Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
825/21.3T8VCT.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: TRIBUNAL DO TRABALHO
COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Invocando o autor uma relação de trabalho regulada pelo regime do Código do Trabalho e não pela Lei Geral do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, é competente para conhecer da acção respectiva o tribunal do trabalho e não o tribunal administrativo, ainda que o réu seja uma pessoa colectiva de direito público.

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

A. R. e outros intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum, contra INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, I.P., pedindo que:

- sejam os Autores reconhecidos e declarados como trabalhadores do Réu durante os períodos em que trabalharam para o mesmo, com todas as consequências legais inerentes;
- em face do sobredito, seja o Réu condenado a pagar aos Autores as quantias de férias, subsídio de férias e de Natal, bem como os subsídios de refeição, no montante global de 432.368,50 €, acrescido dos respectivos juros de mora, desde o final de cada ano civil em que os pagamentos deveriam ter sido efectuados até efectivo pagamento.

Para tanto alegaram, em síntese:
- os Autores foram contratados pelo Réu para o desenvolvimento de actividades de formação, mediante consecutivos contratos de aquisição de serviços de formação, desde datas situadas entre Março de 2013 e Outubro de 2014, consoante os casos, até 30 de Abril de 2020;
- os contratos anuais de aquisição de serviços de formação foram celebrados ao abrigo dos procedimentos de contratação 1/2012 e 1/2015, que visavam a contratação para os Centros de Emprego e Formação Profissional do Instituto do Emprego e Formação Profissional, IP, com vista ao suprimento de necessidades de docentes/formadores, para o período compreendido entre 2013/2015 e 2016/2018, e dum último procedimento inominado para o período de 1 de Janeiro de 2020 a 30 de Junho de 2020;
- entretanto, com base no PREVPAP, programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública, entre outros os “falsos prestadores de serviços”, em 1 de Maio de 2020 os Autores integraram os quadros do IEFP como trabalhadores (de facto e de direito), continuando a exercer as funções de formador nos mesmos termos e circunstâncias que anteriormente;
- na avaliação da sua situação, reconheceu-se que os Autores eram necessidades permanentes do Estado e o Réu tinha poderes de direção e disciplina sobre eles e determinava os seus horários de trabalho, e, por isso, que os alegados contratos de prestação de serviços não eram adequados ao modo de exercício das funções, que, na verdade, correspondia a trabalho subordinado;
- com efeito, a prestação da actividade pelos Autores revestia as características previstas nos arts. 11.º e 12.º do Código do Trabalho, designadamente: os horários nos quais era ministrada formação eram unilateralmente impostos pelo Réu, atendendo às necessidades de cada curso; existindo trabalho de formação, o horário era das 9h00 às 16h30, e inexistindo era das 9h30 às 17h30; o Réu controlava o cumprimento dos horários de trabalho, exigindo o preenchimento de folhas de registos diários ao longo dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016, bem como dos livros de ponto das diferentes acções de formação de que estavam incumbidos, e os atrasos e faltas eram objecto de registo; as funções levadas a cabo pelos Autores eram predominantemente desempenhadas no Centro de Emprego e Formação Profissional do Porto e Viana do Castelo e respectivas NUT ou noutros locais indicados pelo Réu; as deslocações que os Autores efectuavam às