Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7/06.4GABTC.G1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: RAI APRESENTADO PELO ARGUIDO
ALEGAÇÃO DE LEGÍTIMA DEFESA DE TERCEIRO
OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Observa as exigências previstas no artº 287º, nº 2, do CPP, o RAI apresentado pelo arguido que nega os factos que lhe são imputados na acusação, em relação a um dos ofendidos e quanto aos factos por que vem acusado em relação ao outro ofendido, nega que o tenha agarrado pelo pescoço, alegando que apenas o empurrou e que o fez, no circunstancialismo que descreve, agindo em legítima defesa de terceiro, tendo, também, indicado os atos de instrução que pretende sejam realizados pelo JIC e os meios de prova que não foram considerados no inquérito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 - RELATÓRIO
No âmbito dos Autos de Inquérito n.º 639/14.7GBGMR, da Comarca de Braga – Guimarães, o Ministério Público deduziu acusação, para julgamento em processo comum e perante Tribunal Singular, ao abrigo do disposto no artigo 16º, nº. 3, do C.P.P., contra o arguido E. J., melhor identificado a fls. 78, imputando-lhe a prática, em concurso efetivo, de dois crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, nº. 1, do Código Penal.
Notificado da acusação, por requerimento, que deu entrada em 18/01/2016, o arguido veio requerer a abertura da instrução.
O Mmº. Juiz de Instrução Criminal, por despacho datado de 07/03/2016, indeferiu o aludido requerimento, ao abrigo do disposto no artigo 287º, nºs. 2 e 3, “quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padecer de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286º, nº. 1 e 287º, nº. 2 e 3 ambos do CPP -.”
Inconformado veio o arguido interpor recurso do aludido despacho, apresentando a respetiva motivação e desta extraindo as seguintes conclusões:
1.ª – No despacho, de que ora se recorre o Tribunal a quo, rejeitou o requerimento do Arguido ora Recorrente por entender ser um caso de “inadmissibilidade legal da instrução” e por considera tal requerimento padece de “ineptidão para os fins da instrução”.
2.ª Sucede que (com todo o respeito), a interpretação que o Tribunal a quo fez da norma (n.º 2, artigo 287.º, do CPP) vai para lá daquilo que a letra da lei permite.
3.ª – Não se constatando, de forma alguma, que, in casu, “a instrução” – enquanto fase processual autónoma – seja inadmissível, nem que o requerimento padece de qualquer ineptidão.
4.ª – No requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Arguido expõem-se, claramente, as razões de facto pelas quais se discorda da acusação, expondo-se expressamente que os factos imputados ao mesmo são falsos. E explanando-se, ainda, os factos tal como eles realmente aconteceram.
5.ª – E, para além de no RAI se ter exposto a completa discordância com os factos vertidos na acusação, o Arguido também indicou os atos de instrução que pretende que o Meritíssimo Juiz leve a cabo (e juntou um documento) para provar o por si sustentado e para demonstrar que o mesmo não deve sequer ser submetido a julgamento.
6.ª – Tendo o Arguido indicado a inquirição de quatro testemunhas (ou seja: M. P., P. A., M. I. e L. A.) presentes na data e local dos factos e que não foram ouvidas durante o inquérito, bem como a tomada das suas declarações (que era imperioso realizar, nos termos do n.º 2, do artigo 292.º do CPC).
7.ª – Pelo que, o Arguido apresentou um requerimento de abertura de instrução em que demonstra uma, direta e completa, discordância com a acusação do Ministério Publico, explicando as suas razões de facto e de direito de forma perfeitamente clara (indo, inclusive, para além da “sumula” que é exigida pelo n.º 2, do artigo 287.º do CPP).
8.ª – E, posto isto, acresce salientar que a submissão de um cidadão a julgamento não é um ato de pouca relevância. Antes pelo contrário!
9.ª – Tendo o nosso o sistema penal uma estrutura acusatória, não pode deixar de se reconhecer ao Arguido – confrontado com uma acusação – o direito a exigir que tal ato seja objeto de confirmação (comprovação) por parte de um terceiro imparcial, ou seja um Juiz, antes de ser submetido a julgamento.
