Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
272/18.4T8VPA.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: PRIVAÇÃO DE USO
PRIVAÇÃO DA POSSIBILIDADE DE USO
QUANTIFICAÇÃO DO DANO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Sendo alegada uma privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, para apurar se existe dano importa analisar as circunstâncias inerentes à respectiva utilização, pois as indemnizações não são fixadas de modo automático e de forma abstracta, sem qualquer ligação à situação concreta, mas antes com base em factos que revelem a existência do dano e permitam a sua avaliação.

II- Não há dano autónomo susceptível de indemnização quando o titular no período de indisponibilidade do bem não se propunha aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades.

III- São configuráveis hipóteses em que isso se verifica, designadamente quando alguém deixa o seu veículo estacionado na rua e segue para o estrangeiro para passar férias e durante a sua ausência o veículo é danificado e reparado. Nesse caso, tal pessoa não sofreu um dano por privação do uso, pois, não tinha nem intenção nem possibilidade de utilizar o veículo naquele período.

IV- Provando-se a privação do uso e não apenas a privação da possibilidade de uso, coloca-se então a questão da avaliação do dano e, não se conseguindo fazer operar um critério susceptível de conduzir a uma quantificação objectiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação.

V- Na fixação do valor do dano segundo juízos de equidade, na falta de outros elementos, é admissível recorrer aos parâmetros que a jurisprudência tem considerado em situações algo semelhantes, pois a ponderação prudencial inerente à equidade também é sensível ao estabelecimento de critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – RELATÓRIO

1.1. X Transportes de Mercadorias, Lda., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Y – Companhia de Seguros, SA, pedindo que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 8.340,75 (oito mil, trezentos e quarenta e euros, e setenta e cinco cêntimos), acrescida dos respectivos juros de mora, contados desde a data da citação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou a verificação de um acidente de viação, ocorrido mediante culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na companhia de seguros Ré, que provocou estragos no seu veículo e implicou a respectiva imobilização durante 33 dias nas instalações da oficina reparadora, tendo a Autora ficado privada do uso do veículo e de fruir todas as utilidades que o mesmo lhe proporcionaria.
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A Ré contestou, admitindo a dinâmica do acidente descrito na petição inicial, referindo que pagou a reparação do semi-reboque da Autora e impugnando a matéria concernente ao dano da privação do uso.
Concluiu, propugnando pela improcedência da acção.
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1.2. Em audiência prévia, foi elaborado despacho-saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência final, proferiu-se sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento, e absolveu-a do demais peticionado.
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1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. A sentença de que se recorre incorre em erro de julgamento da matéria de facto, bem como incorre em erro de interpretação e aplicação do direito, revelando-se assim injusta e desproporcionada.
2. Foram inquiridas as seguintes testemunhas (com interesse para este recurso): S. S. (transcrição do minuto 00:04:30 a 00:06:10) e A. M. (Transcrição minuto 00:00:35 a 00:01:40): que evidenciaram o facto de se tratar de um veículo para transporte internacional e que esteve parado.
3. Salvo o devido respeito, considera o Recorrente que o facto não provado sob o número 17 (aliás, único facto não provado) foi incorretamente julgado, já que a prova carreada para os autos e em conjugação com o facto provado n.º 15, devidamente avaliada e ponderada de acordo com as regras da experiência comum, impunha que o mesmo fosse dado como provado.
4. Na apreciação crítica da prova, o Tribunal deve aduzir argumentos que permitam com razoável segurança credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir relevo (através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente!), o que não sucedeu no caso dos presentes autos.
5. Está suficientemente comprovada a matéria vertida alegada pela A., pelo que se impunha que o Tribunal aplicasse se o valor de paralisação acordado entre a ANTRAM e APS para um veículo de idêntica classe (serviço internacional) e desse como provado que o valor de aluguer diário de um veículo pesado de mercadorias e do respetivo semi-reboque é de 252,75€.
6. Deve a sentença se revogada e proferida outra que consagre o supra exposto, condenando a Ré no pagamento à A. da quantia de 6.318,75€, correspondente a 25 dias de paralisação à taxa diária de 252,75€, por ser a decisão que se impõe.
