Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
243/14.0TBFAF.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO JUDICIAL
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. O novo Código de Processo Civil eliminou a figura da interrupção da instância e reduziu o prazo da deserção, mantendo-a como causa de extinção da instância (art.º 277º, al. c)).
2. Com exceção do processo de execução, a deserção da instância não é automática; depende da audição prévia das partes, por aplicação do princípio contido no art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, e de uma decisão judicial fundamentada que avalie a conduta daquelas, mais concretamente, a existência de negligência de alguma delas ou de ambas na inércia a que o processo esteve votado há mais de seis meses, nos termos do art.º 281º, nº 1 e nº 4, daquele código.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
F…, residente na…, Fafe, requereu, no dia 13.02.2014, invocando a qualidade de credor, a declaração de insolvência de J…, LDA., com o NIPC …, com sede na…, na mesma localidade, como seguinte pedido, ipsis verbis:
«Termos em que requer a V. Ex.ª a DECLARAÇÃO DA INSOLVÊNCIA da Requerida, ”J…, LDA”, ao abrigo do disposto no artigo 20.º, n.º 1, e de harmonia com os artigos 3.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, alíneas a), b), c), e), g) e h), 23.º, n.º 1 e 25.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»
Por despacho de 17.02.2014, foi fixado o valor da ação e ordenada a citação pessoal da requerida, “nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 29º e 30º do C.I.R.E., aprovado pelo D.L. n.º 53/2004, de 18 de Março”.
Não tendo sido obtida a citação, no dia 26.06.2014, foi proferido o seguinte despacho:
“Antes de mais, averigue junto da base de dados das moradas conhecidas ao legal representante da requerida – cfr. artigo 236º, do CPC ex vi artigo 17º, do CIRE.”.
No dia 30.06.2014, o M.mo Juiz pronunciou o despacho que se segue:
“Antes de mais, com nota de urgente, oficie ao Consulado de Portugal em França solicitando que averigue se o legal representante da requerida ali se encontra inscrito.
D.N.
Mais oficie junto da entidade policial competente solicitando que averigue junto de familiares da morada conhecida ao referido legal representante da requerida.
D.N.”

Com data de 10.07.2014, fez-se seguir àquele a seguinte decisão:
“Antes de mais, proceda à notificação do requerente, dando conhecimento do resultado das diligências encetadas a fim de, em 10 dias, se pronunciar, requerendo o que tiver por conveniente quanto ao estado dos autos.
D.N.”

Face ao silêncio do requerente, no dia 20.03.2015 o tribunal proferiu decisão que declarou extinta a instância por deserção nos termos dos art.ºs 281º, nº 1 e 277º, al. c), do Código de Processo Civil.

