Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
669//16.4JABRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: RECURSO
ASSISTENTE
PENA
AGRAVAMENTO
FALTA DE INTERESSE EM AGIR
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS DO CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – O pressuposto processual “interesse em agir” consubstancia-se numa restrição ao exercício do direito à jurisdição colocada pela necessidade da intervenção processual requerida para a tutela jurisdicional do direito que lhe está subjacente e daí que se deva aferir pelo elemento objectivo do concreto procedimento – compreendido pela pretensão nele formulada e pelo facto jurídico que lhe está na base – e pela necessidade da tutela judicial pretendida face à situação subjectiva apresentada pelo respectivo requerente.
II – Por isso, o interesse em agir do assistente, como pressuposto do recurso, significa a necessidade que o mesmo tenha de usar este meio para reagir contra uma decisão que comporte uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustre uma sua expectativa ou benefício legítimos, pelo que não poderá recorrer quem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na correcção da decisão, só o podendo fazer se esta lhe determinar uma efectiva desvantagem.
III – Não é, pois, admissível o recurso interposto apenas pelo assistente quanto ao agravamento da pena – demandando a condenação do arguido numa pena de prisão efectiva e não suspensa na respectiva execução, invocando as elevadas exigências de prevenção geral –, resultando dos autos que o recorrente não evidencia qualquer especial “conexão” com a pretensão punitiva do Estado, a qual se esgotou no culminar do exercício, por parte do Órgão dele incumbido, da perseguição penal relativa à imputada autoria de crimes exclusivamente públicos e a sua posição se queda por invocar argumentos do foro do interesse geral da comunidade na punição do arguido, sem que, sendo esse um interesse colectivo, tenha apelado a quaisquer outras situações reveladoras de outros interesses particulares ou pessoais, para o poder fazer desacompanhado e, aliás, contra o entendimento manifestado no recurso pelo MP.
IV – Assacando o recorrente à decisão o vício do erro notório, ao abrigo do nº 2 do art. 410º do CPP, esse vício, enquanto tal, só se verifica quando, perscrutando o teor daquela, por si só considerado, for de concluir, de acordo com um raciocínio lógico, que nela emerge uma errónea construção do silogismo judiciário, necessariamente patenteada no respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e que, por isso, não escapa à análise do homem médio, mas sem que para tal constatação seja admissível o recurso a elementos estranhos à simples leitura daquele teor.
V – O preenchimento do dolo, que exprime a representação e a vontade de o agente realizar os pertinentes elementos objectivos do tipo legal, exige que o mesmo preveja o resultado e a relação causal e tenha vontade de concretizar essa acção, bastando-se, no que respeita ao dolo eventual, com a representação pelo agente da possibilidade da realização do tipo legal e da sua conformação com ela. Assim, situando-os no plano ou em sede de julgamento sobre matéria de facto e assumindo os elementos intelectual e volitivo do dolo a natureza de factos relativos ao foro psicológico ou da vida interior do agente e, por isso, impossíveis de apreender directamente, os mesmos podem ser deduzidos ou inferidos de outros factos que, com muita probabilidade, os revelem: tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros factos (materiais ou objectivos) demonstrados em audiência que com eles normalmente se ligam, analisados à luz das regras da experiência comum, e que permitem ou impõem concluir pela sua verificação.
VI – O crime de violência doméstica, previsto no art. 152º, do C. Penal, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam a dignidade, enquanto pessoa, da vítima. O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é susceptível de se classificar como “maus tratos”, o que se deverá concluir apenas «quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo Comum Colectivo nº 669/16.4JABRG da Instância Central, Secção Criminal da Comarca de Viana do Castelo, o arguido F. S., foi julgado e absolvido por acórdão proferido e depositado a 16/12/2016 da prática do crime de violência doméstica e de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e condenado, como autor de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1, e 145º, nº 1, a), do C. Penal, e 86º, nº 3 e 4, do RJAM, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, e interdito de detenção, uso e porte de arma.
Foi ainda o arguido condenado no pagamento da quantia de € 6.057,08 (seis mil e cinquenta e sete euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da notificação do pedido de indemnização cível deduzido pela Unidade Local de Saúde do Alto Minho, EPE.

Inconformados com a referida decisão, os assistentes S. C. e H. B. interpuseram recurso, cujo objecto delimitaram com as seguintes conclusões:
1. Os aqui Recorrentes não se podem conformar com a sentença que absolveu o arguido, da prática do crime de violência doméstica e do crime de homicídio qualificado.
2. O tribunal a quo deu como provada a matéria que consta do acórdão, supra melhor descrita.
3. Por outro lado foi considerada como não provada, entre outra a matéria de facto, melhor descrita no aordão e supra.;
4. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo não poderia ter dado como não provado o pontos supra referidos da matéria de facto dada como não provada, porquanto foi produzida prova nesse sentido.
5. Também não poderia de forma alguma absolver o arguido dos crimes de homicídio qualificado na forma tentada e de violência doméstica, uma vez que é uma decisão contrária à matéria dada como provada.
6. Na verdade, e não se pondo em causa o princípio da livre apreciação da prova, sempre se dirá que a matéria de facto dada como não provada na douta sentença foi incorretamente julgada e a decisão incorretamente dada.
7. Na motivação o tribunal refere que já para o sucedido na madrugada de 11 de Junho após a chegada do filho a casa, serviram as declarações do arguido e as dos assistentes. Assim, as declarações dos assistentes foram no essencial concordantes, sendo que, quer pelos poucos segundos em que tudo se passou, quer pelo estado alterado em que ambos se encontravam - a assistente, resultante do conflito com o marido e, como ela própria referiu, do receio do que pudesse ocorrer entre pai e filho, desde logo porque, antes, pensou ter visto um pau na mão do arguido, mas também porque "o rapaz vinha tolo", e o assistente porque, como expressamente admitiu, estava "de cabeça perdida" e "ia confrontar " o pai, face ao que lhe tinha sido contado pela mãe - nenhum dos assistentes conseguiu afirmar com certeza que o arguido tenha apontado a caçadeira ao filho nos instantes que antecederam o disparo: a assistente refere que a arma estava na direcção "do peito para baixo", o que é vago, e o assistente declarou que o pai não teria tido tempo de fazer pontaria, uma vez que este reagiu de imediato ao arremesso da lata de tinta por parte dele. O quase imediatismo do episódio - o assistente atira a lata, não sabe se acertou no pai, e "nisto, ele virou-se para mim e disparou" - aliados ao já referido estado de embriaguez do arguido (que diminui consideravelmente, quando não elimina, a precisão de gestos) e a toda a tensão latente não permitem concluir com segurança que tenha havido por parte do arguido um acto de apontar a arma ao filho, ao contrário do que ambos os assistentes afirmaram que segundos antes tinha acontecido face à mulher. Relativamente à intenção do arguido ao disparar (que este nega ser sequer de ferir), pese embora a curta distância a que se encontrava do filho e o uso de uma caçadeira, com grande potencial letal, não dispõem os autos de elementos que permitam concluir com a necessária segurança que o arguido queria matar o filho, nem sequer que admitiu a hipótese de tal acontecer, com ela se conformando: o arguido estava embriagado, e portanto com os sentidos embotados, tinha medo que o filho viesse tirar desforço do que tinha sucedido entre o pai e a mãe, o que ainda obnubila mais a vontade e, como já se referiu, não há prova de que o arguido sequer fez pontaria. E nem se diga que basta carregar a caçadeira: isso torna-se perigoso, mas por si só não força a conclusão de que a arma só será usada para matar.
8. Refere ainda com relevância que o arguido, mesmo no estado diminuído em que encontrava, sabia, porque a tinha carregado, que a arma dispararia se ele accionasse o gatilho e, logo a seguir a ter sido visado pela lata que o assistente arremessou (ou seja, de ter havido um desencadear de movimento e ruído que pôs os seus sentidos em alerta, ainda que entorpecidos pelo álcool), redireccionou a caçadeira para a zona em que se encontrava o filho (que, como este e a mãe explicaram, embora ambas na garagem, era separada por um pilar daquela onde se encontrava a assistente) e disparou. Ora, o arguido tem carta de caçador e licença de uso e porte de arma (fls. 371/372), sabe usá-la, carregou-a e dirigiu-a (embora sem apontar) a uma área da garagem onde sabia que estava uma pessoa, o filho, a quem tinha acabado de dirigir a palavra; por isso, não pode ter deixado de, naquele momento, se lhe colocar a hipótese de ferir o filho, dada a curta distância que os separava e o tipo de arma utilizada.
9. No entanto, a prova produzida em audiência é demonstrativa de que o arguido cometeu, como autor, um crime de homicídio qualificado na forma tentada, nomeadamente e entre outra matéria melhor descrita que o arguido disparou sobre o filho sabendo que a arma usada era um "instrumento particularmente perigoso" e que as balas disparadas poderiam penetrar no corpo do assistente,
10. Pelo que sempre teria que, condenar o arguido pelo crime pelo qual vinha acusado, pois teria que concluir que o arguido não só quis atingir o seu filho como sabia que tal conduta era susceptível de lhe provocar a morte e, apesar disso, mesmo perante a elevada possibilidade de verificação desse resultado, não deixou de actuar, assim revelando a sua conformação com tal possibilidade.
11. Conforme consta do texto da declaração de voto vencido o arguido i) conhecia as características da caçadeira - e conhecia-as bem, além do mais porque é caçador há vários anos (como resulta das declarações do próprio e dos assistentes S. P. e H. B., sendo, aliás, portador da respectiva licença de utilização) -, ii) sabia que a mesma era um "instrumento particularmente perigoso", iii) carregou a caçadeira momentos antes de os factos ocorrerem (ou seja, preparou-a deliberadamente para ser usada) e iv) até anunciou previamente as suas intenções à vítima, avisando-a que a mataria se esta não saísse do local. E, não tendo a vítima saído do local e, pelo contrário, tendo até arremessando um objecto na direcção do arguido, este, "cumprindo o prometido", disparou na sua direcção!
