacionalmente incompetente para conhecer do pedido formulado pela Autora, e assim absolveu a Ré da instância, por ter sido entendido pelo tribunal recorrido (apesar dos documentos já juntos aos autos e da própria alegação da recorrida constante da sua contestação) que o “lugar da entrega dos bens” vendidos pela Autora à Ré não era nas instalações da Autora (como esta defendeu e documentou), entendendo, assim, aplicar o artigo 5º. nº. 1 alínea b) do Regulamento CE 1215/2012, considerando que “o lugar da entrega relevante” é o da “entrega efetiva, ou seja, o destino final dos bens, e não o local onde estes sejam colocados à disposição pelo fornecedor para posterior transporte”, com o que se não concorda, como se explicará.
2. A própria Ré, que embora sendo sediada em Espanha, foi demandada em Portugal, nem sequer invocou a exceção de incompetência que o tribunal recorrido entendeu existir, o que demonstra bem que reconhece que, de facto, são os tribunais portugueses os internacionalmente competentes para conhecer do objeto da presente ação.
3. O que está em causa nos presentes autos é, em linhas gerais, uma ação que foi proposta pela Autora (sociedade portuguesa) contra a Ré (sociedade sediada em Espanha) derivada do incumprimento da obrigação de pagamento por parte da Ré, do preço das mercadorias fornecidas pela Autora à Ré, e conforme resulta desde logo do requerimento inicial de injunção europeia, foram juntos pela Autora 4 documentos comprovativos de que a expedição da mercadoria foi feita pela própria Ré, e não pela Autora, ou seja, o local de entrega da mercadoria pela Autora à Ré foi em Portugal, sendo o transporte das mercadorias para o seu destino final a cargo da Ré, e por sua conta e risco;
4. Sem prejuízo da regra geral ínsita no artigo 4º. nº. 1 do Regulamento estabelecer que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado, a verdade é que o artigo 5º. nº. 1 do mesmo Regulamento estabelece que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas nos tribunais de outro Estado-Membro nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do mesmo capítulo, e nos termos do artigo 7º. nº. 1 alíneas a) e b) do Regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado--Membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, e entende-se como lugar de cumprimento da obrigação em questão, no caso da venda de bens (como é aqui o caso), o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues;
5. No caso em apreço, as mercadorias em causa foram vendidas pela Autora à Ré e, embora a Ré tenha sede em Espanha, foram entregues em Portugal (à saída de fábrica), sendo o respetivo transporte das mercadorias efetuado pela Ré e a seu cargo, conforme referido no requerimento inicial, e daí que não possa deixar de reconhecer-se que as mercadorias foram entregues em Portugal, não se verificando a incompetência internacional referida;
6. Importa referir que quando a Autora e a Ré foram notificadas para se pronunciarem relativamente a esta questão, por despacho de 29/04/2019, a Ré nem sequer se pronunciou, e apesar de a Autora ter apresentado o seu requerimento de 14/05/2019, donde consta claramente esta mesma argumentação (ou seja, que as mercadorias foram entregues à Ré em Portugal e que o transporte das mesmas para o seu destino já foi feito pela Ré), a Ré não impugnou esta mesma questão, como poderia, se a mesma não correspondesse à verdade;
7. Muito embora as falsidades vertidas na contestação da Ré, a mesma não deixa de, pelo menos, reconhecer (vide artigo 59º. da contestação) que a mercadoria era entregue pela Autora à Ré em Portugal e que o seu transporte já era feito pela Ré, ao alegar (e sublinhar) que “tal mercadoria foi entretanto, como acordado, recolhida nas instalações da A. e, por conta da R., foi transportada para a sua Distribuidora em …, Marrocos”, mas mesmo com este reconhecimento por parte da Ré, muito embora o tribunal recorrido tenha reconhecido que, no caso presente, seria aplicável o artigo 7º. nº. 1 alíneas a) e b), primeira parte, vem depois a fazer um raciocínio completamente errado que levou a que tivesse considerado que a jurisdição competente para decidir a ação seria a espanhola;
8. O tribunal recorrido não atentou no facto de que o “destino final dos bens” nunca seria Espanha, mas sim …, em Marrocos (como a própria Ré reconheceu na sua contestação), o que desde logo levaria a que nunca se pudesse considerar que o destino final dos bens era em Espanha e por isso ser a jurisdição espanhola a competente para a presente ação, com base naquele artigo 7º. nº. 1 alíneas a) e b), primeira parte;
