Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
384/17.1.T8GMR-A.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: ACEITAÇÃO TÁCITA DA HERANÇA
REPÚDIO DA HERANÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Existindo declaração de aceitação de uma herança, mesmo que tácita, prévia à declaração de repúdio, esta segunda é ineficaz, por força da irrevogabilidade de que goza a declaração de aceitação da herança.

2. Existe aceitação tácita da herança quando o sucessível tem comportamentos que criam uma situação da qual se conclua que com toda a probabilidade aceitou a herança (artigo 217º do Código Civil), sendo esta aferida com os padrões que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236º do Código Civil).

3. A simples não oposição ao incidente de habilitação de herdeiros (tão curto é o prazo para a sua oposição, menor que a concedida no processo próprio para a declaração de aceitação concedido pelo artigo 2049º do Código Civil, aplicável no procedimento a que se refere o artigo 1039º do Código de Processo Civil) não pode desde logo fazer presumir pela aceitação da herança.

4. No entanto, a intervenção ativa em diversos atos processuais na qualidade de herdeiro, a que não é totalmente alheio o tempo decorrido em que este nada faz para afastar a posição jurídica que lhe foi atribuída, por ser diversas vezes chamado nessa qualidade, traduzem para qualquer declaratário normal e de boa-fé a firme convicção que o sucessível aceitou a herança em causa, agindo como titular da mesma.
Decisão Texto Integral:
I. Relatório

Por apenso aos autos de execução movidos pela ora apelante, vieram as executadas, oram apeladas, deduzir embargos de executado, invocando a exceção dilatória da sua ilegitimidade, porquanto, em síntese, repudiaram a herança da sua falecida mãe, a qual é a responsável pelo pagamento da quantia exequenda.
A Exequente contestou, invocando, em síntese, que o repúdio não tem qualquer “viabilidade”, porquanto as executadas celebraram a respetiva escritura de repúdio da herança de sua mãe cinco anos após a morte daquela e nesse ínterim praticaram atos demonstrativos da aceitação da herança, a qual é irrevogável. Indica tais atos e cita jurisprudência.

Foi, após dispensa da realização da audiência prévia, proferida decisão com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos arts. 30.º, 278.º, n.º 1, al. d), 576.º, n.º 2, 577.º, nº 1, al. e) e 595.º, n.º 1, al. a), todos do C. P. Civil, julgo procedente a exceção da legitimidade passiva suscitada pelas embargantes e, em consequência, absolvo-as da instância.”
Nesta decisão não se mencionou a contestação, nada tendo sido afirmado quanto aos factos e direito ali invocados.

É contra este saneador-sentença que se insurge a apelante, pugnando pela declaração de nulidade e prolação de decisão que afirme a ineficácia do repúdio da herança pelas recorrentes.
Formula as seguintes conclusões:

1 – Na sua contestação, a recorrente invocou a exceção de aceitação prévia da herança de Maria pelas suas filhas, ora recorridas;
2 – Esta aceitação é anterior ao repúdio pelo que este é ineficaz;
3 – A douta sentença recorrida não apreciou esta matéria de exceção, violando o disposto no art. 608 nº 2 do CPC, pelo que incorreu na nulidade prevista no art. 615 nº 1 do CPC.
Sem prescindir
4 – Dos factos documentalmente demonstrados resulta que as aqui recorrentes praticaram atos inequívocos no sentido de terem aceite a herança de sua Mãe;
5 – A aceitação da herança é irrevogável – art. 2061 do CC;
6 – O posterior repúdio da herança é ineficaz.

Não foi apresentada resposta.