7. Acresce que, a privação de uso de um bem patrimonial constitui um ilícito, por impedir o proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade (direitos conferidos pelo artigo 1305.º do CC) e implica, por si, um dano que deve ser indemnizado.
8. Apesar de não ficar demonstrado o prejuízo efetivo da A. pela impossibilidade de utilização do veículo, tal não impede a fixação de indemnização, dada a possibilidade legal de recurso à equidade, que a lei permite.
9. E o acordo estabelecido entre a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguros serve como base de referência para fixação da indemnização pela privação do uso de veículo por recurso à equidade.
10. Na imposição normativa da fixação do quantum indemnizatório e na impossibilidade reconhecida de o determinar de modo preciso - com cautelas acrescidas prevenindo as insuficiências da prova e a solução que, por via dessas mesmas insuficiências, decorreria dos critérios gerais e abstratos da norma jurídica, ou seja, a absolvição por falta de prova do montante dos danos, apesar da inquestionabilidade da existência destes.
11. Por isso prescreve o nº 3 do art. 566º CC que “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados”; por outras palavras, se não for possível determinar o valor exato dos danos, o tribunal deve julgar segundo a equidade.
12. O julgamento segundo a equidade pressupõe uma atitude ética e um modo de decisão diferentes do julgamento segundo a lei; assim, enquanto este, por força da Seguradora ...dade e abstração típicas da norma jurídica, se caracteriza por uma postura de indiferença às particularidades concretas do caso a decidir e susceptíveis de lhe conferir uma especial configuração merecedora de consideração normativa, o julgamento baseado na equidade, ao invés, atende aos aspectos particulares do caso que o diferenciam e individualizam perante outros.
13. E quando o juiz valora equitativamente o dano, fá-lo no uso de um arbítrio discricionário, fixando discricionariamente a medida justa ressarcível; a equidade dirige e enforma essa discricionariedade.
14. Este quantum do dano a ressarcir não constitui um facto nem o resultado de um julgamento de facto; representa, antes, o resultado de um julgamento jurídico, logo, em função de critérios jurídicos coerentes com as exigências previstas no ordenamento jurídico relativamente ao ressarcimento; a certeza do montante exacto dos danos fixado por equidade não corresponde a um julgamento de facto mas sim a um julgamento de direito.
15. Assiste assim razão à A. no que respeita ao facto de a mesma peticionar o valor de 252,75€ por dia, em virtude de acordo ANTRAM ter sido estabelecido com a Associação Portuguesa de Seguros, e que o acidente ocorreu com um veículo pesado de mercadorias que se encontrava a realizar um transporte internacional, sendo que a Ré é a aqui responsável e é esta que se encontra abrangida por tal acordo.
16. E mesmo não sendo aplicável diretamente tal acordo, o mesmo sempre servirá, como elemento de referência para a fixação da indemnização na falta de outros elementos de facto mais concretos, mas que servem para a formação de um melhor juízo de equidade e de forma a afastar o mais possível qualquer arbitrariedade na fixação da indemnização.
17. Nos termos do acordo ANTRAM "Por paralisação entende-se o período de tempo de imobilização da viatura aguardando peritagem, o período de tempo em que se aguarda disponibilidade dos serviços de reparação na oficina e o período de tempo para reparação dos danos”.
18. O valor diário da imobilização previsto no acordo referido para 2015 era de 252,75€ (cfr. doc. 9 da petição inicial).
19. Independente da A. ser ou não membro da ANTRAM, a verdade é que esses valores foram fixados entre essa estrutura representativa de grande parte dos transportadores nacionais e a associação representativa das seguradoras que exercem a sua atividade seguradora em Portugal.
20. Os valores aí acordados não deixaram de ser montantes indemnizatórios considerados equilibrados, quer por parte da estrutura representativa das seguradoras, quer por parte da ANTRAM, que representa grande parte das empresas transportadoras com sede em Portugal.
21. Tendo, assim, em conta que a A. se dedica ao transporte de mercadorias em território nacional e internacional (cfr. declarações das testemunhas supra transcritos e facto provado n.º 15), o valor diário pela paralisação do semi-reboque, atentas as características deste, ascende a 252,7€, o que perfaz um montante indemnizatório global de 6.318,75€ - tendo em consideração que ficou provado que o veículo ficou imobilizado 25 dias (cfr. factos dados como provados sob os números 9 e 12).
22. Impõe-se, assim, revogar a sentença de que se recorre e substitui-la pela condenação da Ré a pagar à A. a quantia global de 6.318,75€, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação até integral pagamento.
23. A sentença proferida violou, entre outros, os artigos 607.º do CPC, 342.º, 376.º, 566.º e 1305.º do CC.
Termos em que, decidindo em conformidade, farão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a costumada JUSTIÇA!».
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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC.

