Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
27/18.6GACBT.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: CRIME DE FURTO QUALIFICADO
PERDA DE VANTAGENS
PROVIDÊNCIA SANCIONATÓRIA DE NATUREZA JURÍDICA ANÁLOGA À DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Uma vez formulado pelo Ministério Público, titular da ação penal, o respetivo pedido de declaração de perda das vantagens, preenchendo a factualidade provada factos ilícitos típicos e deles tendo resultado vantagens para os seus agentes, o tribunal terá de declarar a perda de tais vantagens patrimoniais, exceto se for demonstrado que já foram recuperadas, que o ofendido já foi efetivamente ressarcido, caso em que a perda não pode ser decretada, por se ter cumprido o fim da declaração da perda das vantagens.
II - Por conseguinte, a decisão de declaração da perda de vantagens é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando-se com ela reconstituir a situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, de modo a ficar sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal coletivo, com o número 27/18.6GACBT, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Criminal de Guimarães, realizado julgamento foi proferido acórdão, nos termos da qual foi decidido, para além do mais
-Condenar o arguido J. P., pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1, 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses.
- Condenar o arguido P. P., pela prática de seis crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1, 204º, nº 2, alínea e), do Código Penal, nas penas parcelares de 1 ano e 6 meses, 1 ano, 10 meses, 10 meses,10 meses, 1 ano de prisão.
- Em cúmulo jurídico de penas, condenar o arguido P. P., na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na execução pelo período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, mediante regime de prova, e ainda mediante o dever de pagar a indemnização nos termos e que se comprometeu na transação celebrada com o demandante civil M. F. e findo este pagamento deverá pagar igualmente a indemnização devida a D. R., em oito prestações mensais, sendo as sete primeiras no valor de € 500,00 cada, e oitava no valor de € 150 euros, vencendo-se a primeira prestação em 11 de junho de 2022 e as restantes em iguais dias dos meses subsequentes, sem prejuízo do arguido pagar antecipadamente se assim o pretender ou caso seja instaurada cobrança coerciva da quantia em causa.
- Nos termos do disposto no art.º 110, n.º 1, al. b), 4 e 6 do Código Penal, condenar os arguidos P. P. e J. P. a pagarem solidariamente ao Estado o valor de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros) e o arguido P. P. a pagar ao Estado o valor de € 1.748,50 (mil setecentos e quarenta e oito euros e cinquenta cêntimos), nos termos do disposto no art.º 110º, n.º 1, al. b), 4 e 6 do Código Penal.
- Condenar o demandado civil P. P. no pagamento da indemnização no valor de € 3.750,00 três mil setecentos e cinquenta euros ao demandante civil D. R..