12. O acórdão dá ainda como provado que ao actuar da forma como actuou "o arguido representou como possível atingir o seu filho H. B. e, mesmo assim, conformou-se com essa possibilidade" e que "O arguido disparou (...) sobre o filho (...) sabendo que a arma usada era um instrumento particularmente perigoso e que as balas disparadas poderiam penetrar no corpo do assistente".
13. Mas se o arguido admitiu a possibilidade de atingir a vítima e conformou-se com essa possibilidade, qual foi, afinal, o resultado que o arguido representou como consequência possível da sua actuação e com o qual se conformou? Perante a matéria de facto supra descrita, esse resultado não pode ter sido outro senão a morte da vítima, agindo o arguido com dolo eventual de homicídio na pessoa do seu filho. E, como o resultado morte só não ocorreu por razões alheias à vontade do arguido, o seu comportamento configura uma tentativa. (declaração de voto vencido)
14. Com estes fundamentos, que resultaram cabalmente provado em audiência de julgamento, o tribunal a quo apenas poderia condenar o arguido como autor de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p. arts.22°, 23°, 131°, 132°-1 e 2/a) CP, agravado nos termos do art.86°-3 Lei 5/06, de 23Fev.
15. O tribunal a quo deveria assim ter condenado o arguido ainda a uma pena de prisão efetiva, pois só essa seria adequada e proporcional, ao crime cometido e porque também assim as razões de prevenção geral o exigem – fortes necessidades que neste caso o exigem - necessidades de reprovação e de prevenção do crime.
16. Com efeito, numa situação de homicídio voluntário tentado na pessoa do próprio filho, perpetrado com uma caçadeira cujo disparo atingiu efectivamente a vítima, e em que a morte do visado só não sobrevém por razões estranhas à vontade do agente, o sentimento de reprovação social do crime é elevadíssimo! (declaração de voto vencido)
17. O arguido estava ciente de que utilizava, na agressão, instrumento excepcionalmente perigoso, tanto no aspecto contundente como cortante, para a saúde e para a própria vida.
18. A morte do assistente só não sobreveio por circunstâncias alheias ao arguido.
19. O arguido agiu de modo livre e consciente com conhecimento do carácter proibido da sua conduta.
20. Com efeito, os factos provados especificados no acórdao mesmos integram a autoria material de um crime tentado de homicídio qualificado na forma tentada.
21. O que ficou descrito no acórdão recorrido demonstra bem, só por si, que a morte do filho foi tentada pelo arguido em circunstâncias que revelam a sua especial censurabilidade ou perversidade, utilizando meio insidioso ou traiçoeiro e com frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados.
22. Se é certo que o arguido, se refugiou na garagem a aguardar pela chegada do filho, também é certo que o arguido (caçador experiente) não hesitou em disparar em direção ao filho, causando-lhe lesões múltiplas e traduzidas no relatório médico que se encontra nos autos e para o qual aqui se remete por uma questão de economia processual.
23. Sempre traiçoeiramente e reflectindo sobre os meios empregados, na sua tentativa de com dolo eventual matar o filho, o arguido empunhou a arma e desferiu um tiro atingindo o assistente.
24. Pelo que além da condenação admitir aqui uma suspensão da pena chocaria profundamente o sentimento jurídico geral da comunidade e significaria gorar as expectativas desta e esvaziar a sua confiança na validade das normas jurídicas, descurando por completo a defesa do ordenamento jurídico, i.e, a prevenção geral positiva (de integração) entendida como reforço do sentimento de segurança da comunidade face à violação da norma. De resto, o próprio crime, ainda que só tentado, consubstancia uma ofensa ao valor que a Constituição e a lei penal colocam no cimo da escala dos valores e bens jurídicos merecedores de tutela jurídico penal: a vida. Nestas hipóteses - em que, mau grado o juízo de prognose benéfico para o arguido, as exigências de reprovação e de prevenção do crime não podem ser desprezadas -, deve o Tribunal negar a suspensão da pena (F. Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 344) – declaração de voto.
25. Com efeito, dos autos constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão - os quais impunham uma decisão diferente da que foi proferida – condenando o arguido.
26. Quanto à VIOLENCIA DOMÉSTICA na sua motivação refere o Tribunal a quo que, toda a prova carreada para os autos - as declarações dos assistentes e os depoimentos das testemunhas S. B. (cunhada da assistente), E. C. (amiga da assistente), B. M. (amigo do assistente), M. M.. (cunhado do arguido), R. P. e D. B. (irmãs do arguido) - seguiu no sentido de apontar o alcoolismo do arguido como a causa principal dos conflitos: embora a assistente tenha referido ser alvo de ciúmes por parte do então marido quando sóbrio, os episódios concretos que narrou e que constavam da acusação são sempre referentes a momentos em que o arguido já estava embriagado, admitindo que "se estivesse sóbrio, podia insultar mas não batia"; o filho do casal disse expressamente que o arguido "quando não bebia, estava calmo e não fazia nada" à mulher.
27. O episódio da Páscoa de 2012 (que não no Inverno de 2014) foi narrado de forma coerente quer pela assistente quer pelo seu filho, que nele tiveram intervenção, sendo as sequelas confirmadas pelo cunhado M. M.., que acorreu a casa do casal naquele dia a pedido da assistente (tendo esta testemunha confirmado que, nessa altura, o arguido estava embriagado).
28. Quanto ao sucedido na noite de 10 de Junho apenas entre o arguido e a assistente, há a registar a confissão parcial do arguido (de alguns insultos, do empurrão na cama, do arremesso da cadeira pela janela e de uma agressão física, esta em termos menos intensos do que as lesões sofridas pela assistente - conforme fls. 176 a 178 - permitem concluir) e a narração por parte da assistente, que se mostrou exaustiva, credível e sem escamotear o que a própria ripostou, quer em palavras quer em acções.
29. Aquela era claramente uma vivência tumultuosa, desregrada e pautada por faltas de respeito, em que o álcool era um factor primordial, mas não com o cariz de um agente, de um lado, e uma vítima, do outro; antes com ambos nesses dois registos, em alternância permanente.
30. Resultou seguro do depoimento da demandante que esta sofreu dores físicas fortes e mal-estar durante e nos dias após as agressões. Toda a situação relatada nos factos provados tem causado um forte desgosto na ofendida. A ofendida sentiu-se humilhada por tais atos, traumatizada, chocada e com medo: Por força das agressões provadas a demandante desenvolveu em temor de voltar a sofrê-las, sentindo-se intimidada com a presença da arma do arguido.
31. Com estes fundamentos, que resultaram cabalmente provado em audiência de julgamento, o tribunal a quo apenas poderia condenar o arguido como autor de um crime de VIOLENCIA DOMÉSTICA.
32. O tribunal a quo deveria assim ter condenado o arguido ainda a uma pena de prisão efetiva, pois só essa seria adequada e proporcional, ao crime cometido.
33. O arguido estava ciente dos atos que praticava na pessoa da sua mulher – sobre ao qual lhe impendia um especial dever de cuidado.
34. O arguido agiu de modo livre e consciente com conhecimento do carácter proibido da sua conduta.
35. Com efeito, os factos provados especificados no acórdão mesmos integram a autoria material de um crime de violência doméstica.
36. Com a criminalização da violência doméstica, expressamente se procurou acabar com comportamentos inadmissíveis no âmbito familiar, onde outrora o direito penal tinha algum pejo em intervir.
37. Na génese da incriminação da conduta supra descrita, está, assim, não tanto uma preocupação de preservação da comunidade, familiar ou conjugal, mas sim, e decisivamente, de tutela da pessoa humana, na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade.
38. Daí que, diretamente abrangida pelo âmbito de proteção dispensada se encontre, mais do que a integridade física propriamente dita, a saúde de cada pessoa em si mesma e enquanto tal, abrangendo o bem estar físico, psíquico e mental do indivíduo, enquanto elemento essencial e indispensável à "mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade” (Figueiredo Dias, “Direito Penal, questões fundamentais e doutrina geral do-crime"; 1996, pág. 63).
39. Esta mais valia axiológica inerente ao bem jurídico tutelado explica, de resto, que a respectiva relevância penal encontre, desde logo, referencia expressa na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais.
40. Com efeito, no artigo 25.° da Constituição da República Portuguesa, a todos os cidadãos é reconhecido o direito à respetiva integridade pessoal, tanto num plano físico como numa dimensão moral. Trata-se da tutela constitucional de um direito organicamente ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um de nós a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo nas múltiplas formas de interação social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa anotada"; pág. 177).
41. E é a evidencia do que ficou dito, por demais sublinhada no contexto das sociedades modernas, que converte em objeto de consensual reprovação quaisquer atos, omissões ou condutas que sirvam para infligir sofrimentos físicas, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio a qualquer mulher, tendo por objetivo e como efeito intimidá-la; puni-la, humilhá-la ou simplesmente mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental ou moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais (conceito de violência contra as mulheres, segundo a definição proporcionada por um grupo de peitos do Conselho da Europa, transcrita no preâmbulo do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n° 557, e publicado no DP,I-Série-B; de 15 de junho de 1999).
42. Compreendido no âmbito da tutela penal dispensada pela norma incriminadora está, pois, imediatamente a integridade física, conceito este que, pela forma como amplamente foi consagrado nas diversas disposições da lei penal, de resto já de si comporta, não apenas o bem-estar físico propriamente dito, como também o equilíbrio psicológico e social (cfr. Fernando Oliveira Sá, «As ofensas corporais no Código Penal: uma perspectiva médico-legal, in RPCC, nº 3, 1991, pág. 412)
43. Deste modo, e seguindo de perto o Prof. Pinto da Costa, o sentido da tutela proporcionada pelo ordenamento jurídico-penal deverá ser encarado numa perspectiva médico-legal, admitindo-se consequentemente como lesão corporal tipicamente relevante "toda a alteração anatómica ou patológica”, toda a “perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas" («Ofensas Corporais - Introdução ao seu Estudo Médico-Legal», in Colóquio de 01/03/83, Aula Manga da Faculdade de Medicinado Porto).