II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito- artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.
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Apesar de invocada a nulidade da sentença não foi, pelo tribunal a quo, proferido qualquer despacho conhecendo especificadamente dessa matéria, limitando-se a mencionar “não vislumbro na sentença qualquer nulidade ou irregularidade que sustente a sua alteração”.
Não obstante, razões de economia processual e por ser tão patente a nulidade ocorrida, pode e deve este tribunal desde já pronunciar-se sobre esta matéria – artigo 617º nº 5 do Código de Processo Civil.
Após, há que ver se o repúdio da herança efetuado pelas embargantes é eficaz.
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A- Da invocada nulidade da sentença

Como é bem sabido, tem o tribunal a obrigação de conhecer de todas as questões que lhe são suscitadas, sendo que se o não fizer incorre na nulidade prevista na alínea d) do artigo 615º do Código de Processo Civil, norma que sanciona dessa forma a sentença na qual “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
É taxativo o nº 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil: “2 — O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Ora, tendo a apelante suscitado na sua contestação a exceção perentória consistente na prévia aceitação da herança pela embargantes, com eficácia retroativa, causa de ineficácia do repúdio por estas alegado como causa de pedir nos seus embargos, não podia o tribunal ignorar completamente esta questão, sem sobre ela se pronunciar.
Acresce que o embargado invocou factos para cuja prova junta documentos, e a sentença também se não pronunciou sobre tais factos. Mostra-se evidente, sem necessidade de mais considerações, que ocorreu a nulidade invocada, pelo que mais não resta senão declará-la.
O artigo 665º nº 1 do Código de Processo Civil impõe que mesmo que este tribunal declare nula a decisão que põe termo ao processo, deve conhecer do objeto da apelação.
Embora se não se possa considerar provada toda a matéria da contestação nesta fase recursiva, visto que não foi dada às embargantes a possibilidade de se pronunciar sobre esta exceção perentória invocada pela embargada (face à eliminação no novo Código de Processo Civil do articulado resposta, a taxatividade do disposto no artigo 584º nº 1 deste mesmo diploma e o disposto no seu artigo º nº 5, que determina que a resposta seja efetuada na audiência prévia ou na audiência de julgamento, que não vieram a realizar-se), os factos que se encontram documentalmente provados, com base nas cópias das certidões e peças processuais juntas, permitem, com a necessária segurança, conhecer do pedido.
É o que se passará a fazer, com o conhecimento da matéria de facto documentalmente provada.
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III. Fundamentação de Facto

Decorrem dos documentos juntos, não impugnados, os seguintes factos:

a) A Mãe das recorridas, Maria, morreu em 11/10/2010;
b) Não dispôs de seus bens por morte, sucedendo-lhe como herdeiros seu marido (José) e as três filhas, aqui opoentes;
c) Na data do óbito estava pendente a ação 98/08.3TBCBT, Tribunal de Celorico de Basto.
d) A embargada apresentou nesses autos em 9 de dezembro de 2010 requerimento inicial de habilitação de herdeiros das ora embargantes em relação a sua mãe.
e) As ora embargantes não deduziram oposição e em 6-4-2011 foram julgadas habilitadas para prosseguirem na causa na qualidade de herdeiras daquela.
f) A embargada apresentou requerimento executivo contra as ora embargantes, por apenso a esse processo, em 17 de abril de 2013, o qual veio a assumir o nº1766/14.6T8GMR.
g) A ora embargante Cristina deduziu oposição a essa execução, pronunciando-se tão só quanto ao mérito da prestação peticionada, posição que manteve no recurso que interpôs.
h) No âmbito desse processo, a audiência prévia ocorreu no dia 06/01/2016, tendo as ora embargantes junto procurações com poderes especiais “para transigir, confessar, desistir e os de receber custas de parte e ainda os poderes especiais de ratificação do processado no âmbito do processo”.
i) Ainda no decurso desse ato judicial, o M. Juiz a quo tentou a conciliação das partes no sentido de obterem uma solução consensual “para porem termo aos presentes autos”.
j) A ação nº 8168/15.5T8GMR foi proposta pela Banco X contra as três aqui recorridas e contra seu pai.
k) As aqui recorridas foram citadas para os termos da ação e não contestaram, tendo sido condenadas “na qualidade de herdeiras de Maria (...) a pagarem à exequente a quantia de € 69.368,34 (...) acrescida de juros moratórios (...)”.
l) As embargantes declararam repudiar a herança em 2 de Março de 2017.