10.ª – E, também, por tal direito ser tão basilar é que a lei – id est, o n.º 3, do artigo 287.º do CPP – é tão limitativa quanto aos fundamentos de rejeição do requerimento de abertura de instrução ao prever-se que tal requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
11.ª – Conforme o Tribunal da Relação do Porto decidiu no seu Acórdão de 4 de Fevereiro de 2015: “Não deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, um requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida em que esta se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e indica testemunhas não inquiridas no inquérito” – Acórdão TRP de 04-02-2015, processo n.º 681/13.5PBMAI.P1, acessível in http://www.dgsi.pt.
12.ª – Acresce que, para além de ter exposto as suas razões de facto e de ter indicado os meios provatórios que importa produzir em sede de instrução, o Arguido também expôs razões de direito quanto à sua discordância relativamente à acusação, alegando que se encontram preenchidos todos os requisitos do artigo 32.º do Código Penal, pelo que o Arguido atuou em situação de legítima defesa.
13.ª – Em suma, no seu requerimento de abertura da instrução, o Arguido expor as suas razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação proferida pelo Ministério Publico. Tendo-se respeitado os requisitos previstos no n.º 2, do artigo 287.º do CPP e não exigindo qualquer dos fundamentos previstos no n.º 3, desse artigo para a rejeição do requerimento apresentado pelo Arguido.
14.ª – Assim, na decisão de que ora se recorre o Tribunal a quo fez uma interpretação incorreta dos n.ºs 2 e 3, do artigo 287.º, do CPP, pois deveria ter-se interpretado essas normas no sentido de que o requerimento de abertura de instrução, apresentado pelo Arguido, é admissível e ter-se declarado aberta a instrução, com os inerentes efeitos legais.
15.ª – Pelo que, o despacho de que ora se recorre (de rejeição do requerimento de abertura de instrução) deve ser revogado e substituído por decisão que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Arguido, declarando-se aberta a instrução, com as inerentes consequências legais.
Conclui no sentido de que o despacho recorrido (de rejeição do requerimento de abertura de instrução) deve ser revogado e substituído por decisão que admita o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido e declare aberta a instrução com as inerentes consequências legais.
O recurso foi regularmente admitido.
O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, nos termos constantes de fls. 214 a 217, concluindo no sentido de que o requerimento de abertura de instrução apresentado permite ao Juiz a realização da instrução, inexistindo fundamento para a rejeição liminar e manifestando o entendimento de que o recurso merece provimento.
Neste Tribunal da Relação, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à posição defendida pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, na resposta que o mesmo ofereceu e concluindo nos mesmos termos, no sentido de o recurso dever ser julgado procedente.
Foi cumprido o disposto no nº. 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal.
Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência. Cumpre agora apreciar e decidir:
2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Decisão recorrida
O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Não se conformando com o despacho de acusação proferido pelo Digno Magistrada do MP, no qual se imputa ao arguida requerente da instrução um crime de ofensa á integridade física pp pelo artº 143º, nº 1, do CP, o arguida veio, a fls. 151 e ss, requerer abertura de instrução.
Alegou, para tal e em suma, que não praticou os crimes por que vem acusado, por não ter agredido os ofendidos e que actuou em legitima defesa.
*

Cumpre proferir despacho liminar, sendo certo que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução – artigo 287º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O tribunal é competente.
O requerimento é tempestivo – artigo 113º do CPP.
O requerente tem legitimidade – artigo 287º, n.º 1, al. a), do CPP.
Importa, agora, apreciar a admissibilidade legal da instrução.
*
Apreciemos.
Consigna-se, desde já, que o presente despacho tem por base, em grande parte, os fundamentos expostos pelo Exmo Dr. Pedro Daniel Dos Anjos Frias, in Revista Julgar nº 19 (Jan- abril de 2013) sob o artigo “Um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”.
A instrução, como fase intermédia entre o inquérito e o julgamento « visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» ( art. 286.°, n.º 1 do Código de Processo Penal).
A fase de instrução permite que a actividade levada a cabo pelo Ministério Público durante a fase do inquérito possa ser controlada através de uma comprovação, por via judicial, traduzindo-se essa possibilidade na consagração, no nosso sistema, da estrutura acusatória do processo penal, a qual encontra assento legal no artigo 32.°, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, a actividade processual desenvolvida na instrução é materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguações - Acórdão da Rel. de Lisboa de 12.07.1995, CJ XX-IV-140, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 128.
