Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
510/19.6T8FAF.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: PESSOAS COLETIVAS
RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL
ART. 7º
N.º 2
DO RGCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) As pessoas coletivas, ainda que incapazes de atividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela violação das normas que visam proteger os bens jurídicos de que são destinatárias.

II) No entanto, na medida em que não podem, por incapacidade natural de ação, cometer por si mesmas infrações, a sua responsabilidade por estas há de derivar dos comportamentos, ativos ou omissivos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares ou físicas, que lhes são atribuídos segundo um certo modelo de imputação, legalmente definido.

III) A expressão "órgãos no exercício das suas funções", utilizada no art. 7º, n.º 2, do RGCO, que define o modelo de imputação adotado para a responsabilidade contraordenacional, tem aqui uma abrangência maior que os centros institucionalizado de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou pelo colégio de indivíduos, abrangendo, por interpretação extensiva, os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, que são quem pratica ou omite os atos suscetíveis de censura contraordenacional, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, exceto quando atuem contra ordens expressas ou em seu interesse exclusivo, não se quedando assim pelos seus órgãos sociais.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo de contraordenação com o NUICO 0009846, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDRN) proferiu decisão, em 08-04-2019, a condenar a arguida, "R. C., UNIPESSOAL, LDA.", pela prática da contraordenação prevista e punida pelo n.º 1 do art. 13º do DL n.º 78/2004, de 03 de abril (na sua redação atual), e na al. b) do n.º 2 do art. 34º do mesmo diploma, conjugado com o n.º 2 do art. 9º da Lei n.º 50/2006, de 03 de julho (na sua redação atual), na coima de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
2. Não se conformando com essa decisão, a arguida impugnou-a judicialmente, tendo o Mmº. Juiz a quo, por sentença de 07-10-2019, julgado improcedente o recurso, mantendo a referida condenação.
3. Mais uma vez inconformada, a arguida interpôs recurso dessa sentença, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição parcial[1]):