44. De referir que as constantes humilhações, vexames, insultos, infligidos por um cônjuge ou outro, constituem por vezes formas dê violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples.
45. Finalmente, e no que toca ao elemento subjectivo do tipo legal de crime, importa salientar que trata de um delito doloso, uma vez que se exige que o agente tenha atuado com dolo – enquanto subjectivo geral da (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime) -, como é regra geral em Direito Penal (cfr. artigo, l3° do Código Penal), que pode aqui assumir qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14.° do Código Penal(dolo direto, necessário ou eventual).
46. Também o tribunal a quo deveria dar como assente, dada a prova produzida que ao actuar do modo acima descrito, o arguido quis maltratar física e psicologicamente a ofendida provocando –lhe lesões físicas e dores e ofendendo-a na sua dignidade pessoal, humilhando-a, amedrontando-a e perturbando-a, o que efectivamente conseguiu e bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar na mesma, como provocaram marcas psicológicas que afectaram o seu equilíbrio emocional e o seu são desenvolvimento; agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento subjetivo do tipo de crime de violência doméstica com a agravação do artigo 86°, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro).
47. Pelo exposto constata-se que se provaram os elementos do tipo legal de crime (elementos objetivo e subjetivo) supra referidos e que não ocorre qualquer circunstância que exclua a ilicitude ou a culpa, de forma que o arguido terá de ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica com a agravação do artigo 86°, n°s 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
48. Devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor dele ou conta ele (nomeadamente: a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) a intensidade do dolo ou da negligência; c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) as condições pessoais do agente e as sua situação económica; e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmete quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deve ser censurada através da aplicação da pena – cfr. artigo 71º, nº 2 do código penal).
49. As exigências de prevenção geral apresentam-se de crucial importância no tipo legal em causa, porquanto a verificação destes crimes é frequente, causando elevada inquietude social.
50. In casu, deve atender-se: ao grau elevado de ilicitude dos factos praticados (considerando o modo de execução, a sua duração e as suas consequências); ao dolo intenso (direto) que pautou a sua conduta; à inexistência de antecedentes criminais registados; não podemos valorar uma confissão integral e sem reservas nem um arrependimento porquanto os mesmos não foram manifestados na audiência de discussão e julgamento; ao tempo entretanto decorrido sem que haja conhecimento da prática, de outros ilícitos-típicos pelo arguido.
51. Tendo em consideração os factores de determinação da medida da pena que já foram postos em evidência deveria o tribunal ter aplicado ao arguido F. S. uma pena de prisão pela prática de um crime de violência doméstica com a agravação do artigo 86º, nºs 3 e 4 da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pessoa da ofendida.
52. No que concerne aos pontos dos factos não provados, a autora remete desde já para o referido anteriormente e as respectivas transcrições por uma questão de economia processual e por se tratar de factos já referidos anteriormente de modo extenso, pelo que considera que ficou cabalmente, pela prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, quais os concretos pontos deveriam ter sido dados como provados.
53. Isto é, face à prova produzida, verifica-se que o Tribunal a quo deveria ter considerado provada a matéria de facto não provada, uma vez que foi efetuada a sua cabal prova, constando a mesma quer do depoimento dos assistente, testemunhas e arguido.
54. Pelo exposto, o tribunal a quo, ao absolver o arguido de ambos os crimes, interpretou erradamente os artigos 27º e 217º e 218º, nº1 do CP.
55. O tribunal a quo ao dar como provados e não provados, os factos constantes da sentença ora objeto de recurso, os quais não resultaram da prova produzida em audiência de julgamento, violou, entre outros, o principio da livre apreciação de prova, consagrado no artigo 127º do CPP.
56. Principio que, conforme salienta Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal”, lições coligadas, 1988-9. P. 139, está associado ao “(…) dever de perseguir a chamada “verdade material”- de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efetivos)”
57. Neste mesmo sentido, Henriques Eiras in “Processo Penal Elementar”, QuidIuris, 2003, 4º edição, p.102, refere que este principio “(…) não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação.
58. O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objetivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objetivo.
59. Para além disso, violou, ainda, o disposto no artigo 355º, nº1 do CPP.
60. Ora, também se os factos não provados constantes da sentença ora objeto de recurso, tivessem sido dados como provados, o arguido teria necessariamente que ser condenado.
61. Houve, pois, erro notório na apreciação da prova a legitimar a decisão, pelo que, consideramos, para efeitos da al. a), nº3, do artigo 412º do Código de Processo Penal (de ora em diante CPP) que os factos foram incorretamente julgados.
Em consequência de todo o exposto, deverá pois ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogada a decisão recorrida e o arguido condenado pelos crime de que vinha acusado – homicídio qualificado e violência doméstica,».

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 974.

O Ministério Público, em 1ª instância, apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso no que respeita à pretensão da condenação do arguido como autor de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, dizendo, em suma, que a dúvida sobre a intenção do arguido deve resolver-se a favor do mesmo e a dúvida sobre a direccionalidade do disparo não permite a afirmação de que efectivamente foi produzido com o alvo implícito de poder tirar a vida ao assistente.
Na parte respeitante à condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, apesar de não ter recorrido do acórdão, entendeu que é válida a argumentação da assistente e, por isso, deve ser dado provimento ao recurso.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer em que, após elencar devidamente todas as questões a apreciar no recurso, suscitou a falta de legitimidade e evidente interesse em agir dos assistentes na sua pretensão quanto ao agravamento da pena a aplicar ao arguido, dizendo que nessa parte o recurso deverá ser rejeitado. Quanto ao mérito do recurso aduziu que não tendo os recorrentes impugnado a matéria de facto com base em erro de julgamento, mas apenas num dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2 do CPP [erro notório], o qual deve ser aferido em face do texto da decisão recorrida, não se extrai deste o apontado vício, pois, a conduta do arguido não era apta a provocar a morte da vítima, o seu filho, por ter disparado para as suas pernas, não violando o Tribunal recorrido qualquer regra da experiência. Também concluiu pela inexistência de idêntico vício no que se refere ao crime de violência doméstica, porque a recorrente não apresentou qualquer argumento válido que sustentasse a sua simples discordância e leitura da prova produzida em julgamento. Por fim, reportou-se à qualificação jurídico-penal da factualidade dada como assente dizendo que ela não merece qualquer censura.
O arguido também respondeu ao recurso pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.

Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), suscitam-se neste recurso as questões de saber se:
1ª – A decisão proferida sobre os factos sofre de erro notório e os mesmos foram incorrectamente julgados;
2ª – O arguido deve ser condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada e um crime de violência doméstica;
3ª – O arguido deve ser condenado numa pena de prisão efectiva em face das elevadas exigências de prevenção geral verificadas.
O que não prejudica o conhecimento oficioso da prévia questão da admissibilidade do recurso quanto ao agravamento da pena, o que não é obstaculizado pela sua admissão em 1ª instância, pois, importa assinalar, tal decisão não vincula o tribunal superior como decorre do disposto no art. 414º, nº 3, do CPP.
Cumpre, pois, apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinente ao conhecimento do objecto do recurso na decisão recorrida sobre a matéria de facto que a seguir se transcreve.
Factos provados:
«1. O arguido contraiu casamento com S. C. em 14 de Dezembro de 19.., sendo pais de um único filho, H. B., nascido em 29 de Outubro de 19...
2. Até 11 de Junho de 2016, o casal e o filho residiam na Rua de …, P….
3. O arguido consome bebidas alcoólicas em excesso, sobretudo aos fins-de-semana.
4. No sábado, dia 11 de Junho de 2016, às 04h24m, o arguido foi submetido a teste de alcoolemia, apresentando o resultado de 1,63 g/l.
5. Desde o início do casamento, o arguido e sua mulher discutiam, apodando-se mutuamente de “filho/a da puta”, e dirigindo o arguido à mulher as expressões “puta, vaca, vaca do caralho”, mostrando-se o arguido ciumento.
6. Na Páscoa de 20.., em ..., na casa do casal, após mais uma discussão entre ambos, em que o arguido apodou a sua mulher de “puta” e “vaca”, este desferiu um murro, atingindo a sua mulher nos braços, que a assistente levara à cabeça para se proteger.
7. Acto contínuo, o arguido disse à sua mulher “vou dar-te com a canhota”, enquanto pegava num pau, só não tendo chegado a atingir a assistente porque o filho H. B. chegou do quarto e tirou o bocado de madeira das mãos do pai; nessa altura, o assistente manietou e empurrou o pai, daí resultando a queda ao arguido, que partiu duas costelas.
8. No dia 10 de Junho de 2016, pelas 21h, no interior da casa de ambos, o arguido surpreendeu a sua mulher no Facebook, ocasião em que lhe disse: “o filho da puta do Facebook dá-te cabo da cabeça”.
9. Questionando-o a assistente sobre qual o motivo para não poder estar no Facebook, o arguido dirigiu à sua mulher, em voz alta, as expressões seguintes: “filha da puta, sua puta, és uma vaca, sua vaca do caralho”.
10. Ao que esta disse ao arguido que lhe dava com uma cadeira na cabeça.
11. Mais tarde, quando já ambos estavam deitados na cama do casal, o arguido empurrou a assistente, recomeçando ambos a discutir e a dirigir insultos um ao outro.
12. No decurso dessa discussão, o arguido atirou uma cadeira com alguns cintos pertença da mulher pela janela, tendo em seguida a assistente pegado em roupa do arguido e deitado a mesma pela janela.