A instrução « visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento» ( art. 286.°, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Posto isto, qual é o significado da expressão comunicacional comprovar? Comprovar significa concorrer para provar; corroborar; confirmar; demonstrar; vir corroborar (Vd: «Dicionário da Língua Portuguesa», Porto Porto Editora, 5 edição, pág. 346: «Novo dicionário Lello da Língua Portuguesa», Porto, Lello Editores 1996, pág. 449: «Grande Dicionário da Língua Portuguesa — Cândido de Figueiredo», Lisboa Bertrand Editora, 25. Edição pág. 666)
Assim, a ideia da comprovação pretende referir-se, em um modo de ver dinâmico, à actividade de comprovar propriamente dita e, em um modo de ver estático, ao resultado dessa actividade (de comprovar).
Aqui chegados podemos tentar uma primeira redução compreensiva sobre o “para que serve” a instrução, afinal, um dos âmagos da problemática.
Trata-se de verificar se se confirma (corrobora ou demonstra, etc.) o acerto da decisão de acusar, se esta é, com efeito e passe a expressão, o fruto são de um pomar, se é decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público.
De forma apodíctica: trata-se de verificar se se corrobora ser a acusação uma decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos rio inquérito (pressupostos de facto) e se a mesma se incrusta validamente no ordenamento jurídico processual penal (pressupostos de direito).
Assim, a comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão, ou não, da causa, ou uma sua parte, a julgamento, vd. os artigos 286°, n.° 1, 287°, n.°5 1, aI. b), e 2, 288°, n.° 4, e 308°, n.° 1, todos do CPP.
Dos dois pontos anteriores podemos extrair as seguintes proposições preliminares conclusivas:
Primeira: A instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar.
Segue-se daqui que a instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. Designadamente, não pode ser utilizada para repetir o que na investigação já se efectuou, para a realizar de novo, ou para ensaiar a defesa antecipando o julgamento, etc.
Nenhuma destas realidades respeita o valor semântico do enunciado escolhido pelo legislador e, por sobre tudo, a realidade teleológica que lhe subjaz: comprovar (em face do que já existe).
Segunda: Na instrução a única actividade a desenvolver é a da comprovação judicial e esta tem por objecto, desde logo, o inquérito lato sensu.
Terceira: A comprovação judicial carece de ser despoletada, o que acontece mediante a apresentação do requerimento, onde têm que constar os fundamentos necessários a servir de apoio ou arrimo a essa actividade (as razões de facto e de direito de discordância em relação à decisão do Ministério Público esgrimidas pelo arguido).
Quarta: A instrução configura unicamente um momento de ‘controlo” da conformidade/legalidade da actividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais.
O pressuposto necessário para que o arguido possa requerer a abertura da instrução é que ‘tenha sido objecto de uma acusação, vd. o artigo 287.°, n.° 1, al. a), do CPP.
E por ter sido acusado e entender que não deve ser submetido a julgamento, o arguido irá suscitar a intervenção de um terceiro, o juiz de instrução, o que fará mediante a apresentação de um requerimento onde se contenham as suas razões de discordância, com o objectivo de demonstrar o desacerto da decisão de acusar naquele concreto processo, à luz e por força dos elementos que nele, e nesse momento, então existiam.
Ora, para demonstrar o desacerto da decisão de acusar com que culminou o concreto processo onde foi acusado, o arguido terá que pôr em causa o juízo indiciário determinante do exercício da acção penal, o que fará mediante a apresentação do requerimento que terá de conter uma ou mais razões por onde se vislumbre o desacerto de o sujeitar a julgamento.
A instrução configura, como é sabido, um puro momento de controlo de uma actividade pretérita e depende de um impulso de terceiro — o arguido. Este impulso concretiza-se mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução que não se pode limitar a contestar a acusação mas, ao invés, deve atacar os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou os meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii) ou mesmo o procedimento (latu senso) concretamente adoptado pelo Ministério Público ou pelo Assistente que culminou na prolação do despacho de acusação ou na dedução de acusação particular (iii).
Assim, o requerimento do arguido, ainda que não sujeito a formalidades especiais, tem que conter, em ordem às finalidades legais da instrução, desde logo e, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação pública (ou particular)- vd. o n.° 2 do artigo 287 do CPP.
Daí que a discordância não se possa limitar (reduzir) à alegação de, por ex., não serem verdadeiros os factos narrados no libelo. Se assim fosse haveria uma paridade total entre o requerimento para a instrução e a contestação. E qual seria a congruência endoprocessual deste modo de perceber as coisas?