«Em conclusão
(…)
D. Inconformada com tal douta decisão, a empresa arguida interpôs o presente recurso, por entender que a decisão recorrida está a violar o estatuído no artigo 7º, n.º 2 do Dec-Lei n.º 433/82, de 27/10, do RGCCO, onde se diz: “As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.
E. Na verdade, tendo em conta que na matéria de facto dada como provada, na douta decisão recorrida, no seu Ponto n.º 2, o seguinte: “2) No local verificaram uma queima de resíduos, nomeadamente plásticos, cartão e borracha efetuada por trabalhadores da aqui arguida”, dúvidas não restam de que a referida “queima” foi efetuada por trabalhadores daquela empresa e não por nenhum membro dos seus órgãos, ou por ordens dadas por estes.
F. Sendo de realçar que, na douta decisão recorrida não se deu como provado que os trabalhadores da empresa arguida tenham agido contra a vontade e sem a autorização da sua entidade patronal, mas também não se deu como provado que os mesmos agiram segundo as ordens e as instruções da sua entidade patronal.
G. Por outro lado, face ao teor da citada norma, não restam dúvidas de que para que uma contraordenação possa ser imputada a uma pessoa coletiva é necessário que a mesma seja cometida pelos seus órgãos, no exercício das suas funções.
H. Assim sendo, mostra-se necessário saber qual é o conceito de órgão. Como escreve o prof. Germano Marques, “O conceito de órgão numa sociedade não suscita dificuldades especiais, quando se refere a órgãos de direito. Basta analisar a legislação referente às sociedades e aos respetivos estatutos. Estes órgãos são constituídos por uma ou várias pessoas físicas que atuam colegialmente às quais a lei ou os estatutos atribuem uma função particular na organização da sociedade.”
I. Já o conceito de órgão, em termos doutrinais, vem sendo definido como “.....o elemento da pessoa coletiva que consiste num centro institucionalizado de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou colégio de indivíduos que nele estiverem providos com o objetivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa coletiva.” – Prof. Germano Marques da Silva, obra citada.
J. Nesta conformidade, sendo a recorrente uma sociedade por quotas, a sua administração e representação compete aos gerentes, nos termos do disposto no artigo 252º, do Código das Sociedades Comerciais e apenas àqueles que tenham sido designados no seu contrato social.
K. Aplicando tais ensinamentos ao caso em análise, constata-se que o facto típico foi praticado por funcionários da recorrente, sendo certo que nenhum deles assume ou tem a qualidade de órgão da empresa recorrente.
L. Não se olvidando que, um simples funcionário é alguém que se integra no conceito de agente ou auxiliar, pelo que o mesmo não manifesta uma vontade que possa ser imputável à pessoa coletiva, pelo que, e consequentemente, não é um órgão nos termos e para os efeitos do estabelecido no artigo 7º, n.º 2, do RGCO.
M. Nesta conformidade e atentos os factos dados como provados, não é possível concluir que os citados funcionários tenham praticado os factos, no caso – queima de resíduos, nomeadamente plásticos, cartão e borracha efetuada por trabalhadores da arguida - mediante instruções, ainda que genéricas, da gerência da recorrente. Pelo que, não pode a contraordenação objeto dos presentes autos ser imputada à empresa arguida, aqui recorrente, devendo, por isso, a mesma ser absolvida da sua prática.
N. Pelo exposto, deverá o presente recurso ser declarado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, sendo a aqui arguida recorrente absolvida da prática da contraordenação, prevista e punida pelos artigos 13º, n.º 1 e 34º, n.º 2, al. b), do Decreto-Lei 78/2004 de 3 de Abril e artigo 9º, n.º 2, da Lei 50/2006.»
4. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu à motivação da recorrente, entendendo que se deve manter nos seus precisos termos a decisão recorrida, pelos fundamentos sintetizados nas conclusões que formulou e que a seguir se transcrevem:
«(…)
2. A contraordenação imputada à arguida é imputada a título de negligência.
3. Na sentença recorrida não se imputa à recorrente a realização da queima, nem tão pouco que a arguida tenha dado instruções, ainda que genéricas, para se proceder à queima dos resíduos do modo apurado.
4. O que vem imputado à recorrente é que a mesma não tomou medidas concretas, em momento anterior à data dos factos, no sentido de evitar que os seus trabalhadores realizassem a queima de resíduos do modo apurado.
5. Daí não fazer qualquer sentido o argumento de que a pessoa coletiva só é responsável pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos e que os trabalhadores não constituem órgãos da sociedade.
6. Como se vê, a conduta negligente só poderia como foi, imputada à gerência, sendo que o gerente, de forma vaga, genérica e pouco credível veio descrever o processo de gestão de resíduos que implementou na sociedade e que, em determinados aspetos nem sequer foi sobreponível com os procedimentos descritos pelas restantes testemunhas.
7. Fez-se, ainda, referência a um regulamento interno quanto à gestão de resíduos, o qual nunca foi apresentado nos autos e ainda mais reforçou a ideia de que esta questão não foi devidamente acautelada pela recorrente, mas antes negligenciada.
8. Assim, a decisão recorrida não violou qualquer normativo legal.
9. Nada há a censurar à decisão recorrida.»
5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, perfilhando a judiciosa análise da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, aditando-lhe que, ademais a jurisprudência citada na muito bem redigida e cuidadosamente fundamentada sentença em apreço e na decisão administrativa, o Conselho Consultivo da PGR, no seu Parecer n.º 11/2013, doutrinou, na conclusão 4ª, a necessidade de o art. 7º, n.º 2, do aludido Regime Geral das Contraordenações ser interpretado extensivamente, de molde a que, na sua previsão e na sua estatuição, se englobem tantos os trabalhadores da pessoas coletiva como os administradores, gerentes e mandatários ou representantes, posto que atuem no exercício de funções ou por causa delas, sendo esse, manifestamente, o caso, justificando-se ainda a menção ao preceito do art. 8º, n.º 4, da mencionada Lei n.º 50/2006, revogado que foi no entanto pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, o qual exigia um ónus probatório à pessoa coletiva no sentido de ter ela de provar a observância de todos os deveres a que estava obrigada sem que lograsse, todavia, obstar a que os seus trabalhadores praticassem o ilícito em causa, concluindo, assim, que o recurso deve soçobrar.
6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a recorrente não respondeu ao parecer do Ministério Público.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso[2].