13. Em seguida, o arguido desferiu vários murros na assistente, que a atingiram na cabeça.
14. Aí, a assistente disse ao arguido que ia telefonar ao filho de ambos, que tinha saído.
15. Nessa altura, a assistente fugiu para a cozinha e telefonou ao seu filho, contando-lhe o sucedido.
16. O assistente chegou a casa cerca da 1h15m e encontrou a sua mãe, que lhe contou o sucedido, dizendo-lhe que o seu pai tinha um pau na mão.
17. Não tendo encontrado o arguido na área habitacional, o assistente dirigiu-se para a garagem à procura dele.
18. Deslocou-se, então, para as escadas que dão acesso à garagem e, ao abrir a porta, deparou-se com o arguido, que lhe disse: “Sai daqui, se não mato-te!”, ao que o assistente retorquiu: “Então atira!”.
19. Atrás do assistente seguia a sua mãe, e o arguido, ao vê-la, de imediato apontou a arma – uma caçadeira – na direcção daquela, arma que antes o arguido havia carregado com dois cartuchos.
20. Em seguida, H. B. agarrou numa lata de tinta (do tipo spray), e lançou-a na direcção do seu pai.
21. O arguido, em acto contínuo, redireccionou a caçadeira para a zona onde se encontrava o filho e efectuou um disparo, a cerca de 5 m do filho, que atingiu o assistente na perna esquerda.
22. Como consequência directa e necessária da referida conduta do arguido, o assistente sentiu dores, em especial na coxa esquerda, e sofreu, fruto de ter sido atingido na face antero-lateral do 1/3 proximal da coxa esquerda, trauma do membro inferior esquerdo com esfacelo da coxa com fractura, tendo ficado ao menos com uma cicatriz com depressão na face anterior da coxa, com cerca de 10x6 cm, várias cicatrizes lineares na face lateral da coxa, com o comprimento total máximo de 15 cm, cicatriz com 2 cm na face lateral da coxa distal, com área de disestesia em redor, edema residual do joelho com mobilidade quase recuperada, atrofia de 1 cm da coxa e rigidez na rotação externa da anca esquerda, lesões que determinaram tempo de doença nesta fase ainda não possível de determinar.
23. O assistente esteve internado na ULSAM, em Viana do Castelo, até 15 de Julho de 2016, e continua a ser seguido na respectiva consulta externa.
24. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido referida em 11. e 13., a assistente sentiu dores e ficou com equimose azulada com 5x2 cm na face posterior do hemitórax esquerdo, equimose azulada com 1x1 cm na face anterior do braço e do antebraço, equimose azulada com 5x5 cm na face posterior do braço e equimose azulada com 3x3 cm na face antero-interna do joelho; tais lesões determinaram 8 dias de doença, com 1 dia de afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
25. Com a conduta descrita, o arguido quis e conseguiu molestar fisicamente a assistente, prejudicando o bem estar psíquico desta, ofendendo a sua honra e consideração.
26. Ao actuar da forma descrita em 21., o arguido representou como possível atingir o seu filho H. B. e, mesmo assim, conformou-se com essa possibilidade.
27. O arguido disparou subitamente e de surpresa sobre o filho, que não se pôde defender, sabendo que a arma usada era um instrumento particularmente perigoso e que as balas disparadas poderiam penetrar no corpo do assistente.
28. O arguido actuou livre, deliberada e conscientemente, sabendo que todas as condutas descritas eram punidas por lei penal.
29. Sem antecedentes criminais, o arguido é um dos dez filhos de um agregado familiar humilde, afectivamente estável e sem conotação com comportamentos aditivos ou implicações judiciais. O pai, carpinteiro por conta própria, era a única fonte de rendimento da família e a mãe trabalhava terras agrícolas próprias, cabendo-lhe a gestão dos proventos e o processo educativo dos filhos, sendo a principal referência afectiva do arguido. Este completou o 6.º ano de escolaridade, tendo reprovado no 4.º ano; quer pelas condições económicas da família, quer por alguma desmotivação para os estudos, o arguido começou a trabalhar como carpinteiro aos 13 anos, com o pai, actividade que exerceu de forma regular até à idade adulta. Aos 19 anos, na perspectiva de conseguir melhor salário, decidiu trabalhar na construção civil na … e em …. Aos 21 anos regressou definitivamente à sua terra natal, casou-se com a assistente e voltou a ser carpinteiro em carpintarias locais. O consumo regular de álcool foi iniciado em idade adulta, e parece ter sido intensificado durante o casamento. Quando alcoolizado, o seu comportamento alterava-se, sendo referenciadas no meio familiar atitudes de agressividade para com os mais próximos. O consumo excessivo de álcool precipitou instabilidade progressiva, prejudicando a dinâmica intrafamiliar e um adequado desempenho laboral e social (começou a isolar-se e a manifestar dificuldades de integração e convivência interpessoal), mas não promoveu o seu isolamento absoluto. Por orientação médica e familiar, o arguido iniciou vários tratamentos de desintoxicação alcoólica sob orientação da sua médica de família, mas abandonou sempre o processo terapêutico e reincidiu nos consumos; não identificava a sua adição como problemática e com repercussões na saúde, mesmo depois de lhe ter sido diagnosticada uma pancreatite grave que o conduziu a vários internamentos no Hospital de Viana do Castelo. No seu meio de origem, não lhe são atribuídos comportamentos violentos ou condutas abusivas na comunidade, sendo essencialmente conhecido como uma pessoa educada, calada e cordial, com consumos excessivos de álcool (mas sem que tal gere rejeição ou hostilidade). À data dos factos, o arguido residia com a mulher e o filho, de 22 anos, em casa própria, construída com recurso a empréstimo bancário, com condições de habitabilidade, a cerca de 500 m da casa dos pais do arguido. A dinâmica familiar é descrita como disfuncional, tensa e conflituosa, tendo o divórcio do casal ocorrido a 3 de Novembro de 2016. À data dos factos, o arguido era carpinteiro na “C…”, desde 2 de Maio de 2016, ganhando € 900,00 por mês, sendo a situação económica da família equilibrada; os seus tempos livres eram passados com um grupo de pares nos cafés da área onde residia, onde se dedicava ao jogo de cartas e consumos regulares e excessivos de álcool, sem assumir estes consumos como problemáticos. Actualmente, o arguido dispõe de retaguarda familiar, circunscrita aos pais, pessoas idosas, e aos restantes irmãos, que continuam disponíveis para o apoiar, o que ora se traduz em visitas regulares ao E.P. de Braga; tal apoio está condicionado ao tratamento da sua problemática aditiva. Com uma situação económica actualmente dependente, o arguido mantém a possibilidade de retomar o seu trabalho na “...”, tendo sido avaliado como um bom profissional; esta possibilidade está condicionada também à necessidade do seu tratamento ao alcoolismo. Desde que está preso, o arguido está abstinente do álcool, fazendo medicação relacionada com consumos excessivos; foi pedida uma nova consulta ao serviço de cirurgia geral do Hospital de Viana do Castelo, onde está a ser acompanhado no âmbito da pancreatite. O processo foi recebido no contexto familiar e social com surpresa, mas o seu principal impacto foi sentido ao nível do arguido pela perda da sua liberdade e integração num ambiente que lhe é estranho. Presentemente, perante a problemática criminal em causa, o arguido demonstra alguma capacidade para formular um discurso em que há algum reconhecimento da ilicitude do comportamento, mas com dificuldades em reconhecer o consumo excessivo de álcool como problemático e desestruturador. No estabelecimento prisional assume comportamentos adequados.
(Do pedido de indemnização civil da ULSAM)
30. Em consequência da actuação do arguido, H. B. sofreu lesões que necessitaram de tratamento hospitalar, prestado pela Unidade Local de Saúde do Alto Minho, Viana do Castelo.
31. H. B. deu entrada no serviço de urgência da ULSAM pelas 02h33m do dia 11 de Junho de 2016, onde lhe foram efectuados vários Raios X, uma angiografia, aplicada uma transfusão e sangue e realizadas análises e exames.
32. Na prestação dos cuidados médicos e medicamentosos ao assistente entre 11 de Junho e 15 de Julho de 2016, a ULSAM teve uma despesa no valor de € 6.057,08.
(Da contestação)
33. Os factos descritos em 8. a 21. ocorreram em momento de descontrolo emocional do arguido.
34. Na manhã de 10 de Junho de 2016, o arguido e a assistente foram recolher pinhas ao monte, tendo regressado a casa sem qualquer quezília.
35. A assistente não esteve em casa entre as 15h e as 21h desse dia.
36. A utilização do Facebook pela assistente arreliava o arguido.
37. A partir dos 16/17 anos do assistente, o arguido começou a ter medo que o filho o agredisse.
38. A degradação do ambiente familiar do arguido era do conhecimento dos familiares próximos deste, que se questionavam por que motivo o casal continuava a viver em conjunto.
39. Ao longo da vida em comum, o casal não deixou de partilhar o mesmo leito.
40. Na madrugada de 11 de Junho de 2016, quando se apercebeu que a assistente tinha telefonado ao filho, o arguido ficou com receio que este viesse a casa e o agredisse.
41. Foi tal receio que levou o arguido a refugiar-se na garagem antes de o filho chegar a casa, levando consigo a caçadeira carregada.
42. Depois do descrito em 21., o arguido pôs a arma no chão e levou as mãos à cabeça.
43. O arguido lamenta ter ferido o filho, tendo já, sem êxito, tentado falar com este para lhe pedir desculpa.
44. Se colocado em liberdade e tratado da sua dependência alcoólica, o arguido tem quem lhe proporcione trabalho.
45. Em sede de audiência, o arguido declarou aceitar o tratamento à dependência alcoólica, incluindo internamento se necessário.