A discordância há-de ser composta por um conjunto de razões vinculadas ao inquérito, que neste ou sobre este se projectem, que desnudem ser desacertada a decisão de acusar tomada com base nos elementos que existiam. Ou, então, se tomada sem determinados elementos, desde que a inexistência destes no processo não se compreenda, ante a sua intrínseca, evidente e notória necessidade, em ordem à decisão a tomar sobre a acusação, tornando a dedução desta, em face de tal omissão e por força desta, incompreensível, indevida, e sempre, em qualquer dos casos, processualmente desalicerçada ou injustificada.
Assim, a discordância relativamente à acusação terá que passar necessariamente e a título meramente exemplificativo por tópicos como estes:
- O que é que não foi feito no inquérito e por causa disso foi deduzida acusação?
- O que se fez no inquérito não basta para deduzir acusação e porquê?
- O que é que foi desatendido no inquérito e por assim ter sido a actividade culminou na dedução de acusação?
- Que meios de prova colhidos no inquérito não foram valorados de todo, ou foram mal valorados e por assim ter ocorrido está o despacho final inquinado?
- Que diligências ou provas deveriam, à evidência, ter sido realizadas ou recolhidas, e por tal não ter sucedido, não espanta que a decisão final fosse de acusar?
- Qual foi o erro de subsunção jurídico-penal da factualidade imputada e quais são as consequências que desse erro se projectam sobre a finalidade intrínseca da instrução requerida pelo arguido, isto é, a sua não submissão a julgamento?
- Quais foram os elementos que o Ministério Público não considerou e de onde resultaria que isto e aquilo não corresponde à verdade?
-Quais foram as diligências que se realizaram e que acabaram desconsideradas, apesar da sua relevância, sem se saber porquê, com a dedução do despacho de acusação?
Etc.
Nisto consistem as razões de facto e/ou de direito a que alude o artigo 287.°, n.°2, do CPP e que terão que advir da análise que o arguido realize sobrem o conteúdo do inquérito que culminou com a decisão de acusar, isto, obviamente, sem prejuízo das situações verdadeiramente patológicas que corrompam o próprio libelo como, por ex. se os factos aí descritos não constituírem crime.
Razões de facto e de direito de discordância relativamente á decisão de acusar, afinal uma exigência do n.° 2 do artigo 287° do CPP que, sublinhamos, tem consequência(s) directa(s) sobre o conteúdo do requerimento que se apresenta para despoletar a fase da instrução.
Há condições que o requerimento apresentado pelo arguido tem que conter, preencher ou observar para, afinal, ser prestável à funcionalidade a que vem votado.
Tais condições são as razões de facto e de direito de discordância relativamente à decisão de acusar com o recorte e implicações para estas acima referidos, sendo certo que só definidas deste modo podem tais razões de discordância ser aptas a fundar os alicerces em que assentará a actividade de comprovação que se solicita ao juiz, só assim será possível, com efeito, concretizar as finalidades legais da instrução.
Donde, não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite:
— A apresentar uma mera versão ou contraversão factual — ainda que espelho de uma intenção verosímil — totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada);
— A repetir ou a completar o inquérito;
— A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação), como acontece com o RAI apresentado pelo arguido, alegando, em suma não ter praticado os factos pelos quais foi acusado e que actuou em legitima defesa.
— A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade ‘nova” fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii) 1;
— A pretender antecipar a fase do julgamento isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento,;
— A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado.
O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.° 2 do artigo 287.° com o n.° 4 do artigo 288.° ambos do CPP.
Assim, sem inquérito ou sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar.
Sublinha-se, de facto, que se a fase da instrução se caracteriza pela actividade de comprovação, se esta, por sua vez, consiste numa actividade de demonstração, de confirmação, atribuída a um terceiro (o juiz) e que tem por objecto o inquérito (como actividade) e o juízo do Ministério Público corporizado na decisão de acusar com que aquele findou, então será mister que o requerimento que se apresenta para abrir esta fase tenha que possuir um conteúdo concreto que se ligue umbilicalmente com o tipo de actividade que se vai desenvolver na instrução e, justamente por isso, se adeqúe às finalidades legais desta.
Do exposto resultam já projecções ou reflexos vários sobre o tipo de razões de discordância relativamente à acusação, a que alude o artigo 287°, n.° 2, e que devem necessariamente constar do conteúdo do requerimento por meio do qual se pretende catalisar a comprovação judicial da decisão de acusar
Serão as razões de discordância vinculada, como as definimos, de facto e/ou de direito relativamente á decisão de acusar.
