Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
134/16.0GAVF.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÂMBITO
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A impugnação da matéria de facto dirige-se a sindicar o juízo probatório feito pela primeira instância, expresso na decisão sobre os factos provados e não provados, cabendo ao tribunal da relação confrontar esse juízo com a sua própria convicção.

II - Daí que não possa abranger factos que, no entender do recorrente, tenham resultado da discussão da causa e sejam relevantes para a mesma, mas sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou, não os dando nem como provados nem como não provados.

III – As nulidades da sentença previstas no art. 379º, n.º 1, do Código de Processo Penal são de conhecimento oficioso.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 134/16.0GAVFL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, no Juízo de Competência Genérica de Vila Flor, realizado o julgamento, foi proferida sentença, datada e depositada a 09-11-2017, a absolver o arguido, J. G., da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181º do Código Penal, e a condená-lo pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco), num total de € 1.000,00 (mil), bem como a pagar, a título de indemnização, a quantia de € 2.000,00 (dois mil) ao assistente A. A. e a quantia de € 68,50 (sessenta e oito euros e cinquenta) à Unidade Local de Saúde do Nordeste.

2. Inconformado com a referida condenação, o arguido recorreu da sentença, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição) [1]:

«A) O Tribunal recorrido não considerou, como deveria considerar, o facto de o assistente ter provocado o arguido, por duas vezes (no funeral e dentro do estabelecimento comercial deste);
B) Este facto é essencial, para a fundamentação da matéria de facto e a sua consideração pelo Tribunal tem grande influência na medida da pena aplicada, bem como na atribuição do pedido Cível;
C) O Tribunal à quo, ao não ponderar tal situação esqueceu um elemento essencial à descoberta da verdade e sobretudo à boa e justa decisão da causa;
D) O que implicou uma condenação desproporcional, não equitativa e sobretudo injusta;
E) Assim, a douta sentença recorrida, deve ser substituída por outra que;
F) Condene o arguido pelo crime de ofensas corporais simples, na pena mais justa e adequada de cem dias de multa, à taxa diária de cinco euros, o que perfaz a quantia de quinhentos euros;
G) Condene, ainda, o arguido no pedido cível no montante entre setecentos e cinquenta a mil euros;
H) Em tudo o mais, deve-se manter a douta sentença recorrida.

Assim, nestes termos e em todos os outros que Vossas Excelências suprirão, deve a douta sentença recorrida ser substituída por decisão que dê provimento à fundamentada pretensão do arguido ora recorrente.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.»

3. O Exmo. Procurador Adjunto na primeira instância respondeu à motivação do recurso, concluindo pela manutenção da sentença recorrida, nos seus exatos termos e fundamentos, porquanto, no que tange à propugnada alteração da matéria de facto, da análise da respetiva motivação ficam patentes os motivos que levaram o Mº. Juiz a não ter dado como provado que o comportamento do arguido foi motivado por provocação do assistente, uma vez que analisando a prova à luz das regras da experiência e normalidade, atribuiu credibilidade à versão dos factos apresentada pelo assistente em detrimento da versão apresentada pelo arguido. Acresce que, ainda que assim não se considerasse, ponderando essencialmente a atitude do arguido, a forma como agrediu o assistente, a extensão das agressões e a circunstância de ter praticado os factos sobre pessoa de 75 anos, com uma condição física muito inferior à sua, justifica-se plenamente a aplicação de uma pena de 200 dias de multa, pelo que nenhuma censura merece a sentença recorrida.
4. Também o assistente respondeu à motivação do recurso, sustentando não se afigurar possível a existência de qualquer provocação da sua parte para com o arguido, pois ninguém a presenciou nem descreveu, provocação essa que o recorrente não especifica nem descreve com factos, mais defendendo que a condenação na multa e no pedido cível foi justa e equitativa, devendo o recurso ser julgado totalmente improcedente.
5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, porquanto, analisando a motivação e as conclusões do mesmo, constata-se que o recorrente não indicou nem os concretos pontos de facto nem as concretas passagens (das gravações) que (obviamente em relação a esses factos que não concretizou minimamente) imporiam decisão diversa, tornando, assim, inviável a modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, sucedendo ainda que a prova foi apreciada segundo as regras do art. 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objetiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo, sendo que, por fim, em face da factualidade provada e de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no n.º 1 do art. 71º do Código Penal, a pena de multa aplicada pelo tribunal a quo não excede a medida da culpa nem a necessária à satisfação das finalidades da punição, afigurando-se, pois, ser justa, adequada e proporcional, não devendo, por isso, merecer reparo.
6. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, apenas o arguido responde a esse parecer, mantendo o referido nas suas alegações e conclusões.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Dispõe o art.º 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

É entendimento pacífico que são as conclusões que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal ad quem, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam [2].