Factos não provados:
- Que, em dia e mês não concretamente apurados de 2009, em ..., o arguido tenha desferido vários estalos na cara da assistente;
- que o murro referido em 6. tenha atingido a assistente na cabeça;
- que os apodos referidos em 6. e o descrito em 7. tenham ocorrido no Inverno de 2014;
- que o descrito em 10. tenha sido em resposta a um empurrão que o arguido dera à assistente;
- que, na ocasião referida em 18., o arguido tenha dito ao filho “vou-te matar!”;
- que, na altura aludida em 21., o arguido tenha apontado a arma na direcção do filho;
- que da actuação do arguido descrita em 21. tenha resultado, em concreto, perigo para a vida do assistente;
- que o arguido submetesse a assistente a um tratamento humanamente degradante, enquanto pessoa, com total desrespeito pela sua personalidade e auto-estima;
- que, nos descritos episódios com a assistente, o arguido se tenha sempre valido da sua superior força física, e agido a coberto de um sentimento de impunidade, no intuito de perturbar a vida da sua mulher, revelando não possuir respeito por esta;
- que o arguido soubesse que, ao actuar dentro da casa do casal, ampliava o seu sentimento de receio por violar o espaço reservado da vida privada das vítimas e o seu carácter securitário;
- que, ao disparar a arma, o arguido tenha querido tirar a vida ao filho;
- que, na mesma altura, soubesse que na zona visada se alojam órgãos essenciais à vida, conformando-se com a possibilidade da sua conduta poder causar a morte do assistente;
- que, na madrugada de 11 de Junho de 2016, o arguido nunca tenha admitido disparar sobre o filho nem atingi-lo na sua integridade física;
- que a assistente seja uma utilizadora impenitente e compulsiva do Facebook, pela madrugada dentro;
- que, quando a assistente foi para a cama naquela noite, tenha perguntado ao arguido, em jeito de provocação, se não podia utilizar o Facebook;
- que os assistentes tenham filmado e divulgado junto de pessoas conhecidas agressões físicas pelos mesmos praticadas na pessoa do arguido quando este se encontrava fisicamente diminuído pelo consumo de álcool;
- que o assistente usasse o epíteto “filho da puta” dirigido ao pai;
- que há cerca de 4 anos que os assistentes agridam fisicamente o arguido sobretudo quando este se encontra toldado pelo álcool;
- que o assistente tomasse a iniciativa de agredir o arguido;
- que, na altura referida em 11., e já deitada, a assistente, por referência ao uso do Facebook, tenha dito ao arguido “ó filho da puta, tu podes fazer igual”;
- que, no momento referido em 10., a assistente tenha chamado “filho da puta” ao arguido;
- que, na madrugada de 11 de Junho de 2016, o arguido só tenha dado duas bofetadas à assistente, e só após saber que ela tinha telefonado ao filho;
- que, nessa madrugada, o arguido se tenha convencido que a presença da arma demoveria o seu filho de qualquer atitude agressiva;
- que o assistente tenha chegado a casa com a preocupação imediata de encontrar o seu pai para o sovar;
- que, em resposta ao arremesso referido em 20., o arguido tenha dito “Ide para cima que não se passa nada”;
- que o assistente tenha retorquido “dispara, filho da puta, dispara, filho da puta”;
- que, por causa do consumo de bebidas alcoólicas, o arguido não detivesse, no momento do disparo, o domínio da sua vontade;
- que o arguido não tenha encontrado apoio da assistente para a realização de tratamento ao alcoolismo;
- que, apesar do consumo de álcool, o arguido sempre tenha mantido intactas as suas capacidade e competência profissionais.».
Fundamentação da matéria de facto:
«A convicção do tribunal assentou na análise crítica da prova produzida, à luz das regras de experiência comum.
Assim, e relativamente ao modus vivendi deste casal, toda a prova carreada para os autos – as declarações dos assistentes e os depoimentos das testemunhas S. B. (cunhada da assistente), E. C. (amiga da assistente), B. M. (amigo do assistente), M. M.. (cunhado do arguido), R. P. e D. B. (irmãs do arguido) – seguiu no sentido de apontar o alcoolismo do arguido como a causa principal dos conflitos: embora a assistente tenha referido ser alvo de ciúmes por parte do então marido quando sóbrio, os episódios concretos que narrou e que constavam da acusação são sempre referentes a momentos em que o arguido já estava embriagado, admitindo que “se estivesse sóbrio, podia insultar mas não batia”; o filho do casal disse expressamente que o arguido “quando não bebia, estava calmo e não fazia nada” à mulher.
Relativamente às discussões e aos insultos trocados entre arguido e assistente, e que o arguido negou pela sua parte, bastavam as declarações da própria assistente para os confirmar: em toda a extensão da sua longa audição (repartida por duas sessões), a assistente descreveu os insultos de que era alvo e afirmou reiteradamente que, muitas vezes, os retribuía com outros do mesmo jaez ou mantendo a mesma falta de respeito (“tu tens provas em como eu sou puta?”, “Ó filho da puta, puta é a tua mãe!”, “és tão filho da puta como eu”, “eu não tenho tempo para ser puta”). Também o assistente afirmou que, quando o pai insultava a mãe, ela reagia verbalmente, e as testemunhas M. M.. e R. P., pela sua proximidade familiar, descreveram, com assinalável isenção (tanto mais que são da família do arguido e em nada denegriram a assistente), o ambiente familiar na casa do arguido como de total falta de respeito entre o casal, com uma vida pautada por discussões constantes.
O episódio da Páscoa de 2012 (que não no Inverno de 2014) foi narrado de forma coerente quer pela assistente quer pelo seu filho, que nele tiveram intervenção, sendo as sequelas confirmadas pelo cunhado M. M.., que acorreu a casa do casal naquele dia a pedido da assistente (tendo esta testemunha confirmado que, nessa altura, o arguido estava embriagado).
Quanto ao sucedido na noite de 10 de Junho apenas entre o arguido e a assistente, há a registar a confissão parcial do arguido (de alguns insultos, do empurrão na cama, do arremesso da cadeira pela janela e de uma agressão física, esta em termos menos intensos do que as lesões sofridas pela assistente – conforme fls. 176 a 178 – permitem concluir) e a narração por parte da assistente, que se mostrou exaustiva, credível e sem escamotear o que a própria ripostou, quer em palavras quer em acções.
Todo o quadro factual que estes meios de prova permitiram obter, e o registo usado pela assistente em julgamento – muito marcado por expressões (além das já referidas) que mais constituíam, em relação ao arguido, uma resposta de igual para igual do que uma submissão ou medo (como “ou te calas ou é hoje que perco a cabeça”, “depois do que já levei, vou ligar ao meu filho, porque se eu ficar estendida, ele sabe que foste tu”, “eu não vou dizer nada à tua família [dos internamentos hospitalares do arguido por doença, conforme pedido deste] e ficas lá como um cão”, “até me podes matar, que a casa nunca vendo”) – obstaram à conclusão de que houvesse, neste casamento, uma relação desequilibrada e de domínio do arguido, como agressor, sobre a assistente, como agredida. Aquela era claramente uma vivência tumultuosa, desregrada e pautada por faltas de respeito, em que o álcool era um factor primordial, mas não com o cariz de um agente, de um lado, e uma vítima, do outro; antes com ambos nesses dois registos, em alternância permanente. Daí a falta de prova da parte final do ponto 40. e dos pontos 42. e 43. da acusação.
Já para o sucedido na madrugada de 11 de Junho, após a chegada do filho a casa, serviram as declarações do arguido e as dos assistentes, sendo aquelas mais omissivas (e também menos credíveis, a não ser no carregamento da arma, que o arguido admitiu sem rebuço), o que não é de estranhar, face ao seu estado de embriaguez, confirmado pela taxa registada três horas depois (fls. 7); a este propósito, refira-se que, eliminando o organismo aproximadamente 0,1 g/l por hora2, tal significa que, no momento do disparo (e sendo certo que, depois deste, o arguido estava sob custódia das autoridades policiais, pelo que se pode inferir que não ingeriu bebidas alcoólicas), ou seja, 3 horas antes do teste de alcoolemia, teria quase uma taxa de 2 g/l, pelo que de pouco se pode lembrar com nitidez. Assim, as declarações dos assistentes foram no essencial concordantes, sendo que, quer pelos poucos segundos em que tudo se passou, quer pelo estado alterado em que ambos se encontravam – a assistente, resultante do conflito com o marido e, como ela própria referiu, do receio do que pudesse ocorrer entre pai e filho, desde logo porque, antes, pensou ter
2 Tal dado, que resulta de estudos científicos, consta, por exemplo, de uma brochura da “Fectrans” disponível in www.ansr.pt.
visto um pau na mão do arguido, mas também porque “o rapaz vinha tolo”, e o assistente porque, como expressamente admitiu, estava “de cabeça perdida” e “ia confrontar” o pai, face ao que lhe tinha sido contado pela mãe – nenhum dos assistentes conseguiu afirmar com certeza que o arguido tenha apontado a caçadeira ao filho nos instantes que antecederam o disparo: a assistente refere que a arma estava na direcção “do peito para baixo”, o que é vago, e o assistente declarou que o pai não teria tido tempo de fazer pontaria, uma vez que este reagiu de imediato ao arremesso da lata de tinta por parte dele. O quase imediatismo do episódio – o assistente atira a lata, não sabe se acertou no pai, e “nisto, ele virou-se para mim e disparou” – aliados ao já referido estado de embriaguez do arguido (que diminui consideravelmente, quando não elimina, a precisão de gestos) e a toda a tensão latente não permitem concluir com segurança que tenha havido por parte do arguido um acto de apontar a arma ao filho, ao contrário do que ambos os assistentes afirmaram que segundos antes tinha acontecido face à mulher.
