Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1197/16.3GBBCL.G1
Relator: ALDA CASIMIRO
Descritores: ACUSAÇÃO
REMISSÃO PARA DOCUMENTO
INEXISTÊNCIA DE NULIDADE
ACUSATÓRIO E CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Só uma falta grave, que seja suscetível de comprometer o êxito da acusação e que obste a uma apreciação de mérito, justifica que se considere nula a acusação, permitindo até a rejeição liminar. Se os vícios de que eventualmente padeça não forem estruturais, está afastada a possibilidade de tal peça processual ser declarada nula.

II) É o caso dos autos, pois que apesar da narração dos factos feita na acusação não ser a mais feliz, uma vez que sem descrever os jogos, classifica-os como fortuna e azar, recorrendo a um conceito jurídico, o certo é que a sentença recorrida veio narrar os factos pertinentes sem recurso a remissão, mas sem que se possa considerar que acrescentou algo de novo, visto que se limitou a transcrever os factos que se encontravam no relatório pericial para que tinha sido feita aquela remissão.

III) Este entendimento não viola os princípios do acusatório e do contraditório, nem o princípio da identidade do objecto do processo, considerando que a acusação, remetendo para documento (relatório pericial) que se encontrava nos autos, assegura todas as garantias e prorrogativas de defesa, permitindo um processo penal justo e equitativo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Relatório

No âmbito do processo comum, perante Tribunal Singular, nº 1197/16.3GBBCL que corre termos no Juízo Local Criminal de Barcelos (J1), do Tribunal da Comarca de Braga, foi o arguido,
Tiago, casado, nascido a 21.09.1982 na freguesia e concelho de Barcelos, filho de A e de B, residente na Rua …, Barcelos,
condenado, como autor material de um crime p. e p. pelo art. 108º, nºs 1 e 2, do D.L. 422/89, de 2.12., na pena de 8 meses de prisão, substituídos por igual tempo de multa, à taxa diária de € 5,00, e na pena de 120 dias de multa, à mesma taxa, num total de 360 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no montante global de € 1.800,00.
Em conformidade com o disposto nos arts. 109º, nº 1 a 3, do Cód. Penal e 116º do D.L. 422/89, foi declarado perdido a favor do Estado o material de jogo apreendido; e de acordo com o disposto no art. 117º do D.L. 422/89, foi declarado perdido a favor do Fundo de Turismo o montante pecuniário apreendido nos autos.
*
Sem se conformar com a decisão, o arguido interpôs recurso pedindo que seja declarada e reconhecida a nulidade da acusação (o que levará à sua absolvição da prática do crime de exploração ilícita de jogo pelo qual foi condenado); ou caso assim não se entenda, que se reconheça a violação do disposto no art. 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal; ou caso assim também não se entenda, que se apliquem penas parcelares e pena única adequadas e substancialmente inferiores.

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

I. DA NULIDADE DA ACUSAÇÃO PÚBLICA E DA IMPOSSIBILIDADE DA SUA SANAÇÃO

A. Antes de tudo o mais, importa referir que da douta Acusação Pública dirigida contra o Arguido resulta, cristalinamente, que a mesma omite as características das máquinas/computador e os respetivos jogos, que alegadamente as mesmas desenvolvem, bem como, a respetiva ilicitude de cariz criminal, uma vez que do texto Acusatório apenas resulta, em suma, que a máquina apreendida à ordem dos presentes autos desenvolve “jogos de fortuna ou azar” (sendo esta entendida como mera formulação de direito/legal).

B. De facto, o eventual modo de execução do crime, o que integra tipicidade objetiva do ilícito não está especificadamente enunciado, descrito ou descriminado na douta Acusação Pública, e apesar de a douta Acusação remeter para um qualquer “Relatório Pericial” realizado à ordem dos presentes autos, tal procedimento [remissão] viola o princípio do acusatório e do contraditório, tal qual resulta preceituado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

C. Com efeito, os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios estruturantes do processo penal, movem-se necessariamente na essência do sistema processual, tendo este que assegurar todas as garantias e prerrogativas de defesa, ou seja, salvaguardando um processo penal justo e equitativo – Neste sentido se pronunciou o nosso Egrégio Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 172/92 (Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º volume, página 350).

D. Na verdade, o princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes de mais, realizar o seu direito de defesa, conforme referiu a Comissão Constitucional, no seu Parecer nº 18/81, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, volume 16º, página 147, seja, o sentido essencial do principio do contraditório “está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar.”

E. Consequentemente, a descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto, necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido, pelo que, só assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação temática do tribunal e da correlação entre a acusação e a sentença, e neste ponto, conforme também já se pronunciou Jorge Figueiredo Dias (em Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 45), a concepção típica de um “processo acusatório”, implica a “estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa”, em sede de determinação do objecto do processo como em sede de poderes de cognição e dos limites da decisão, bem como refere o mesmo autor, acerca do princípio da vinculação temática do Tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, afirma que “Deve pois firmar-se que o objecto processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e a extensão do caso julgado.”

F. Por outro lado e consequentemente, existe um princípio basilar no nosso ordenamento processual penal que é o da correlação entre a acusação e a sentença, assim, como a acusação fixa o objecto do processo, o julgamento incide sobre a matéria da acusação e o Tribunal não pode, por sua iniciativa, ou por iniciativa da parte acusadora, apreciar questões que não se encontram descritas na Acusação, uma vez que está em causa, também intrinsecamente relacionado, o princípio da identidade do processo, que representa precisamente a conceptualização de que o objecto da acusação se deve manter idêntico, desde a sua manifestação até à sentença final.