IV. Fundamentação de direito

A questão levantada traduz-se em apurar se há que considerar se as embargantes à data do repúdio (2 de março de 2017) já haviam praticado atos de onde se retire que haviam aceitado a herança.
Um mero sucessível só adquire a condição de sucessor com a aceitação da herança, seja esta derivada da lei ou de testamento.
Não existe qualquer imposição legal da herança aos sucessíveis, mesmo que conhecidos.
A existir aceitação, os seus efeitos retroagem-se à data da abertura da sucessão, não operando o repúdio, posterior.
A aceitação da herança é uma manifestação de vontade que pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável e não está sujeita à forma exigida para a alienação da herança.
Dispõe o artigo 2056.º do Código Civil que a aceitação pode ser expressa ou tácita; é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir. Realça, no seu nº 3, que os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança. (artigos 2056º e 2063º do Código Civil, "a contrario")
O artigo 2061º do Código Civil impõe a irrevogabilidade da aceitação; só o repúdio, não a aceitação, estão sujeitos à forma exigida para a alienação da herança (cf. artigo 2063 deste diploma).
As noções de aceitação expressa e tácita devem retirar-se a partir das noções gerais do artigo 217º do Código Civil. Quanto à declaração tácita, costuma-se esclarecer que é aquela que esta se destina em via principal a outro fim, mas "a latere" permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial, traduzindo-se num ou vários procedimentos concludentes, mas que têm que ser inequívocos.
O silêncio não vale como declaração negocial, nesta matéria da aceitação da herança, já que esse valor não lhe está “atribuído por lei, uso ou convenção” (art.º 218º do Código de Processo Civil), embora, se concatenado com outros atos possa fazer parte de uma situação que permita de forma segura e inequívoca concluir pela aceitação.
Assim, só poderemos estar perante uma declaração tácita da herança se esta “se deduzir de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” (art.º 217º nº 1 do Código Civil).
Decisivo é saber se existem elementos reconhecíveis da intenção do herdeiro em adquirir a herança, caso em que se tem de entender que ocorreu a sua aceitação.
“A declaração do cabeça de casal num inventário em que se elenca como herdeiro traduz uma aceitação expressa ou, pelo menos, permite concluir com tal probabilidade o propósito de adquirir a herança, o que representa aceitação tácita. – cf Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 04/18/2006 no processo 06A719, (sendo este, e todos os demais acórdãos citados sem indicação de fonte, consultados no portal dgsi.pt.)
“A habilitação judicial, só por si, não define a posição dos habilitados relativamente à herança; significa apenas que estes são investidos na qualidade de herdeiros – ainda que não sucessores – do falecido, assegurando a respetiva legitimidade processual para com eles prosseguir a ação em substituição daquele..”cf Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 24-02-2015 no processo nº 176/07.6TBVLF.C1
“ A habilitação, tomada isoladamente, não é índice seguro, só por si, da aceitação tácita da herança, isto porque, tendo a aceitação tácita de traduzir-se por atos inequívocos, a habilitação significa apenas que o indivíduo é investido na qualidade de herdeiro, não definindo a sua posição relativamente à herança.”cf Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Porto em 05-07-2006 com o nº 0633036 de.
Já inferindo a prática de atos demonstrativos de que pretendeu assumir o título de herdeira com intenção de adquirir a sua herança, nos casos em que esta pediu o prosseguimento dos autos, efetuou escritura de habilitação de herdeiros e deduziu incidente de habilitação de herdeiros, apresentando procuração forense a favor do antigo mandatário constituído pelo falecido, cf. Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 21/6/2007 no processo 1049/07-2.