Neste enquadramento, são questões a decidir:

i) Verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto, no que respeita ao ponto nº 17 dos factos não provados e se o mesmo deve ser dado como provado face aos elementos probatórios que a Recorrente especifica;
ii) Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto proposta pela Recorrente, saber se a sentença deve ser alterada, julgando a acção totalmente procedente. Para isso, importa saber se existe fundamento fáctico e jurídico para a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 6.318,75, a título de dano de privação do uso do veículo automóvel acidentado.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. No dia 1 de Junho de 2015, cerca das 08h30, na Auto-estrada A7 que liga Ribeira de Pena a Vila Pouca de Aguiar, ao Km 93, ocorreu um embate, no qual foram intervenientes o veículo pesado de mercadorias com a matrícula NO, atrelado de um semi-reboque de matrícula L, conduzidos por S. S., e o veículo ligeiro com a matrícula GF, propriedade de L. L. e conduzido pelo mesmo.
2. Ambos os veículos intervenientes circulavam no mesmo sentido de Ribeira de Pena para Vila Pouca de Aguiar, sendo que o veículo com a matrícula NO, atrelado do semi-reboque, circulava naquele sentido com destino a Barcelona, transportando uma encomenda.
3. No local, atento o sentido de marcha das viaturas intervenientes (Ribeira de Pena/Vila Pouca), a via configura uma recta com cerca de 500 metros, com duas faixas de rodagem no mesmo sentido.
4. Era dia, estava bom tempo, o piso era betuminoso, estava seco, tinha boa aderência e havia boa visibilidade.
5. No local, a via, tem cerca de 12 metros de largura, é uma auto-estrada e apresenta duas hemi-faixas de rodagem, no mesmo sentido de Vila Pouca, separadas por linha descontínua.
6. Ora, o veículo com a matrícula GF, que circulava a, pelo menos, 130 Km/hora, devido ao sol, não se apercebeu do veículo com a matrícula NO, que seguia imediatamente à sua frente a uma velocidade de cerca de 50/60 Km/hora, e embateu na traseira do reboque que ia atrelado ao veículo NO, introduzindo a frente do veículo com a matrícula GF por baixo daquele reboque L, tendo danificado as seguintes peças: portas, pára-choques, faróis e pneu estabilizador do reboque.
7. No circunstancialismo referenciado em 6), o condutor do veículo com a matrícula GF não tomou atenção aos veículos que seguiam imediatamente à sua frente, nem utilizou a faixa de rodagem da esquerda para proceder a uma ultrapassagem.
8. Em consequência do indicado em 6) e 7), a Ré declarou assumir a responsabilidade pela reparação dos danos provocados no semi-reboque de matrícula L junto da W Seguros, SA, com a qual a Autora subscrevera uma apólice de responsabilidade civil referente à circulação do veículo pesado de mercadorias com a matrícula NO e do semi-reboque de matrícula L.
9. No dia 08.06.2015, o sobredito reboque foi entregue na empresa ...capotas para reparação do descrito em 6).
10. Em 15.06.2015, a W Seguros, SA, efectuou uma peritagem ao semi-reboque L com a referência “2015 311 41679”, a qual ocorreu na oficina da empresa ...capotas.
11. Em 30.06.2015, a W Seguros, SA, enviou um e-mail para a ...capotas, indicando como assunto “2015 311 41679” e consignando, designadamente, que “Reportamo-nos à intervenção pericial realizada na vossa oficina ao veículo acima mencionado para informar que a peritagem esta definitiva. Por conseguinte, solicitamos que procedam à sua reparação (…)”.
12. Após, a ...capotas procedeu à reparação do semi-reboque de matrícula L, sendo que o mesmo foi entregue à Autora no dia 03.07.2015.
13. A Ré pagou à W Seguros a quantia de € 5.818,30 (cinco mil, oitocentos e dezoito euros e trinta cêntimos) com referência à reparação do semi-reboque L.
14. A propriedade do veículo pesado de mercadorias com a matrícula NO e do semi-reboque de matrícula L afigura-se registada em nome da Autora.
15. O semi-reboque de matrícula L era utilizado pela Autora no exercício da sua actividade comercial de transportes rodoviários nacionais e internacionais de mercadorias e no dia do sinistro encontrava-se a fazer um transporte de mercadorias de Portugal para Barcelona.
16. À data do embate referenciado em 1), a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo com a matrícula GF afigura-se transferida para a Ré nos termos da Apólice nº 045/11414874.
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2.1.1. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou não provado:

17. O valor do aluguer diário de um veículo pesado de mercadorias e do respectivo semi-reboque é de € 252,75 (duzentos e cinquenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos).
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.1.1. Em sede de recurso, a Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (2), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
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Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que a Recorrente indica o concreto ponto de facto que considera incorrectamente julgado, especifica os meios probatórios que imporiam decisão diversa e menciona a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre a questão de facto controvertida. No que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, procede à indicação dos elementos que permitem minimamente a sua identificação e localização.
Por isso, podemos concluir que a Recorrente cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC e, por outro lado, tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento e dispondo dos elementos que serviram de base à decisão sobre os factos em causa, esta Relação pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
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2.2.1.2. Por referência às suas conclusões (v., além do mais, a conclusão 3ª), extrai-se que a Recorrente considera incorrectamente julgado o ponto nº 17 da factualidade não provada.
Quanto ao resultado da impugnação, a Recorrente pretende que tal facto seja considerado provado.
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2.2.1.3. Importa verificar se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde à prova realmente obtida ou, ao invés, se a mesma se apresenta de molde a alterar a factualidade impugnada, nos termos invocados pela Recorrente.
Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação dos depoimentos das testemunhas S. S. (motorista que trabalhou para a Autora desde cerca de 2012 – referiu que à data do acidente já era empregado da mesma há 3 anos – até Fevereiro de 2018 e que reingressou nos quadros da empresa em Setembro de 2018, na qual se mantém; conduzia o veículo sinistrado no momento do acidente), A. M. (funcionária da Autora desde o ano 2000, exercendo funções administrativas no escritório da sua entidade patronal), V. S (sócio-gerente da sociedade ...capotas, onde o veículo esteve imobilizado e foi reparado).
Para melhor apreensão da dinâmica probatória relativa à questão factual objecto da impugnação, foram ouvidas as alegações orais dos Advogados das partes.
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2.2.1.4. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos termos que a seguir se transcrevem, na parte relevante para a apreciação da impugnação:

«A formação da convicção do tribunal fundou-se na análise crítica e aglutinada das declarações das testemunhas S. S., A. M., V. S, em concatenação com a valoração da participação de fls. 9, do DUA de fls. 10, dos e-mails de fls. 11 e 23, das missivas de fls. 11-verso e 12-verso a 13, do relatório de fls. 12/22-verso, da declaração de fls. 14, da informação de fls. 14-verso e da apólice de fls. 22, sopesados à luz das regras probatórias tipificadas e do princípio da livre apreciação, em sede de um iter objectivamente cognoscitivo e dialecticamente valorativo.
No que se refere à testemunha S. S., motorista da Autora, efectivou declarações subjectivamente fiáveis e objectivamente consistentes, descrevendo com substrato fáctico o ocorrido no dia 1 de Junho de 2015, v.g., explicitando congruentemente que conduzia o veículo com a matrícula NO, atrelado de um semi-reboque de matrícula L1, na Autoestrada A7 que liga Ribeira de Pena a Vila Pouca de Aguiar, ao Km 93, quando o veículo ligeiro com a matrícula GF embateu na traseira do reboque que ia atrelado ao veículo NO, introduzindo frente do veículo com a GF por baixo daquele reboque L.
Concomitantemente, a testemunha referenciou com plausibilidade contextual que o semi-reboque ficou danificado nas portas, pára-choques, faróis e pneu estabilizador, sendo que foi solicitada uma reparação sumária no local para permitir que o veículo efectivasse o transporte que estava a executar, a qual demorou 3/4 horas.
Ademais, a testemunha sublinhou com verosimilhança imanente que, após a realização da antedita reparação “provisória”, prosseguiu a viagem com destino a Barcelona, o que se compagina com o facto do veículo ter sido entregue na empresa ...Capotas tão-só no dia 8.6.2015, factologia que se antolhou sustentável em função da tipologia dos danos e do interesse económico da Autora inerente à execução do serviço de transporte, sendo que não foram produzidas contraprovas.
No que se atem à testemunha V. S, sócio-gerente da sociedade ...Capotas, positivou um depoimento eivado de coerência intrínseca, razão de ciência e de lastro fundamentante, enunciando com entorno fáctico o circunstancialismo em que, no dia 8.6.2015, o semi-reboque de matrícula L foi entregue na oficina da empresa do depoente para reparação, aflorando o contexto em que a W determinou a realização de uma peritagem ao semi-reboque e explicando com razoabilidade subjacente que a dilação na execução do serviço de reparação decorreu da necessidade de aguardar pela exigível solicitação da W, à qual o mesmo foi facturado, o que se coaduna com o teor do e-mail de fls. 11 e com o conteúdo da declaração de fls. 14, sendo que não foram produzidas contraprovas.
A testemunha A. M., funcionário, contextualizou com mediana sustentabilidade quer a utilização do semi-reboque de matrícula L no exercício da atividade comercial de transportes rodoviários nacionais e internacionais de mercadorias, sendo que enunciou com verosimilhança imanente que, no dia do embate, encontrava-se a fazer um transporte de mercadorias de Portugal para Barcelona, motivo que determinou a efectivação de uma reparação sumária no local, permitindo, assim, a conclusão do serviço.
Ademais, a testemunha explicitou fundado grau probabilístico que, quando um veículo se desloca para Espanha, realiza no local de destino vários serviços de transporte, o que justifica o facto do sobredito semi-reboque apenas ter sido entregue para reparação em 8.6.2015.
(…)
A informação de fls. 14-verso antolha-se manifestamente anódina, porquanto contempla tão-só matéria concernente ao alegadamente acordado entre a Antram e as seguradoras, sem qualquer efeito directo ou reflexo na factualidade nuclear sob julgamento, sendo que incumbia à Autora alegar e provar os prejuízos advenientes da paralisação do semi-reboque.
(…)
Relativamente, ao facto 17), ante a inocuidade da informação de fls. 14-verso e à míngua de outras provas, naufragou de forma clara a comprovação do mesmo».
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2.2.1.5. Do ponto nº 17 dos factos não provados

O Tribunal a quo deu como não demonstrado que o valor do aluguer diário de um veículo pesado de mercadorias e do respectivo semi-reboque seja de € 252,75 (duzentos e cinquenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos).
A Recorrente pretende que tal facto seja considerado provado, com os fundamentos que sintetiza nas conclusões 2ª, 3ª e 5ª das suas alegações, ou seja, que os depoimentos das testemunhas «S. S. (transcrição do minuto 00:04:30 a 00:06:10) e A. M. (transcrição minuto 00:00:35 a 00:01:40) (…) evidenciaram o facto de se tratar de um veículo para transporte internacional e que esteve parado», que «o facto não provado sob o número 17 (…) foi incorretamente julgado, já que a prova carreada para os autos e em conjugação com o facto provado n.º 15, devidamente avaliada e ponderada de acordo com as regras da experiência comum, impunha que o mesmo fosse dado como provado» e que «se impunha que o Tribunal aplicasse se o valor de paralisação acordado entre a ANTRAM e APS para um veículo de idêntica classe (serviço internacional) e desse como provado que o valor de aluguer diário de um veículo pesado de mercadorias e do respetivo semi-reboque é de 252,75€».

Revista toda a prova produzida, é manifesto que a mesma não permite dar como provado o facto que a Recorrente considera incorrectamente provado.
Em primeiro lugar, percorrida a gravação de toda a prova testemunhal, verifica-se que as testemunhas não foram confrontadas com a questão de saber qual era o valor do aluguer diário de um veículo pesado de mercadorias e do respectivo semi-reboque. Trata-se de matéria que nem sequer foi abordada pelas testemunhas, uma vez que nada lhes foi perguntado a esse respeito, seja pelos Advogados ou pelo Juiz.
Em todo o caso, sempre se ficou a saber que o semi-reboque era utilizado tanto em serviço internacional como nacional (v. depoimento de S. S., que era o motorista do veículo), que o tractor não sofreu qualquer dano em consequência do acidente e que apenas o semi-reboque necessitou de reparação e ficou imobilizado a partir do dia 08.06.2015, pois, no dia do acidente após uma reparação provisória feita no local, continuou a sua viagem para Barcelona, de onde regressou no dia 08.06.2015.

Em segundo lugar, analisada a prova documental, constatamos que não há um único documento que verse sobre aluguer de veículos, sejam eles quais forem. Directamente, com base num documento dos autos, não se obtém substrato material para dar como provado o ponto nº 17 da decisão de facto.