G. Ora, o princípio da identidade do objecto do processo significa, desde logo, que obrigatória e necessariamente existe uma correlação entre a acusação deduzida e a sentença proferida, sendo que, ao se imputar ao arguido factos absolutamente novos, estranhos ao objecto de todo o processo desenvolvido, se está a ofender directamente o princípio do acusatório, contraditório e da vinculação temática.

H. Isto posto, as alterações introduzidas de forma “silenciosa”, ilegítima e ilegal no texto acusatório e, por conseguinte, na matéria de facto dada como provada, o Arguido só teve conhecimento aquando da Leitura da respectiva Sentença, sendo que o Dign.º Tribunal “a quo” jamais poderia tomar em consideração factos que nunca e em momento algum foram comunicados ao Arguido e que não resultavam do texto acusatório.

I. Na verdade a tentativa de o Dign.º Tribunal colmatar a insuficiente acusação que vem dirigida contra o aqui Arguido, por a mesma efectuar meras remissões para documentos juntos aos autos e por a mesma não descrever (com a mínima exigência possível, nos termos do artigo 283º, nº 3 do C.P.P.) a conduta criminosa do Arguido, não se poderá entender como uma mera simplificação da acusação que possa ser suprida, por forma a desconsiderar-se por completo a pessoa do Arguido (com todas as prerrogativas e garantias que o envolvem), bem assim de qualquer comunicação para que pudesse de forma leal apresentar os respectivos meios de defesa.

J. Deste modo, a nulidade de que padece todo o texto acusatório, nos termos do disposto no artigo 283º, nº 3 do C.P.P., não poderá miraculosamente ser suprida, por tal pretensão ser absoluta e totalmente contrária aos mais elementares princípios que envolvem o nosso processo penal e supra descritos, o que deverá em sede do presente recurso ser reconhecido, para todos os devidos e legais efeitos e com todas as consequências daí advenientes.

K. Todo o supra exposto, vem também sendo defendido pela nossa Jurisprudência, entre muitos outros, veja-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08-10-2014 e de 11-10-2017 (no âmbito do processo nº 248/15.3GDVFR), bem assim o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-06-2017 (no âmbito do processo nº 89/12.0EACBR – este disponível em www.dgsi.pt), razão pela qual, se entende que tendo em conta a ilegítima e ilegal actuação do Dign.º Tribunal “a quo” determinará a absolvição do aqui Recorrente.

SEM PRESCINDIR,
II. DO VÍCIO, POR INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA

L. Caso não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede, entende o aqui Recorrente que analisada atentamente a douta sentença recorrida, constatamos que o Dign.º Tribunal “a quo” não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar, nomeadamente, as condições sócio económicas do Arguido, por forma a, assim, cumprir de forma idónea e independente todos os circunstancialismo, em caso de condenação, previstos no artigo 71º e 47º, ambos do C.P.

M. Na verdade, sob o Dign.º Tribunal recorrido impendia o poder dever de indagar a situação económica, familiar e profissional do Arguido, que independentemente de não ter comparecido à audiência de discussão e julgamento, nada obstaria, conforme decorre da prática judicial corrente, que fosse elaborado o competente e legal relatório social, sendo que, malograda e de forma surpreendente, conforme se constata pela douta Sentença ora sindicada, o Tribunal “a quo” na pena aplicada ao Arguido, não teve em consideração a sua situação pessoal, social e económica, para a determinação da medida da pena, sendo a própria Fundamentação da Sentença aqui recorrida, totalmente omissa quanto a tal factualidade.

N. Tais factos, são essenciais e indispensáveis para a determinação da medida da pena, por forma a aplicar uma decisão justa e equitativa, determinando e quantificando, segundo os critérios que são definidos pelo nosso sistema penal, adjectivo e substantivo, uma pena de acordo com o grau de culpabilidade do Arguido, bem assim, tendo em consideração a sua condição pessoal e sócio-económica, o que, aliás, nunca o Tribunal logrou apurar, nos termos dos artigo 340º e 370º, ambos do C.P.P..

O. Sendo que, actualmente um tal entendimento plenamente pacífico na nossa Jurisprudência, veja-se, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06-11-2013, no âmbito do Proc. nº 03P3370, do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-06-2012, no âmbito do Proc. nº 317/11.9GTVCT.G1, do Tribunal da Relação de Évora de 20-11-2012, no âmbito do Proc. nº 186/09.9GELL.E1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-09-2013, no âmbito do Proc. nº 58/12.0PJSNT.L1-5, do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2010, no âmbito do Proc. nº 397/10.4PBVRL.P1, e do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-11-2008, no âmbito do Proc. nº 268/08.4GELSB.C1, e de 23-02-2011, no âmbito do Proc. nº 83/09.8PTCTB.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt

P. Motivo pelo qual, de forma linear, cristalina e inequívoca, se verifica que o Dign.º Tribunal “a quo” não indagou, por qualquer forma, pelas circunstâncias sócio-económicas do Arguido, tendo, com todo o devido e merecido respeito, aplicado penas puramente arbitrárias e contrárias aos mais elementares e princípios basilares e estruturantes do nosso sistema Penal, existindo, pois, o vício previsto no artigo 410º, nº 2, alínea a), do C.P.P., como tem sido pacificamente entendido, determinando um tal vício o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º, nº 1, do C.P.P., restrito à matéria da escolha e determinação da medida das penas do Arguido.