No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:

a) - A impugnação da matéria de facto.
b) - A medida da pena.
c) - O montante da indemnização civil.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):

«a) factos provados
a.1) da acusação pública

1. No dia 15/09/2016, pelas 15h30, no logradouro do estabelecimento pertencente ao arguido denominado «C. G., materiais de construção», sito na Av. (…), o arguido aproximou-se do ofendido A. A., empurrou o ofendido, fazendo-o cair ao chão.
2. Ato seguido, encontrando-se o ofendido prostrado no chão, o arguido desferiu-lhe um número não concretamente apurado de pontapés no tronco.
3. De seguida, o arguido agarrou as pernas do ofendido e puxou-o até ao passeio da citada Avenida, numa extensão aproximada de dez metros.
4. Após, o ofendido levantou-se e o arguido desferiu-lhe um murro na face e dois pontapés das nádegas.
5. A conduta do arguido causou ao ofendido as seguintes lesões:

a. Ao nível do tórax: uma escoriação com oito centímetros de comprimento por seis centímetros de largura, localizada na região da coluna dorso lombar, uma escoriação vertical com treze centímetros de comprimento por um centímetro de largura, localizada na região escapular esquerda;
b. Ao nível do membro superior direito: duas escoriações, revestidas de crosta cicatricial, com dois centímetros de comprimento por cinco milímetros de largura, cada uma e localizadas na região do cotovelo;
c. Ao nível do membro superior esquerdo: uma escoriação, revestida de crosta cicatricial, com dois centímetros de comprimento por um centímetro de largura, localizada na região do cotovelo;
d. Ao nível do membro inferior esquerdo: duas escoriações circulares com cinco milímetros de diâmetro cada uma e localizadas na região anterior do terço distal da perna;
6. Tais lesões determinaram para a sua cura um período de doença de dez dias, sendo sete dias com afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
7. O arguido agiu de forma livre, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do ofendido e de lhe produzir as lesões verificadas, resultado este que representou.
8. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que:

9. O arguido é solteiro, sem filhos e reside sozinho, com uma irmã e a mãe.
10. É funcionário público, trabalhando como guarda noturno na escola de (…) , onde aufere € 476,00/mensais; tem também uma loja onde aufere uma quantia indeterminada.
11. Não tem antecedentes criminais.

a.2) da acusação particular

12. No dia 15/09/2016, cerca das 15h30, na Av. (…), em (…), enquanto o ofendido assistia a um funeral e após bocejar, é abordado pelo arguido que lhe diz «nem aqui te conténs».
13.

a.3) do pedido de indemnização civil

14. O assistente é pessoa de bem, ordeira, honesta, pacífica e estimada no meio social onde reside.
15. O assistente sentiu-se e sente-se profundamente envergonhado em virtude de os factos descritos terem ocorrido no centro da cidade, diante dos que aí se encontravam e passavam.
16. O arguido causou ferimentos dolorosos ao assistente, tendo estado diversos dias sem conseguir fazer nada.
17. O assistente teve que ter tratamentos médicos no centro de saúde em consequência da conduta do arguido.
18. O Centro de Saúde de (…), integrado na Unidade Local de Saúde do Nordeste, EPE, despendeu €68,50 nos tratamentos médicos com o assistente.
*
b) factos não provados
b.1) da acusação pública

Nenhuns com relevância para a causa.

b.2) da acusação particular

19. Que o arguido também lhe tenha dito «filho da puta, és um animal».
20. Que tais palavras tenham sido proferidas de voz alta, em público, de modo a serem ouvidas por quem ali passasse.
21. Que o arguido, no seu estabelecimento comercial, lhe tenha dito, em tom de voz elevado, «filho da puta, põe-te lá fora».
22. Que as palavras ditas pelo arguido sejam altamente ofensivas da honra, consideração e dignidade do assistente, tendo sido proferidas com essa intenção.
23. Que o arguido tenha agido livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

b.3) do pedido de indemnização civil

24. Que as palavras dirigidas pelo arguido ao assistente de forma impiedosa o tenham ofendido de sobremaneira, afetando-o psicologicamente.
25. Que o assistente tenha sentido um enorme desgosto pela ofensa do seu bom nome, consideração e reputação, na via pública, à vista de quem estivesse a passar, naquele momento.
26. Que o assistente tenha ficado de tal forma afetado pelo sucedido que se tenha visto obrigado a tomar medicação para conseguir retomar a sua vida normal.

c) análise crítica da prova

O Tribunal assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida, tendo valorado – em particular – as declarações do arguido, do assistente, a prova documental constante dos autos e – em menor medida – os depoimentos das testemunhas.