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, a única questão a apreciar consiste em saber se, tendo presente o disposto no art. 7º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações, a sociedade arguida não pode ser responsabilizada pelo ato de queima de resíduos efetuada por trabalhadores seus, por estes não serem órgãos da pessoa coletiva e por não estar demonstrado que atuaram segundo ordens e instruções da sua entidade patronal.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

2.1 – Nela foram considerados como provados os seguintes factos (transcrição):

«1) No dia 16 de Abril de 2013, pelas 9:08h, a Vigilância Florestal do Município de …, deslocou-se à Rua …, ….
2) No local verificaram uma queima de resíduos, nomeadamente plásticos, cartão e borracha efetuada por trabalhadores da aqui arguida.
3) A arguida não tem antecedentes contraordenacionais da mesma natureza que os em causa nos presentes autos, nem antecedentes criminais.
4) A arguida não agiu com a diligência necessária para evitar a prática dos factos referidos em 2).»
2.2 – Por seu turno, foi dado como não provado que (transcrição):
«a) Em todas as obras a arguida tem um local próprio para a colocação/acondicionamento dos resíduos em conformidade com regulamento interno da empresa, transportando-os para um aterro.
b) Os trabalhadores da requerida tenham realizado a queima de resíduos mencionada em 2) para se aquecerem, fora do seu horário de trabalho.
c) Tendo a fogueira apenas queimado paus e lenha.
d) Fazendo-o contra as indicações do gerente da arguida.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A arguida foi condenada pela prática da contraordenação prevista no art. 13º, n.º 1, do DL n.º 78/2004, de 03 de abril, em vigor à data dos factos (16-04-2013), segundo o qual “[é] expressamente proibida a queima a céu aberto de quaisquer resíduos, na aceção do Decreto-Lei n.º 239/97, de 9 de Setembro, bem como de todo o tipo de material designado correntemente por sucata”, infração esta punível pelo art. 34º, n.º 2, al. b), do mesmo diploma, como contraordenação grave, com coima de € 500 a € 3.700, no caso de pessoas singulares, e de € 5 000 a € 44 800, no caso de pessoas coletivas.
Como é mencionado na decisão recorrida, apesar de esse decreto-lei ter sido revogado pelo art. 43º, al. a), do DL n.º 39/2018, de 11 de junho, com efeitos a partir de 01-07-2018, não deixa de prever um regime mais favorável à arguida que o previsto no ainda vigente Regime Geral de Gestão de Resíduos, aprovado pelo DL n.º 178/2006, de 05 de setembro, cujo art. 9º, n.º 3, dispõe que “[s]ão igualmente proibidos o abandono de resíduos, a incineração de resíduos no mar e a sua injeção no solo, a queima a céu aberto nos termos do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 3 de Abril, bem como a descarga de resíduos em locais não licenciados para realização de tratamento de resíduos”.
Constituindo esta infração uma contraordenação ambiental muito grave, punível nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (cf. art. 67º, n.º 1, al. a), daquele diploma), punível, quando praticada por pessoa coletiva, com coima de € 24 000 a € 144 000 em caso de negligência e de € 240 000 a € 5 000 000 em caso de dolo, constitui um regime mais desfavorável, pelo que será de afastar a sua aplicação, de acordo com o disposto no art. 3º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações (RGCO), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 22 de outubro.
Sustenta a recorrente que não pode ser condenada pela referida contraordenação, porquanto os factos foram praticados pelos seus trabalhadores, os quais não podem ser considerados como seus órgãos para os efeitos do n.º 2 do art. 7º do RGCO.
As pessoas coletivas, ainda que incapazes de atividade física que as concretize, são dotadas de consciência e vontade próprias, devido à sua estrutura organizativa. Como tal, são direta e autonomamente destinatárias das normas que visam proteger os bens jurídicos, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela respetiva violação[3].
No entanto, na medida em que as pessoas coletivas não podem, por incapacidade natural de ação, cometer por si mesmas infrações, a sua responsabilidade por estas há de derivar dos comportamentos, ativos ou omissivos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares ou físicas, que lhes são atribuídos segundo um certo modelo de imputação, legalmente definido.
O art. 7º, n.º 1, do RGCO, ao dispor que "as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidades jurídicas", consagra o princípio da responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas.
Quanto ao modelo de imputação adotado para a responsabilidade contraordenacional, dispõe o n.º 2 do mesmo artigo que “[a]s pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.