Quanto ao receio em relação ao filho, afirmado pelo arguido, foi corroborado pela sua irmã Deolinda, junto de quem o arguido se queixou de uma tentativa de agressão por parte do assistente; por outro lado, todo o quadro familiar torna esse sentimento crível, não só pelo já referido episódio da Páscoa de 2012, mas também pelas próprias declarações do assistente, que admitiu ter defendido a mãe, entrando em refrega com o pai, e que entendeu a expressão “sai daqui”, naquela madrugada, como uma manifestação de medo por parte do pai em relação a ele. Tudo isso, e a actuação do arguido depois da mulher lhe ter dito que ia telefonar ao filho (munir-se da caçadeira, carregá-la e ir para a garagem, em vez de permanecer no piso superior), permitiu a prova dos factos 40. e 41.
Para a configuração da garagem e vestígios ali encontrados, bem como o posicionamento relativo do arguido e do assistente no momento do tiro, serviram o relatório pericial de fls. 28 a 38 e o auto de reconstituição do facto de fls. 48 a 51, este complementado pelo depoimento do inspector da PJ Francisco Sousa, também ele incapaz, por essa via, de determinar a direcção do disparo. O acto deste, assumido pelo arguido, está também confirmado pelo exame pericial de fls. 218/219, relativo aos resíduos nele recolhidos logo após os factos (fls. 192). As características da arma e do cartucho deflagrado (bem como dos demais apreendidos a fls. 57/58) resultam do exame de fls. 467 a 475.
Relativamente à intenção do arguido ao disparar (que este nega ser sequer de ferir), pese embora a curta distância a que se encontrava do filho e o uso de uma caçadeira, com grande potencial letal, não dispõem os autos de elementos que permitam concluir com a necessária segurança que o arguido queria matar o filho, nem sequer que admitiu a hipótese de tal acontecer, com ela se conformando: o arguido estava embriagado, e portanto com os sentidos embotados, tinha medo que o filho viesse tirar desforço do que tinha sucedido entre o pai e a mãe, o que ainda obnubila mais a vontade e, como já se referiu, não há prova de que o arguido sequer fez pontaria. E nem se diga que basta carregar a caçadeira: isso torna-se perigoso, mas por si só não força a conclusão de que a arma só será usada para matar.
Porém, o arguido, mesmo no estado diminuído em que encontrava, sabia, porque a tinha carregado, que a arma dispararia se ele accionasse o gatilho e, logo a seguir a ter sido visado pela lata que o assistente arremessou (ou seja, de ter havido um desencadear de movimento e ruído que pôs os seus sentidos em alerta, ainda que entorpecidos pelo álcool), redireccionou a caçadeira para a zona em que se encontrava o filho (que, como este e a mãe explicaram, embora ambas na garagem, era separada por um pilar daquela onde se encontrava a assistente) e disparou. Ora, o arguido tem carta de caçador e licença de uso e porte de arma (fls. 371/372), sabe usá-la, carregou-a e dirigiu-a (embora sem apontar) a uma área da garagem onde sabia que estava uma pessoa, o filho, a quem tinha acabado de dirigir a palavra; por isso, não pode ter deixado de, naquele momento, se lhe colocar a hipótese de ferir o filho, dada a curta distância que os separava e o tipo de arma utilizada.
As consequências do disparo para o assistente estão descritas nos elementos clínicos de fls. 60/61, 227 a 229, 717 a 720 e 792/793, bem como nos relatórios periciais (intercalares, uma vez que não há ainda estabilização das lesões) de fls. 363 a 365 e 788 a 791.
A ausência de perigo concreto para a vida do assistente resulta não só deste último relatório como também dos esclarecimentos prestados em julgamento pela perita que o elaborou, C. S..
Para a reacção do arguido após o tiro, serviram as declarações da assistente (também úteis para o decurso daquele dia 10 de Junho até à discussão entre o casal); a tentativa do arguido em contactar o filho para se desculpar, de que a assistente se afirmou conhecedora, foi trazida aos autos pelos respectivos mediadores, os aludidos M. M.. e R. P..
A matéria do pedido de indemnização civil encontrou acolhimento nos documentos de fls. 441 a 444, e ainda no depoimento de C. C., responsável financeira do demandante.
Para os laços familiares e datas, foram úteis as certidões de fls. 17 e 18.
As condições pessoais do arguido resultam do relatório social de fls. 747 a 749, complementado pelos depoimentos dos supra aludidos irmãs e cunhado do arguido (sendo que R. P. e M. M.. foram particularmente detalhados quanto às vãs e frouxas tentativas do arguido de se libertar da dependência do álcool), e pelos de J. P. (seu amigo de longa data), A. O. (seu patrão durante 14 anos) e M. C. (vizinha dos pais do arguido há décadas); foi ainda útil o certificado de registo criminal de fls. 631.
A assistente não narrou o episódio descrito no ponto 11. da acusação, inexistindo outro meio de prova sobre o mesmo; na falta de prova directa e em face da negação dos assistentes, ficou por demonstrar que o arguido fosse insultado pelo filho ou agredido por ambos (matéria para a qual só havia as declarações do arguido e o frágil, nessa parte, depoimento de sua irmã D., que se reportou a uma gravação vídeo dessas agressões, das quais não há qualquer prova material). Por não terem conhecimento dos factos, mas apenas de queixas da assistente que não situaram no tempo, de nada valeram os depoimentos de S. B. e M. B., respectivamente irmão e pai daquela.
O teor do ponto 41. da acusação resulta prejudicado, porque se relacionava com a matéria que, no início do julgamento, foi excluída do thema decidendum; o alegado nos artigos 11.º a 18.º da contestação não tem qualquer relevância para os factos em julgamento, e os documentos de fls. 668 a 670, embora traduzam uma exposição voluntária da intimidade dos assistentes, não chegam para concluir pela utilização das redes sociais na medida em que o arguido a alegava.».
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Questão prévia (agravamento da pena).
Os recorrentes, além do mais, demandam no recurso a condenação do arguido numa pena de prisão efectiva, não suspensa na respectiva execução, em face das elevadas exigências de prevenção geral verificadas. O recurso, neste segmento, vem interposto apenas pelos assistentes, que com ele pretendem a agravação da medida da pena aplicada ao arguido.
Vejamos.
Nos termos do artigo 401º, nºs 1, b), e 2, do CPP, o assistente pode recorrer das decisões contra ele proferidas, não o podendo fazer se não tiver interesse em agir.
Nesta matéria, perante divergências jurisprudenciais na interpretação de tais normativos, o STJ, no seu AUJ nº 8/99 de 30/10/1997 (1), fixou a seguinte doutrina: «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do MP, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir»
Nessa linha de orientação, tem-se entendido que o assistente poderá recorrer das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público o não tenha feito [art. 69º, nº 2, c) do mesmo código], apenas se lhe impondo o ónus de demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.
A todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde um meio processual adequado a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção. Daí que, consubstanciando-se o interesse em agir na necessidade de tutela jurisdicional do direito subjacente à intervenção processual requerida, para a sua aferição ter-se-á de atender ao elemento objectivo do processo, o qual não se esgota na pretensão formulada pois compreende ainda o facto jurídico que está na base desta pretensão: o interesse em agir ou o interesse em desencadear um meio processual consiste na necessidade de o usar, de instaurar ou fazer prosseguir o processo.
Trata-se de pressuposto processual de verificação necessária em todos os procedimentos, incluindo os recursos, exigindo-se, por força do mesmo, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer seguir a acção.
Como refere Anselmo de Castro (2), o interesse em agir constitui um pressuposto processual autónomo e inominado que «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial, o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo … um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece». E acrescenta que o interesse em agir «não se destina a assegurar eficácia à sentença; o que está em jogo é antes a sua utilidade: não fora exigido o interesse, e a actividade jurisdicional exercer-se-ía em vão».
Também Antunes Varela (3) preconizou que a legitimidade e o interesse em agir são pressupostos processuais autónomos: «Uma coisa é, de facto, a titularidade da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra substancialmente distinta, a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir».
Ou M. Teixeira de Sousa (4) que escreveu que «o interesse em agir pode ser definido como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela» (…) «o autor não tem interesse em demandar quando não extrair nenhuma vantagem da concessão da tutela judiciária». Devendo aferir-se da necessidade da tutela judicial objectivamente perante a situação subjectiva apresentada pelo requerente, tendo este «interesse processual se, dos factos apresentados, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor aquela situação», apresentando-se mesmo (o interesse em agir) como uma restrição ao exercício do direito à jurisdição, constitucionalmente garantido (cf. art. 20º, nº 1, da CRP).
Não definindo a lei o conceito de interesse em agir, também a jurisprudência, no âmbito penal, tem ensaiado algumas contribuições sobre o tema.
Assim, expendeu o acórdão do STJ de 18/01/2012 (5): «(…) o assistente, sendo imediata ou mediatamente atingido com o crime, adquire o estatuto processual em função de um interesse próprio, individual ou colectivo. Porém, a sua intervenção no processo penal, sendo embora legitimada pela ofensa ao interesse que pretende afirmar, contribui ao mesmo tempo para a realização do interesse público da boa administração da justiça, cabendo-lhe, na defesa do interesse próprio, o direito de submeter à apreciação do tribunal a sua perspectiva sobre a justeza da decisão, substituindo-se ao Ministério Público, se entender que não tomou a posição processual mais adequada, ou complementando a sua actividade, sempre no respeito pelo princípio e pela natureza do carácter público do processo penal».