OUTROSSIM - SEM PRESCINDIR,
III. DA MEDIDA DA PENA

Q. Caso uma vez mais não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede mas por mero dever legal de patrocínio se acautela, apraz referir que, delimitando-se a pena a aplicar ao Recorrente na culpa deste, e, bem assim, nas exigências de prevenção, geral e especial, sempre resulta que, de forma alguma de poderá compreender e aceitar as penas aplicadas (de prisão e multa), na medida em que, extravasam claramente a culpa deste e as próprias necessidades de prevenção, e, não tem devidamente em conta as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do mesmo Recorrente.

R. É de todo incompreensível, porque exageradas e desproporcionadas, as penas de prisão e multa aplicadas ao Recorrente, ainda que mais não seja, pelo facto de que a máquina apreendida apenas permitia unicamente uma utilização através da inserção de um valor reduzido, facto que, naturalmente, sempre obstaria a um qualquer delapidar grave e sério do património dos seus utilizadores, e, bem assim, sempre limitaria quaisquer benefícios económicos que pudessem vir a resultar para o ora Recorrente de tal exploração.

S. Por outro lado, e agora no que respeita às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do Recorrente, é de referir que, não obstante o Dign.º Tribunal “a quo” não ter, por qualquer forma, procedido à determinação e/ou averiguação das condições sócio-economicas do Arguido, refira-se que o mesmo se encontra familiar e socialmente inserido, estando empregado, a que acresce o facto de não existir uma qualquer notícia posterior da prática de quaisquer factos similares, ou quaisquer outros factos ilícitos da sua parte.

T. No caso presente, e por de aplicação ao mesmo, atenta a problemática em apreço, deverá relevar-se tudo quanto vem vertido no recente douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-09-2013 (proferido pela 4ª Secção no âmbito do Proc. nº 311/10.7EAPRT.P1), que nos refere estarmos perante o «domínio das denominadas “bagatelas penais”», com um pequeno grau de ilicitude dos factos e com pequenas necessidades de prevenção geral, porquanto, o tipo em causa não é causador de grande alarme social.

U. Não obstante, e independentemente do acerto, ou não, da decisão quanto à medida da pena de prisão inicialmente aplicada, de 08 (oito) meses, e posteriormente substituída por 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, e não estando em causa uma tal substituição, porque “legalmente imposta”, atenta a pena concreta aplicada e o preceituado no artigo 43º do Código Penal, que impõe a substituição das denominadas “penas curtas” de prisão, deverá ser inferior à aplicada porquanto terá que ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dadas as particularidades do caso em concreto – neste sentido considere-se a Jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto Acórdão nº 8/2013 (publicado no DR, 1ª Série, nº 77, de 19/04/2013)

V. Com efeito, sempre será de concluir que, no caso presente, e atento tudo o exposto, sempre deverá decidir-se pela aplicação de penas parcelares substancialmente inferiores, bem assim a respectiva pena única aplicada a final, na medida em que, da mesma sempre resultarão perfeitamente prosseguidas as exigências de prevenção, resultando, daí, por realizadas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
W. A douta Sentença sob recurso violou os artigos 40º, 43º, 47º e 71º, nº 1 e nº 2 do Código Penal, 1º, 3º, 4º e 108º, todos do D.L. nº 422/89, de 02 de Dezembro, os artigos 283º, 327º, 340º, 370º e 410º, nº 2, alínea a), todos do CPP, bem como violou os artigos 13º, 18º, 29º e 32º, todos da Constituição da República Portuguesa.
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O Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e apresentando as seguintes conclusões:

1 – Em síntese, de tudo atrás explanado, a douta sentença recorrida deverá ser mantida na íntegra, uma vez que não existe qualquer vício por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, sendo certo, que tendo em conta o supra exposto, o Mmº Juiz “a quo“, em nosso entender, decidiu de forma correta ao condenar o arguido, pela prática do crime pelo qual está acusado, porquanto também não foi violado o disposto no artº 283º, do Código de Processo Penal – nulidade da acusação e violação dos artºs 1º, 3º, 4º e 108º, do D.L. nº 422/89, de 02 de dezembro e artºs 13º, 18º, 29º e 32º, da Constituição da República Portuguesa.

2 – Assim sendo, “in casu“ a douta sentença recorrida não padece de qualquer vício, nomeadamente, o contemplado na alínea a), do nº 2, do artº 410º, do Código de Processo Penal, e dúvidas não restam que não foi violado qualquer norma jurídica e/ou Princípios Gerais do Direito, designadamente os Princípios da Legalidade, Identidade, da Unidade ou Indivisibilidade e da Consunção do objeto do Processo Penal, que o recorrente “muito” alega.

3 – Mais uma vez falece razão ao recorrente relativamente aos restantes argumentos, designadamente quanto à medida da pena, pelo que o Tribunal “a quo” não violou o disposto nos artºs 127º, 283º, nº 3, 327º, 340º, 370º, 374º, nº 2, 358º, nº 1, 359º, 379º, nº 1 e 410º, nº 2, al.s a), b) e c), todos do Código de Processo Penal e 40º, 43º, 47º, 71º e 77º, todos do Código Penal.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer em que defende a improcedência do recurso.
O recorrente respondeu reiterando os argumentos expendidos no recurso.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
***