entidades protocoladas eram inerentes às suas funções e eram contadas para efeitos de tempo de trabalho; quando não se encontravam a ministrar formação estavam presentes nas instalações do Centro, organizando o serviço e formação, assim como participando em reuniões ou acolhendo os formandos que atendiam pessoal ou telefonicamente; cumpriam um horário de trabalho similar ao dos demais funcionários do IEFP, IP., com os quais faziam “equipas de trabalho”; todos os instrumentos de trabalho que os Autores utilizavam no desempenho da sua actividade eram fornecidos pelo Réu (a título exemplificativo: quadros, marcadores, projectores, fotocópias, instalações, etc.); no Centro de Emprego e Formação Profissional, existia uma área reservada aos formadores, dispondo os Autores de um posto de trabalho, com secretária, cadeira, computador, impressora, telefone (estes dois últimos partilhados), etc.; o Réu determinava e impunha quer os procedimentos, quer os métodos de trabalho a serem seguidos pelos Autores; cada formação ministrada tinha um livro de ponto próprio, que os Autores tinham de preencher, e um dossier técnico-pedagógico que os Autores tinham de organizar e arquivar nas instalações do Réu; os Autores não tinham qualquer opção sobre quem eram os formandos, em cuja escolha não participavam directa ou indirectamente; os Autores encontravam-se na dependência hierárquica e funcional dos quadros do IEFP, IP., mais precisamente do respectivo director e dos coordenadores de formação do Centro de Emprego e Formação Profissional do Porto e Viana do Castelo, a quem reportavam quaisquer problemas ou ocorrências; os Autores recebiam as indicações respeitantes ao modo de execução do seu trabalho, estando igualmente sujeitos aos regulamentos, ordens e directrizes internas do Réu, de modo similar aos colaboradores identificados como trabalhadores do Réu; recebiam ainda, por parte do IEFP, diversos cronogramas relativos à forma temporal de execução do seu trabalho; eram convocados para comparecer obrigatoriamente em reuniões de coordenação, às quais sempre compareceram independentemente de estas serem com a direcção do Centro ou para coordenar as acções de formação; no desenvolvimento das suas actividades, os Autores, por imposição do Réu, chegaram a assumir a coordenação de turmas, sendo verdadeiros “directores de turma”; os Autores estavam, inclusivamente, sujeitos a auto e hetero-avaliação que tinha por desiderato atestar o seu desempenho enquanto formadores, bem como as qualidades pedagógicas destes; tinham, ainda, de seguir os programas pré-definidos das disciplinas, bem como efectuar os relatórios das avaliações nos prazos que o Réu fixava; eram obrigados a entregar relatórios referentes à execução dos programas dos cursos de formação; o Réu, através da Direcção do Centro ou coordenação dos cursos, fixava-lhes prazos para a entrega de relatórios e avaliações; estavam ainda sujeitos à entrega de registos mensais de actividades; finalmente, auferiam uma remuneração mensal do Réu, que era calculada com base no número de horas que leccionavam em cada mês., pelo que, tendo em conta a carga média semanal de 30 horas, a retribuição média mensal era de 1.728,00 € (14,40€ x 30h x 4);
- por conseguinte, os Autores eram trabalhadores do Réu, mas, desde o início da relação laboral, nunca receberam qualquer remuneração a título de férias (o Réu obrigava os Autores a parar no mês de Agosto e na última quinzena de Dezembro) e de subsídios de férias e de Natal, bem como a título de subsídio de refeição;
- assim, reconhecendo-se que a relação jurídica entre os Autores e o Réu era de trabalho, pelo menos nos contratos anuais, pretendem aqueles reclamar o pagamento de tais créditos.

