Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2842/09.2TBBCL-T.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
DESPESAS
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Relativamente às despesas despendidas com os serviços prestados por auxiliares do administrador da insolvência, o reembolso não é excluído ipso facto, mas não basta que o administrador de insolvência se limite a juntar documentos comprovativos da realização das despesas e presumir que a passividade da comissão de credores é um sinal de aprovação ex post facto.
II - Exige-se que o administrador justifique e alegue nos autos os concretos motivos por que não obteve a prévia concordância da comissão de credores, designadamente em função da urgência e/ou natureza do acto (quanto à avaliação, que os elementos permitam concluir a sua particular dificuldade), pois ele é um servidor da justiça em quem se deposita confiança na gestão prudente e orientada pela lei de todas as tarefas que lhe são cometidas.
III - A aprovação das despesas dependerá pois dum juízo casuístico em face da concreta justificação apresentada, e dos factos e elementos probatórios que para o efeito sejam indicados. .
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – Relatório.
1. Por apenso ao processo de insolvência da sociedade B… Lda, o Admi-nistrador de Insolvência veio apresentar as contas de acordo com o disposto no artigo 62.º, n.º 3, do C.I.R.E.

3. Notificados os credores e a devedora nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 64.º, n.º 1, do C.I.R.E., nada alegaram.

4. O Ministério Público declarou nada ter a opor às contas apresentadas, à excepção das despesas elencadas na promoção de fls. 470.

5. O tribunal a quo aprovou as contas apresentadas pelo Sr. A.I., à ex-cepção das seguintes verbas: as despesas elencadas pela designação “solicitadora” (com o número de ordem 2,4,9,14,20,30 e 52), “avaliação” (nº 10 e 63), “TOC” (nº 11 e 16), “solicitador de execução” (nº 53), economato (nº 75) e “CTT” (verbas nº 1,18,42 e 74 na parte que não estão documentas por factura ou recibo original com relevância fiscal e que totalizam €258,54).

II. Inconformado, o Administrador de Insolvência interpôs recurso da decisão que apreciou as contas, pedindo a sua revogação e substituição por outra que determine aprovação das indicadas despesas tidas com os serviços de avaliação, solicitadoria, contabilidade.
No essencial, extrai das alegações as seguintes conclusões:

1. Resulta dos autos que sempre foi do conhecimento quer do Tribunal quer da Comissão de Credores, a contratação de serviços de contabilidade, de peritagem-avaliação e de solicitadoria, ora não tivessem sido todas as operações de pagamento subscritas quer pelo aqui recorrente quer pelo elemento da Comissão de Credores que representa o Banco C.,SA
S.A.
2. A conta da massa insolvente é titulada pelo recorrente e pelo identificado elemento da Comissão de Credores, que sempre tomou conhecimento de todos os atos de pagamento, assinando-os. Destarte, ao longo dos 5 anos de processo de insolvência, a atuação dos autos de insolvência e da própria comissão de credores sempre investiu o aqui recorrente da expectativa e confiança de que as despesas que a massa insolvente estava a suportar iam ser aprovadas, donde decidir 5 anos após o contrário é manifestamente defraudar as legitimas expectativas criadas ao aqui recorrente.
3. O T.O.C. contratado pela massa insolvente, no exercício das suas funções, em nome e em representação da massa insolvente, prestou vários serviços à massa insolvente, os quais foram sempre remetidos ao conhecimento dos autos de insolvência e de todos os credores, a saber:
f) Entrega da declaração periódica de IVA referente ao mês de Setembro de 2009, no qual se evidenciou a existência de um crédito de imposto no valor de 2.615,74€, conforme aliás requerimento remetido aos autos de insolvência, pelo aqui recorrente, em 09-11-2009; g) Analise económica financeira à contabilidade da sociedade insolvente, concretamente aos exercícios de 2006, 2007 e 2008 para instruir o Parecer de Qualificação de Insolvência, conforme requerimento remetido aos autos de insolvência em 18-03-2010, em resposta ao despacho judicial com a referência 5146730; h) Relatório elaborado pela T.O.C. referente às dividas constituídas pela sociedade insolvente após a data da declaração de insolvência, conforme aliás requerimento remetido aos autos de insolvência em 09-07-2010, tendo a Comissão de Credores sido notificada; i) Relatório elaborado pela T.O.C. referente ao estado de recuperação de valores devidos a titulo de IVA, PEC e IRC, conforme aliás requerimento remetido aos autos de insolvência em 07-09-2010, tendo a Comissão de Credores sido também notificada; j) Entrega da declaração periódica de IVA, referente ao mês de Setembro de 2010, com a informação de que a massa apresenta um crédito de imposto no valor de 336,70€, o qual foi solicitado em consequência do encerramento em sede de IVA em 27-09-2010, conforme requerimento remetido aos autos em 26-10-2010, tendo a Comissão de Credores sido igualmente notificada.
4. Outrossim, além dos requerimentos remetidos aos autos com conhecimento dos elementos da Comissão de Credores com informação detalhada sobre o trabalho desenvolvido pela T.O.C. contratada pela massa insolvente, também esta foi, por diversas vezes, informada pelo aqui recorrente de todas as diligências em curso, a saber: e) Por correio electrónico datado de 08-09-2010, foi remetido ao conhecimento da Comissão de Credores a informação da entrega da declaração periódica de IVA, referente a mês de Julho de 2010 e apresentada a informação de que a massa apresenta um crédito de imposto no valor de 121,10€; f) Por correio electrónico datado de 25-10-2010, foi remetido ao conhecimento da Comissão de Credores a informação da entrega da declaração periódica de IVA, referente a mês de Setembro de 2010 e apresentada a informação de que a massa apresenta um crédito de imposto no valor de 336,70€; g) Por correio electrónico datado de 16-03-2011, foi remetido ao conhecimento da Comissão de Credores a informação da entrega da declaração de retenção na fonte efetuada durante o mês de Fevereiro de 2011; h) Por correio electrónico datado de 18-10-2011, foi remetido ao conhecimento da Comissão de Credores a informação da prestação de contas efetuada relativa ao ano de 2010, com a apresentação do Modelo 22 (IRC) e informação empresarial simplificada (IES).
4. Com o trabalho desenvolvido pelo T.O.C. indicado pela massa insolvente, esta deixou de incorrer na coima que é aplicada por falta de entrega das referidas declarações, Modelo 22 e IVA. Pelo exposto, conclui-se que a despesa em questão não se vislumbrou inútil nem tão pouco despicienda para a massa insolvente e seus credores, pelo contrário, os custos com a contratação de um T.O.C. não só resultou da necessidade de continuar a dar cumprimento às obrigações fiscais por parte da sociedade insolvente, agora massa insolvente, como ainda levar acabo uma auditoria à contabilidade da insolvente, por forma a apurar eventuais irregularidades nos negócios praticados pela sociedade devedora dentro do período de suspeição.