Fundamentação

Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:

a) O arguido Tiago explorou, desde data não concretamente apurada e, pelo menos, até ao dia 12 de Novembro de 2016, o estabelecimento de café denominado “Café T.”, sito na Travessa …, Barcelos, o que fazia com vista à obtenção de lucro.
b) No referido dia 12 de Novembro de 2016, pelas 01h30 horas, no interior do dito estabelecimento comercial encontrava-se, exposta em local reservado, mas por forma a ser utilizada por quem o pretendesse, uma máquina de jogo com estrutura em metal de cor preta, com um mecanismo de introdução de moedas na parte lateral esquerda e, na parte lateral direita, um mecanismo de introdução de notas, contendo no respectivo moedeiro a quantia de € 380,00 em notas do Banco Central Europeu.
c) A máquina referida em b), que funciona através da utilização de um ecrã táctil, estava nas circunstâncias referidas ligada à internet.
d) Através dessa ligação, a máquina ligava-se a um servidor que validava as aplicações de jogo nela instaladas, nomeadamente as aplicações/jogos “H.”, “H. ++”, “H. II” e “PN”.
e) Os jogos do tipo slot (referidos em d) supra) existentes na máquina referida em b), desenvolvem-se da seguinte forma: (1.) após a introdução de moedas e escolhido o jogo, através de um código acesso, surgem no topo do écran as palavras “Crédito” (que apresenta à sua frente os pontos provenientes das moedas ou notas introduzidas), “Prémio” (que assinala os créditos/pontos provenientes de eventuais jogadas premiadas) e “Aposta” (que regista o número de apostas (créditos/pontos) que o jogador decide arriscar em cada jogada); (2.) o menu de jogo é composto por cinco rolos de símbolos (colunas) e três linhas, perfazendo quinze quadrados com imagens; a ladear estes quadros encontram-se dispostos em coluna e na linha inferior, números compreendidos entre 1 e 25, sendo que estes representam as várias linhas de apostas que o jogador poderá efectuar em cada jogada; (3.) os rolos são todos iguais, possuindo cada um 10 símbolos (imagens) os quais se encontram identificados na "Tabela de Prémios"; no cenário de jogo estão apenas visíveis 3 símbolos de cada rolo (perfazendo um total de 15), os quais, no desenvolvimento do jogo, produzirão combinações aleatórias que poderão, ou não, coincidir com as combinações existentes na "Tabela de Prémios"; (4.) as "linhas" de aposta são linhas virtuais que atravessam a janela de jogo lado a lado; estas podem ser simples rectas ou quebradas em várias configurações; (5) só os símbolos que ficarem sob a mesma linha é que configuram uma combinação de jogo, sendo que todos os outros são ignorados; (6) após decisão do número de créditos que se pretendem apostar numa jogada, o jogador pode accionar a tecla que inicia a jogada, dando origem a que as 5 colunas que se encontram ao centro do écran comecem a deslizar, do sentido superior para o inferior, simulando o funcionamento de uma máquina de rolos dos casinos, até ao ponto em que automaticamente se imobilizam ficando em cada um dos quadrados um símbolo; (7) normalmente e relativamente às apostas, o jogador poderá apostar, em cada "linha", um mínimo de um crédito e um máximo de dez créditos; se apostar o máximo em todas as linhas, a aposta máxima é de duzentos e cinquenta créditos; (8) se a combinação aleatória desses símbolos constar da relação das combinações consideradas premiadas, o jogador ganha, perdendo em caso contrário; (9) no caso de o jogador ter uma combinação premiada, os pontos/créditos ganhos, são de imediato incrementados na janela com a inscrição "Prémio"; (10) o jogador pode optar por receber os pontos/créditos, dado por finalizada a sua intenção de continuar a jogar, para tal, basta chamar o responsável.
f) O objectivo destes jogos, tal como nas slots machines, é conseguir combinações premiadas, mediante o arriscar de créditos e o simples pressionar no botão, existente na imagem de cada jogo em desenvolvimento, dependendo exclusivamente da sorte e não da perícia do jogador.
g) O equipamento referido em b) foi colocado no estabelecimento do arguido, por pessoa não apurada, com o seu conhecimento e consentimento.
h) Apesar de ter conhecimento das características destes jogos, o arguido colocou o dito equipamento onde os mesmos eram desenvolvidos no referido café, permitindo que o mesmo fosse utilizado por qualquer cliente que o pretendesse, com o intuito de assim obter proventos, consubstanciados nas quantias monetárias (ou parte delas) que os jogadores introduzissem nas referidas máquinas com vista ao desenvolvimento dos jogos, que o arguido queria embolsar e fazer seus.
i) O arguido bem sabia que a exposição e exploração de jogos com as características descritas só podia ser efectuada mediante autorização da entidade competente, estando a sua exploração limitada a zonas de jogo devidamente autorizadas.
j) O arguido não possuía qualquer autorização para o efeito, tendo agido de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida por lei.
k) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em b), foi apreendido o equipamento mencionado, bem assim como € 380,00 em notas do BCE guardadas no moedeiro/cofre da dita máquina.

Mais se provou que:

l) O arguido explora um estabelecimento de café.
m) O arguido já foi condenado:

- por sentença proferida em 07/05/2013, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 1152/12.2GBBCL, que correu termos no 2.º juízo criminal do Tribunal Judicial de Barcelos, pela prática em 04/08/2012, de um crime de exploração ilícita de jogo, na pena de 2 meses de prisão, substituído por 60 dias de multa, e na pena de 40 dias de multa;
- por sentença proferida em 19/01/2015, já transitada em julgado, no âmbito do processo n.º 410/13.3GBBCL, que correu na instância local criminal de Barcelos, pela prática em 05/04/2013, de um crime de jogo fraudulento, na pena de 6 meses de prisão, substituído por 140 dias de multa, e na pena de 80 dias de multa.

Na mesma sentença considerou-se factos não provados:
Com possível relevo para a decisão da causa, nenhum outro facto se demonstrou.
Designadamente, não se demonstrou que:

- o arguido tivesse adquirido o equipamento referido em b);
- os jogos supra referidos tivessem sido descarregados para a máquina mencionada à revelia do arguido;
- o arguido é pessoa humilde e trabalhadora, sendo respeitado e respeitador no meio social onde se encontra inserido.