E no mesmo sentido, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Porto 05/26/2009 no processo 4593/03.2TBSTS-C.P1, “A circunstância de o habilitado não ter contestado o requerimento de habilitação, permitindo que se produzisse o respetivo efeito cominatório (confissão do facto da qualidade de herdeiro), e de, posteriormente, ter intervindo no processo de execução como herdeiro e executado, durante mais de 3 anos desde a decisão de habilitação, sem expressar qualquer «repúdio da herança» cujo documento, só foi apresentado mais de 7 anos após a sua morte, afigura-se claramente reveladora de uma aceitação tácita da herança.” citando ainda “o Ac. RL de 13/3/2007 (Proc. 933/2007-1, in www.dgsi.pt). Aí se entendeu que «aceita tacitamente a herança aquele que não contesta no incidente de habilitação de herdeiros, não recorre da sentença que o julga habilitado e intervém nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento».”
Que posição escolher?
Aceita-se que a simples não oposição ao incidente de habilitação de herdeiros (tão curto é o prazo para a sua oposição, menor que a concedida no processo próprio para a declaração de aceitação concedido pelo artigo 2049º do Código Civil, aplicável no procedimento a que se refere o artigo 1039º do Código de Processo Civil) não pode desde logo fazer presumir pela aceitação da herança.
Não se pode através desse incidente retirar ao herdeiro o prazo que a lei lhe concede para aceitar ou não a herança.
Importa também atentar que a lei não permite que de simples atos de administração se conclua pela aceitação; tendo os atos que ser concludentes para serem considerados tacitamente demonstrativos da aceitação.
Enfim, o(s) comportamentos do sucessível têm que criar uma situação da qual se conclua que com toda a probabilidade este aceitou a herança (artigo 217º do Código Civil), sendo esta aferida com os padrões que declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento daquele (artigo 236º do Código Civil).
Ora, no presente caso, após a habilitação das embargantes, em 6-4-2011, proferida nos autos 98/08.3TBCBT, veio uma das embargadas, no âmbito da execução desses autos deduzir oposição já em abril de 2013, na qualidade de herdeira e sem a questionar. Em audiência prévia de janeiro de 2016 as embargantes juntaram procurações agindo no sentido de obterem uma solução consensual ao processo onde figuravam como partes passivas na qualidade de herdeiras de Maria. Já em processo deduzido em 2015, foram citadas e condenadas também na qualidade de herdeiras destas a pagar à pela Banco X”, sem nada oporem.
Releva também o longo espaço de tempo (7 anos) em que as embargantes nada fizeram, quando sabiam e intervieram em processos em que eram demandadas, dando azo a que as contrapartes se convencessem que de que assumiam a posição de herdeiras, tendo aceite tacitamente a herança.
Enfim, este conjunto de atos, todos lidos em conjunto, traduzem para qualquer declaratário de boa-fé a firme convicção que as embargantes aceitaram a herança em causa, agindo como titulares da mesma, face à intervenção ativa em diversos atos processuais e nessa qualidade, a que não é totalmente alheio o tempo decorrido em que nada fizeram, apesar de terem sido por diversas vezes chamadas nessa qualidade e terem até agido como tal.

Assim, tendo as declarantes aceite a herança em data anterior a 2 de março de 2017, a declaração de repúdio operada nessa data, carece de qualquer efeito, visto que é posterior à irrevogável declaração de aceitação, valendo a primeira.
Como se diz no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 06/21/2007 no processo 1049/07-2 “A aceitação e o repúdio duma herança são por natureza incompatíveis. Assim uma vez aceite não pode haver repúdio.”
Tanto basta para improcederem os embargos, havendo que alterar a decisão proferida, determinando a improcedência daqueles.

V. Decisão

Pelo exposto, delibera-se pela procedência da apelação e, anulando-se a sentença proferida, julga-se improcedente a exceção de ilegitimidade passiva das embargantes na execução de que estes autos são apenso, absolvendo a embargada do pedido.
Custas pelas apeladas. (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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Guimarães, 2018-3-01

Sandra Melo
Heitor Gonçalves
Amílcar Andrade