Em terceiro lugar, o único documento que alude a um valor de “€ 252,75” é o de fls. 14 verso. Trata-se de uma cópia da página 8 da “Revista Antram”, de “Março/Abril 2013”, onde no seu terço inferior, sob a epígrafe “Acordo de Paralisação ANTRAM-APS com novas tarifas”, se diz que «a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) chegaram a acordo quanto aos valores de paralisação a vigorar para o ano de 2013, que respeitarão a tabela seguinte», indicando-se depois que para a “categoria” de “Serviço Internacional” o valor é de “€ 252,75/dia”.
Tal documento não versa sobre aluguer de veículos, mas sim sobre “valores de paralisação”, que são conceitos distintos, sendo certo que não consta dos autos o referido “acordo de paralisação”.
Ninguém, com base exclusivamente no apontado documento, nos exactos termos em que o mesmo consta dos autos, consegue afirmar qual era em Junho e Julho de 2015 o valor do aluguer de um veículo e de um semi-reboque iguais aos da Autora.

Em suma, a prova produzida não permite dar como provado que o valor do aluguer diário de um veículo pesado de mercadorias e do respectivo semi-reboque seja de € 252,75. Pura e simplesmente, ignora-se qual seja esse valor.
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2.2.2. Do valor da indemnização

2.2.2.1. Do dano de privação do uso

Tendo a Autora formulado pedido de indemnização de € 8.340,75, correspondente ao prejuízo que alegou ter sofrido com a paralisação do veículo entre 01.06.2015 e 03.07.2015, ou seja, durante 33 dias, à razão diária de € 252,75, a sentença recorrida arbitrou-lhe a indemnização global de € 1.500,00, com base no montante diário de € 60,00 no período de paralisação que considerou provado, de 08.06.2015 a 02.07.2015 (25 dias).
A Recorrente considera insuficiente tal montante indemnizatório e pretende que o mesmo seja fixado em € 6.318,75, correspondente a 25 dias de paralisação à taxa diária de 252,75€.

Nas últimas três décadas a questão da indemnização da privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, tem sido objecto de acesa discussão na doutrina e na jurisprudência, com múltiplas teses e correntes, tributária da progressiva autonomização de tal dano (3). Na jurisprudência, algumas das anteriores (sub)correntes acabaram por ser abandonadas ou ultrapassadas, cingindo-se actualmente a três principais, sendo que a terceira que aqui se aponta só esparsamente se vê defendida:

a) A privação do uso de um veículo gera obrigação autónoma de indemnizar, independentemente da prova de uma utilização quotidiana do veículo, ainda que com recurso à equidade e ponderação das precisas circunstâncias que rodeiam cada situação (4);
b) A mera privação do uso do veículo é insuficiente para gerar a obrigação de indemnizar, devendo ser feita prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à sua utilização, embora sem exigir a prova de danos efectivos e concretos (5);
c) Para que a privação seja ressarcível terá de fazer-se prova do dano concreto e efectivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem (6).

