Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
111/13.2TBVNC-G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: PROCURAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: A procuração não se extingue por morte do dominus, a posição deste transmite-se para os sucessores que, a partir dessa data, ocuparão essa posição na relação de representação. No caso de se tratar de uma procuração típica, estes poderão revogá-la, modificá-la, definir o conteúdo do seu interesse e exercer todos os direitos da titularidade do dominus nos mesmos moldes em que este o pudesse fazer”.
Decisão Texto Integral:   Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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B…, por si e na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de C…, veio propor a presente acção declarativa de condenação contra D… e E… e mulher, F…, peticionando que: (i) seja declarado nulo e de nenhum efeitos o contrato de compra e venda identificado no artigo 9º da petição, com as demais legais consequências; (ii) seja ordenada a restituição de tais prédios à herança de C… para que esta os possua e sejam eles administrados pelo Autor, cabeça-de-casal de tal herança.
Regularmente citados, contestaram os Réus por impugnação motivada, por excepção peremptória de direito material e deduziram reconvenção, pedindo que os Autores sejam condenados a pagarem aos Réus, E… e mulher, F… o valor das benfeitorias por eles realizadas nos imóveis cuja restituição é pedida pelos Autores.
Em sede de audiência prévia foi admitido o pedido reconvencional, o processo saneado, definido o seu objecto e seleccionados os temas de prova.
Foi realizada uma perícia avaliativa dos imóveis cuja transmissão é impugnada e cujo relatório consta de folhas 177 a 210.
Procedeu-se a julgamento com observância de todas as formalidades legais.
A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada e, consequentemente, absolveu os Réus dos pedidos e não conheceu da reconvenção, por tal conhecimento resultar prejudicado em face da improcedência da acção.
Desta sentença apelaram os Autores, que concluem a sua alegação da seguinte forma:
- no dia 14 de Setembro de 2005 faleceu, no estado de casado com G…, C… (avô do Rec.te);
- aos 3 de Outubro de 2005, foi outorgada escritura pública de compra e venda dos imóveis identificados nos autos, tendo comparecido como vendedora G…, a qual declarou outorgar por si e na qualidade de procuradora, em representação do referido C… – à data já falecido;
- aos 31 de Agosto de 2005, no IPO no Porto, C… constituiu sua bastante procuradora a sua mulher G…, dando-lhe poderes para, em seu nome, entre outros, vender quaisquer imóveis sitos nos concelhos do Porto, Vila Nova de Gaia e Monção;
- salvo o devido respeito, a questão a decidir consiste em saber se a procuração emitida pelo falecido se extinguiu por morte deste e se, em consequência, a compra e venda dos imóveis devidamente identificados nos autos outorgada após a morte do representado é nula;
- a procuração constitui um instrumento de representação, mediante o qual o representante, procurador, actua em nome do representado;
- estatui o artigo 258º do Código Civil que o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último;
- a representação consiste no exercício jurídico em nome de outrem, havendo uma separação entre quem age e aquele em cuja esfera jurídica se repercute a actuação do representante;
- a essência da representação reside na actuação em nome de outrem, por necessidade ou conveniência;
- a representação voluntária resulta de uma acto – a procuração – que é um negócio unilateral, autónomo que consiste na outorga de poderes;
- o Código Civil trata autonomamente a representação e o contrato de mandato, por via do qual uma das partes fica vinculada para com a outra, obrigando-se a, por sua conta, praticar um ou mais actos jurídicos;
- todavia, tal não obsta a que possam associar-se;
- o artigo 265º do Código Civil indica quais os casos em que se extingue a procuração, não mencionando a morte do outorgante, antes a cessação da relação jurídica que serve de base à procuração;
- é indiscutível que a procuração implica uma relação de confiança e lealdade entre dominus e procurador, razão pela qual à procuração sempre se aplicará analogicamente o disposto em sede de mandato em matéria de caducidade e revogação;
- ainda que assim não se entenda, sempre a representação está diretamente relacionada com as pessoas, de forma que qualquer alteração dessas pessoas pode extinguir o poder de representação;
- a constituição de procurador consubstancia uma relação jurídica de natureza pessoal, relação esta que se extingue por morte do dador de poderes;
- não são transmissíveis por sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei, pelo que não são transmissíveis os direitos pessoais;
- com a morte do representado, verifica-se a extinção por caducidade da procuração;
- no caso de procuração emitida no interesse exclusivo do mandante, a morte deste determina a caducidade da relação jurídica que lhe serve de base e, portanto, a extinção da procuração;