Na contestação, o Réu invoca a incompetência material do tribunal, sustentando, em síntese, que o IEFP, I. P. é um instituto público, que pertence à administração indireta do Estado e, como tal, as questões relacionadas entre o próprio e os seus colaboradores deverão obedecer, considerando o lapso temporal aqui em causa, à regulamentação prevista na LTFP, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho, ou seja, a existir um vínculo laboral, como pretendem os aqui Autores, estaríamos perante contratos de trabalho em funções públicas, os quais deverão ser apreciados na instância judicial competente, os Tribunais Administrativos.
Os Autores responderam, pugnando pela improcedência da excepção.

Seguidamente, foi proferido despacho saneador, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decide-se julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material deste tribunal de trabalho e, consequentemente, absolve-se o R. da instância.
Custas pelos AA.»

Os Autores vieram interpor recurso deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
«1 - O recurso é interposto do despacho proferido pelo Senhor Juiz “a quo”, que absolveu o recorrido da instância, por alegada verificação da incompetência material do Tribunal, nos termos da fundamentação legal dele constante.
2 – Contudo, os recorridos entendem que o Juízo do Trabalho de Viana do Castelo é competente materialmente, conforme ficará demonstrado.
3 - O signatário já patrocinou causa exactamente idêntica à dos autos que correu termos inicialmente no Juízo do Trabalho de Vila Real - Proc. 1740/18.3T8VRL – J1, sendo que a Senhora Juiz titular decidiu-se pela competência do Juízo do Trabalho, o que foi confirmado integralmente pelo Acórdão dessa Relação de 23/5/2019;
4 - Outro processo anterior do mesmo Juízo do Trabalho - Proc. 1831/17.8T8VRL – J1, confirmado na integra pelo Acórdão do TRG de 24/1/2019 – competência do foro laboral;
5 - Mais, existem inúmeros processos semelhantes onde o IEFP foi Réu e o Tribunal do Trabalho foi o competente para julgar a questão contrato de trabalho vs contrato de prestação de serviços: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/9/2017 – proc. 75/14.85TTBRR, também do STJ de 29/11/2006 – proc. 1960/06– 4ª secção;
6 - Mais, por clara assemelhação, Ré: Universidade do Porto - Ac do TRP de 4/11/2018 – Proc. 1376/12.2TTPRT, refere decisões do Tribunal de Conflitos - 08/14 Universidade do Porto, 017/16 Ré: Administração Central do Sistema de Saúde, IP e 045/18 – Ré: Junta de Freguesia;
7 - Como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência do Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria aferese em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14];
8 - A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável;
9 - Sendo o tribunal livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos, não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado;
10 - O que releva é a alegação dos autores de que estiveram ligados ao Réu através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por esses contratos:
11 - Assim, os AA. têm direito a que seja apreciado se têm ou não o direito que se arrogam, emergente do contrato individual de direito privado que defendem terem-nos vinculá-lo ao Réu, sendo competentes são os tribunais do trabalho;
12 – Outros exemplos jurisprudenciais análogos:
- TRL 19/10/2016 – Proc. 2413/12.6TTLSB – Réu Instituto dos Museus, IP
- TRP de 29/4/2019 – Proc. 2756/17.2T8MTS – USF, EPE
13 - Nestes termos, parece meridiamente óbvio para os AA. que este Tribunal é competente para apreciar o litígio, não se compreendendo a decisão em crise, quando todas estas alegações constavam dos autos.»
O Réu apresentou resposta ao recurso dos Autores, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação e para subir imediatamente, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos nesta Relação, o Senhor Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Vistos os autos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a única questão que se coloca a este tribunal é a de saber se o juízo do trabalho tem competência em razão da matéria para conhecer da acção em apreço.

3. Fundamentação de facto

A factualidade relevante é a decorrente do Relatório supra.

4. Apreciação do recurso

Nos termos do art. 126.º, n.º 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.
Por seu turno, nos termos conjugados do art. 4.º, n.º 1, al. o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e do art. 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho), são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes do vínculo de emprego público.
Em conformidade, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais esclarece no n.º 4, al. b) do citado art. 4.º que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público.

Refere-se na decisão recorrida:
«Os AA., para fundamentarem estas pretensões, invocam a existência desde Março de 2013 a Outubro de 2014, consoante os casos, de contratos de trabalho com o R., que é o Instituto de Emprego e Formação Profissional, IP.
A invocação da incompetência material deste tribunal por parte do Réu parte do princípio que nunca existiu uma relação laboral entre ele e os AA., mas apenas e tão-só um contrato de avença.
Pois bem, afigura-se-nos líquido que, independentemente da forma como originariamente foi criada a relação laboral, todos os contratos de trabalho estabelecidos com o Estado ou outros entes públicos, como o IEFP, se converteram, ope legis, em contratos de trabalho em funções públicas a partir de 1 de janeiro de 2009, por força do disposto na Lei 12-A/2008, de 27/2, e da Lei 59/2008, de 11/9.
Este regime legal, por força da Lei 35/2014, de 20/6, importa a sua extensão aos “contratos” em análise nestes autos, tanto mais que o Réu está legalmente impedido de celebrar contratos individuais de trabalho.
Dito de outra forma, a ter sido celebrado um contrato de trabalho subordinado entre as partes, necessariamente, face ao regime legal citado, este teria de ser um contrato em funções públicas.
Assim, salvo melhor entendimento, as relações laborais entre os AA. e o Réu, a existirem, regem-se pelo disposto no regime dos contratos em funções públicas e não na lei geral laboral.
A delimitação negativa da competência dos tribunais administrativos e fiscais, empreendida pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (na redacção que lhe foi dada pelo art. 10.º da Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), aponta claramente no sentido de que todos os litígios decorrentes de contratos de trabalho competem à jurisdição laboral, excepto exactamente aqueles que estão sujeitos ao citado regime.