Daí que, ante a incontestada proibição da prática de actos inúteis, quando nada de relevante em ordem às referidas finalidades se diga no requerimento: para que servirá este?
Para tudo com certeza, mas já não, efectivamente, e de fundo, para verificar se a decisão de acusar, surgiu de modo fáctico e regular como consequência da actividade desenvolvida no inquérito.
De facto, nas situações em que a instrução e impulsionada pelo arguido o requerimento deste, ainda que não sujeito a formalidades especiais, deverá conter em ordem às finalidades da instrução, desde logo e ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação publica ou particular.
Logo, um requerimento que se limite a um simples «não fui eu que pratiquei os factos», ou «os artigos tais e tais da acusação são falsos», etc., não traduz a apresentação de razões de facto e de direito de discordância com o juízo realizado pelo Ministério Público vertido na decisão tomada.
Igualmente, um requerimento que se concretize apenas na apresentação de uma versão diversa para os acontecimentos sem estar alicerçada em nada mais, designadamente, em um qualquer aspecto crítico com raízes no inquérito, também não satisfaz as exigências legais.
Relembra-se que o requerimento de abertura de instrução não é idêntico á contestação nem tem igual finalidade.
Em síntese, só mediante um requerimento em que se respeite os conteúdos e limites assinalados pela finalidade legal da instrução se poderá levar a cabo a discussão sobre a actividade do MP corporizada no seu despacho acusatório, ou seja, só assim se poderá realizar a actividade de comprovação judicial da dedução de acusação por parte do MP, ou seja, só assim serão respeitadas as finalidades legais da Instrução.
Ora, nos termos em que o arguido requereu a instrução, constata-se que o requerimento apresentado não tem um conteúdo que permita controlar a actividade do Ministério Público ou seja saber se a acusação foi ou não, “o fruto são de um pomar”.
Por meio deste requerimento não se consegue, nem se permite, demonstrar ou concluir, pelo desacerto da decisão de acusar. Quando muito pretende-se contestar os factos vertidos na acusação. Mas nunca poderá ser (ou ter aptidão para constituir) um requerimento idóneo à abertura da fase da instrução.
De facto, um requerimento com um conteúdo deste género é um requerimento que surge totalmente ao arrepio das finalidades legais da instrução, que está em contradição insuperável com as mesmas e, por isso, é imprestável para realizar a actividade típica e única da instrução.
E o mesmo vale para todos os requerimentos que se apresentem fundados apenas em versões diversas dos factos, em negações motivadas, em contestações, claras ou encapotadas, sem nunca olharem criticamente para dentro do inquérito.
Concluindo: Para poder ser o catalisador da fase da instrução, o requerimento apresentado pelo sujeito processual arguido tem que possuir um conteúdo que o comprometa decisiva e inexoravelmente com as finalidades legais da instrução.
Mas e quando assim não seja?
Antecipando, deverá o requerimento ser rejeitado.
Perante um requerimento que não contem os elementos legalmente exigíveis à realização das finalidades legais da instrução (tal como definidas/positivadas pelo Legislador) e que assim não pode endógena e inexoravelmente concretizar a garantia de defesa que a instrução, por sua vez, consubstancia, não deve ser admitido sob pena de irremediável contradição legal.
Não o fazer, isto é, admitir o requerimento e prosseguir por este caminho será dar mais razões às premonitórias palavras do Sr. Prof. Figueiredo Dias, palavras recentes, e que aqui me permito transcrever:
«Continuo todavia a prever o dia em que a instrução será eliminada como fase processual autónoma; (...). Uma tal eliminação será consequência, por uma parte, de o modelo preconizado pelo CPP para esta fase — como simples comprovação por um juiz de instrução da decisão do MP de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito — não ter podido ser até hoje cumprido pela praxis; antes ter sido frequentemente desvirtuado em direcção a um simulacro de julgamento, antecipado e provisório, inadmissível à luz dos princípios gerais e de um mínimo de eficiência, jurídica e socialmente exigível, do processo penal. Distorção que persistiu mesmo depois que a revisão de 1998 tentou, timidamente embora, atalhar a esta perversão. E sem que possa prever-se com fundamento, como também opinou Nuno Brandão, que as alterações agora introduzidas façam esperar que a situação se modifique.» (in DIAS, Jorge de Figueiredo, «Sobre a Revisão de 2007 do Código de Processo Penal Português», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 18, N.°’. 2 e 3, Abril-Setembro 2008, Coimbra Editora, pág. 376).