Em resumo, para a primeira corrente basta a demonstração da privação do uso, para a segunda, além dessa privação, tem de demonstrar-se um propósito real de o lesado proceder à utilização do bem, enquanto a terceira não dispensa a prova de concretos prejuízos de ordem patrimonial.
Embora na sua formulação teórica sejam bem distintas entre si, na respectiva aplicação prática as duas primeiras acabam por se confundir na Seguradora ...dade das situações, pois, sempre que existe uma utilização quotidiana tendem ambas a considerar que existe dano, sendo a quantificação da respectiva indemnização feita com base em critérios norteados pela equidade.
Pela nossa parte, a apreciação da ressarcibilidade nunca pode ser dissociada da análise das circunstâncias que rodeiam a privação do uso, sendo de afastar teses que defendam a fixação da indemnização de modo automático e de forma abstracta, sem qualquer ligação à situação concreta. Basta pensar na situação de alguém que deixa o veículo estacionado na rua e segue para o estrangeiro para passar férias e durante a sua ausência o veículo é danificado e reparado. Como é evidente, tal pessoa não sofreu um dano por privação do uso, pois, não tinha nem intenção nem possibilidade de utilizar o veículo naquele período. Vários outros exemplos se poderiam apontar de situações em que o titular do bem, apesar da danificação deste, não sofre qualquer dano autónomo de privação do uso. No fundo, não há dano autónomo susceptível de indemnização quando o titular no período de indisponibilidade do bem não se propunha aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades.
Não basta o tolher da mera faculdade abstracta de utilização, pois, para existir dano ressarcível, tem de se verificar uma concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo do bem. Portanto, a privação da possibilidade de uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano, o qual só se concretiza, ou seja, só passa a existir enquanto causa da obrigação de indemnizar, quando se apuram as privações concretas das vantagens que a coisa proporcionaria e que se frustraram.
Como bem se sintetiza no acórdão da Relação do Porto de 08.10.2018 (7), uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente com aquela, será a privação da possibilidade de uso. Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo digno de ser ressarcido, se realmente a pretender usar e utilizar caso não ocorresse a impossibilidade de dela dispor. Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela um dano patrimonial indemnizável.
Por conseguinte, a privação da possibilidade de uso é apenas uma fonte possível de dano, mas não já em si um dano (8). A privação da possibilidade de uso só constitui dano ressarcível mediante a referenciação às concretas e efectivas utilidades atingidas e cuja fruição se frustrou, pois, só assim se concretizará tal dano em termos de susceptibilidade da medição através da teoria da diferença (9).
Não se pode perder de vista que, em consonância com as regras ou princípios que se retiram do disposto nos artigos 483º, nº 1, 562º, 563 e 564º do Código Civil, constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica. Sem dano, em qualquer uma das suas vertentes, não há responsabilidade civil. E não existem danos abstractos ressarcíveis: todos os danos são concretos. É que o dano não é um evento abstracto ou virtual sem exteriorização prática. O dano patrimonial consubstancia sempre um resultado negativo na esfera jurídica do lesado em consequência do evento lesivo: se não fosse a lesão o lesado estaria numa situação melhor, ou porque os seus bens ou direitos não teriam sofrido um prejuízo ou porque não obteve os benefícios com que legitimamente podia contar. Se o evento lesivo gera no património do lesado uma desvantagem susceptível de avaliação pecuniária então há dano patrimonial juridicamente relevante.
Assim sendo, o raciocínio que preside ao apuramento da obrigação de indemnizar desdobra-se em duas operações: na primeira verifica-se a existência de privação do uso nos termos atrás expostos e na segunda procede-se à quantificação da indemnização a apurar com base na teoria da diferença consagrada no artigo 562º do Código Civil.
Para se concluir que ocorreu privação do uso do bem, basta que resulte dos autos que o titular do correspondente direito o pretendia utilizar ou que normalmente o usaria, o que pode perfeitamente ser retirado através de presunções naturais assentes na factualidade provada.
Já quanto à quantificação da indemnização, o lesado não necessita de provar directa e concretamente prejuízos efectivos, designadamente um acréscimo de despesa ou a frustração de um rendimento com o qual legitimamente contava. Aliás, estando concretamente demonstrados danos emergentes ou lucros cessantes nem sequer se precisa de recorrer à autonomização do dano de privação do uso.
O problema só se coloca devido às circunstâncias que caracterizam normalmente as situações de privação do uso, em que é patente a dificuldade de prova de alguns factos sobre a concreta utilização que iria ser dada ao veículo e quais as actividades ou acções que deixaram de ser praticadas por não se poder dispor de automóvel. Por exemplo, estando assente a utilização familiar de um automóvel, há sempre um conjunto de actividades que se desenvolvem sem planeamento antecipado ou que decorrem fruto de impulso ou de circunstâncias conjunturais, como sejam os passeios e outras deslocações para actividades de lazer, as visitas a familiares e amigos, entre muitas outras. Já no plano da utilização profissional ou comercial de uma viatura, por exemplo, tratando-se de um veículo pesado de passageiros, é difícil, se não impossível, saber exactamente quantas pessoas teriam recorrido ao transporte (por exemplo, através da compra de bilhete), para que destinos, que despesas teriam sido realizadas nesses serviços, que despesas seriam feitas com combustíveis e outros imponderáveis vários; se for um veículo de transporte de mercadorias, também dificilmente se consegue apurar em pormenor todos os serviços que deixaram de ser feitos.
Por isso, na falta de elementos concretos e detalhados sobre o prejuízo causado, o valor da indemnização dever ser fixado com recurso à equidade tendo por base algumas informações de carácter patrimonial. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011 (10), «a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC».
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2.2.2.2. Do cálculo da indemnização com base na equidade

Demonstrado o dano adveniente da privação do uso do veículo, na falta de quantificação objectiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação.
Apesar das múltiplas referências do Código Civil à equidade, este não nos fornece o respectivo conceito. O que deve entender-se por “equidade”? O conceito de equidade começou a ser tratado na Grécia antiga, no âmbito da filosofia (11). Era aí reconhecida como epieikeia. Representava a ideia de adaptação do Direito ao caso concreto.
Ainda hoje é essa a ideia dominante quando se fala de equidade, mas agora concretizada na aplicação da justiça conforme as circunstâncias específicas de cada caso concreto, enquanto forma de resolução de um litígio.
Conforme referiam Pires de Lima e Antunes Varela (12), a propósito do artigo 4º do Código Civil, «o que passa a ter força especial, são as razões de conveniência, de oportunidade e principalmente de justiça concreta em que a equidade se funda. E o que fundamentalmente interessa é a ideia de que o julgador não está nestes casos subordinado aos critérios normativos fixados na lei».
Sendo assim, no âmbito da fixação de uma indemnização por danos, julgar com equidade envolve, num primeiro momento, a procura de elementos relevantes em termos de caracterização do caso a decidir, suprindo, quando necessário as insuficiências da intervenção das partes, para, num segundo momento, tendo em conta as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida, encontrar uma solução adequada ao caso concreto que exprima a ideia de realização efectiva da justiça.
A formulação de tal juízo de equidade, alicerçado, não na aplicação de um critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, é, mais do que uma questão de direito, uma questão de facto. Trata-se de emitir um juízo prudencial e casuístico, o qual só se torna verdadeiramente numa questão de direito se não estiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma do artigo 566º, nº 3, do Código Civil.

Por isso, pergunta-se: será que o juízo formulado pela primeira instância, ao fixar o valor indemnizatório arbitrado à Autora é injusto ou inadequado às particularidades do caso concreto?