- no caso dos autos a procuração não é irrevogável, não tendo sido emitida no interesse do procurador;
- o que resulta de forma clara da procuração em causa é a conveniência do representado em que estivesse representado na outorga de quaisquer escrituras – relembra-se que a procuração foi lida no Instituto Português de Oncologia do Porto, encontrando-se aí internado o representante e tendo aí vindo a falecer;
- ora, dúvidas não haverá que a morte faz extinguir, caducar, os poderes de representação;
- todavia, há que acautelar eventuais interesses de terceiros;
- é por essa razão que o número dois do artigo 266º do Código Civil estatui que as restantes causas extintivas da procuração – nas quais se inclui, como vimos, a morte – não podem ser opostas a terceiro que, sem culpa, as tenha ignorado;
- sucede que o juiz a quo deu como provado que os Recorridos, à data da celebração da escritura pública, sabiam que C… já tinha falecido;
- a escritura de compra e venda em causa nos autos é nula, não podendo produzir efeitos em relação aos Recorridos;
- ainda que se entendesse, como o faz o tribunal a quo, que os poderes de representação se transmitem para os sucessores, sempre este incorreu em claro erro de julgamento porquanto, no caso dos autos, os poderes de representação viriam a ser exercidos não pelos herdeiros do dominus, mas apenas e tão só pela procuradora, sua viúva, a qual agiu por si e em representação do dominus e não em representação da herança aberta por óbito deste;
- o Tribunal a quo fez errónea interpretação do disposto nos artigos 265º e 266º do Código Civil;
- a sentença recorrida viola, entre outros, o disposto nos artigos 265º, 266º, 1174º, 1175º do Código Civil, consubstanciando a nulidade prevista no artigo 615º/1-c) CPC.
Termos em que deve ao presente recurso ser dado provimento, revogando-se a douta decisão recorrida.
Os Apelados apresentaram contra alegações em que defendem a improcedência do recurso.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como se encontra o objecto do recurso pelas conclusões da alegação – artigos 635º, n.º 4 e 640º do Código de Processo Civil – das formuladas pelo Apelante resulta que a questão submetida à nossa apreciação consiste em saber se a relação de representação estabelecida por procuração se não extingue por morte do representado.
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São os seguintes os factos provados;
a) no dia 30 de Agosto de 2005, no Porto, no Instituto Português de Oncologia de Francisco Gentil, perante Fernanda, por delegação expressa da Notária Maria, do Cartório Notarial da dita, foi lida por C… o texto da procuração cuja cópia se encontra junta aos autos a folhas 6 e pelo mesmo foi declarado que ela exprime a sua vontade, conforme se retira da certidão junta aos autos a folhas 96;
b) De acordo com a referida procuração, cuja cópia se encontra junta aos autos a folhas 95, outorgada em 30 de Agosto de 2005, C…declarou constituir “sua bastante procuradora sua esposa, G… (…) a quem concede os poderes para em nome do mandante vender, contrair empréstimos, dar de hipoteca, quaisquer bens imóveis situados no concelho do Porto, Vila Nova de Gaia e Monção, outorgar e assinar os competentes contratos-promessa e respectivas escrituras nos termos e condições que tiver por convenientes, receber os preços e deles dar quitação. Mais lhe confere os poderes para o representar junto de quaisquer repartições públicas, nomeadamente câmaras municipais, repartições de finanças, conservatória do registo predial e aí requerer quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, cancelamentos e averbamentos, requerendo, praticando e assinando tudo o que necessário se torne ao indicado fim”;
c) no dia 2 de Setembro de 2005, por escrito particular, G…, por si e em representação de seu marido C…, declarou vender e E…, casado com F…, declarou comprar os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de Monção, freguesia de Segude, sob os números 155, 156, 217 e 244, conforme se retira da cópia junta aos autos de folhas 44 a 45 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
d) C… faleceu no dia 14 de Setembro de 2005, no estado civil de casado com G…, no regime de bens da comunhão de adquiridos;
e) no dia 3 de Outubro de 2005, no Cartório Notarial de Maria, em escritura pública, G…, por si e na qualidade de procuradora, em representação de C…, declarou vender e E…, declarou comprar, pelo preço global de euros 54.000,00 os seguintes imóveis: (i) pelo preço de euros 52.000,00, o prédio misto, composto por casa de rés-do-chão, rossios e terreno de cultivo, sito no lugar de Cachada de Riba, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número xxx, da freguesia de Segude, concelho de Monção; (ii) pelo preço de euros 1.000,00, o prédio rústico denominado “Serrado”, composto por campo de cultivo e vinha, sito no lugar de Trás do Coto, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número xxx, da freguesia de Segude, do concelho de Monção; (iii) pelo preço de euros 400,00, o prédio rústico, denominado “Cachadas”, composto por terreno de cultura, sito no lugar de Paradela, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número xxx, da freguesia de Segude, do concelho de Monção; (iv) pelo preço de euros 600,00, o prédio rústico denominado “Trás do Coto”, composto por terreno de cultura, sito no lugar de Paradela, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº xxx, da freguesia de Segude, do concelho de Monção;