Assim, a apresentação de um requerimento para a abertura da instrução, por banda do arguido, cujo conteúdo esteja em contradição com as finalidades legais da instrução, não deve ser admitido por, muito justamente, não permitir a comprovação judicial da decisão de acusar, ou dito por outra forma, tudo o que a extravase ou que contrarie as finalidades da instrução não é instrução. E verdadeiro extraneu em relação a esta.
Esta derradeira afirmação entronca directamente com a problemática das causas de rejeição do requerimento para a abertura da instrução que o legislador definiu no artigo 287°, n.°3, do CPP, de entre elas, com o conceito de inadmissibilidade legal.
Prescreve o artigo 287°, n.º3, o seguinte:
«O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução
No que respeita à inadmissibilidade legal da instrução, que aqui releva apreciar, refira-se aos processos especiais, conforme refere o artº 286º, nº 3, do CPP.
Quando o exercício da acção penal se concretiza na forma de processo comum, o arguido, pode suscitar o controlo desse exercício ao juiz, o que fará mediante a apresentação do requerimento para a abertura da instrução, nos termos do artigo 287°, n.° 1, aI. a), e 2, do CPP.
Porém, quando tal requerimento se apresente, à margem de dúvida, construído de modo irrito para o fim (legal) a que se pode destinar (a não comprovação judicial da decisão de acusar), quando o mesmo não tenha aptidão intrínseca para despoletar e consubstanciar a actividade típica da instrução, não se vê como possa ou deva ser recebido.
Quando tal suceda, não se vê como seja possível considerar tal requerimento legalmente admissível para o desiderato que tem de encerrar sem, do mesmo passo, se esboroarem as finalidades legais da fase da instrução.
É indiscutível na jurisprudência, no que concerne ao requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo assistente, a relevância do conteúdo deste em decorrência da parte final do disposto no artigo 287°, n.°2, do CPP, constituindo causa de rejeição do mesmo, Justamente por inadmissibilidade legal, sempre e quando no concreto conteúdo desse requerimento o assistente não deduza a «acusação alternativa». E a possibilidade da prolação de um despacho de aperfeiçoamento está vedada por força da jurisprudência uniforme constante do Acórdão do Pleno das Secções Criminais do STJ de 12/05/2005, publicado no DR. 1 Série, de 4/11/2005.
Assim, o RAI apresentado pelo arguido nos termos em que foi apresentado não se mostra apto á realização das finalidades da instrução.
Ora, não faz qualquer sentido admitir um requerimento apresentado pelo arguido cujo conteúdo dê azo á prático de actos inúteis, que dê azo a um simulacro de julgamento, que ao fim permita tudo menos aquilo para que foi apresentado: a abertura de instrução com o objectivo de comprovar o “mal” fundado do despacho de acusação.
Assim, se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar á instrução e esta será legalmente inadmissível.
Temos para nós ser esta a única consequência compatível com a natureza do vício de fundo, de evidente ineptidão, de que padecerá tal requerimento.
Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase da instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto-responsabilização do sujeito processual arguido.
Quanto a tal temática, veja-se Acórdão da Relação do Porto (Proc. 1878/11.8TAMAI, cuja Relatora é a Exma Senhora Desembargadora Maria do Carmo Silva Dias, datado de 29.1.2014).
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, e sufragando a jurisprudência supra referida, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.ºs 2 e 3, quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padecer de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286º, nº 1 e 287°, n° 2 e 3 ambos do CPP - rejeito tal requerimento.
Custas pela arguida, com taxa de justiça que se fixa em duas UC.
Notifique.
Transitado em julgado, remeta os autos á distribuição

2.2. Delimitação do objeto do recurso
Constitui jurisprudência uniforme que os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso (cfr. artigos 403º, nº 1 e 412º, nºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal), sem prejuízo, da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como sejam as nulidades que não devam considerar-se sanadas (cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal).
Assim, no caso em análise, considerando os fundamentos do recurso a única questão suscitada e que há que decidir é a de saber se deve ser liminarmente rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido.
2.3. Do conhecimento do recurso
O Sr. Juiz a quo rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido quer porque a instrução é inadmissível, quer por o RAI padecer de ineptidão para os fins da instrução - atentas as disposições conjugadas dos arts. 286º, nº. 1 e 287º, nº. 2 e 3 ambos do CPP -.”