Dispõe o artigo 4.º, n.º 3, al. d), da citada lei, que:
“Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

“d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção de litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas”.
Tratando-se no nosso caso, como vimos, de contratos de trabalho em funções públicas, este tribunal de trabalho é incompetente, em razão da matéria, para o apreciar e decidir.
Só assim não seria se os AA. formulassem qualquer pedido referente ao período anterior a 1 de Janeiro de 2009, pois que então, por força do princípio da conexão, este tribunal adquiria competência para apreciação de toda a matéria em causa (cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 16 de Junho de 2015, in www.dgsi.pt).
No caso, como também vimos, os AA. não formulam quaisquer pedidos que se reportem a data anterior àquela. Aliás, face aos contratos alegados, posteriores à mesma, também tal não poderia acontecer, pelo que a apreciação das questões suscitadas compete exclusivamente à jurisdição administrativa.»
Ora, salvo o devido respeito, o despacho recorrido confunde a base de que deve partir a afirmação da competência material do tribunal – a relação material controvertida tal como configurada pelos Autores na petição inicial – com a apreciação do mérito ou acerto desta configuração, através da análise e enquadramento jurídico dos contratos outorgados pelas partes, sem atender a que os Autores invocam relações jurídicas que, pelas características que alegam, acima descritas sinteticamente, se reconduzem em abstracto ao conceito de contrato de trabalho tal como definido nos arts. 11.º e 12.º do Código do Trabalho.
Acresce que, para além de inaplicável ao caso dos autos o regime da conversão ope legis dos contratos de trabalho em contratos de trabalho em funções públicas a partir de 1 de janeiro de 2009, posto que estão em causa relações jurídicas vigentes desde datas entre Março de 2013 e Outubro de 2014 até 30 de Abril de 2020, a invocada proibição legal de o Réu celebrar contratos individuais de trabalho não significa que o mesmo não tenha violado essa proibição legal, importando nesse caso – face ao pedido e à causa de pedir – apreciar se é aplicável o regime da nulidade previsto nos arts. 121.º a 125.º do Código do Trabalho, como se decidiu, v.g., no Acórdão da Relação de Évora de 28 de Junho de 2017 (1), em cujo sumário se diz que “[s]e os contratos de prestação de serviços são declarados nulos por consubstanciarem contratos de trabalho e como tal declarados, embora nulos por não terem sido celebrados de acordo com a forma prevista legalmente para a contratação em funções públicas, devem aproveitar-se todos os efeitos decorrentes da prestação de trabalho dos autores durante esse período de tempo como se estivéssemos perante contratos de trabalho válidos, incluindo a contagem do tempo para efeito de cálculo da antiguidade.”

Isto sem prejuízo, evidentemente, de ser julgada correcta outra solução, incluindo a de, efectivamente, não terem vigorado entre as partes quaisquer contratos de trabalho de direito privado, ainda que inválidos, designadamente por se estar perante relações jurídicas de emprego público, caso em que se imporá a improcedência da acção e a absolvição do pedido.
Em suma, quando se diz que a competência material do tribunal deve aferir-se pela relação material controvertida tal como configurada pelo autor, quer significar-se precisamente que deve atender-se à causa de pedir invocada e ao pedido formulado, não sendo correcto, para apreciação desta questão, fazer um juízo de prognose sobre o mérito ou viabilidade da pretensão deduzida. Isto é, não deve indagar-se se a natureza que o autor confere à relação de trabalho, pública ou privada, está de acordo com o direito aplicável, já que isso concerne à apreciação do mérito da causa.