E o tribunal recorrido motivou a decisão sobre a matéria de facto como segue:

É sabido que, na formação da sua livre convicção, ao Tribunal não está vedada a possibilidade de retirar ilações dos factos probatórios, socorrendo-se de um raciocínio dedutivo ou indutivo, apoiado nos princípios da lógica e fundamentado nas regras do normal acontecer.
Não se duvidando, pois, da não rara impossibilidade de apoiar a convicção que se exige da entidade decidente nos chamados elementos de prova directa, admite-se pacificamente que, no complexo de actos que integram a actividade probatória, possam intervir determinados meios que, conduzindo à demonstração positiva de factos diversos do tema da prova, permitem, através de um raciocínio dedutivo ou indutivo, filiado nas máximas da experiência comum, uma ilação favorável quanto aos factos probandos.
Sob pena de incontornável frustração de qualquer tentativa de apreensão exacta da realidade sujeita a judicial comprovação, exige-se do julgador que, uma vez confrontado – como não raras vezes sucede no universo da criminalidade em que nos situamos – com a ausência de testemunhos completos e auto-suficientes, proceda a uma apreciação global e correlativa de toda prova produzida, valorando-a dialecticamente e inferindo a partir dos factos expressamente afirmados aqueles outros que são sugeridos por um critério de experiência comum ou pela lógica subjacente aos normais acontecimentos da vida.
Ora, é justamente a possibilidade, consensualmente reconhecida, de uma tal convicção indutiva que, porque no caso proporcionada com o índice de segurança suposto pela confirmação da hipótese acusatória, permitiu o reconhecimento dos factos tidos por demonstrados.
Vejamos em que termos, principiando pelo depoimento da testemunha Manuel, militar da GNR que interveio na fiscalização do estabelecimento explorado pelo arguido e na subsequente apreensão da máquina e dinheiro nela guardado.
Como referiu a testemunha, na altura em que foi realizada a fiscalização (à hora que consta do auto de noticia junto a fls. 2 e ss.), o estabelecimento em causa encontrava-se em funcionamento, sendo que no local, no momento da acção inspectiva, não se encontrava presente o arguido. Por via disso, uma pessoa que disse estar a “fazer um jeito” ao arguido tratou de o chamar, tendo o Tiago comparecido cerca de 15 minutos depois do início da acção de fiscalização. Chegado ao local, o arguido acedeu, a pedido dos guardas da GNR, a abrir a porta de acesso à copa/cozinha (que se visualiza na fotografia de fls. 9), marcando o código da fechadura digital visível na fotografia de fls. 10, sendo que no espaço contíguo (de acesso reservado a quem o arguido ou demais funcionários que tivessem o código da fechadura permitissem a entrada) se situava a máquina de jogo tal como documentado a fls. 11/13. A máquina, acrescentou a testemunha, encontrava-se ligada à corrente eléctrica e à internet, não se encontrando na altura qualquer pessoa a utilizá-la. Finalmente, aberto o cofre da máquina, verificou-se que no interior do mesmo se encontrava a quantia de € 380,00 em numerário (cfr. fotografia de fls. 14 e auto de apreensão de fls. 17).
A testemunha referiu não ter qualquer dúvida de que o arguido era o explorador do estabelecimento em apreço, até porque foi ele quem lhe exibiu toda a documentação do mesmo, lhe franqueou a entrada nos vários compartimentos do estabelecimento, sendo inclusivamente conhecer do código da fechadura da porta de acesso à cozinha.
Ora, que o estabelecimento em causa se encontrava a ser explorado pelo arguido, é facto que decorre indubitável do depoimento da aludida testemunha.
Por outro lado, as fotografias a que se fizeram referência, em conjugação com o depoimento do identificado militar da GNR também não deixam consentir dúvidas acerca da utilização da referida máquina apreendida pelos clientes do estabelecimento, tanto que na mesma se encontrava guardada a quantia de € 380,00, que resultava sem dúvida da utilização da mesma como máquina de jogo (daí a máquina ter mecanismo de introdução de notas e moedas).
De referir que o agente visualizou o funcionamento da máquina, tendo o mesmo sido fotografado a fls. 11/13. E, ao contrário do que pretende sustentar a defesa, considerando o valor elevado que se encontrava no interior da mesma, não é crível que a mesma fosse utilizada para o desenvolvimento de jogos lúdicos, que não de fortuna e azar (decorre das regras da experiência que o pagamento de tais jogos é substancialmente inferior e não se faz com notas).
Finalmente, atender-se-á ao relatório pericial de fls. 45 a 51, de onde resulta que em 08/11/2016 havia sido executado o ficheiro “s_hallo.exe”, a partir do qual se iniciaram a execução de jogos tipo slot; executados, também, foram vários ficheiros descomprimidos (locky.exe e m1.tmp), alguns deles inclusivamente protegidos por palavras-passe, também responsáveis pela execução de jogos tipo slot; da análise do disco rígido conclui o perito que, pelo menos, 4 jogos haviam sido descarregados do servidor, sendo que a máquina tinha os recursos suficientes para os executar (aplicações/jogos “H.”, “H. ++”, “H. II” e “PN”). Finalmente, e pese embora não tenha sido possível ao perito colocar os jogos em desenvolvimento na máquina, até porque tal situação determinaria que a máquina estivesse ligada a um servidor remoto que permitiria determinar o arranque dos ficheiros (situação que acontecia, como se viu, no estabelecimento do arguido), ficou o Tribunal sem dúvidas (até pelo dinheiro que foi encontrado no interior do equipamento) que no mesmo haviam sido executados os ditos jogos, pelo menos desde o referido dia 08/11/2016, estando no momento da fiscalização a máquina preparada para continuar a correr as ditas aplicações de jogos descritos a fls. 50 e v.º