5. No que concerne aos serviços de peritagem e avaliação, também resulta dos presentes autos de insolvência, mormente, no apenso de apreensão de bens, foi junto o relatório de avaliação e peritagem de todos os bens móveis e imóveis apreendidos, o qual serviu de base ao valor a atribuir na fase de liquidação dos bens, conforme requerimentos remetidos aos autos com data de 02-12-2009.
6. Posteriormente, Junho de 2015, perante as manifestas dificuldades na alienação do imóvel apreendido sob a verba 51, o recorrente solicitou uma reavaliação do imóvel por forma a projectar nova venda, desta feita, em consonância com o actual valor de mercado e tendo em conta a depreciação ditada pelo mercado e pela procura.
7. Acresce que, no tocante ao exercício de tal tarefa -atribuição de valores aos imóveis atendendo aos critérios de depreciação com venda imediata em sede de processo de insolvência – não tendo o aqui recorrente específicos conhecimentos ou competências formadas nas áreas de peritagem e avaliação, na medida em que não é, de formação, um perito certificado pela CMVM, nem tais competências se enquadram no âmbito do seu desempenho funcional de per se, é plausível que se socorra de terceira pessoa habilitada que o coadjuve em tal escopo, o que logrou conseguir.
8. Mais, o custo que a massa insolvente teve que despender para a realização dos serviços de avaliação não foi desmesuradamente excessivo comparativamente ao serviço prestado e utilidade do mesmo para a massa insolvente.
9. O tribunal a quo não aprovou as despesas tida com os serviços de solicitadoria, no valor global de 384,60€, por no existir autorização prévia dos credores na contratação e adjudicação.
10. Tratou-se de um serviço jurídico necessário aos interesses da massa insolvente, que se traduziu na inscrição da declaração de insolvência nas descrições prediais dos imóveis objecto de apreensão de bens, assim como realização de biscas nas diversas repartições públicas (conservatória do registo predial, comercial, automóvel e Finanças) com vista a apreensão de bens em nome da insolvente.
11. Por outro lado, as despesas tidas com a Sra. Solicitadora de Execução, refere-se a honorários desenvolvidos com processos de execução, instaurados na pendência dos autos de insolvência, mas cuja prossecução foi igualmente querida pela massa insolvente.
12. Aliás, fruto da prossecução de acções executivas, a massa insolvente logrou recuperar créditos, os quais foram objecto de apreensão nos autos de insolvência e integram o ativo da massa insolvente, informação esta constante no próprio mapa de prestação de contas.
13. Por outro lado, o custo que a massa insolvente teve que despender para a realização dos serviços de solicitadoria não foi desmesuradamente excessivo comparativamente ao serviço prestado e utilidade do mesmo para a massa insolvente.
14. O custo do serviço de solicitadoria, qualifica-se como um ato necessário à administração, partilha e liquidação de bens do ativo da insolvente, porquanto o mesmo deve ser assumido na íntegra pela massa insolvente, pois esta e os seus credores são os principais beneficiados com a sua realização.
15. Outrossim, todos os elementos da Comissão de Credores tiveram conhecimento prévio da contratação dos serviços de solicitadoria, avaliação e contabilidade, assim como da necessidade de pagamento das despesas inerentes à execução de tais serviços, que aceitaram, não colocando qualquer obstáculo à sua intervenção, sendo que a considerar-se que houve preterição de formalidade, mormente o estatuído no n.º 3 do artigo 55.º do CIRE, não comunicação formal e de prévio pedido de autorização da comissão de credores, sempre se dirá que a mesma se encontra sanada, sob pena de violação do principio da boa-fé e da confiança, em face das expectativas criadas com a actividade do Sr. A.I..
16. Ademais, a coadjuvação de tais auxiliares decidida pelo recorrente revelou-se profícua na recuperação de créditos, no cumprimento de obrigações fiscais, na apreensão de bens e no auxilio da liquidação do ativo, o que torna a actividade do recorrente criteriosa e responsável, por um lado, e traduz razoavelmente um dispêndio útil e mesmo indispensável, por outro lado, pelo que estamos perante despesas cujo reembolso se impõe, nos termos do artigo 60.º, n.º 1 do CIRE.
17. Face ao circunstancialismo do caso concreto, responsabilizar o recorrente pelo pagamento dos honorários relativos aos serviços de solicitadoria, contabilidade e avaliação traduzir-se-á não só numa decisão injusta e desproporcional, como proporciona aos credores um enriquecimento injusto, pondo em acusa princípios como o da confiança e da boa-fé processual dos vários intervenientes processuais.