Inconformado, o requerente recorreu, por apelação, em matéria de Direito, resumindo e concluindo o recurso nos seguintes termos:
«a) Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Guimarães, nos presentes autos, em que o Meritíssimo Juiz “a quo” determinou a extinção da presente instância por deserção nos termos e para os efeitos dos artigos 281.º n.º 1 e 277.º al. c) do CPC.
b) O presente recurso limita-se pois à questão se houve ou não a extinção da presente instância por deserção nos termos e para efeitos dos artigos 281.º n.º 1 e 277.º al. c) do CPC.
c) Insurge-se o recorrente contra a decisão proferida na douta Sentença pelo Tribunal “a quo”, julgando extinta a instância por deserção considerando a falta de impulso processual do Requerente, por aplicação dos artigos 281.º n.º 1 e 277.º al. c) do CPC e responsabilizando o Requerente por inércia.
d) É nosso entendimento que o Tribunal “a quo” no despacho que julga deserta a instância o julgador tem de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que terá de efectuar uma valoração do comportamento das partes, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta, efectivamente, da negligência destas.
e) Para considerar a instância extinta por deserção nos termos e para os efeitos dos artigos 281.º n.º 1 e 277.º al. c) do CPC, não pode verificar deuma forma, genérica, abstracta e imprecisa a existência de deserção operada pelo decurso do tempo.
f) O tribunal “a quo” deve mencionar factos e circunstâncias que permitam concluir nesse sentido e que justifiquem a extinção da instância naqueles termos.
g) Não havendo negligência do Requerente, pois o Requerente para nada foi notificado, a instância não deveria ter considerada extinta por deserção.
h) Considera-se, assim, na esteira do entendimento consagrado nos Acs. R.L. de 09.09.2014 (Pº 211/09.3TBLNH-J.L1-7), R.G. de 02.02.2015 (Pº 4178/12.1TBGDM.P1) e R.L. de 26-02-2015 (Pº 2254/10.5TBABF.L1-2), que o tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas.
i) Ademais, o princípio da cooperação, reforçado no CPC, justifica que as partes sejam alertadas para as consequências gravosas que possam advir da sua inércia em impulsionar o processo, decorrido que seja o prazo fixado na lei, agora substancialmente mais curto.
j) Por maioria de razão tal deveria suceder no caso vertente, pelo que nesta conformidade, entende-se que a sentença recorrida deverá ser revogada.
k) O Tribunal “ a quo” ao decidir como decidiu violou além do mais osartigos artigos 281.º, n.º 1 e 277.º, c) do CPC.» (sic)
Termina no sentido de que se dê provimento ao recurso, revogando a decisão.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação do requerente (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do Código de Processo Civil [1]).
Com efeito, importa decidir se a instância se extinguiu por deserção, nos termos dos art.ºs 281º, nº 1 e 277.° al. c), do Código de Processo Civil.
III.
Os factos relevantes para a decisão da apelação têm natureza processual e constam do relatório.
IV.
Essencialmente, considera a recorrente que o tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas.
Vejamos.
A deserção constitui um dos fundamentos da extinção da instância (art.º 277º, al. c)).
Sem prejuízo do que o nº 5 do art.º 281º dispõe para o processo de execução --- aqui não aplicável --- a instância considera-se deserta quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses (nº 1 do mesmo preceito legal).
Diferentemente do nº 5, que prevê expressamente a deserção da instância “independentemente de qualquer decisão judicial”, o nº 1 não dispensa expressamente o despacho declarativo da deserção, sendo que o nº 4 do mesmo artigo, vertendo sobre os anteriores nºs 1, 2 e 3, determina que “a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator”; ou seja, no caso do nº 1, aqui aplicável, a deserção pressupõe um julgamento, um exame, uma valoração, uma apreciação crítica, em despacho judicial.
Afastou-se, assim, o atual art.º 281º, quer do anterior art.º 291º do Código de Processo Civil revogado, na versão dada pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de agosto que previa, sob o nº 1, que se considerasse “deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos”[2], quer mesmo da Proposta de Lei que deu origem ao presente Código, segundo a qual os efeitos fixados nos n.ºs 1, 2 e 3 deste artigo verificavam-se de forma automática, ou seja, “independentemente de qualquer decisão judicial”, sem que à parte fosse dada a oportunidade de alegar e provar não ter incorrido em negligência censurável.
Na redação final do atual art.º 281º foi suprimido, naqueles n.ºs 1, 2 e 3 o aludido inciso, e acrescentados os n.ºs 4 e 5, tornando excecional a desnecessidade do juiz ou relator fundamentar a deserção, agora circunscrita ao processo de execução.
No direito pregresso, a instância considerava-se deserta quando estivesse interrompida durante dois anos, mas existia a figura da interrupção da instância que pressupunha a negligência das partes em promover os termos processuais (art.º 285º do anterior Código de Processo Civil). Com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transitou para a deserção, mas tendo por manifestamente injustificado o abandono da lide pelos seus sujeitos durante largos meses ou anos, o prazo de deserção da instância, foi fixado em 6 meses.
Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [3], “a ideia de negligência das partes não é conciliável com a ausência de uma decisão do juiz que a verifique. Embora a decisão prevista no nº 4 seja meramente declarativa, até ser proferida não pode, pois, a instância ser considerada deserta, designadamente pela secretaria judicial”.
A decisão judicial que a lei prevê justifica-se, precisamente, pela necessidade de observar o requisito da negligência das partes em promover os termos do processo, o que pressupõe, como dissemos, um exame crítico ao comportamento das partes no processo e, para o efeito, segundo cremos, a sua audição prévia de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas ou de ambas.
Como se sustenta no acórdão da Relação do Porto de 02.02.2015 [4], deve até entender-se que tal dever decorre expressamente do artigo 3.º, nº 3, quando se consigna que o juiz deve observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar.
Atentando de novo no despacho recorrido, verifica-se que lavra num equívoco ao discorrer que no caso não seria necessário decisão nem despacho a declarar a deserção, por esta operar (automaticamente) pelo mero decurso do tempo (seis meses a aguardar o impulso processual do requerente). Por lavrar naquele erro de entendimento e interpretação dos nºs 1 e 4 do art.º 281º, compreende-se que o M.mo Juiz não visse necessidade de ouvir o requerente nem de justificar a decisão com base na sua negligência em promover os termos do processo. Por isso, não se referiu a qualquer circunstância de onde extraia tal negligência, que a inércia do requerente se deve a culpa dele, a omissão censurável da prática de atos impulsionadores dos autos; ou seja, não fundamentou a decisão ou, pelo menos, justificou-a de forma insustentável, por ser contrária a lei, limitando-se a dizer que nem seria necessário decidir e que bastou o decurso do prazo de 6 meses para se obter o efeito (automático) da deserção.
Assim sendo, deve revogar-se a decisão, ordenando que se notifique o requerente para se pronunciar sobre a possível deserção da instância [5] em função da sua inércia na promoção dos seus termos, proferindo-se depois decisão fundamentada, tendo como referência o art.º 281º, nºs 1 e 4.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. O novo Código de Processo Civil eliminou a figura da interrupção da instância e reduziu o prazo da deserção, mantendo-a como causa de extinção da instância (art.º 277º, al. c)).
2. Com exceção do processo de execução, a deserção da instância não é automática; depende da audição prévia das partes, por aplicação do princípio contido no art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, e de uma decisão judicial fundamentada que avalie a conduta daquelas, mais concretamente, a existência de negligência de alguma delas ou de ambas na inércia a que o processo esteve votado há mais de seis meses, nos termos do art.º 281º, nº 1 e nº 4, daquele código.
V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se a notificação do requerente para que se pronuncie sobre a eventual deserção da instância, decidindo-se depois a questão tendo como referência os art.ºs 3º, nº 3 e 281º, nºs 1 e 4, do Código de Processo Civil.
Custa da apelação pela parte que, a final, for responsável pelas custas do processo.
Guimarães, 7 de maio de 2015
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Sublinhado nosso.
[3] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 273.
[4] Proc. nº 4178/12.2TBGDM.P1 (certamente por lapso, indicado nas conclusões das alegações do recorrente como sendo desta Relação de Guimarães). No mesmo sentido, cf. acórdão da Relação do Porto de 20.10.2014, proc. nº 189/13.9TJPRT.P1, acórdãos da Relação de Lisboa de 26-02-2015, proc. 2254/10.5TBABF.L1-2 e de 09.09.2014, proc. nº 211/09.3TBLNH-J.L1-7 e acórdão da Relação de Coimbra de 07.01.2015, proc. nº 368/12.6TBVIS.C1, todos in www.dgsi.pt.
[5] Por forma a permitir a audição dos interessados e melhor avaliar se na base da falta de impulso processual está um comportamento negligente do requerente.