Na decisão recorrida, para fundamentar a responsabilização da arguida, o Mm.º Juiz referiu expressamente aderir ao entendimento de que as pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, nestes se integrando os trabalhadores ao seu serviço desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, havendo, assim, que fazer uma leitura menos restritiva do citado artigo, sob pena de, não o fazendo, desembocarmos na irresponsabilidade das sociedades, pois sempre que os atos ou omissões fossem praticados pelos seus trabalhadores, independentemente de serem ou não praticados de acordo com as instruções da entidade patronal, no exercício de funções e no interesse da mesma, não haveria responsabilidade da sociedade.
É efetivamente esse o entendimento maioritário da jurisprudência[4], ao considerar que a expressão "órgãos no exercício das suas funções", utilizada no art. 7º, n.º 2, do RGCO, tem aqui uma abrangência maior que os centros institucionalizado de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou pelo colégio de indivíduos, abrangendo, por interpretação extensiva, os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, que são quem pratica ou omite os atos suscetíveis de censura contraordenacional, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, exceto quando atuem contra ordens expressas ou em seu interesse exclusivo, não se quedando assim pelos seus órgãos sociais.
Há também quem defenda a necessidade de uma interpretação atualista do n.º 2 do art. 7º do RGCO, de forma a harmonizar o seu alcance com a norma posteriormente introduzida no art. 11º, n.º 2, do Código Penal, central na legislação penal, de modo a que as pessoas coletivas ou entidades equiparadas sejam responsabilizadas pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções e também quando cometidas em seu nome e no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança, ou quando cometidas por quem aja sob a autoridade das pessoas antes referidas em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbam.
Também no Parecer n.º 11/2013[5], o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República concluiu que «[o] preceito do n.º 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas», adotando assim «(…) a tese da responsabilidade autónoma da pessoa coletiva, o que se traduz, na prática, na possibilidade de imputação da responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva desde que seja cometida uma infração tipificada como ilícita e que seja imputável a alguém que atue por conta ou em nome da pessoa jurídica (titulares dos seus órgãos, mandatários, representantes ou trabalhadores).».
Na doutrina são críticos desta posição Nuno Brandão[6] e Augusto Silva Dias[7].
Este último autor defende que, de jure constituto, a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta num modelo orgânico e não numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num "defeito estrutural da organização empresarial" (defective corporate organization) ou "culpa autónoma por défice de organização", quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva. Assim, nos casos em que o executante é mandatário, representante ou funcionário da pessoa coletiva e atua no exercício de funções, o facto típico só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva por ele vinculada, se o dirigente, mandatário, representante ou funcionário tiverem agido no cumprimento de ordens desse órgão ainda que genéricas, não deixando, no entanto, o autor de considerar criticável, esta limitação, por ser inadequada à natureza da responsabilidade contraordenacional e de certo modo contraditória com o princípio da equiparação implícito no art. 7º, n.º 1, do RGCO.

Recentemente, no acórdão n.º 566/2018[8], o Tribunal Constitucional concluiu que inexistem razões para questionar e desconsiderar a referida interpretação extensiva do art. 7º, n.º 2, do RGCO. Como se pode ler no seguinte excerto desse aresto:

«Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais – a uma realidade institucional ou estatutária (sobre as diferentes conceções a respeito da natureza de órgãos, v., por exemplo, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, pp. 624 e ss.). Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (v., a título meramente exemplificativo: o artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo – «centros institucionalizados de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva» –; e o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal - «entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código»).
Na perspetiva material da atividade dos entes coletivos (por contraposição à perspetiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa coletiva –, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja atuação é imputada ao ente coletivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples atuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa atuação em nome do ente coletivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respetiva atividade.
Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «[e]m tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo; itálico aditado).»