Na sentença, o referido juízo foi formulado nestes termos: «Na situação sub judice, assentou-se como provado que o semi-reboque de matrícula L era utilizado pela Autora no exercício da sua atividade comercial de transportes rodoviários nacionais e internacionais de mercadorias e no dia do sinistro encontrava-se a fazer um transporte de mercadorias de Portugal para Barcelona.
Ademais, verificou-se que o semi-reboque foi entregue para reparação em 8.6.2015, a peritagem foi realizada em 15.6.2015, em 30.6.2015 foi ordenada a reparação pela Seguradora ..., e apenas em 3.7.2015 a Autora reaveu o veículo.
Em decorrência, conclui-se que, entre os dias 8.6.2015 e 2.7.2015, a Autora se afigurou privada do semi-reboque, factologia que consubstancia um dano patrimonial de privação do uso passível de ser ressarcido, sendo que existe um nexo de adequação jurídica entre o embate ocorrido e a produção desta lesão.
Postulando-se a quantificação deste dano, inexiste a quantificação dos prejuízos concretos sofridos pela Autora, pelo que, inviabilizada a averiguação do valor exacto do dano de privação de uso do semi-reboque, postula-se o julgamento equitativo do tribunal nos termos do art.º 566.º/3, do Código Civil (…)
Destarte, in casu, aquilatando-se a afectação do veículo à actividade profissional da Autora e o número de dias da privação, à luz de critérios de equidade, afigura-se adequado e proporcional a fixação de uma compensação de 60,00€/dia, computando-se, assim, o valor global de 1.500,00€, postulando-se a condenação da Ré no seu pagamento e decaindo o demais impetrado pela Autora».
Quer dizer, o Tribunal, para formular o referido juízo com base na equidade, considerou que o semi-reboque sinistrado era utilizado pela Autora no exercício da actividade comercial de transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias e que aquele veículo esteve imobilizado durante 25 dias.
A Autora não põe em causa o relevo dos apontados elementos factuais, mas apenas a consideração do valor diário de € 60,00 [€ 1.500,00 (€ 60,00 x 25 dias)].
Em vez de € 60,00 por dia preconiza € 252,75.
No seu entender, para fixação da indemnização por recurso à equidade, deve ter-se como base de referência o acordo estabelecido entre a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores, que, segundo diz, previa em 2015 um valor diário de € 252,75 para a paralisação de um veículo como o da Autora.

Sobre esse concreto ponto, constata-se, em primeiro lugar, que a Autora não demonstrou nos autos os termos do alegado acordo entre a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores.
A Autora limitou-se a juntar aos autos uma cópia da página 8 da “Revista Antram”, de “Março/Abril 2013”, onde no seu terço inferior, sob a epígrafe “Acordo de Paralisação ANTRAM-APS com novas tarifas”, se diz que «a ANTRAM e a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) chegaram a acordo quanto aos valores de paralisação a vigorar para o ano de 2013, que respeitarão a tabela seguinte», indicando-se depois que para a “categoria” de “Serviço Internacional” o valor é de “€ 252,75/dia”.
Trata-se de uma mera informação prestada, numa revista, pela ANTRAM aos seus associados sobre o facto de ter chegado a acordo com a Associação Portuguesa de Seguradores.
Desconhecem-se quais os termos desse acordo e quaisquer elementos complementares susceptíveis de permitir a sua interpretação e fixação do seu sentido.

Em segundo lugar, a Autora não demonstrou ser associada da ANTRAM, caso em que o acordo vigente ao tempo do acidente lhe seria directamente aplicável.

Em terceiro lugar, o referido anúncio ou informação refere-se a um acordo referente ao ano de 2013, quando aqui estão em causa factos ocorridos em Junho e Julho de 2015. Nada nos permite afirmar, por não estar demonstrado nos autos, que aquele anunciado acordo de 2013 estivessem em vigor em 2015. Mesmo sendo para servir como mera referência, é exigível que as referências a partir das quais se constrói o juízo de equidade sejam exactas.

Em quarto lugar, sendo certo que para nós um tal acordo, desde que demonstrado nos autos depois de sujeito ao devido contraditório, seria relevante para a fixação da indemnização por privação do uso, era necessário conhecê-lo em toda a sua extensão, pois só assim se conseguiria alcançar a justiça do caso concreto. Mesmo dando de barato que o anunciado acordo de 2013 estava em vigor em 2015, sempre importaria saber se no período de paralisação só contabilizava os dias úteis, se os valores diários inerentes ao serviço internacional tinham diferenciação em função do peso do semi-reboque, etc.
É que decidir com recurso à equidade não é considerar elementos cujos contornos e enquadramento se desconhecem. Isso já seria uma justiça discricionária, em que tanto faz que seja “mais” como “menos”.
Depois, se mais não houvesse, repugna-nos decidir algo com base num anúncio, que redundaria no mesmo que fixar o valor de um imóvel apenas a partir da sua anunciada venda numa publicação – jornal ou plataforma de internet.