f) a aquisição do direito de propriedade dos referidos imóveis encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de Monção a favor de Daniel da Silva Rodrigues Meira e de Maria do Céu Vasconcelos Loureiro no regime de bens da comunhão de adquiridos, mediante a Ap. 8 de 2005/11/18;
g) B. nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1995, filho de H… e de I…;
h) H… nasceu no dia 2 de Julho de 1952, filho de C… e de J…;
i) H… faleceu no dia 1 de Setembro de 1998;
j) o C… e a G… utilizavam a casa como casa de férias;
k) o valor de mercado global dos prédios objecto da escritura pública mencionada na alínea d) ascende a euros 83.300,00;
l) à data da celebração da escritura pública referida na alínea e), os Réus E… e F… sabiam que o C… já tinha falecido;
m) o valor total de mercado dos prédios objecto da escritura pública mencionada na alínea d) ascende a € 83.300,00;
n) os réus E… e F…passaram a viver na casa referida na alínea e), (i), depois de G… falecer;
o) aArranjaram o forro do telhado da casa para debelarem as infiltrações;
p) arranjaram o chão e a casa de banho da casa;
q) recebem na casa os seus familiares e amigos.
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De acordo com o disposto no artigo 262º, n.º 1 do Código Civil, procuração é o acto jurídico pelo qual alguém, voluntariamente, confere poderes de representação a outrem, isto é, poderes para celebrar, em nome do dador de poderes, um ou vários negócios juridicos, de modo que o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último – artigo 258º daquele Código; trata-se de um acto jurídico essencialmente diverso do mandato, que é um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra e em relação a este ponto não de verifica qualquer divergência na doutrina ou na jurisprudência.
Consta do disposto no artigo 265º, n.º 1 do Código Civil as situações de que pode resultar a extinção da procuração:
- a renúncia do procurador;
- a revogação pelo representado;
- cessação da relação jurídica que lhe serve de base.
Como se vê e ao contrário do que acontece em relação à caducidade do mandato, o artigo não inclui a morte do representado como causa de extinção automática do mandato e, em relação a este ponto, é certo haver divergência de entendimentos.
É certo que, como se refere na sentença em recurso, a regra geral relativa à morte, enquanto causa de extinção de relações jurídicas, consta do artigo 2025º do Código Civil e, nos termos do seu nº 1, “não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei”; porém, não é uma questão de sucessão que se coloca perante a morte do representado, mas a de saber se a morte , só por si, determina a estinção da relação jurídica de representação constituída através da procuração.
Como escreve Pais de Vasconcelos, citado na sentença em recurso, “Quando se afirma que a procuração se deve extinguir por morte do dominus, o que se está normalmente a significar é que o mandato com representação se extingue por morte do dominus. Trata-se apenas de mais uma confusão entre mandato e procuração. Deve consequentemente entender-se que a natureza jurídica da procuração não exige a sua extinção em virtude da morte do dominus originário”.
“Uma vez que a procuração se não extingue por morte do dominus, a posição deste transmite-se para os sucessores que, a partir dessa data, ocuparão essa posição na relação de representação. No caso de se tratar de uma procuração típica, estes poderão revogá-la, modificá-la, definir o conteúdo do seu interesse e exercer todos os direitos da titularidade do dominus nos mesmos moldes em que este o pudesse fazer” e, acrescentamos nós, é aqui que se coloca a questão da sucessão: o falecido tinha o direito de revogar , modificar e definir o conteúdo da procuração e é este direito que se transmite aos seus sucessores.
Deste modo, na esteira do que escreve aquele autor, a morte do representado apenas indirectamente pode determinar a extinção da procuração, precisamente nos casos em que a sua morte determina a caducidade do negócio que constitui a relação subjacente à procuração e então a procuração extingue-se, não por força da morte do representado, mas da caducidade desse negócio, nos termos do artigo 265º, n.º 1 citado – ... quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base.
Não é manifestamente o caso deste processo e basta pensar que, no caso de os sucessores exercerem o direito de revogar a procuração, não se eximiam à obrigação, resultante do contrato promessa, de celebrarem o contrato prometido, pelo que terá de se entender que a procuração se não extinguiu com a morte do representado.
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e se confirma a sentença recorrida.
Custas pelos Apelantes.