Como se disse, na análise de cada caso concreto que lhe é trazido, e muito especialmente na decisão da matéria de facto, cabe ao julgador harmonizar, com bom senso e justa medida, as regras da experiência e o princípio da presunção de inocência, de modo a não ver nas primeiras algo de absoluto, nem no segundo algo de dogmático.
Quer dizer, o tribunal deve presumir que os arguidos são efectivamente inocentes. Porém, não pode acreditar no inverosímil.
Volvendo ao caso dos autos, temos que a máquina apreendida estava equipada, como se constata do relatório pericial junto aos autos, com software contendo os jogos descritos nos pontos d) a f) dos factos provados, os quais se desenvolvem do modo supra descrito (como do mesmo relatório consta).
Decorre, ainda, do relatório pericial que não existem dúvidas de que a máquina foi utilizada (o software dos jogos foi executado, considerando a instalação da drive “d:\”).
Neste ponto, e pese embora o arguido não haja prestado declarações na audiência de julgamento, decorre da contestação por si apresentada que a mesma entende:
a) que do relatório não se pode extrair a conclusão de que as máquinas estivessem a desenvolver o jogo de fortuna ou azar; b) que, ainda que estivessem aptas, não se provou que o arguido detinha os códigos necessários a fazê-las arrancar (executar os programas informáticos dos ditos jogos).
Desde já se refira que não é relevante – porque tal não consta da acusação deduzida pelo Ministério Público – aferir se foi ou não visto qualquer jogador a utilizar a máquina apreendida (sem prejuízo de, considerando o valor inserto no interior da máquina, o Tribunal se ter acreditado em tal facto).
No que tange à primeira das suscitadas questões, entende-se estar perante um jogo de palavras: na verdade, como se admite na própria contestação apresentada pelo arguido, é ineludível que do relatório pericial junto aos autos consta que a máquina apreendida estava apta a desenvolver os jogos acima referidas: tinham o software necessário, estavam operacionais, ligadas à corrente eléctrica e à internet. Outra coisa, diversa, é saber se tais jogos poderiam ser desenvolvidos.
Ora, como é bom de analisar, a versão plasmada na contestação não é minimamente crível.
Na verdade, não é verosímil que, num espaço mais recatado – e, ainda assim, aberto ao público (aos clientes do estabelecimento, como disse a testemunha Manuel e decorre do facto de haver sinais de consumo de bens no local, cfr. foto fls. 11) – se tivesse colocado um equipamento com características manifestamente atípicas.
De facto, não é normal que uma máquina de videojogos, como decorre das regras da experiência (e como intuiu a própria testemunha inquirida) tenha um mecanismo próprio de recolher notas: o normal, antes, é que tais máquinas tenham um moedeiro, pois que não servirão, em princípio, para desenvolver jogos (como os acima enunciados) que levem o jogador a despender grandes quantias, tão só se destinando ao puro entretenimento.
Não é normal, por outro lado, que se ligue a um tablet um acessório mecânico e automático destinado a receber notas, sobretudo se tal computador se houvesse de destinar simplesmente a servir de terminal de acesso à internet ou ao exercício de jogos de entretenimento supostamente gratuitos (como os que, inicialmente, foram descobertos pela GNR).
Finalmente, não é normal que, em máquinas normalmente adquiridas e postas à disposição do público (seja de videojogos, seja um tablet), se descubram “escondidos” na partições do harware (disco rígido), programas perfeitamente funcionais (aptos a funcionar), mas “protegidos” (i.e., só acessíveis) por um sistema de código. Sendo ainda que, mais anormal será, que qualquer referência à proveniência da máquina haja sido eliminada (de sorte a não permitir apurar a sua origem).
Na realidade, o normal é que as máquinas e computador estejam devidamente identificadas, até para que o seu dono, se algum problema tiver, consiga repará-las; normal é que não existam programas escondidos nas partições dos discos rígidos das máquinas colocadas à disposição do público em estabelecimentos comerciais; normal é que, ainda, a utilização das mesmas não seja feita através de um mecanismo que recepciona notas, sobretudo não sendo normal que tal mecanismo esteja ligado de forma “artesanal” a um tablet; normal, também, não é o lugar de colocação da máquina, situada numa sala de acesso reservado (ainda que acessível ao público), como se o respectivo explorador não quisesse que a mesma fosse vista, mas antes utilizada com discrição...
Em síntese, e da conjugação da prova produzida, não ficou o Tribunal com qualquer dúvida de que a máquina apreendida servia para desenvolver, e desenvolveu, o software dos jogos acima referidos, tudo com o conhecimento do arguido que, para o efeito, a colocou no seu estabelecimento na forma já referida.
E, de nada vale alegar o arguido (na contestação) que desconhecia o funcionamento do aparelho. Afinal quem o colocou no seu estabelecimento? Antes, todos os elementos que corporizam a máquina em apreço (que ao nível do software, quer ao nível do hardware já mencionado, sobretudo com o “noteiro”) são de molde a não fazer duvidar, não só, que a mesma se destinava (principalmente) à utilização para a execução de jogos de fortuna ou azar, como que o arguido não poderia deixar de saber que a máquina se destinava a esse fito.
No mais, tomou-se em consideração o teor do C.R.C. de fls. 81/83.
No que finalmente concerne aos factos não provados cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram, designadamente no que concerne à propriedade do equipamento e às demais condições do arguido.
***

Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.