9. O que resulta dos autos – e a própria Ré reconheceu na sua contestação – é que o contrato e acordo que existiu entre as partes impunha como local de entrega relevante, Portugal, ou seja, as instalações da Autora, e a partir daí era a Ré que dava às mercadorias fornecidas o destino e transporte que bem entendesse, sendo por isso o mesmo feito “por conta da R.”, como a própria Ré reconheceu;
10. A argumentação transcrita pelo tribunal recorrido na decisão proferida, para defender a decisão recorrida, aqui não colhe, pois que se é verdade que, normalmente, os fornecimentos feitos por uma empresa de um Estado diferente da empresa cliente implica transporte, há, pelo menos, sempre duas formas de o preço dos produtos fornecidos ser determinado, quais sejam, com o transporte para o destino incluído, ou com o transporte para o destino a cargo do destinatário, sendo que tal situação leva também a posições diferentes, nomeadamente no que toca ao risco do transporte;
11. A compra e venda tem como efeitos essenciais (que digam respeito ao fornecedor), a transmissão da propriedade da coisa e a obrigação de entregar a coisa, e nada mais, existindo por parte do comprador a obrigação de pagar o preço, pelo que, se aquilo que é convencionado com o cliente é que o transporte será feito por conta do fornecedor (e, por isso, será incluído no preço), não pode deixar de se reconhecer que o contrato apenas está cumprido quando a entrega for feita no local de destino da mercadoria e, nesse caso, o lugar do cumprimento será o local da entrega da mercadoria no país de destino; mas se o convencionado é no sentido de que o transporte corre por conta e risco do cliente, nesse caso não se pode deixar de reconhecer que o cumprimento do contrato por parte do fornecedor ficou concluído aquando da entrega da mercadoria no local onde o cliente (ou um transportador por si contratado) a recolheu;
12. Por isso, para se determinar qual o lugar da entrega relevante para efeitos da aplicação do citado Regulamento, há que determinar por conta de quem o transporte das mercadorias é efetuado, e se chegarmos à conclusão que o mesmo é feito por conta do fornecedor, então, de facto, o tribunal competente será o do destino final das mercadorias, mas se, ao contrário, se chegar à conclusão que o transporte é feito pelo destinatário (e por sua conta, como sucede no caso presente), então não podemos deixar de reconhecer que o lugar da entrega relevante é nas instalações do fornecedor.
13. No caso presente, é a própria Ré que reconhece que o acordado e contratado com a Autora era que as mercadorias eram “recolhidas nas instalações da Autora” e “por conta da R., foi transportada para a sua Distribuidora em …, Marrocos”, o que outra coisa não pode significar que o lugar do cumprimento da obrigação (tal como é definida pelo citado Regulamento, ou seja, o lugar onde os bens foram entregues) é em Portugal.
14. Nos termos do artigo 26º. do Regulamento, “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º”, prevendo-se aqui a chamada competência convencional tácita;
15. Estão aqui abrangidas as situações em que, apesar de uma ação ter sido instaurada no tribunal de um Estado-Membro para a qual, em princípio, o mesmo não era competente, a comparência do demandado torna-o competente, a não ser que a comparência tenha como único objetivo invocar a incompetência, sem que tal signifique que o demandado não possa, para além de invocar a incompetência internacional, apresentar também a sua defesa quanto ao mérito da causa, sendo que como se pode ler no sumário do Acórdão da Relação de Guimarães de 09/06/2016 (também disponível em www.dgsi.pt) “a comparência do réu não fundamenta a competência do tribunal se o mesmo, além de contestar a competência, apresentar a sua defesa quanto ao mérito da causa. Ponto é que essa contestação da competência seja prévia a toda a defesa de mérito ou, quando menos, tenha lugar o mais tardar até ao momento da tomada de posição considerada pelo direito processual do foro como o primeiro acto de defesa formulado no processo”.
16. No caso dos autos a Ré veio apresentar a sua defesa quanto ao mérito da ação, e não colocou minimamente em causa a competência do tribunal recorrido, nem na sua contestação, nem quando foi chamada a pronunciar-se pelo tribunal quanto a esta questão, e daí que, pegando na funda-mentação do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-06-2018, disponível em www.dgsi.pt., a contrario, também por aqui, o tribunal recorrido seja o competente para a presente ação.