Também o acórdão do STJ, de 7/05/2009 (6) ponderou:
«(…) VII - Enquanto que a legitimidade do assistente se avalia para efeito de recurso, à partida, face ao seu posicionamento no processo perante a decisão proferida, assumindo pois um carácter mais subjectivo e formal, o interesse em agir resultará da análise da pretensão do recorrente, em concreto, quando confrontada com a respectiva necessidade ou indispensabilidade para fazer vingar um direito ou interesse seu. Em matéria de legitimidade averiguamos quem pode recorrer, e no domínio do interesse em agir apreciamos que interesse tem a pessoa que quer recorrer, em interpor aquele concreto recurso. É dizer, averiguamos se o direito ou interesse prosseguido pelo assistente é atendível para o efeito, tendo em conta o respectivo estatuto processual e, no limite, aquilo que se pretende com a punição.
VIII - A jurisprudência não tem, a este respeito, sido uniforme, e pode na verdade exigir-se, numa posição mais restritiva, que o assistente tem que demonstrar que só através do recurso assegura a tutela de um direito subjectivo seu. No extremo oposto estarão todos quantos entendem que a simples discordância do assistente em relação à justiça da decisão lhe atribui a possibilidade de recorrer confundindo-se legitimidade com interesse em agir. A nosso ver, a solução deverá situar-se, partindo da análise do caso concreto, num campo em que se evite a transposição pura e simples, para o domínio penal, da doutrina civilística dos pressupostos processuais, mas obviando também à subversão do princípio da oficialidade do processo penal bem como do papel do MP.
IX - O sancionamento penal dos delinquentes satisfaz um interesse colectivo que compete ao MP prosseguir. Não existe um direito pessoal público do assistente a um certa punição, como única forma de reparação moral sua, de tal modo que lhe fosse permitido exigir determinada prestação do tribunal na satisfação desse desiderato. Prestação que se cifraria numa decisão, em que se considerassem provados certos factos, que implicassem certa qualificação, e a aplicação de certa pena, pretendida pelo assistente.
X - Se a punição do arguido está dominada por um interesse público, não pode competir ao assistente ser ele o intérprete do interesse colectivo, designadamente se conflituar com a posição assumida a esse respeito pelo MºPº. No que contende com o cerne do ius puniendi do Estado, o assistente não pode pois deixar de estar subordinado ao MP.
XI - Daí que, sempre que o assistente pretenda recorrer desacompanhado do MP, não interesse tanto discriminar as situações em que terá um interesse em agir relevante (na linha do assento, concreto e pessoal), mas tão só excluir da possibilidade de recurso aquelas situações em que o assistente se confina ao interesse geral da justiça da punição do delinquente, porque esse é um interesse colectivo, e não pessoal, seu. Assistente que nestes autos, sublinhe-se nem sequer foi vítima do crime.».
Resumindo, o interesse em agir do assistente, como pressuposto do recurso, significa a necessidade que tenha de usar este meio para reagir contra uma decisão que comporte uma desvantagem para os interesses que defende, ou que frustre uma sua expectativa ou interesse legítimos, que significa que só pode recorrer de uma decisão que determine uma desvantagem; não poderá recorrer quem não tem qualquer interesse juridicamente protegido na correcção da decisão.
A definição do concreto interesse em agir supõe, pois, que se identifique qual o interesse que a assistente pretende realizar no processo, e especificamente em cada fase do processo.
Ora, como vimos, resulta dos autos que os recorrentes não evidenciam qualquer especial “conexão” com a pretensão punitiva do Estado, a qual se esgotou no culminar do exercício, por parte do Órgão dele incumbido, da perseguição penal relativa à imputada autoria de crimes exclusivamente públicos. Por outro lado, no âmbito do recurso, a posição dos assistentes queda-se por invocarem argumentos do foro do interesse geral da comunidade na punição do arguido, sem que, sendo esse um interesse colectivo, tenha apelado a quaisquer outras situações reveladoras de outros interesses particulares ou pessoais, para o poder fazer desacompanhada e, aliás, contra o entendimento manifestado no recurso pelo Ministério Público.
Por conseguinte, não sendo legalmente admissível o recurso, neste segmento, porque os recorrentes não têm interesse em agir, não se conhecerá da terceira questão acima enunciada.
1. A impugnação da matéria de facto.
Incide o recurso sobre a matéria de facto, pretendendo os assistentes/recorrentes que seja considerada provada toda a factualidade constante da matéria de facto dada como não provada no acórdão recorrido e, consequentemente seja o arguido condenado pela prática dos crimes pelos quais foi acusado.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
O eventual erro (de julgamento) na apreciação da prova não se identifica nem, por regra, emerge como a errónea construção de silogismo judiciário (contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão) ou qualquer outro dos vícios a que alude o art. 410º, nº 2, do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou erro notório), necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Com efeito, a jurisprudência tem considerado tais vícios apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (7).
O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão sobre a matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (8). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.
Assim, apenas existe erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (9). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (10) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.
Em suma, o vício ora defrontado, apreciado nesta vertente que não na da adequação da decisão proferida, visam o erro na construção do silogismo judiciário, não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável (11). O que está verdadeira e unicamente em causa no recurso é que os recorrentes não se conformam com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar o aludido vício que apontaram à decisão recorrida e que expressamente apodaram, concomitantemente, de erro notório na apreciação da prova e de julgamento incorrecto.
Ora, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida o vício (formal) que os recorrentes lhe assacam, com os mencionados contornos que a lei lhes oferece, aliás, incompatíveis com os próprios termos do arrazoado recursivo.
Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, complementadas com a respectiva motivação, que os recorrentes invocam a existência deste vício fora das analisadas condições legais, pois que se limitam a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõem às dos julgadores, sem que logrem demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do acórdão recorrido, a existência de uma conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum.
Na verdade, os recorrentes, ancorando-se no voto de vencido, almejam a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, procurando evidenciar que o mesmo representou a possibilidade de tirar a vida ao assistente, conformando-se com tal resultado, o qual a sua conduta era apta a provocar e que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade.
É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (12). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (13).
É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo ao mencionado princípio (14), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».
Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (15).
E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida. Em suma, neste processo, a violação do invocado princípio deve ser defrontada ou apreciada também nesta vertente da adequação da decisão proferida à prova produzida.
Num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, não podemos olvidar que o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova, não estando inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, nem das declarações de uma única testemunha. Mas, como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (16).
O preenchimento do dolo, que exprime a representação e a vontade de o agente realizar os pertinentes elementos objectivos do tipo legal, exige que o mesmo preveja o resultado e a relação causal e tenha vontade de concretizar essa acção, bastando-se, no que respeita ao dolo eventual, com a representação pelo agente da possibilidade da realização do tipo legal e da sua conformação com ela.
Assim, situando-os no plano ou em sede de julgamento sobre matéria de facto e assumindo os elementos intelectual e volitivo do dolo a natureza de factos relativos ao foro psicológico ou da vida interior do agente e, por isso, impossíveis de apreender directamente, os mesmos podem ser deduzidos ou inferidos de outros factos que, com muita probabilidade, os revelem: tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros factos (objectivos) dados como provados que com eles normalmente se ligam, analisados à luz das regras da experiência comum, e que permitem ou impõem concluir pela sua verificação.
Aqui reside o ponto crucial da questão em apreço: os assistentes olvidam que a ilação de que o arguido teria representado a possibilidade de tirar a vida ao seu filho, conformando-se com tal resultado, e de que a sua conduta era apta a provocar essa morte só se justificaria a partir de outros factos (materiais), obviamente demonstrados em audiência.
Contudo, dos factos apurados o que se extrai é, apenas, que o arguido direccionou a caçadeira para a zona onde se encontrava o filho e efectuou um disparo, a cerca de 5 m deste, atingindo-o na perna esquerda. Ora, mesmo descontando o provável embotamento das respectivas capacidades (de intelecção e de perícia), tanto pelo receio, como pela natural emoção, como, ainda, pela influência do álcool – dado apresentar, algumas horas depois, 1,63 g/l de alcoolemia –, que o acometeriam, também se demonstrou que o arguido era um caçador experiente e que se encontrava à (curta) distância de 5 metros do filho quando efectuou o disparo para a zona onde o mesmo se encontrava, atingindo-o, mas, nas pernas.
Ora, à luz da matriz orientadora do julgamento dos factos no âmbito penal, acima muito sinopticamente exposta, parece-nos irrefutável que a materialidade fáctica apurada não consentiria a dedução de uma realidade do foro psicológico do arguido diferente da afirmada, por maioria, na decisão recorrida.
É o que, lucidamente, defendeu o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto na seguinte passagem do seu douto Parecer, com que estamos inteiramente de acordo: «Com o máximo respeito pelo que ficou consignado no citado voto de vencido, o que nele se exarou não possui qualquer consistência pois que erra na apreciação de uma incontornável circunstância: a conduta do arguido não era apta a provocar a morte da vítima, o seu filho. Em momento algum da factualidade provada se assaca que o arguido haja direcionado a arma por si empunhada para uma qualquer zona vital do corpo da vítima e que para ela tenha disparado. Se tal houvesse sido dado como assente, então estaríamos perante um homicídio tentado. Todavia, o que se firmou foi algo bem diverso, que “o arguido em acto contínuo, redirecionou a caçadeira para a zona onde se encontrava o filho e efectuou um disparo, a cerca de 5 metros do filho, que o atingiu na perna esquerda, causando-lhe as lesões descritas ...”: Apesar do arguido, como qualquer outra pessoa, saber que uma caçadeira é um instrumento particularmente perigoso e que as balas poderiam perfurar o corpo do assistente, tais elementos não são decisivos para imporem a conclusão de que houve intenção de matar por parte do arguido».
Por essa razão entendemos que bem andou o Tribunal de 1ª Instância ao ter dado como não provados os aludidos elementos subjectivos, sob pena de, procedendo a diferente valoração de todas as referidas circunstâncias, brigar com as regras da lógica e da experiência comum e, por isso, com o princípio da livre apreciação da prova, efectuando uma apreciação arbitrária, assente em meras impressões subjectivas e incontroláveis, à margem dos critérios do cidadão médio.