É o que, de modo pacífico e constante, vem entendendo a jurisprudência, designadamente a do Tribunal de Conflitos, conforme se exemplifica com o Acórdão de 3 de Novembro de 2020 (2), em que se refere, além do mais:
“(…) como se atentou no Ac. deste TC de 1/10/2015, proferido no Conflito n.º 08/14, se é certo que o tribunal é livre na indagação e na qualificação jurídica dos factos, não pode antecipar esse juízo para o momento da apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. É que “para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do autor de que está ligado à ré através do regime de contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime de contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à ré. E para tanto os órgãos jurisdicionais competentes são os tribunais do trabalho, não os tribunais administrativos, independentemente da natureza pública ou privada da entidade empregadora (…)” – cf., no mesmo sentido, os Acs. deste Tribunal de 10/3/2016, Conflito n.º 10/15, de 17/11/2016, Conflito n.º 17/16 e de 8/3/2017, Conflito n.º 012/15.
Assim, se a A. caracteriza o vínculo jurídico entre si e o R., durante a sua vigência e no momento da sua cessação, como relação laboral de direito privado e é nesta caracterização que assenta as pretensões que deduz, pertence ao mérito da causa saber se aquele vínculo assumiu efectivamente tal natureza e teve as consequências que dele pretende retirar (cf. citado Ac. de 17/11/2016).
Nestes termos, atento ao regime legal invocado na petição inicial para enquadrar a questão e ancorar os créditos que a A. pretende ver reconhecidos pelo tribunal, não cabe aos tribunais da jurisdição administrativa, mas aos tribunais judiciais (…) a competência para conhecer a presente acção.”

Este entendimento tem sido também sufragado por esta Relação de Guimarães, como se alcança dos Acórdãos de 22 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 45/14.1T8VRL.G1 (3), de 16 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 86/15.3T8TVRL.G1, de 20 de Outubro de 2016, proferido no processo n.º 871/15.6T8VRL.G1, de 23 de Maio de 2019, proferido no processo n.º 1740/18.3T8VRL.G1, e 3 de Dezembro de 2020, proferido no processo n.º 306/19.5T8BGC-A.G1 (4).

Aliás, o processo n.º 1740/18.3T8VRL.G1 refere-se a acção proposta por formadores do Centro de Emprego e Formação Profissional de Vila Real contra o ora Réu, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P., com vista à condenação deste em pedido semelhante e por causa de pedir similar aos dos presentes autos, dizendo-se no mencionado Acórdão desta Relação de 23 de Maio de 2019:
“A competência material dos Tribunais deve aferir-se pela causa de pedir exposta pelo demandante na sua petição inicial, pela natureza da relação jurídica tal como descrita pelo autor. Seja, deve ser apreciada em função dos termos em que a ação é colocada pelo autor, pelo “quid disputatum”, considerando-se o pedido e a causa de pedir. Não é correto para apreciação desta questão fazer um juízo (um prognóstico sobre o mérito) sobre a viabilidade do alegado.
Em sede de apreciação da competência do tribunal, não deve fazer-se qualquer apreciação ou prognose quanto ao mérito da pretensão deduzida.
Não deve neste fase indagar-se se a natureza que o autor confere à relação de trabalho, pública ou privada, está de acordo com as normas legais, e com as alterações legislativas ocorridas, já que isso implicaria entrar no mérito da causa.
(…)
No caso presente os autores configuram o seu direito como um vínculo de natureza privada, invocando o CT e formulando pedido em conformidade com essa caraterização. Consequentemente, saber se os vínculos assumem tal natureza, e podem extrair-se as consequências que os autores pretendem, respeita ao fundo da causa. O tribunal nunca será colocado na posição de apreciar uma relação jurídica administrativa, pois se concluir pela errada caraterização, tal implicará a absolvição do pedido.”
Em face do exposto, porque os juízos do trabalho são os competentes para conhecer da questão de mérito colocada nos presentes autos, atento o preceituado no art. 126.º, n.º 1, al. b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, procede o recurso dos Autores.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar a decisão recorrida, declarando-se a competência em razão da matéria do juízo do trabalho e determinando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pelo Apelado.
18 de Novembro de 2021

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso



1. Proferido no processo n.º 3133/15.5T8PTM.S1.E1, disponível em www.dgsi.pt.
2. Proferido no processo n.º 09/20, disponível em www.dgsi.pt.
3. Disponível em www.dgsi.pt.
4. Disponível em www.dgsi.pt.