No caso vertente, a arguida alegou que a queima dos resíduos foi feita contra as indicações do seu gerente e por iniciativa dos trabalhadores, para se aquecerem, fora do horário de trabalho, tendo apenas queimado paus e lenha.
Todavia, estes factos não resultaram provados [cf. als. b), c) e d) da factualidade não provada], subsistindo assim, que a queima foi efetuada pelos trabalhadores da arguida, no local de trabalho (uma obra de construção civil que esta levava a cabo), em pleno horário de trabalho, o que permite concluir que os factos foram praticados pelos trabalhadores, no exercício das suas funções, pressuposto para a responsabilidade da pessoa coletiva por via dessa atuação, nos termos do art. 7º, n.º 2, do RGCO.
Com efeito, é esse o sentido útil e normal que deve ser retirado do facto, dado como provado, de a queima estar a ser feita pelos "trabalhadores da arguida", no local e em pleno horário de trabalho, sem extravasar as suas atribuições funcionais (por configurar limpeza do recinto da obra) e fora de uma qualquer atuação espontânea, por iniciativa e no interesse dos próprios trabalhadores ou contra as instruções do gerente da arguida.
Sem necessidade de demonstração específica, como pretende a recorrente, que os trabalhadores atuaram no cumprimento de instruções, ainda que genéricas, suas, por tal estar implícito no aludido contexto em que os factos ocorreram, em contraponto com a indemonstrada atuação por iniciativa própria dos trabalhadores e contra as instruções do gerente da arguida.
Ademais, o facto de também ter sido dado como provado, apesar dos termos algo conclusivos, que a arguida não agiu com a diligência necessária para evitar a queima dos resíduos, sugere que os seus trabalhadores atuaram no exercício das respetivas funções, sendo certo que lhe cabia a ela assegurar-se que aqueles, ao procederem à limpeza do recinto da obra, não procedessem a tal queima e providenciar para que os resíduos fossem encaminhados de acordo com as normas legais de gestão dos mesmos.
Por conseguinte, não merece censura a decisão recorrida, ao responsabilizar a recorrente pela prática da contraordenação em apreço, uma vez que os factos foram praticados em seu nome e interesse, não se demonstrando que os trabalhadores atuaram por iniciativa própria e contra as suas ordens e instruções.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, "R. C. - Unipessoal, Lda.", confirmando a sentença recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, arts. 92º, n.ºs 1 e 3, e 93º, n.º 3, do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, e art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)

*
Guimarães, 27 de janeiro de 2020

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)


1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizadas, que são da responsabilidade do relator.
2. - Cf. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
3. - Vd. Germano Marques da Silva, Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes, Verbo, 2009, pág. 161.
4. - Cf., entre outros, os acórdãos do TRC de 29-11-2000 (processo n.º 452/2000) e de 09-11-2011 (processo n.º 179/10.3TBMMN.C1), do TRP de 06-06-2012 (processo n.º 4679/11.0TBMAI.P1), de 27-06-2012 (processo n.º 7402/11.5TBMAI.P1) e de 21-03-2013 (processo n.º 6334/11.1TBMAI.P1) e do TRL de 27-06-2019 (processo n.º 5840/14.0ECLSB.L1-9), todos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
5. - Publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 178, de 16 de setembro de 2013.
6. - Questões contraordenacionais suscitadas pelo novo regime legal da mediação de seguros, in Direito Penal Económico e Europeu, Volume III, Textos Doutrinários, Coimbra, editora, pág. 723.
7. - In Direito das Contraordenações, Almedina, 2018, págs. 91-98.
8. - Proferido a 07-11-2018, no processo n.º 336/18, disponível em disponível em http://www.dgsi.pt.