2.
Não se conformando com o decidido, veio o arguido P. P. interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1. Refere a decisão recorrida que o arguido P. P., com as suas condutas preencheu os elementos subjetivos e objetivos quanto a seis crimes de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204º nº 2 alínea d) do Código Penal.
2. Ora, o artigo 204º nº 2 al. d) do CP dispõe que quem furtar coisa móvel ou animal alheios que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em coleção ou exposição públicas ou acessíveis ao público é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
3. Atento os objetos descritos nos factos provados, os mesmos não se caraterizam por coisas com valor científico artístico ou histórico, nem se encontram em coleção, exposição ou acessíveis ao público, não tendo, por isso, havido o preenchimento dos elementos que compõe essa alínea d) do nº 2 do artigo 204º.
4. É ainda mencionado na decisão recorrida que o recorrente retirou e levou consigo várias peças em ouro no valor total de 3.750,00€UR.
5. Tal quantia foi apurada tendo por base apenas e só as declarações do Ofendido que em sede de inquérito mencionou que as peças retiradas teriam esse valor.
6. O Ofendido não deduziu pedido de indemnização civil.
7. Requereu que o tribunal lhe arbitrasse uma indemnização por força desse furto, tendo o tribunal considerado esse pedido, como de indemnização.
8. Em sede de contestação, o Recorrente impugnou o valor dos bens atribuídos na acusação e requereu a sua avaliação, tendo o Tribunal indeferido.
9. Sucede que nenhuma prova relativamente ao concreto valor dos bens furtados foi efetuada pelo Ofendido.
10. Apesar disso, o Tribunal condenou o Recorrente no pagamento dessa quantia e condicionou a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente, ao pagamento dessa quantia ao Ofendido.
11. O Ministério público requereu, ao abrigo do disposto no artigo 110 nº 1 al b) e nº 4 e 6 do Código Penal, a condenação dos arguidos, P. P. (o ora Recorrente) e J. P. a pagarem solidariamente ao estado o valor de 6.690,00€UR e o Recorrente a pagar ao estado o valor de 4.502,00€.
12. No entanto, o Tribunal entendeu não haver lugar à declaração de perda a favor do estado, sob pena de duplicação de pagamento atento o cuidado do Recorrente em indemnizar o ofendido M. F. e pela condenação daquele no pagamento da quantia de 3.750,00€ correspondente ao prejuízo sofrido pelo D. R..
13. Sucede que os furtos estavam cobertos por apólice de seguro, conforme resulta dos pedidos efetuados pelos ofendidos ainda em sede de inquérito.
14. Daí que não tivessem sido deduzidos quaisquer outros pedidos de indemnização civil.
15. Os ofendidos não ficaram patrimonialmente prejudicados, na medida da existência do seguro.
16. Assim, atento o entendimento do Tribunal em declarar que não há perda a favor do estado, sob pena de haver duplicação de pagamentos, o mesmo se haverá de dizer relativamente aos demais que receberam a respetiva indemnização do seguro.
17. Pelo que deverá o recorrente ser absolvido do pagamento de qualquer quantia a favor do estado.

Termos em que deverá o presente recurso ser admitido, julgado procedente e, consequentemente, alterado o acórdão proferido, tal como é de JUSTIÇA».

3.
A Digna Procuradora da República junto da primeira instância veio responder ao recurso concluindo pela sua improcedência.

4.
Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:

“1. Deverá proceder-se a uma precisa correção do acórdão recorrido, na sua página 24, por ser manifesto o lapso de escrita aí existente quando se alude à alínea d) do nº2 do artigo 204º do C. Penal, devendo a alusão a tal “alínea d)” ser substituída por “alínea e)”, por ser esse, efetivamente, o tipo legal de crime que ao arguido foi imputado na acusação, por ser este o versado na fundamentação do acórdão, por ser tal circunstância qualificativa a acertadamente referida no dispositivo da decisão recorrida e por tal o consentir o previsto no artº380,nº1,al.b), do CPPenal;
2. Deverá rejeitar-se o recurso do arguido na parte relativa à sua oposição à sua condenação cível, tendo em vista o estatuído no nº2, do art.400º do CPPenal e;
3. Deverá confirmar-se a declaração de perda em favor do Estado das vantagens auferidas pelo arguido recorrente tendo em vista o disposto no artº111º do CPenal sendo que este regime sancionatório não se acha na disposição dos ofendidos e a circunstância por si convocada não possuir sequer assento nos factos dados como provados”.

5.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº2, do C.P.P., não tendo sido apresentada qualquer resposta ao parecer.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí
julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº3, al.c), do diploma citado.

Cumpre decidir

II. Fundamentação

A) Delimitação do objeto do recurso

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.
Todavia, no caso vertente impõe-se apreciar e decidir as seguintes questões prévias:
Em primeiro lugar, cumpre apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso interposto pelo recorrente na parte atinente ao pedido de indemnização civil formulado pelo demandante D. R..
Insurge-se o recorrente quanto à sua condenação no pagamento da quantia de 3.750,00€, correspondente ao valor dos objetos em ouro que retirou da habitação do demandante.
Ora, de acordo com o art. 400º, n.º 2, do C.PPenal, sem prejuízo do disposto nos arts. 427º e 432º (manifestamente inaplicáveis ao caso em análise), o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
O art. 44º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), em matéria cível, fixou a alçada dos tribunais da relação em € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00
Por conseguinte, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.
In casu, o valor global do pedido de indemnização civil deduzido é de 3.750,00 euros.
Assim sendo, não se mostrando, desde logo, verificada esta condição, o recurso sobre a decisão proferida em matéria cível não é admissível.
Nos termos do art. 420º, n.º 1, al. b), o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do art. 414º, onde se inclui a irrecorribilidade da decisão.