Por conseguinte, não se enxerga a existência dos apontados vício e erro no que respeita ao crime de homicídio qualificado na forma tentada.
Relativamente ao crime de violência, no recurso, não vem minimamente concretizado qualquer vício ou erro da decisão e respectiva motivação, parecendo-nos, salvo melhor entendimento, serem coerentes e lógicas as explicitações mediante as quais os Srs. Juízes, em resultado da prova produzida, tiveram como provado o comportamento protagonizado pelo arguido.

2. O enquadramento jurídico dos factos.
O recurso interposto pelos assistentes, para além de ter visado a decisão sobre a matéria de facto, tem ainda como escopo o reexame da matéria de direito.
Ao arguido era imputando a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 132º, nº 1 e 2, a), e) e i), 22º, nºs 1 e 2, c) e 23º, do C. Penal, em conjugação com o disposto no art. 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, a) e nº 2 do C. Penal.
Quanto ao primeiro dos aludidos crimes, pelas razões já assumidas aquando da análise da impugnação da matéria de facto tem que se concluir pela não verificação do elemento subjectivo deste ilícito, encontrando-se, por isso, irremediavelmente comprometido o seu enquadramento legal na norma pela qual o arguido se encontrava acusado.
Os recorrentes, para sustentarem a verificação dos requisitos do crime, uma vez mais, transpõem o seu ponto de vista para o domínio dos factos ou para o juízo que fazem sobre o que deveria ser tido por provado. Ora, não podendo confundir-se matéria de facto com matéria de direito, uma vez ultrapassada essa questão com o reconhecimento da improcedência total da impugnação da decisão sobre aquela, a subsunção jurídica é feita mediante a matéria de facto já tida por fixada. Essa é uma questão arrumada e decidida no momento próprio: no caso, o tribunal concluiu, num juízo sobre os factos que reputámos de acertado, não estar provado que o arguido, ao disparar o tiro que feriu o assistente, tenha representado como consequência possível da sua conduta a morte do mesmo, conformando-se com tal resultado. Agora, em sede de aferição da tipicidade do aludido crime de homicídio qualificado na forma tentada, é incontornável a conclusão, à luz do supra expendido, de que os respectivos elementos não se preenchem integralmente.
Realmente, perante a factualidade assente, é indubitável que não ficou demonstrado o preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal em apreço. Na verdade, não se pode concluir que o arguido agiu com dolo eventual (art. 14º, nº 3, do CP) quanto ao imputado crime de homicídio (ainda que só sob a forma tentada): como se disse, para que se possa falar de tal crime, é necessário que tenhamos, sempre, para além de uma acção típica e ilícita, o correspondente suporte volitivo/subjectivo, ainda que na forma de dolo eventual.
Em suma, analisados os factos dados como provados, no que concerne ao tipo subjectivo do tipo de crime de homicídio, sob a forma tentada, não resulta, como era indispensável a alusão factual à conformação com a probabilidade de produção do resultado morte.
No que concerne ao crime de violência doméstica previsto no art. 152º, do C. Penal, a reforma penal de 95 introduziu significativas alterações neste domínio, enfrentando a importância crescente de agressões, humilhações, vexames, insultos e outros actos que acontecem, designadamente, no âmbito familiar e conjugal. A necessidade de criminalização de tais condutas adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social altamente lesivo e de proporções alarmantes, apesar de encapotadas, e com repercussões ao nível da formação individual e da integridade do próprio tecido social. Fenómeno esse do qual são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional.
O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visam tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade (17).
O bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser afectado por todos os comportamentos que ou que afectem a dignidade pessoal do cônjuge (18).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos» (19).
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito, não imprescindível –, uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo (20). Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19º nº 2 do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.
Este crime «persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente» (21).
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma acção isolada do agente (tão-pouco com vários actos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excepcional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal (22).
A entrada em vigor da Lei nº 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu companheiro, esclarecendo-se agora expressamente que tal actuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Todavia, no que respeita ao segundo dos elementos mencionados e tendo presente apenas o conceito de “maus tratos físicos”, há que atentar em que não basta para o seu preenchimento que o agente pratique factos que se subsumam na previsão do art. 143 nº 1 (ofensas à integridade física simples). É, também, necessário, que a actuação atinja o bem jurídico tutelado com a incriminação em apreço, ou seja que lese a dignidade, enquanto pessoa, da vítima (23). E para tal, não basta a simples e/ou isolada agressão ao cônjuge.
Necessário é que a conduta do agente, nesse particular conspecto, seja ofensiva do bem-estar da vítima, considerado, quer numa perspectiva física, quer numa vertente psíquica e mental. Por outro lado, por regra, relevam as condutas que se traduzam na prática reiterada de agressões a tal bem jurídico (24). Em caso de agressão isolada, por regra, estar-se-á apenas diante da possibilidade de verificação de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelos arts. 143º e ss.
Importa, assim, analisar e caracterizar se o quadro global da agressão de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão (25), «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é susceptível de se classificar como “maus tratos”. Conforme se escreveu no Ac. da RE de 30-06-2015 (26), «essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afectar a dignidade pessoal do outro elemento do casal». Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva. Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento conjugal deteriorado, mas em que, apesar dessa degradação, os cônjuges se foram mantendo livremente no casamento, sem posições de dominância de um sobre o outro, interagindo sempre em condições de paridade e igualdade conjugal, uma agressão isolada e pouco intensa, que atingiu a integridade física da assistente, e outras ofensas pontuais ao seu bom nome, embora merecedoras de censura penal, não encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e sim dos arts 143º, nº 1 do CP e 181º, nº1 do CP.».
Ou, ainda, como se salientou, duma forma, porventura mais impressiva, no sumário do Ac. deste Tribunal de 15-10-2012 (27): «A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos”quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima».
Se da imagem global dos factos não resultar este quadro de maus tratos, nos moldes e com os referidos contornos, que justifiquem aquela especial tutela e punição agravada, a situação integrará a prática de um ou dos vários crimes em causa e que de outra forma seriam consumidos por aquele.
Ora, da factualidade apurada nestes autos não se retiram elementos suficientemente expressivos para poder afirmar que o arguido atingiu o bem jurídico tutelado com esta incriminação que, neste conspecto, lhe vinha assacada com os “maus tratos físicos” infligidos à assistente. Ou seja, que, com tais “maus tratos físicos”, o arguido tenha lesado dolosamente a dignidade da vítima, enquanto pessoa.
Atento o contexto relacional em que foram praticadas, as condutas do arguido não revelam um sentimento de superioridade e de domínio sobre a assistente, com o intuito de anular a sua personalidade e dignidade. Pelo contrário, desde sempre, o casamento entre o arguido e a assistente foi reconduzido a um relacionamento conflitual para que ambos contribuíam, em maior ou menor medida: ambos discutiam e, quando o faziam, endereçavam, reciprocamente, um ao outro os ásperos ápodos e insultos enunciados na factualidade e também a assistente provocava o marido, designadamente a respeito do “facebook”, assunto que também esteve presente na altercação que se verificou entre ambos na fatídica noite de 10 para 11 de Junho de 2016, em cujo contexto também a própria assistente disse ao arguido que lhe dava com uma cadeira na cabeça e atirou pela janela fora a roupa do arguido, depois de este ter feito o mesmo a uma cadeira com alguns cintos pertencentes àquela.
Assim, dos indicadores fornecidos pela factualidade provada, não resulta um quadro de submissão da mulher/assistente em relação ao marido/arguido, como muito bem se assinalou no acórdão recorrido, razão pela qual concordamos com a fundamentação no mesmo oferecida.
E, como se disse, na falta desses elementos, os factos provados apenas seriam eventualmente subsumíveis à previsão do art. 143, nº 1 e 181º, do C. Penal (ofensa à integridade física simples e crime de injúria), por reporte aos episódios isolados, descritos nos factos assentes, mas na ausência da verificação das condições necessárias para desencadear o respectivo procedimento criminal, bem andou o Tribunal ao concluir pela absolvição do arguido, quanto a tais crimes.

Por conseguinte, improcede totalmente o recurso.
*
Decisão:
Nos termos expostos, julga-se totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em cinco UC´s.

Guimarães, 8/5/2017

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado

1 In DR nº 185, 1ª - A, de 10-8-1999.
2 In “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. II, Almedina, 1982, a pp. 251 a 255.
3 Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 172.
4 In “As Partes, O Objecto E A Prova Na Acção Declarativa”, Lex, 1995, pp. 97 a 99.
5 P. 1740/10.1JAPRT.P1.S1 - Conselheiro Henriques Gaspar.
6 P. 09P0579 - Conselheiro Souto de Moura.
7 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
8 Cfr. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
9 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
10 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
11 Nada tem a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, os recorrentes demonstram ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
12 Como dizia Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, p. 191.
13 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
14 Com efeito, escreve Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, p. 41: «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
15 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
16 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
17 Como refere Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense”, I, pp. 329 a 339.
18 V. Ac. da RP de 31/1/2001, p. 0041056-in dgsi.pt.
19 Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, p. 305.
20 Cfr., designadamente, Hans-Heinrich, “Tratado de Derecho Penal”, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, “Lições de Direito Penal”, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547.
21 J. M. Tamarit Sumalla, in “Comentários a la Parte Especial del Derecho Penal”, 1996, p. 100.
22 V., entre outros, os Acs. do STJ 14/11/97, CJ 3º/235, de 5/4/06 (p. 06P468) e de 6/4/06 (p. 06P1167) e da RE de 29/11/05 (p. nº 1653/05-1).
23 Cfr. Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense”, p. 332.
24 Cfr., neste sentido, o Ac. da RC de 3/11/1999, CJ, 5º/123.
25 In “Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010.
26 P. 1340/14.7TAPTM.E1, relatora Ana Brito.
27 P. 639/08.6GBFLG.G1, relator Fernando Monterroso.