Por uma questão de clareza de exposição, o Tribunal vai distinguir, na análise crítica da prova, os factos provados e não-provados constantes da acusação pública, da acusação particular e do pedido de indemnização civil.
Assim, começando pelos factos provados:
*
Da acusação pública

No que diz respeito aos factos provados constantes da acusação pública, importa começar por salientar que o grosso dos factos terá ocorrido dentro do estabelecimento do arguido e que não foram presenciados por terceiros, tendo somente o arguido e o assistente conhecimento direto dos mesmos.
- no que diz respeito ao dia, hora e local dos factos, o Tribunal valorou os depoimentos do arguido e do assistente e, em menor medida, da testemunha L. M.; com efeito, o arguido e o assistente confirmam o dia, a hora e o local em que os factos ocorreram, mencionando ter presentes o dia preciso por referência a um funeral de um conhecido, onde ambos estiveram presentes, que terá antecedido a situação; por outro lado, um e outro convergem quanto ao local onde os factos ocorreram; por último, a reforçar a credibilidade dos depoimentos dos anteriores, serve o depoimento da testemunha L. M., militar da GNR que foi chamado à ocorrência, o qual relatou o dia e a hora dos factos em causa, pelo que o Tribunal ficou inteiramente persuadido da veracidade dos mesmos.
- sobre o concretamente sucedido, o Tribunal valorou aqui os depoimentos do arguido e do assistente; a este respeito, importa tecer algumas considerações sobre os factos e os depoimentos.

Em primeiro lugar, os factos podem ser divididos – grosso modo – em dois blocos: num primeiro bloco referente ao sucedido no interior da loja (empurrão, queda, pontapés no tronco) e um segundo bloco referente ao sucedido no exterior da loja (agarrar as pernas e arrastar até ao passeio, murro na face e dois pontapés nas nádegas).

Em segundo lugar, no referente ao sucedido no interior da loja (primeiro bloco de factos), o Tribunal valorou aqui sobretudo o depoimento do arguido e, em menor medida, o depoimento do assistente; com efeito, o arguido admitiu e reconheceu que praticou a conduta que lhe é imputada na acusação pública (empurrão, queda e pontapés no tronco) muito embora ressalve que foi motivado por uma alegada conduta agressiva do assistente (mencionou que o mesmo começou a pontapear cadeiras e o próprio arguido); em contrapartida, o assistente nega por completo essa conduta anterior que o arguido lhe imputou (mesmo após se ter realizado uma acareação entre os dois, nos termos do disposto no art. 146º do Cód de Proc Penal), tendo referido que nem chegou a entrar na loja e que o arguido lhe deu com a porta na cara, tendo posteriormente lhe desferido um murro (que o terá feito tombar) e pontapés enquanto estava no chão; pese embora a disparidade de depoimentos nesta matéria (sobretudo na parte referente ao que fez tombar o assistente, na medida em que o arguido diz que foi um empurrão e o assistente um murro), uma vez que o próprio arguido admitiu os factos que lhe são imputados (embora fique a dúvida quanto à conduta prévia que este imputa ao assistente) e estes foram igualmente corroborados pelo assistente (temos, pelo menos, como certo que o arguido fez algo que fez o assistente tombar e lhe deu pontapés enquanto este estava no chão, uma vez que o arguido o admitiu e o assistente referiu esse facto), o Tribunal considerou-os provados; a este respeito, refira-se que o assistente tem já 75 anos e manifestou uma profunda comoção e indignação no seu depoimento (eventualmente motivada não apenas pela violência da conduta imputada ao arguido mas igualmente pela ligação familiar que os une, sendo o assistente tio do arguido), pelo que alguma falta de rigor no relato dos factos, por parte do assistente afigura-se perfeitamente compreensível.