17. Assim, o tribunal recorrido é o internacionalmente competente para julgar a presente ação, tendo a decisão recorrida violado, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 879º. do Código Civil, e 5º. nº. 1 e 7º. nº. 1 alínea a) e b) primeira parte e 26º. do Regulamento nº. 1215/2012, devendo ser revogada e substituída por outra que considere competente internacionalmente para conhecer da presente ação o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Instância Local Cível de Vila Nova de Famalicão.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:
-os tribunais portugueses são competentes, em razão da nacionalidade, para a tramitação e decisão dos presentes autos.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

1) “… Embalagens Fexíveis Unipessoal, Lda.” com sede na Rua ..., Zona Industrial ..., Pavilhão …, ..., Vila Nova de Famalicão, Portugal, propôs contra “Producciones …”, com domicílio social em …, Espanha, requerimento de injunção de pagamento europeia, invocando a celebração de um contrato de compra e venda e o não pagamento ou pagamento insuficiente do respetivo preço, relativo ao período de 14/08/2017 a 14/12/2017, e no montante de € 18.402,47, acrescido de juros pelas taxas e períodos especificados, bem como de despesas com honorários de mandatário e taxa de justiça, tudo perfazendo o valor global de € 20.463,15.
2) Mais fundamenta a competência do tribunal com o local de execução da obrigação em questão, assinalando o carater transfronteiriço do caso entre Portugal e Espanha.
3) Refere no requerimento que se dedica à indústria de plásticos e que no exercício da sua atividade forneceu à requerida materiais do seu comércio, a pedido e sob encomenda desta. As mercadorias foram entregues à requerida nas instalações da requerente, sendo o transporte das mesmas a cargo da requerida e por conta e risco da requerida, sendo que esta não apresentou qualquer reclamação, quer das mercadorias, quer das respetivas faturas oportunamente enviadas, e que especifica, por número, data de emissão, data de vencimento e valor. Refere o valor em dívida que devia ser pago em Portugal, a que acrescem os demais valores “supra” referidos, concluindo pelo valor peticionado. Juntou documentos conforme fls. 11 a 22.
4) Notificada a Ré, veio esta apresentar oposição, tendo sido determinado que a ação seguiria de acordo com as normas do processo civil comum, e determinada a remessa ao tribunal competente face ao valor da ação, tendo sido distribuídos ao juiz 2 do Juízo Local Cível de Vila Nova de Famalicão.
5) A contestação da Ré, devidamente aperfeiçoada, consta a fls. 55 a 74 (com junção de documentos a fls. 75 verso a 91), e consiste em suma no enquadramento da relação comercial entre Autora e Ré, na alegação da entrega de mercadoria defeituosa e contingências decorrentes, concluindo pela inexistência de valores em dívida à data e nos termos configurados pela Autora, e antes pela verificação de valor em dívida pela Autora á Ré, invocando a respetiva compensação e pedindo em sede reconvencional o valor de € 1.510,42, bem como uma indemnização pelos danos causados com o cumprimento defeituoso do contrato a liquidar em execução de sentença.
6) Após determinação da notificação das partes para querendo se pronunciarem face ao que a Autora apresentou o requerimento de fls. 118 e 119 (reiterando que as mercadorias foram entregues em Portugal sendo o seu transporte efetuado pela Ré e a seu cargo), o Tribunal apreciou oficiosamente a exceção de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, concluindo pela procedência da exceção de incompetência absoluta e absolvendo a Ré da instância. Mais fixou o valor da ação.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

Balizada a questão em análise, cumpre começar por esclarecer os termos em que a mesma se fará.
Ora, não merece contestação sendo pacífica a posição segundo a qual é atendendo ao pedido e à causa de pedir vertidas na petição inicial que se afere da competência internacional do tribunal face ao litígio. A mesma fixa-se, como regra, no momento em que a ação se propõe e afere-se pelos termos em que a ação foi proposta (cfr. Manuel de Andrade, "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra Editora, 1976, pags. 90 e 91 e, entre muitos outros e a mero título de exemplo, os Acs. da Rel. de Évora de 15/12/2016, da Rel. do Porto de 11/07/2018, da Rel. de Guimarães de 23/11/2017, todos publicados na dgsi.pt.