Assim, o recorrente:
- alega a nulidade da acusação;
- invoca o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- insurge-se contra a medida das penas aplicadas.
*

Da nulidade da acusação

Alega o recorrente que a acusação é nula porque omite as características da máquina/computador e dos respectivos jogos, donde resulta não estar descrito o modo de execução do crime – a que não basta a remissão para o Relatório Pericial, por violar o princípio do acusatório e do contraditório e da vinculação temática, constitucionalmente protegidos.
Conclui, assim, existir a nulidade prevista no nº 3 do art. 283º do Cód. Proc. Penal, que entende não poder considerar-se como suprida na sentença apesar da alteração que esta, ilegalmente, introduziu no texto acusatório.
Nos termos da alínea b) do nº 3 do art. 283º, a acusação tem que conter, sob pena de nulidade “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sentença que lhe deve ser aplicada”.
E nos termos do nº 3 do art. 311º do Cód. Proc. Penal, a acusação que não contenha a narração dos factos considera-se manifestamente infundada. Neste caso deve ser rejeitada (cfr. a alínea a) do nº 2 do mesmo art.).
A acusação em questão, não foi rejeitada.
Compulsados os autos, e no que se refere às características da máquina, e dos jogos, em causa, verificamos que a acusação faz a seguinte descrição:

- uma máquina com estrutura em metal de cor preta, com um mecanismo de introdução de moedas na parte lateral esquerda e, na parte lateral direita, um mecanismo de introdução de notas, contendo a quantia de € 380,00 em notas e moedas do Banco Central Europeu, com as características, composição e tipo de jogo constantes do relatório de exame pericial de fls. 45 a 51, que aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos, nos termos do artigo 97º, nº 4 do CPP, nomeadamente com um disco rígido, cujo último ficheiro executado é identificável “s_hallo.exe”, sendo possível executar o ficheiro “locky.exe”, o qual invoca um outro ficheiro “m1.exe”, responsável pelo funcionamento de jogos de fortuna e azar; após, descoberta de uma segunda password foi possível descompactar os ficheiros de jogo de fortuna e azar que aí se encontravam, e deles extrair os recursos/imagens que são utilizadas no desenvolvimento de cada jogo, “H. (hpi.tmp)”, “H. (hti.tmp)”, “H. (Hvi.tmp)” e “PN(pfi.tmp)”.
Não podemos deixar de concordar que a narração dos factos feita na acusação não é a mais feliz, uma vez que, sem descrever os jogos, classifica-os como de fortuna e azar, recorrendo a um conceito jurídico.
Todavia, também não podemos deixar de ter em atenção que, quanto ao tipo de jogo, se faz uma remissão para as características “constantes do relatório de exame pericial de fls. 45 a 51, que aqui se dá por reproduzido para todos os legais efeitos” – ainda que a menção feita para o artigo 97º, nº 4 do CPP seja ininteligível.
Ora foi precisamente com referência a este relatório pericial de fls. 45 a 51 que na sentença se descreveu o tipo de jogos desenvolvido pela máquina, possibilitando a conclusão de que estávamos perante jogos de fortuna e azar.
Desta forma podemos afirmar que a remissão para o relatório pericial permite que se aceite a narração dos factos feita na acusação, ainda que pela técnica da remissão.
Com efeito, temos para nós que só uma falta grave, que seja susceptível de comprometer o êxito da acusação e que obste a uma apreciação de mérito, justifica que se considere nula a acusação (permitindo até a rejeição liminar).
Afirma Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, 2009, p. 789) que para uma acusação se considerar manifestamente infundada têm de se verificar “vícios estruturais graves” – enunciados no nº 3 do art. 311º do Cód. Proc. Penal. Significa isto que a acusação, para se poder considerar nula, não pode ser apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de considerar nula a acusação quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves.
É o caso dos autos, de tal modo que a sentença recorrida veio narrar os factos pertinentes sem recurso a remissão, mas sem que se possa considerar que acrescentou algo de novo, visto que se limitou a transcrever os factos que se encontravam no relatório pericial para que tinha sido feita aquela remissão.
Aproveitamos para esclarecer que não existe a nulidade prevista no art. 379º 1 b) do Cód. Proc. Penal, que estipula a nulidade da sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação (ou na pronúncia se a houver) fora dos casos e das condições previstos nos arts. 358º e 359º.
Dispõe o nº 1 do art. 358º do Cód. Proc. Penal que “se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”; acrescenta o nº 2 que “ressalva-se do disposto no número anterior o caso da alteração ter derivado de factos alegados pela defesa”.
O art. 359º do Cód. Proc. Penal preceitua que uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, excepto se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
Ora a alteração substancial dos factos está definida como sendo “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” (art. 1º f) do Cód. Proc. Penal), pelo que alteração não substancial, para efeitos do citado art. 358º será toda aquela alteração dos factos descritos (na acusação ou na pronúncia), que não implique a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, e que tenha relevo para a decisão da causa.
Isto não significa, porém, que qualquer alteração de factos tenha que ser comunicada.
Obviamente, se é pacífico que uma alteração substancial de factos (que é aquela, de acordo com o disposto na alínea f) do art. 1º do Cód. Proc. Penal, que tem como efeito uma agravação da posição do arguido no processo, quer pela integração num crime diverso daquele ou daqueles que lhe foram imputados, quer pela elevação dos limites máximos das sanções abstractamente aplicáveis) tem que seguir a tramitação imposta pelo art. 359º do Código citado, já no que concerne à alteração não substancial temos que considerar que não é qualquer alteração que exige que se siga a tramitação prevista no art. 358º do mesmo Código.
Com efeito, ainda que aos factos da acusação (ou da pronúncia) se aditem outros, ou se excluam ou substituam alguns deles, para haver uma alteração não substancial terá que se considerar que essa alteração é jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa.
Por exemplo, não será relevante a alteração que consista na exclusão, pura e simples, de factos que configuram uma circunstância qualificativa ou agravativa; e também não é alteração de factos a descrição dos mesmos factos da acusação ou da pronúncia, mas com uma formulação distinta, ou a explicitação ou concretização de factos já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia, desde que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa.
Pelo contrário, a alteração será jurídico-penalmente relevante para a decisão da causa quando a alteração dos factos puder influir na determinação da medida da pena (ainda que o crime se mantenha o mesmo).
No caso dos autos, não houve qualquer alteração relevante de factos porque a sentença se limitou a explicitar e concretizar factos já expressos na acusação, ainda que por remissão.
E salvo o devido respeito por opinião contrária, este entendimento não viola os princípios do acusatório e do contraditório, nem o princípio da identidade do objecto do processo, considerando que a acusação, remetendo para documento (relatório pericial) que se encontrava nos autos, assegura todas as garantias e prerrogativas de defesa, permitindo um processo penal justo e equitativo.

Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

Alega o recorrente que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada uma vez que não se pronunciou sobre as suas condições sócio-económicas, como podia e devia, factos essenciais e indispensáveis à determinação da medida da pena.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal, ocorre quando, da factualidade elencada na decisão recorrida, resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão.
Trata-se de um vício que consiste em ser insuficiente a matéria de facto para a decisão de direito. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., p. 339) “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada”. Ou seja, é necessário que se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito.
Como se refere no Acórdão do STJ de 21.06.2007 (Processo 07P2268), a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é “a insuficiência que decorre da circunstância de o Tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da decisão da causa, ou seja, os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339º, nº 4 do CPP”.
Analisados os factos provados, verificamos que apenas se apurou que o arguido explora um estabelecimento de café e os seus antecedentes criminais.
Em relação às suas condições pessoais e económicas, nada se sabe.
O art. 71º do Cód. Penal determina que na fixação concreta da medida da pena o Tribunal tenha em consideração “as condições pessoais do agente e a sua situação económica” (al. d)), bem como a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime (al. e).
Ensinava Jescheck que “as condições pessoais e económicas do agente influem primordialmente nas repercussões que a pena tem sobre a integração social daquele (prevenção especial). Daí que o tribunal tenha que esclarecer suficientemente tais condições pessoais para poder ajuizar o alcance que o cumprimento de uma pena (…) tem para a vida pessoal e privada do autor” (Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Granada, 2002, p. 939).
Também ensina Anabela Rodrigues que “os factores que relevam para a medida da pena da culpa e que têm a ver com a personalidade (…) são (…) aqueles que o legislador considera sob o designativo de «condições pessoais do agente e sua situação económica» (alínea d)) e a «gravidade da falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto» (alínea f)) (…). O que de mais relevante haverá a considerar a propósito do factor da medida da pena que se refere à «gravidade da falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto», é que desta forma o legislador quis chamar autonomamente a atenção para a relevância da personalidade para a medida da pena da culpa. (…) A personalidade releva para o juízo de culpa” (A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, 1995, pp. 665-667). E conclui que “a generalidade dos factores relativos à personalidade do agente poder-se-á dizer que relevam para a medida da pena preventiva, geral e especial. É assim que, não só as condições pessoais e económicas do agente, como as qualidades da personalidade, ganham relevo neste contexto” (loc. cit. p. 678).
Não há dúvida de que uma decisão ponderada sobre a pena (quer a escolha, quer a medida) necessita do conhecimento dos factos relativos à pessoa e personalidade do arguido.
E sempre que se opte por pena de multa (como foi o caso), a determinação do respectivo quantitativo diário impõe uma consideração sobre a situação económico-financeira do condenado (art. 47º, nº 2 do Cód. Penal).
Podemos, assim, afirmar que ao encerrar a produção da prova sem se encontrar dotado de todos os elementos necessários à boa decisão, o tribunal cometeu a nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d) do Cód. Proc. Penal – o que deveria ter evitado, pois o arguido, embora tivesse estado ausente na 1ª sessão de julgamento, compareceu à leitura da sentença, pelo que deveria o Tribunal ter procedido à reabertura da audiência com vista a apurar as suas condições pessoais (nos termos dos arts. 369º,nº 2 e 371º do Cód. Proc. Penal).
Mais, a sentença condenatória, porque omite factos relevantes para a determinação da sanção, enferma do vício de insuficiência da matéria de facto provada, nos termos da alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal, com as consequências previstas no nº 1 do art. 426º do mesmo Diploma – neste sentido vide, por todos, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2016 (Proc. 247/03.8PBBGC.G1; do Tribunal da Relação de Évora de 11.09.2012 (Proc. 109/12.8PALGS.E1); e do Tribunal da Relação do Porto de 9.09.2015 (Proc. 187/07.1GCSJM.P1).
O que se impõe, ficando prejudicada a apreciação sobre a medida das penas.
***

Decisão

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso quanto à invocada nulidade da acusação; e julgam verificado o vício de insuficiência da matéria de facto provada, nos termos da alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal, determinando o reenvio do processo para novo julgamento restrito à matéria da determinação da pena (art. 426º do Cód. Proc. Penal) a fim de serem apurados (apenas) factos relativos à personalidade do arguido e às suas condições pessoais e económicas, proferindo-se decisão sobre a pena.
Sem custas.

Guimarães, 5.02.2018
(processado e revisto pela relatora)

(Alda Tomé Casimiro)
(Fernando Pina)