Sufraga o Sr. Juiz a quo o entendimento de que um RAI, com conteúdo daquele que o arguido apresenta, alegando não ter praticado os factos e que atuou em legítima defesa, surge totalmente ao arrepio das finalidades legais da instrução e está em contradição insuperável com as mesmas, não se mostrando apto à realização daquelas finalidades, concluindo, por isso, que deve ser rejeitado.
Por seu lado, o arguido/recorrente e o Ministério Público sustentam que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, expondo as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação proferida pelo Ministério Publico, que fundamentam que não lhe seja aplicada uma pena e que não seja sujeito a julgamento, observa os requisitos previstos no n.º 2, do artigo 287.º do CPP e não se verificando qualquer dos casos enunciados no n.º 3 do mesmo artigo, inexiste fundamento para a rejeição do RAI apresentado pelo arguido.
Vejamos:
Sobre e o âmbito da instrução dispõe o artigo 286º, nº. 1, do Código de Processo Penal – diploma legal a que pertencem todas as normas legais que venham a citar-se sem menção da respetiva origem –: “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”
E sobre o requerimento para abertura da instrução, estatui o artigo 287º, na parte que para o caso vertente releva:
1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação (…):
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente (…), tiverem deduzido acusação;
(…)
2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos, que através de uns e de outros, se espera provar (…).
3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
(…).
A fase processual da instrução, quando requerida pelo arguido, «visa um juízo sobre a acusação, de maneira a verificar, se se justifica (ou não) submeter o arguido a julgamento» - cfr. Rita Serrano, “A Irrecorribilidade do Despacho de Pronúncia”, in Prova Criminal e Direito de Defesa, Almedina, pág. 192 -, isto é, centrando-se, nesse caso, na discussão da acusação deduzida pelo Ministério Público, ou, no caso dos crimes particulares, pelo assistente, visa «apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º, nº. 1)» – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 750.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 754: «O requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido é constituído pelas seguintes partes:
a. a narração dos factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança;
b. as razões de direito de discordância relativamente à acusação
c. a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo (…)
d. e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.»
Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura da instrução são os previstos no nº. 3 do artigo 287º, a saber:
- A extemporaneidade do requerimento;
- A incompetência do juiz
- A inadmissibilidade legal da instrução.
Se os fundamentos da extemporaneidade e da incompetência do juiz não suscitam dificuldades de maior, estando regulados na lei (cfr. artigos 87º, nº. 1 e 32º), já o conceito da «inadmissibilidade legal da instrução», como bem se salienta no Acórdão da R.L. de 16/02/2016, in C.J., Ano 2016, T. II, págs. 126 a 127, tem sido objeto de larga elaboração, quer doutrinária, quer jurisprudencial.
O Conselheiro José Souto de Moura, na comunicação que efetuou, Nas Jornadas de Direito Processual Penal, organizadas em 1987, pelo Centro de Estudos Judiciários, e publicada na obra “O Novo Código de Processo Penal”, Almedina, 1995, pág. 119, respondendo à pergunta quando é que a lei não quer que haja instrução, após elencar os casos previstos na lei de inadmissibilidade da acusação [que na atual redação do C.P.P. têm correspondência no artigo 286º, nº. 1 e 287º, nºs. 1 e 2, sendo com referência a este último preceito legal e relativamente à instrução requerida pelo arguido, em caso de o arguido exorbitar os factos da acusação (al. a) do nº. 1 do artigo 287º)], escreve: «O n.º 2 do art. 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controle judicial da opção do M.ºP.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional, da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados.
(…) Quanto ao requerimento de instrução subscrito pelo arguido (…). A instrução serve o arguido, na medida em que este pretenda subtrair-se a uma imputação que o molesta. Logo, a uma acusação. Se o arguido quer a instrução por factos que não se ligam, nem instrumentalmente com os da acusação, obviamente que nenhum interesse terá em abordá-los, já que nunca o molestarão. Os factos que o arguido quer tratar na instrução serão, ou os concretamente presentes na acusação, ou os que, daí ausentes, de todo o modo neutralizam, o efeito jurídico-penal da acusação. O arguido contrariará então directamente a acusação, ou carreará factos que retiram aos da acusação a repercussão penal pretendida pelo M.º P,º.