Posto isto, as conclusões da recorrente no que se refere ao “percurso” das mercadorias tal como alegado pela Ré na sua contestação, tal como as alusões feitas nas conclusões à sua posição face aos factos alegados, não são aqui de atender por não ser de considerar.
Ora, e voltando ao requerimento de injunção, dúvidas também não se colocam no presente caso quanto ao carater transfronteiriço do mesmo, evolvendo sociedades com sede social respetivamente em Portugal e Espanha, estando em causa a alegada falta de pagamento do preço de mercadorias (produzidas pela Autora em Portugal) no âmbito da relação contratual que vincula as partes. Sendo estes países da União Europeia, envolvidas as partes numa relação transnacional, estão por isso sujeitos por isso às normas jurídicas europeias.
A legislação nacional nos artigos 59º a 63º e 94º do Código de processo Civil (C.P.C.) para aí remetem, estabelecendo regras delimitadoras da competência internacional.
O artº. 59º refere que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artºs. 62º (fatores de atribuição da competência internacional) e 63º (competência exclusiva dos tribunais portugueses) ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artº. 94º, mas ressalvando “o que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais”.
Relativamente ao regime comunitário, temos atualmente o Regulamento (EU) nº. 1215/2012, de 12/12 (Regulamento), aplicável em matéria civil e comercial aos Estados Membros –artº. 1º, sendo este o atualmente em vigor (tendo revogado o Regulamento nº. 44/2001), concretamente relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.
A sua força na nossa ordem interna impõe-se, sendo obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia –artº. 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia segundo o qual “o regulamento tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros”. E também por força do artº. 8º, nº. 4, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”
É face à ressalva do artº. 59º do C.P.C. que se conclui que, entre os dois regimes gerais de atribuição de competência internacional –o interno e o comunitário-, se a ação cair no âmbito do segundo, então este prevalece sobre o regime geral interno já que provém de uma fonte hierarquicamente superior –princípio do primado do direito europeu. Veja-se a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a matéria citada no Ac. da Rel. do Porto de 23/02/2017 (dgsi.pt).
Já vimos que a relação contratual em causa envolve Estados Membros abrangidos pelo Regulamento, trata-se de matéria comercial não excluída do seu âmbito (-adiantamos que estamos, face ao alegado, perante uma compra e venda de natureza comercial, já que a Autora forneceu à Ré a seu pedido artigos por si fabricados –cfr. Acs. desta Relação de 20/03/2018, e 21/06/2018, dgsi.pt), e a injunção foi apresentada em setembro de 2018 –cfr. artºs. 66º e 81º do Regulamento. Assim, a ação está abrangida pelo âmbito territorial, material e temporal do Regulamento, pelo que é no mesmo que teremos de verificar qual a regra de competência aplicável.
Diz-nos o artº. 4º do Regulamento que as pessoas domiciliadas num Estado Membro devem ser demandadas no Tribunal desse Estado, independentemente da sua nacionalidade. Só podem ser demandadas noutro Estado Membro nas situações previstas no mesmo capítulo, secções 2 a 7 (artº. 5º, nº. 1, do mesmo).
Então, pela regra geral, a R., com sede social em Espanha, teria de ser demandada em Espanha.
Já referimos que entendemos estar em causa uma compra e venda. Para essa espécie contratual temos competências especiais: artº. 7º, nº. 1, a) e b, do Regulamento.
De acordo com a alínea a), em matéria contratual, a pessoa domiciliada num Estado Membro pode ser demandada noutro Estado Membro, designadamente no Tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação.
E sobre contrato de compra e venda estatui especificamente o artº. 7º, nº 1, b), que o lugar de cumprimento da obrigação será o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
Aplicando ao caso, entendeu-se na decisão recorrida que o que releva é o destino final dos bens, e no caso tal corresponde à sede da Ré; a alegação da Autora de que o local de entrega foi nas suas instalações não resulta de qualquer convenção escrita. Assim, vigora o artº. 7º, nº. 1, b), sendo que o lugar da entrega relevante, para esse efeito, é o da entrega efetiva, ou seja, o destino final dos bens, e não o local onde estes sejam colocados à disposição pelo fornecedor para posterior transporte.