Impõe-se, pois, rejeitar o recurso interposto na parte cível por a decisão não ser recorrível, não se conhecendo assim do mesmo.

Em segundo lugar, cumpre agora conhecer de uma outra questão prévia que se prende com um mero lapso de escrita de que padece o acórdão recorrido na sua página 24, mais concretamente na parte onde se referiu “Por sua vez o arguido P. P., com as suas condutas preencheu os elementos objetivos e subjetivos quanto a seis crimes de furto qualificado, previsto e punido pelo artº 203,nº1,204º,nº2,al.d) e 202º,al.d), todos do Código Penal, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, impõe-se a condenação do arguido pela praticado dos seis crimes supra aludidos”.

Com efeito, se a qualificativa aí mencionada foi a prevista na alínea d), do nº2, do artigo 204º, já na parte do dispositivo do acórdão fez-se constar o seguinte:

“Pelo exposto, decide-se : (…)
Condenar o arguido P. P. pela prática de seis crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º,nº1, 204º,nº2, al. e) do Código Penal, nas penas parcelares de 1 ano e 6 meses, 1 ano, 10 meses, 10 meses, 10 meses, 1 ano de prisão”.
Ora, como de forma clara e expressa resulta do que a respeito do enquadramento jurídico-penal dos factos provados se fez constar do acórdão recorrido, a qualificativa objeto de apreciação, em consonância com a imputação vertida na acusação e com a referência ao artigo 202º, alínea d), do Código Penal, foi, de facto, a prevista na alínea e), do citado artigo 204º,nº2, e não a qualificativa a que se alude na alínea d) desse mesmo preceito legal.
E dai que a menção feita na referida página do acórdão à qualificativa da alínea d), só possa ser entendida como um lapso de escrita.
Na verdade, foi a alínea e), e não a alínea d), que foi expressamente consignada no acórdão recorrido, foi esta a vertida na acusação deduzida e que a final ficou a constar no dispositivo.
De acordo com o artigo 380º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, tal lapso é suscetível de eliminação, desde que não importe uma modificação essencial da decisão, o que é evidente, uma vez que do acórdão recorrido resulta clarinho com base em que qualificativa foi considerada a atuação do recorrente.
Deste modo, ao invés do invocado erro de subsunção jurídica da atuação do recorrente, o que existe é antes um lapso de escrita, o qual urge de imediato corrigir.
Em conformidade, e dispondo o n.º 2 do art. 380º, que "se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso", impõe-se proceder à correção do erro ou lapso de escrita em questão, determinando-se que onde na mencionada página 24 onde se lê “204º, nº2,al.d)”, passe a ler-se “204º,nº2,al.e)”.

Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, bem como a inadmissibilidade do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil e a reparação do mencionado lapso de escrita, a única questão que importa conhecer prende-se em saber se devem ou não ser declaradas perdidas a favor do Estado as vantagens obtidas com a prática dos crimes cometidos pelo recorrente no âmbito do processo principal e dos apensos correspondentes aos NUIPC 100/18. GACBT, 132/18.9 GACBT, 642/20.8 T8GMR, e isto independentemente da inexistência de pedidos de indemnização civil.

B) Com vista à apreciação da questão supra enunciada importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida:

“O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), 4 e 6, do Código Penal, requereu a declaração da perda das vantagens obtidas pelos arguidos no montante de € 11.192,00 (onze mil cento e noventa e dois euros):
Nas circunstâncias descritas no libelo acusatório supra, os arguidos subtraíram as quantias e os objetos aí mencionados, que integraram no seu património.
Esses bens/valores correspondem à vantagem da atividade criminosa que obtiveram com a prática dos crimes descritos, na medida em que traduzem o incremento patrimonial direto alcançado com a sua conduta criminosa.
Não foi recuperado qualquer dos bens descritos na acusação antecedente, mostrando-se assim impossível, neste momento, garantir a sua recuperação e apropriação em espécie, pelo que requereu que a condenação dos arguidos P. P. e J. P. a pagarem solidariamente ao Estado o valor de € 6.690,00 (seis mil seiscentos e noventa euros) e o arguido P. P. a pagar ao Estado o valor de € 4.502,00. (quatro mil e quinhentos e dois euros)