Em terceiro lugar, no que diz respeito ao sucedido no exterior da loja (terceiro bloco de factos), os depoimentos do arguido e do assistente são inteiramente congruentes nesta matéria na medida em que um e outro relataram, com conhecimento direto dos factos e de uma maneira objetiva que o Tribunal avaliou como credível, os factos imputados ao arguido, a saber, agarrar as pernas e arrastar até ao passeio, murro na face e dois pontapés nas nádegas; o Tribunal mais valorou – embora em menor medida – os depoimentos das testemunhas J. V. e F. A., tendo o primeiro referido que viu o arguido a arrastar o assistente pelas pernas e a segunda referido que viu o arguido a dar uma «cachaçada» e um pontapé no assistente, o que apenas reforça a credibilidade dos depoimentos destes nesta matéria e a convicção da parte do Tribunal de que os factos terão efetivamente ocorrido da forma descrita na acusação pública.

Muito embora não tenham assistido diretamente aos factos, a convicção do Tribunal mais se alicerçou no depoimento das testemunhas L. M. e R. F., militares da GNR que se deslocaram ao local, bem como de N. A. e M. A. que viram o assistente com marcas nas costas e com a camisa rasgada, sendo que o seu relato das lesões é inteiramente congruente com a conduta imputada ao arguido e o relato que o arguido e assistente fizeram do sucedido, o que apenas serviu para reforçar a convicção do Tribunal.
- no que diz respeito às lesões sofridas pelo arguido, o Tribunal valorou aqui o relatório de perícia médico-legal de fls 16/17/18 e 79 e a documentação clínica de fls 26/27 e 34/35. A este respeito, refira-se que a perícia data de 22/09/2016 (i.e: sete dias após a ocorrência dos factos pelo que merece especial credibilidade) e a documentação clínica data da prática dos factos (15/09/2016) pelo que merece igualmente particular credibilidade na prova da ocorrência das lesões.
- no que diz respeito à consequência das lesões na afetação da capacidade de trabalho e o tempo para a cura, o Tribunal valorou a perícia de fls 79.
- sobre o elemento subjetivo, o Tribunal considerou-o provado com fundamento no conjunto da prova produzida na medida em que, tomando em consideração os factos relatados, bem como as declarações que o arguido prestou acerca deles, se afigura perfeitamente credível que o arguido tenha agido com o ânimo referido nos factos provados (art. 127º do Cód de Proc Penal).
- no que diz respeito às condições pessoais, o Tribunal valorou as declarações do arguido e o CRC de fls 339.
*
Da acusação particular

No que diz respeito à acusação particular, apenas se fez prova de que houve uma troca de palavras entre o arguido e o assistente num funeral, no dia dos factos relatados na acusação pública, motivada por um bocejar do assistente e que o arguido lhe terá dito «nem aqui te conténs».

Com efeito, tanto arguido como assistente admitem esses factos e que o arguido terá dito «nem aqui te conténs» pelo que persuadiram o Tribunal da veracidade do mesmo.

Por seu turno, os mesmos foram corroborados em parte pela testemunha M. S., a qual referiu estar presente no funeral, ter visto o assistente a fazer um gesto com a boca e o arguido a dirigir-lhe algumas palavras embora ressalve que não sabe precisar o que disse exatamente o arguido, em virtude de não ter ouvido.
Daí que a convicção do Tribunal tenha saído reforçada nesta matéria.
*
Do pedido de indemnização civil

No que diz respeito aos factos constantes do pedido de indemnização civil, o Tribunal valorou aqui o depoimento do assistente e das testemunhas N. A. e M. A. (respetivamente esposa e filho do assistente), em conjugação com o conjunto da prova produzida (arts. 127º do Cód de Proc Penal e 413º do Cód de Proc Civil).

Com efeito, pese embora a afetividade que tenha atravessado o depoimento de cada uma das pessoas referidas no ponto anterior (o assistente por ser ofendido e as testemunhas pela relação familiar que as unem ao ofendido), foi perfeitamente percetível retirar do depoimento de cada um os factos devidamente descriminados no pedido de indemnização civil (o facto de o assistente ser uma pessoa estimada e pacífica, as dores e a vergonha passada); o facto de parte das agressões terem sido visualizadas pelas testemunhas J. V. e F. A., em conjugação com a livre convicção do Tribunal, serviu para prova da vergonha sentida pelo assistente, uma vez que se afigura perfeitamente normal sentir aquilo em público.
Quanto às despesas com a ULS do Nordeste, o Tribunal valorou a fatura de fls 278.
*
No que diz respeito aos factos não-provados, o Tribunal considerou-os nesta qualidade em virtude de, sobre os mesmos, não se ter produzido nenhuma prova.
*
Da acusação pública

Todos os factos foram considerados provados.
*
Da acusação particular

No que diz respeito à acusação particular, não se fez prova de mais nenhuma das expressões imputadas ao arguido nem do elemento subjetivo integrante do crime de injúria.