Abrindo aqui um parêntesis, diga-se então que: os efeitos do contrato de compra e venda tal como previstos no artº. 879º do Código Civil (C.C.), são a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa (efeito real que se dá com e no momento da celebração do contrato –artº. 408º, nº. 1, do C.C.), a entrega da coisa e o pagamento do preço (efeitos obrigacionais); são efeitos independentes entre si e que podem ocorrer em momentos diferentes. O efeito real operado pela transmissão da coisa tem consequências sobre o risco –artº. 796º, do C.C..
O facto de o transporte para efeitos de concretização da entrega ser a cargo de vendedor ou comprador não interfere com o momento em que se considera operado o efeito real.
Mas já pode interferir com o momento em que se cumpre a obrigação de entrega, a qual coincide sempre com o momento a partir do qual o comprador pode dispor materialmente sobre a coisa.
Ora, se a Autora entrega a mercadoria à Ré ou a transportador por esta contratado nas suas instalações, desvinculando-se a partir desse momento do destino que a Ré vai dar aos bens, pensamos que nesta particular situação a entrega verifica-se nesse local e momento, precisamente porque é a Ré quem, a partir do mesmo, dispõe sobre o destino a dar aos bens. Ou seja, o “destino final” nesse caso tem de corresponder ao momento em que fica “nas mãos” da Ré, e não àquele que a Ré ainda lhe possa dar (e que pode ser a sua sede ou outro qualquer –distribuição para clientes seus), situação que é alheia à Autora.
De facto, o Tribunal recorrido reconduziu o local de entrega à sede da Ré, chegando pelo artº. 7º, nº. 1, b), ao que resultaria do princípio geral do artº. 4º sem base factual face ao requerimento inicial para o fazer; sendo que os artºs. 5º e 7º o que preveem são normas especiais (e facultativas) pelas quais uma pessoa domiciliada num Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado–Membro. A Autora não diz que os bens foram para a sede da R., a A. apenas diz que os entregou à R. nas suas instalações sendo o posterior transporte a cargo da R.. Portanto, na versão da A., a que é determinante, estes são os termos do contrato; e não resulta alegada qualquer convenção em contrário no sentido de, não obstante ser esse o local de entrega, ser outro o lugar de cumprimento da obrigação –essa é a exigência e interpretação do artº. 7º.
O que o Tribunal fundamenta a sua posição com a suposição de que o local de entrega dos bens corresponde á sede da Ré.
Reiterando e em suma, esta matéria alegada corresponde “aos termos do contrato” referido no artº. 7º, nº. 1, b), na versão da Autora, que é aquela a que se tem de atender. E o contrário disto é que tinha de resultar de convenção (outra) estabelecida entre as partes.
O que caracteriza a entrega é o momento e local da transferência do domínio efetivo da coisa para as mãos do comprador, pelo que coincide, nesta medida, com o momento e local de receção da mercadoria pelo comprador (momento a partir do qual dispõe quanto ao seu destino).
Esta conclusão não é invalidada face à analise das faturas juntas pela Autora ao processo; o que resulta das faturas em causa é “Local de Carga: N/Instalações Local de Descarga: V/Instalações” (nada mais resultando contratualizado), portanto, face ao alegado pela Autora quanto ao transporte a cargo da Ré, é isso que prevalece, acrescendo que “local de descarga” é diferente de “local de entrega” –cfr. “Francisco Costeira da Rocha, “”O contrato de Transporte de Mercadorias …”, pag. 66.
Cremos efetivamente que o facto de, no caso concreto, e de acordo com a alegação da Autora, ser o transporte dos bens desde as instalações da Autora a cargo da Ré e por sua conta e risco -o que tem efeitos quanto à questão do risco- tem influência também na definição do local de entrega, sendo neste caso o eventual contrato de transporte alheio à Autora.
Esta nossa posição respeita o alcance que a norma pretende ter, e a interpretação feita no âmbito comunitário, uma vez que o elemento de proximidade com a jurisdição portuguesa existe e é algo previsível para a Ré no âmbito deste concreto contexto.
Várias decisões dos nossos Tribunais tratam desta matéria, contudo as circunstâncias dos casos concretos são diferentes da presente, tratando algumas de casos em que se pretende afastar a definição da competência em função do local da entrega dos bens pelo vendedor a um transportador -cfr. a título de exemplo, os Acs. da Rel. do Porto de 18/12/2018, da Rel. de Guimarães de 02/05/2016, de 21/06/2018, de 4/10/2018, de 7/12/2017.