Como já perspetivava o Conselheiro Souto de Moura e poderá verificar-se consultando a jurisprudência dos nossos tribunais, que se encontra publicada, referente à matéria, os casos de rejeição do requerimento de instrução, têm-se registado mais, estando em causa o requerimento do assistente, prendendo-se sobretudo, com a delimitação do campo factual que pode ser objeto da instrução, v.g., por falta de narração dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sendo aplicável o disposto no artigo 283º, nº. 3, al. b), do C.P.P., ou por nele se narrarem factos que não foram investigados no inquérito ou que não constituem crime (cfr. casos indicados pelo Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág. 750, anotação 1 e também pelos Conselheiros António Henriques Gaspar e outros, in Código de Processo Penal, Almedina, 2ª edição, pág. 962).
Enquadra-se nesta linha de orientação, a jurisprudência fixada, no Acórdão n.º 7/2005, do S.T.J., de 12/05/2005, publicado no D.R.-I Série, de 04/11/2005, no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, impondo-se, por conseguinte, a sua rejeição.
Relativamente ao requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, decidiu o Tribunal da Relação do Porto:
- em Acórdão de 04/02/2015, proferido no proc. nº. 681/13.5PBMAI.P1, acessível no endereço www.dgsi.pt - que vem citado pelo arguido/recorrente -, no sentido de que «Não deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do nº 3 do artigo 287º do Código de Processo Penal, um requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida em que esta se limita a apresentar uma versão dos factos diferente da que consta da acusação e indica testemunhas não inquiridas no inquérito.»; e
- em Acórdão de 25/06/2014, proferido no proc. 30/13.2PCPRT-A.P1, acessível no endereço www.dgsi.pt - que é citado pelo Ministério Público, na resposta ao recurso – no sentido de que «Respeita os requisitos legais o requerimento para abertura da instrução [RAI] apresentado pelo arguido em que apenas alega que não praticou os factos de que foi acusado pelo Ministério Público e arrola testemunha para serem inquiridas acerca disso.»
Revertendo ao caso dos autos, no requerimento de abertura da instrução, que apresentou e que consta a fls. 151 a 155 dos autos, o arguido, ora recorrente, nega os factos que lhe são imputados na acusação, em relação à ofendida Maria Idília Pereira Soares Gomes e quanto aos factos por que vem acusado em relação ao ofendido Luís Gomes, nega que o tenha agarrado pelo pescoço ou que tenha tentado desferir-lhe uma joelhada, alegando que apenas o empurrou e que o fez, no circunstancialismo que descreve, agindo em legitima defesa de terceiro(s).
Verifica-se, assim, que o arguido/recorrente, não se limita a negar a prática dos factos que lhe são imputados na acusação, narrando factos tendentes a infirmar o juízo indiciário que esteve na base da dedução da acusação pelo Ministério Público e a demonstrar que não estão verificados os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena, designadamente, pela existência, em relação à atuação que desenvolveu relativamente a Luís Gomes, de uma causa de exclusão da ilicitude, qual seja a atuação em legitima defesa de terceiro (artigos 31º, nº. 2, al. a) e 32º, ambos do C.P.), em ordem a que venha a ser proferida decisão de não pronúncia e, consequentemente, a que não seja submetido a julgamento.
O arguido/recorrente, indicou também, no requerimento de abertura da instrução que apresentou, os atos de instrução que pretende sejam realizados pelo JIC e os meios de prova que não foram considerados no inquérito.
Assim sendo, observando o requerimento de abertura da instrução, apresentado pelo arguido, as exigências previstas no artigo 287º, nº. 2, e considerando que, mediante os termos em que tal requerimento é formulado, se mostra possível alcançar a finalidade a instrução, ou seja, a comprovação judicial da decisão do Ministério Público de deduzir acusação contra o arguido, nos moldes em que o fez, forçoso é concluir que não pode subsistir o entendimento sustentado pelo Sr. Juiz a quo, no despacho recorrido, de que o R.A.I. de que se trata, não se mostra apto à realização das finalidades da instrução.
Nesta conformidade, não se estando perante um caso de «inadmissibilidade legal da instrução», não pode subsistir o despacho recorrido, impondo-se a sua revogação e substituição por outro, que admita o R.A.I., declarando aberta a instrução e seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Consequentemente, o recurso merece provimento.

3 – DISPOSITIVO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido E. J. e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, que admita o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, declarando aberta essa frase processual e seguindo-se os ulteriores termos do processo.

Sem tributação, por não ser devida, face à procedência do recurso (cfr. artigo 513º, nº. 1, do C.P.P., à contrario sensu).

Notifique.

Guimarães, 20 de fevereiro de 2017