Tudo isto para dizer que Autora não desenvolveu qualquer esforço probatório no sentido de demonstrar a existência de um acordo para o ano de 2015 e quais os seus termos relevantes para servirem de referência à fixação da indemnização com recurso à equidade.
Tal demonstração estava perfeitamente ao alcance da Autora, pelo não há qualquer justificação para ser considerado como referência o valor de € 252,75 por cada dia de privação do uso do veículo.
Mas se não pode ser considerado tal valor, algum tem de ser levado em conta, pois é para nós indiscutível que a Autora utilizava o veículo em transportes nacionais e internacionais, sendo até de destacar que estava a realizar um transporte para Barcelona quando ocorreu o acidente de viação. Também nenhuma dúvida existe de que o veículo esteve imobilizado, até findar a reparação, durante 25 dias.
À míngua de quaisquer outros elementos, temos que nos socorrer dos parâmetros que a jurisprudência tem fixado em situações algo semelhantes, pois a ponderação prudencial inerente à equidade também é sensível ao estabelecimento de critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
Se no que respeita aos automóveis de uso particular já hoje não se fixam indemnizações por privação do uso inferiores a € 10,00 (13) por dia de paralisação, no que respeita aos veículos de uso profissional, as indemnizações são substancialmente superiores. No caso de veículos pesados de transporte nacional e internacional as indemnizações não são inferiores a € 100,00 por cada dia de paralisação.
Como exemplo paradigmático e merecedor de ser seguido como referência, encontramos o acórdão da Relação de Coimbra de 06.02.2018, relatado por Falcão de Magalhães, proferido no processo 189/16.7T8CDN.C1, que arbitrou pela paralisação diária de um veículo pesado de mercadorias, que realizava transportes nacionais e internacionais, o valor de € 100,00 por cada dia útil de imobilização, sendo certo que se refere precisamente a factos ocorridos no ano de 2015, tal como sucede no caso sub judice.

No caso dos autos, o veículo foi entregue para reparação no dia 08.06.2015 e veio a ser entregue à Autora, depois de reparado, em 03.07.2015. Esse período de 25 dias seguidos corresponde a 18 (dezoito) dias úteis.
Portanto, a indemnização global deve ser fixada em € 1.800,00 (mil e oitocentos euros) e não apenas em € 1.500,00.
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2.3. Sumário

1 – Sendo alegada uma privação do uso de um veículo, decorrente da sua imobilização em consequência de acidente de viação, para apurar se existe dano importa analisar as circunstâncias inerentes à respectiva utilização, pois as indemnizações não são fixadas de modo automático e de forma abstracta, sem qualquer ligação à situação concreta, mas antes com base em factos que revelem a existência do dano e permitam a sua avaliação.
2 – Não há dano autónomo susceptível de indemnização quando o titular no período de indisponibilidade do bem não se propunha aproveitar das respectivas vantagens ou utilidades.
3 - São configuráveis hipóteses em que isso se verifica, designadamente quando alguém deixa o seu veículo estacionado na rua e segue para o estrangeiro para passar férias e durante a sua ausência o veículo é danificado e reparado. Nesse caso, tal pessoa não sofreu um dano por privação do uso, pois, não tinha nem intenção nem possibilidade de utilizar o veículo naquele período.
4 – Provando-se a privação do uso e não apenas a privação da possibilidade de uso, coloca-se então a questão da avaliação do dano e, não se conseguindo fazer operar um critério susceptível de conduzir a uma quantificação objectiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação.
5 – Na fixação do valor do dano segundo juízos de equidade, na falta de outros elementos, é admissível recorrer aos parâmetros que a jurisprudência tem considerado em situações algo semelhantes, pois a ponderação prudencial inerente à equidade também é sensível ao estabelecimento de critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, concedendo parcial provimento ao recurso, revoga-se a sentença na parte em que condenou a Ré apenas no pagamento da quantia de € 1.500,00, acrescida de juros, e, na parcial procedência da acção, absolvendo-a do restante, condena-se agora a Ré a pagar à Autora a indemnização de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação e até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento.
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Guimarães, 27.02.2020
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 168 e 169.
3. A autonomização do dano não tem aqui o sentido de criação de um tertium genus, relativamente aos danos emergentes e aos lucros cessantes, que têm expressão legal no artigo 564º, nº 1, do Código Civil. Face ao nosso direito positivo tal tertium genus não existe. Um dano só é susceptível de ser enquadrado nos danos emergentes ou nos lucros cessantes. A autonomização da questão do dano de privação do uso emerge fundamentalmente da dificuldade de avaliação de tal dano, para a qual o sistema jurídico contém solução. É um problema conceptual que conduz à criação de teorias e correntes artificiais.
4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2018 (Abrantes Geraldes), no processo 176/13.7T2AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os outros que se citarem de ora em diante. No mesmo sentido, os acórdãos do STJ de 07.02.2008 (Sousa Leite), na revista 4505/07 da 6ª Secção (que pode também ser consultado na Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90), e de 08.05.2013 (Maria dos Prazeres Beleza), no processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1.
5. Acórdão do de 03 de Maio de 2011 (Nuno Cameira), no processo 2618/08.06TBOVR.P1. V. ainda os acórdãos do STJ de 09.12.2008 (Moreira Alves) e de 09.07.2015 (Fernanda Isabel Pereira).
6. Esta é a posição que era considerada tradicional, mas que agora está em franco declínio.
7. Relator Jorge Seabra, processo 4031/15.8T8MTS.P1.
8. Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, Almedina, 2008, págs. 594-596 e 591.
9. Acórdão do STJ de 03.10.2013.
10. Proferido no processo nº 2618/08.06TBOVR.P1 – relator Nuno Cameira, já atrás citado na nota 4.
11. V. a Ética de Aristóteles (Ética a Nicómaco).
12. Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 54.
13. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Março de 2010, no processo n.º 1247/07.4TJVNF, o valor considerado foi de € 10,00 diários; no acórdão da Relação do Porto de 7 de Setembro de 2010, no processo n.º 905/08.0TBPFR, considerou-se também o valor de € 10,00 por dia de paralisação; o mesmo valor foi fixado no acórdão da Relação do Porto de 8 de Setembro de 2014 (Alberto Ruço). Já a acórdão da Relação do Porto de 08.10.2018, atrás citado, proferido no processo 4031/15.8T8MTS.P1 (Jorge Seabra) considerou o valor diário de € 15,00.