A competência para o cumprimento da «obrigação» abrange também a obrigação de pagamento, conclusão aqui também aplicável – cfr. Acs. do S.T.J. de 10/05/2007, 4/7/2013, e 05/04/2016, tudo em dgsi.pt.
Por isso, não sendo válido porque não sustentado o argumento feito na sentença recorrida de que tendo os bens como destino final Espanha, então o lugar do cumprimento da obrigação não ocorre nesse país mas antes em Portugal, pelo que, de acordo com o artº. 5º, nº. 1, e as alíneas a) e b), do artº. 7º, nº. 1, a Ré podia ser demandada pela Autora em Portugal.
Procede por isso o primeiro dos argumentos invocados pela Autora a favor da sua pretensão de verificação da competência do tribunal nacional.
Todavia, ainda que assim não fosse e não tivesses concluído, a posição assumida pelo Tribunal recorrido ainda assim não chegaria para a definição da competência no caso concreto, e a consequência da mesma não seria aquela a que chegou o Tribunal recorrido.
Na realidade, há outra norma que nesse caso iria afastar o critério atribuidor de competência na interpretação feita pelo Tribunal recorrido do artº. 7º, nº. 1, b): o artº. 26º do Regulamento.
Este artigo diz-nos que “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o Tribunal de um Estado – Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24º.”.

Conforme Ac. da Rel. do Porto “supra” citado de 23/02/2017, trata-se aqui de uma extensão de competência (conforme se refere no próprio Regulamento, ou seja, uma situação em que a competência para o litígio se alarga nos termos aí preconizados. E mais se diz que estamos perante um pacto implícito de jurisdição (a par com o explícito), uma aceitação tácita de jurisdição que resulta do facto do requerido comparecer em tribunal (o que corresponde à apresentação da sua oposição), oferecendo a sua defesa mas sem arguir a incompetência do tribunal perante o qual se apresenta.

Nesses casos, esta sua posição “apaga” a infração da regra de competência que decorreria da aplicação do Regulamento nos termos das disposições gerais e especiais (e não se violando nenhuma regra determinante de competência exclusiva), e esvazia de conteúdo a possibilidade de apreciação oficiosa da exceção de incompetência prevista na lei nacional (que “cede” face à norma do direito europeu). Veja-se a propósito as decisões citadas naquele Acórdão, bem como o Ac. desta Relação de 09/06/2016, dgsi.pt.

No caso dos autos, verifica-se efetivamente pela peça apresentada pela Ré no processo que esta defendeu-se por exceção e deduziu pedido reconvencional sem por em questão a competência do Tribunal Português, e concretamente do Tribunal recorrido. Igualmente, notificada para, querendo se pronunciar sobre a verificação da exceção de incompetência internacional, nada apresentou no processo.

Por isso, e ao invés do que se conclui na sentença recorrida e, se não resultasse já do sua primeira argumentação, dando razão também ao segundo dos argumentos expostos nas conclusões da recorrente, e conforme o Ac. da Rel. do Porto citado: “Daí resulta afinal que o autor pode instaurar a acção num tribunal que inicialmente não seria o competente (designadamente o do Estado - Membro do seu domicílio e não o do Estado - Membro do domicílio do demandado) ficando, no entanto, dependente de que o réu compareça perante esse tribunal e não argua a incompetência deste. O simples facto de o requerido comparecer em tribunal e não arguir a incompetência do tribunal onde a acção foi proposta, optando por apresentar somente a sua defesa quanto ao fundo da causa, determina que a competência fique atribuída também a este tribunal, o qual, nessa altura e por reunião desses dois factores, adquire competência em razão da nacionalidade.”

Em face do exposto, tem o recurso de proceder, devendo a decisão proferida ser substituída por outra que julgue o Tribunal competente em razão da nacionalidade, com o consequente e subsequente prosseguimento dos autos.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, dando provimento à apelação, revoga-se o despacho recorrido, declarando-se o tribunal competente em razão da nacionalidade, seguindo-se as devidas consequências legais.
Custas pela parte vencida a final (artºs. 527º, nºs. 1 e 2, e 529º, do C.P.C., e Tabela 1-B).
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Guimarães, 21 de novembro de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)