Estabelece o art.º 110º, n.º1, al. b), 4 e 6 do CP, na redação introduzida pela Lei 30/017, de 30/05, que “- São declarados perdidos a favor do Estado:

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.”
A perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção.
Como bem ensina P. P. de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, pág. 315, em anotação ao art. 111°, anteriormente à redação introduzida pela Lei 30/2017, de 30/05), não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende uma condenação.
Sobre a natureza jurídica do regime da perda de vantagens, concluiu o Prof. Figueiredo Dias (“Direito Penal Português – Consequências jurídicas do crime”, pág. 638) tratar-se de uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança (e não de uma pena acessória), “no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa.”
Para Jescheck (“Tratado de Derecho Penal – Parte General”, 4.ª ed., pág. 721), não se trata de pena acessória como não se trata de medida de segurança, apenas medida que não pode determinar-se em geral, mas apenas atendendo a cada contexto, constituindo requisitos da declaração de perda de vantagens a existência de um facto anti-jurídico, bastando que seja negligente, desde que obtidas pelo delito ou a partir dele (pág 722).
Para Leal-Henriques e Simas Santos (“Código Penal Anotado”, 1.º vol., 1995, pág 784), trata-se de “uma medida destinada a restabelecer a ordem económica conforme o direito, conduzindo a uma justa privação dos benefícios ilicitamente obtidos que só indirecta e imprecisamente se poderia conseguir com a multa, elevando a taxa diária ou impondo multa cumulativamente com a prisão”, indicando como pressupostos para a perda de vantagens que tenha ocorrido um facto antijurídico, doloso quanto à previsão do n.º 1 do art. 111.º do CP ou culposo, quanto à previsão do seu n.º 2, que tenha proporcionado uma vantagem patrimonial, como tal se entendendo “tudo o que pode ser objecto de uma pretensão de enriquecimento”.
Acresce que a atual redação do art.º 110º do Código Penal, introduzida pela Lei 30/2017, de 30/05 estabelece a mesma condição, dado no seu n.º 6 prescreve que “o disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”
É nosso entendimento que tendo o arguido P. P. cuidado de indemnizar o ofendido M. F., conforme exarado na transação efetuada e homologada por sentença e tendo sido condenado no pagamento da quantia de € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros) correspondentes aos prejuízos sofrido por D. R., e em consequência do arguido P. P., não há lugar à declaração de perda a favor do Estado, sob pena de duplicação de pagamento.
Assim, deverão os arguidos P. P. e J. P. ser condenados a pagar solidariamente ao Estado a quantia de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros), correspondente ao valor das vantagens que obtiveram com a subtração de bens no processo principal.
Por sua vez, deverá ainda o arguido P. P. ser condenado a pagar ao Estado a quantia total de € 1.748,50 (mil setecentos e quarenta e oito euros e cinquenta cêntimos), correspondente ao valor das vantagens obtidas com a conduta do arguido P. P., nos factos descritos sob os NUIPC 100/18. GACBT (€ 102,00), 132/18.9 GACBT (€ 750,00), 642/20.8 T8GMR (€896,50)”.

