Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2390/06.2PBBRG.G1
Relator: ANA TEIXEIRA
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: A jurisprudência fixada no acórdão do STJ 11/2013 do STJ – «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP» – é aplicável aos casos em que a alteração da qualificação jurídica dos factos tem como consequência a incompetência territorial do tribunal.
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES SECÇÃO CRIMINAL

-------------------------------- Acórdão

I - RELATÓRIO

1. No processo Comum (tribunal coletivo n.º2390/06.2 PBBRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi proferido o seguinte despacho:
Como bem salienta a Senhora Procuradora na douta promoção antecedente, os factos descritos na acusação e no despacho de pronúncia, abstratamente considerados, são suscetíveis de integrar a prática pelos arguidos Fernando e Miguel A..., além do mais, de um crime de associação criminosa, previsto e punível pelo artigo 299°, n.º 3 do Código Penal.

Com efeito, resulta expressamente do texto do libelo acusatório que os mencionados arguidos coordenavam o grupo fundado para a prática dos crimes de furto, recetação, falsificação e burla que, concomitantemente, lhes são imputados.

Ora, como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.11.2013, disponível na internet no endereço WWW.dgsi.pt. o crime de associação criminosa consuma-se com a ''fundação da associação com a finalidade de praticar crimes

(. . .), sendo o agente punido independentemente dos crimes cometidos pelos associados e em concurso real com estes".

Sendo assim, é forçoso concluir que o mencionado ilícito se manifestou aquando do cometimento do primeiro ilícito autónomo ou concreto (independentemente da moldura penal correspondente) dos vários que constituíam o escopo da organização, pelo que o tribunal onde dele primeiro houve notícia foi o tribunal da comarca da Maia (factos descritos no item 17 da acusação).

Donde decorre que o tribunal competente para o conhecimento dos crimes em concurso é o tribunal da comarca da Maia, nos termos do artigo 28° do Código de Processo Penal.

Mercê de diversas vicissitudes processuais (sucessivas renúncias ao mandato), a audiência de julgamento ainda não se iniciou, pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, penso que nada obsta à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação e ao conhecimento da exceção de incompetência territorial nesta fase do processo (artigo 32°, n." 2, alínea b), do CPP), salientando-se que a minha intervenção nos presentes autos, em regime de substituição legal, ocorreu em momento posterior à prolação do despacho de recebimento da acusação.

Pelo exposto, considerando que os factos imputados aos arguidos Fernando e Miguel A... integram, além do mais, um crime de associação criminosa, previsto e punível pelo artigo 299°, n." 3 do Código Penal, declara-se este tribunal incompetente em razão do território para conhecer dos crimes em concurso e ordena-se a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca da Maia, por ser o competente.

Notifique e, após trânsito, remeta os autos ao tribunal considerado competente.

*

Mercê do ora decidido, dou sem efeito a audiência de julgamento para hoje designada.

(…)»

2. Inconformados, os arguidos Maria A...; Fernando A... e João S... recorrem, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 10307]:
«(…)
CONCLUSÕES
1 - Os arguidos contestam a decisão recorrida, por razões de direito a alteração do enquadramento jurídico operada;
2 - Este tipo de alterações deve ser tido como excecional;
3 - No sentido da vigência da lei, o tribunal pode proceder a urna alteração do enquadramento jurídico dos factos constantes da acusação, ainda que em "figura criminal mais grave", desde que tenha dado conhecimento dessa possibilidade e dar prazo ao arguido para organizar a sua defesa, o que não aconteceu no presente caso (sublinhado nosso)
4 - O sobredito despacho, violação o princípio da oralidade e o princípio da imediação da prova.
6 - O Tribunal procedeu ao saneamento do processado e marcou dia de julgamento.
7 - Tendo o Digníssimo Tribunal a quo, limitado a proferir um despacho de alteração da qualificação jurídica, dando como consumada a situação do novo enquadramento legal, violou o disposto no n° 1, do artigo 358º do CPP, por remissão ao artigo 32° CRP - princípios constitucionais do "direito de defesa e do contraditório"
Sem prescindir
8 - Os arguidos foram acusados de associação criminosa, sendo o crime mais grave dos demais.
9 - Merce dessa autonomia de vontades dos seus membros e cujos crimes por estes cometidos, será sempre competentes ou o Tribunal Judicial de Braga.
10 - A alínea b) do artigo 28° do CPP reza o seguinte: "em caso de crime de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem o arguido estiver preso ou, havendo vários arguidos presos, aquele à ordem do qual estiver preso o maior numero"
11 - Compulsados os autos, verifica-se que os arguidos, Fernando A..., João S... e Hugo F..., estiveram presos, preventivamente, à ordem dos presentes autos, mais de 20 meses.
12 - Pelo que o Tribunal competente para o efeito é o Tribunal recorrido.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o douto despacho ser revogado substituindo por que se coadune com as pretensões dos recorrentes e seja dado sem efeito a requalificação operada.
Assim se fazendo a costumada Justiça

(…)»

3. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos do recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls.10381 ].
4. Nesta instância, o Exmo. procurador-geral-adjunto emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso [fls.10424 ].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
(…)»

II – FUNDAMENTAÇÃO

6. Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª Ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª Ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objecto do recurso, importa decidir as seguintes questões:
· Violação do disposto no artigo 358º,n.º1 do CPP
· Competência territorial determinada por conexão;
Analisemos as questões.

Quanto a alteração da qualificação jurídica dos factos que originou a exceção de incompetência territorial e remessa a outro tribunal, importa ter presente o seguinte:

Questão central é saber se a mesma pode ocorrer no início da audiência que teve a sua abertura mas antes da produção de prova.

De facto resulta dos autos que a audiência teve o seu início e nele foi ordenado o cumprimento do artigo 47º,1 do NCPC, face a revogação de mandato; só posteriormente com a situação regularizada é que veio a ter lugar o proferimento do despacho recorrido.

A este propósito há que ter presente o teor do Acórdão do STJ n.º 11/2013, para fixação de jurisprudência e a respeito de questão suscitada nesta Relação de Guimarães que decidiu nos termos que passamos a citar:

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz -se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo -se exclusivamente por critérios de legalidade e de objetividade.

Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.

Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que atuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.”

Termos em que

IX — Decidindo: Acordam em fixar a seguinte jurisprudência:

«A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP»

Em termos de justificação desta decisão e de molde a podermos compreendê-la de forma adequada, passamos a transcrever extrato do que ali se deixou consignado:

“Ora, considerando que a acusação, definidora do objeto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição — artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efetuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação. De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição.

É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação. (como é o nosso caso)

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz -se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo -se exclusivamente por critérios de legalidade e de objetividade.

Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.

Sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que atuar no momento processual que lhe compete.

E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.”

Em conformidade com o exposto e em obediência ao referido Acórdão para fixação de jurisprudência impõe-se a revogação do despacho recorrido devendo os autos prosseguir os seus termos em audiência de julgamento.

Efetivamente o despacho em causa foi proferido em momento anterior a produção de prova e tal possibilidade encontra-se vedada face ao referido acórdão de fixação de jurisprudência.

Por tal razão fica ainda prejudicada a análise da invocada incompetência territorial do tribunal.

III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, os juízes acordam em:

· Conceder provimento ao recurso interposto pelos recorrentes e em consequência decide-se, em obediência ao Acórdão do STJ n.º 11/2013 para fixação de jurisprudência, revogar o despacho recorrido e determinar o prosseguimento dos autos em audiência de julgamento tal como havia anteriormente sido agendada.
· Não é devida Tributação