Nas contra-alegações, o Ministério Pública pugna pela manutenção do julgado, concluindo que não merecem chancela as contas não justificadas ou precedidas de autorização, quando esta é necessária nos termos do artº 55º, nº3 do CIRE.


III. Colhidos os vistos, cumpre decidir.

A questão a resolver passa essencialmente por saber se o administrador de insolvência deve ser reembolsado das despesas despendidas com auxilia-res que o coadjuvaram na execução de serviços – contabilista, solicitador de execução e avaliador – sabendo-se que foram contratados sem a prévia concordância da comissão de credores.

Reconhecemos que a questão não é pacífica, mas não sufragamos a tese do recorrente, com todo o respeito pela argumentação por ele aduzida.
Vejamos:
Logo após ser notificado da sua nomeação (artigo 54º do CIRE, código a que pertencem as demais disposições que se venham a indicar sem expressa referência a outro diploma legal), o Administrador de Insolvência passa a exercer de imediato o cargo, sendo competente para a realização de todos os actos e tarefas que lhe são cometidas pelo estatuto e pela lei, gozando para tanto da equiparação aos agentes de execução (arts. 2º, nº1, e 11º, alínea a), da Lei 22/2013).




Nos termos do art. 55º «sem prejuízo dos casos de recurso obrigatório ao patrocí-nio judiciário ou da necessidade de prévia concordância da comissão de credores, o administrador da insolvência exerce pessoalmente as competências do cargo, podendo estabelecer, por escrito, a prática de actos concretos em administrador da insolvência com inscrição nas listas oficiais» (nº2), e «…pode ser coadjuvado sob a sua respon-sabilidade por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta dessa comissão» (nº3).

Salvo os casos em que o patrocínio judiciário é obrigatório, o que decorre desse normativo é a ideia da pessoalidade do cargo do administrador “ao ponto de rejeitar o recurso ao auxílio de terceiros e do insolvente quando não haja prévia autorização da comissão de credores”, tendo a lei optado por uma “solução que favorece o maior controlo da actividade do administrador e do modo do seu exercício, em consonância com a sua responsabilidade pessoal a que agora irrevogavelmente o submete em conformidade com o artigo 59º” (Luis Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE anotado, pág. 346).

No que especificamente diz respeito à avaliação de bens ou direitos, sendo particularmente difícil pode ser confiada a peritos (art. 153º, nº3). Verificada essa circunstância – avaliação que revista particular dificuldade - deve considerar-se dispensada a prévia concordância da comissão de credores prevista no nº3 do artigo 55º (Luis Carvalho Fernandes e João Labareda Cfr. obra citada, pág. 605).
E quais as consequências que podem advir da falta da prévia concordân-cia da comissão de credores na contratação dos auxiliares nos casos em que ela é necessária?

Não gera naturalmente a ineficácia dos actos praticados, mas é susceptivel de equacionar a destituição e/ou a responsabilidade civil do administrador – o mesmo sucede com a falta de consentimento da comissão de credores para a pratica de actos de especial relevo no âmbito da liquidação (artº 161º), que é uma matéria distinta da que trata o artigo 55º.



E quanto às despesas despendidas com os serviços prestados por auxilia-res, o reembolso não é excluído ipso facto, mas não basta que o administrador de insolvência se limite a juntar documentos comprovativos da realização das despesas e presumir que a passividade da comissão de credores é um sinal de aprovação ex post facto. Exige-se que o administrador justifique e alegue nos autos os concretos motivos por que não obteve a prévia concordância da comissão de credores, designadamente em função da urgência e/ou natureza do acto (quanto à avaliação, que os elementos permitam concluir a sua particular dificuldade), pois ele é um servidor da justiça em quem se deposita confiança na gestão prudente e orientada pela lei de todas as tarefas que lhe são cometidas. Abdicar-se desse pressuposto e admitir-se o reembolso das despesas com base na isolada invocação do instituto do enriquecimento sem causa, constituiria a legitimação duma actuação do administrador da insolvência claramente contra legem.

A aprovação das despesas dependerá pois dum juízo casuístico em face da concreta justificação apresentada, e dos factos e elementos probatórios que para o efeito sejam indicados. Ora, nesse capítulo, a prestação de contas apresentadas pelo Sr. Administrador de Insolvência ao tribunal é omissa (e essa omissão não pode ser suprida por via da alegação de novos factos em sede recursiva), pelo que temos por correcta a solução adoptada na decisão recorrida.
IV. Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.
Custas pelo recorrente.

TRG, 19.05.2016