C) Apreciação do recurso

No caso vertente, o Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), 4 e 6, do Código Penal, requereu a declaração da perda das vantagens obtidas pelos arguidos no montante de € 11.192,00 - os arguidos P. P. e J. P. a pagarem solidariamente ao Estado o valor de € 6.690,00 (seis mil seiscentos e noventa euros) e o arguido P. P. a pagar ao Estado o valor de € 4.502,00. (quatro mil e quinhentos e dois euros - porquanto, de acordo com a acusação pública, os arguidos subtraíram as quantias e os objetos aí mencionados, que integraram no seu património, bens/valores esses que correspondem à vantagem da atividade criminosa que obtiveram com a prática dos crimes descritos.
Como resulta da decisão recorrida, mostrando-se impossível garantir a sua recuperação e apropriação em espécie, entendeu-se, trazendo à liça o disposto no artigo 110º,nº6, do CPenal que “tendo o arguido P. P. cuidado de indemnizar o ofendido M. F., conforme exarado na transação efetuada e homologada por sentença e tendo sido condenado no pagamento da quantia de € 3.750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros) correspondentes aos prejuízos sofridos por D. R., não havia, nessa parte, fundamento para a declaração de perda a favor do Estado, sob pena de duplicação de pagamento. Desse modo, concluiu dever apenas condenar os arguidos P. P. e J. P. a pagar solidariamente ao Estado a quantia de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros), correspondente ao valor das vantagens que obtiveram com a subtração de bens no processo principal e ainda o arguido P. P. a pagar ao Estado a quantia total de € 1.748,50 (mil setecentos e quarenta e oito euros e cinquenta cêntimos), correspondente ao valor das vantagens obtidas com a conduta do arguido P. P., nos factos descritos sob os NUIPC 100/18. GACBT (€ 102,00), 132/18.9 GACBT (€ 750,00), 642/20.8 T8GMR (€896,50)”.
Insurge-se o recorrente com o decidido a respeito da declaração de perda de vantagens, porquanto, não tendo os respetivos ofendidos ficado patrimonialmente prejudicados, dado estarem a coberto da existência de contrato de seguro - dai que não tivessem deduzido qualquer pedido de indemnização civil - também aqui a declarar-se a perda de vantagens existiria duplicação de pagamentos.
Ainda que não nos possamos rever, atenta a natureza do instituto em causa, na conclusão a que chegou o tribunal recorrido, quanto à invocada duplicação de pagamentos e a consequente impossibilidade de declaração de perda das respetivas vantagens, atenta a transação civil ocorrida no que respeita ao ofendido/demandante M. F. e a procedência do pedido cível formulado pelo demandante D. R., não constituindo tal matéria objeto de recurso, importa agora apenas decidir se a declaração de perda de vantagens na parte em que o foi podia ou não ter ocorrido.
Antes de mais, ao contrário do alegado pelo recorrente, salienta-se que não evola da factualidade provada que tenha ocorrido qualquer indemnização para os ofendidos a coberto de eventuais contratos de seguro.
Além de que, mesmo a ter ocorrido, o certo é, como bem salienta o Exmo Procurador Geral Adjunto, que a defender-se o entendimento do recorrente o crime, de facto, sempre compensaria.
Dito isto, vejamos então se a declaração de perda em apreço podia ou não ter ocorrido.
A propósito da perda das vantagens, prevista no artigo 110º, nº1, al.b), do Código Penal, na redação introduzida pela Lei 30/2017, de 30/5 (anteriormente prevista no artigo 111º do C.Penal), resulta de tal dispositivo legal que são declaradas perdidas a favor do Estado, as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Já de acordo com o nº4 do mesmo preceito legal “Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo na fase executiva, com os limites previstos no artigo 112º-A”.
Por sua vez, acrescenta o nº6 deste mesmo preceito legal, que o disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.
Não se desconhecendo a existência de jurisprudência em sentido contrário, temos para nós, como já defendemos no acórdão que relatámos no âmbito do processo 127/19.5IDBRG, de 21/2/2022, disponível in dgsi.pt, que a perda das vantagens tem de ser decretada pelo tribunal tenha ou não sido formulado pedido de indemnização civil (neste sentido, Acs da Relação de Lisboa 18/6/2019, proc.2706/16.3T9FNC.L1-5, da Relação do Porto, de 07/8/2021, proc.95/18.0T9LLE, de 31/05/2017, proc.259/15.9IDPRT, de 26/10/2017, proc.217/15.3IDPRT, da Relação de Guimarães de 14/01/2019, proc.240/16.0IDBRG.G1).
O decretamento da perda da vantagem patrimonial não pode, quanto a nós, ficar dependente da dedução do pedido cível e do que a respeito do mesmo vier a ser decidido, o que facilmente se compreende se atentamos na natureza sancionatória preventiva do instituto do confisco.
O instituto legal da perda de vantagens patrimoniais trata-se pois de uma providência sancionatória de natureza jurídica análoga à das medidas de segurança, não tendo a natureza de pena acessória nem efeito da condenação, antes estando ligada à prevenção da prática de futuros crimes (Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 638, editorial Notícias 1993).
Salienta o mesmo autor, in obra citada que “À primeira vista, a consagração da perda de vantagens como providência de caráter criminal pode parecer absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente, sob a forma da restituição em espécie). A providência justifica-se, no entanto, de um duplo ponto de vista. Por uma parte, o lesado pode prescindir da reparação, não apresentando o respetivo pedido; caso em que as finalidades de prevenção geral e especial, acima apontadas, dão fundamento autónomo ao decretamento da perda. Por outra parte, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima foi prejudicada. Suscita-se, nestas hipóteses, o problema de saber até onde deverá a perda das vantagens ser decretada (infra&1009). Mas seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda. Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que sempre que tenha havido pedido cível conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá vir a ser decretada utilmente”.

Como se refere no Acórdão da Relação do Porto, de 22/2/2017, publicado em www.dgsi.pt e já trazido à liça pelo Exmo Procurador Geral Adjunto, “ (…) a perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”, nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza]. Tanto basta para concluir que as intenções ou entendimento do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido, não competem nem podem sobrepor-se ou substituir-se ao exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa. O direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório. A reserva constante do n.º 2, do citado art. 111º, em benefício dos direitos do ofendido ou terceiros de boa-fé, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes.”

Referem João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, in Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 1/12/2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1 “Quando os bens não puderem ser restituídos ao lesado, o Estado deverá proceder ao seu confisco, sem qualquer constrangimento, independentemente de um qualquer pedido de indemnização civil. Nestes casos, todavia, se o lesado poder beneficiar do regime oficioso de reparação da vítima (art.82ºA do CPP), tiver deduzido pedido de indemnização civil ou beneficiar da possibilidade de o deduzir em separado, nos termos do artigo 72ºdo Código de Processo Penal, “ tudo se passará como que se o Estado, no que tange ao que foi declarado perdido a seu favor e havendo um vítima a ressarcir, ficasse como fiel depositário”, isto por via da aplicação do disposto no art.130º,nº2, do Código Penal. Os bens confiscados serão preferencialmente utilizados – como sugerem as convenções internacionais – para ressarcir o lesado. Só assim mediante o prévio confisco da coisa, se poderá, aliás, justificar a sua atribuição posterior à vítima.
Nas restantes situações, isto é, quando o lesado não beneficiar daquele regime oficioso, não tiver deduzido pedido de indemnização civil ou não gozar da faculdade de o fazer em separado, o confisco opera plenamente, nos termos do artigo 111º do Código Penal. A inércia da vítima – repetimos mais uma vez – não prejudica o confisco e a reposição da legalidade da situação patrimonial do condenado”.
Volvendo-nos no caso vertente, como se reconhece na sentença recorrida, os valores em causa correspondem às vantagens criminosas obtidas com a atividade criminosa em causa no processo principal e nos NUIPC 100/18 GACBT (€ 102,00), 132/18.9 GACBT (€ 750,00), 642/20.8 T8GMR (€896,50), traduzindo o incremento patrimonial direto alcançado com a sua conduta criminosa.

Salienta, a este propósito, João Conde Correia, in “Da Proibição do confisco à Perda Alargada” INCM, pág.81, que a vantagem patrimonial pode consistir “num aumento do ativo, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisas ou direitos alheios ou na mera poupança ou supressão de despesas. Em causa tanto estão as coisas, como os direitos, os benefícios decorrentes da fruição de um determinado objeto (v.g a utilização gratuita de um veículo automóvel decorrente da prática do crime) ou os custos evitados (vg os decorrentes da não realização das obras necessárias ao cumprimento das disposições legais nos crimes ambientais): isto é, tudo o que signifique um enriquecimento patrimonial do visado”.
Ora, as quantias em causa constituem, sem margem para qualquer dúvida, uma vantagem patrimonial que pode ser declarada perdida, porquanto se verificam os respetivos pressupostos legais para tal declaração.
São eles, unicamente, a existência de um facto antijurídico e a existência de proveitos.
Assim, uma vez formulado pelo Ministério Público, titular da ação penal, o respetivo pedido de declaração de perda das vantagens, preenchendo a factualidade provada atinente ao processo principal e aos mencionados apensos, factos ilícitos típicos e deles tendo resultado vantagens para os seus agentes, o tribunal terá de declarar a perda de tais vantagens patrimoniais, exceto se for demonstrado que já foram recuperadas, que o ofendido já foi efetivamente ressarcido, caso em que a perda não pode ser decretada, por se ter cumprido o fim da declaração da perda das vantagens.
Por conseguinte, a decisão de declaração da perda de vantagens é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal, procurando-se com ela reconstituir a situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, de modo a ficar sem qualquer benefício da prática do crime, assim percebendo que “o crime não compensou”.
Nada mais se exige, inexistindo qualquer pressuposto positivo ou negativo relativo à dedução do pedido de indemnização civil por parte do lesado – o que bem se compreende face à natureza distinta da indemnização (essencialmente reparadora) e da declaração de perda (sancionatória preventiva).
Como defendem João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, in Revista Julgar Online, janeiro de 2017, “Confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários” (Anotação ao Acórdão do TRP de 23/11/2016, processo nº905/15.4IDPRT.P1):
«O legislador português, ao invés do sistema alemão tradicional que tanto tem influenciado a nossa dogmática, optou por um sistema misto. A letra do artigo 111º,nº2, do Código Penal e, sobretudo, a sua conjugação com a letra e o espirito do artigo 130º,nº2, do mesmo diploma legal (e, até, com o artigo 127º,nº3, do CPP), não deixam margem para qualquer dúvida razoável. A obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade egoística de qualquer indivíduo, mas salvaguarda, igualmente, os seus direitos, nomeadamente através da adjudicação dos bens declarados perdidos ou do produto da sua venda às vítimas.
(…) a lei não distingue: o artigo 130º do Código Penal é muito claro, não excecionando nenhuma situação, designadamente aqueles casos em que a vítima já dispõe de formas legais para recuperar os ativos de que foi privada. Por isso mesmo, uma vez que a lei não distingue, também nós não podemos distinguir: «Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus». O julgador não pode sobrepor a sua interpretação à letra da própria lei, subvertendo o seu espírito e a sua ratio. Ao contrário de outros sistemas legais, que como referimos consagraram a preferência do pedido de indemnização civil ou de outras formas de ressarcimento sobre o confisco (de tal forma que havendo possibilidade abstrata não deverá haver declaração de perda) o legislador português como (insistimos) resulta claramente do artigo 130º do Código Penal, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do ius imperium estadual. Essas formas de reparação têm de sujeitar-se ao confisco e não ao contrário, devendo a articulação ser feita a posteriori».
Aqui chegados, na senda do que vimos de expor, impunha-se pois a condenação do recorrente a pagar ao Estado as quantias em apreço, correspondentes às vantagens da atividade criminosa por si desenvolvida.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em:

A) - Proceder à correção do erro ou lapso de escrita detetado na sentença recorrida, determinando-se que onde na mencionada página 24 se lê “204º, nº2,al.d)”, passe a ler-se “204º,nº2,al.e)”.
B) – Rejeitar, por a decisão ser irrecorrível, o recurso por interposto na parte atinente à sua condenação do demandado, ora recorrente, no pedido cível formulado pelo demandante D. R..
C) - Na parte criminal, julgar improcedente o presente recurso interposto pelo arguido P. P., confirmando-se o acórdão recorrido.

Pela rejeição do recurso na parte cível, condena-se o recorrente na importância correspondente a três UC (art. 420º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Na parte criminal, condena-se a recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (arts. 513º,nº1 do C.P.P. e 8º,nº9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
Guimarães, 20 de junho de 2022

A Juiz Desembargadora Relatora
Cândida Martinho

O Juiz Desembargador Adjunto
António Teixeira

O Juiz Presidente da Secção Penal
Fernando Chaves