Com efeito, pelas razões devidamente explicitadas nos factos provados, o Tribunal apenas deu como provado que houve uma abordagem no contexto do funeral por ocasião de um gesto da boca por parte do assistente e que o arguido terá dito «nem aqui te conténs»; no entanto, no que diz respeito às demais expressões imputadas ao arguido, nenhuma prova se fez, nomeadamente, que – no funeral – o arguido tenha dito «filho da puta, és um animal» nem que, na loja, tenha dito ao assistente «filho da puta, põe-te lá fora».
A este respeito refira-se que as posições do arguido e do assistente são frontalmente contrastantes quanto às expressões alegadamente proferidas no contexto do funeral, sendo que o primeiro nega veementemente as expressões que lhe são imputadas pelo assistente e o segundo reitera que o arguido lhe dirigiu essas palavras; na medida em que a única testemunhas que referiu ter visualizado essa abordagem (a testemunha M. S.) mencionou não ter escutado as palavras concretamente proferidas, não foi possível ouvir o depoimento de um terceiro isento; por seu turno, as posições do arguido e do assistente afiguram-se muito emotivas e extremadas (o arguido por ser acusado nos presentes autos e o assistente por ter deposto de uma maneira muito tocada, demonstrando grande emotividade, o que terá comprometido a isenção do seu depoimento), pelo que não foi possível ao Tribunal dar maior credibilidade a um ou a outro (art. 127º do Cód de Proc Penal).

Já no tocante às expressões alegadamente proferidas no contexto da loja, o arguido nega-as e o assistente não fez nenhuma referência a elas no contexto do seu depoimento, o que não pode deixar de ser valorado a favor do arguido (art. 127º do Cód de Proc Penal).

Por último, não se tendo provado que o arguido proferiu as expressões imputadas, nenhuma prova se fez quanto ao elemento subjetivo, pelo que o Tribunal deu esse facto como não provado.
*
Do pedido de indemnização civil

No que diz respeito aos factos constantes do pedido de indemnização civil que não foram considerados provados, o Tribunal considerou-os nessa qualidade em virtude de nenhuma prova se ter feito quanto às expressões imputadas ao arguido pelo que não podem – logicamente – ter provocado no assistente os sentimentos descritos.
Por seu turno, também nenhuma prova se fez sobre a toma de medicação por parte do assistente.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Da impugnação da matéria de facto

O recorrente (arguido) insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, com fundamento em o tribunal a quo não ter considerado como provado que o assistente o provocou, por duas vezes (no funeral e dentro do estabelecimento comercial), elemento esse que entende ser essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, pretendendo, assim, que seja dado como provado que os seus comportamentos descritos na matéria provada "foram praticados mediante forte provocação perpetrada pelo assistente" (sic), conforme resulta das suas próprias declarações, é deixado transparecer pelo assistente e foi referido pela testemunha M. S..

Nos termos do art. 428º do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos citados sem qualquer referência, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, sendo que uma das vertentes aqui admitida é a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento.

Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.

De acordo com o disposto no n.º 2 do art. 374º, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.

Por seu lado, em face do disposto no art. 368º, n.º 2, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua aprecia­ção e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa.
Dispõe expressamente o n.º 4 do art. 339º que a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
A enumeração dos factos provados e não provados revela quais os factos que foram efetivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo de prova.
No caso vertente, o recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que seja dado como provado que, ao agredir fisicamente o assistente, agiu sob “forte provocação” deste, alegando que tal resultou da discussão da causa e que assume relevância para a decisão da mesma.

Porém, não constando esse facto do elenco dos factos provados e não provados, a pretensão do recorrente não é suscetível de ser alcançada através da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sob pena de se estar a permitir a realização de um novo julgamento pelo tribunal de recurso, face às provas produzidas perante o tribunal a quo.

Não é esse o fundamento do recurso sobre a matéria de facto, o qual, conforme jurisprudência constante [3], não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.

A impugnação da matéria de facto dirige-se, pois, a sindicar o juízo probatório feito pela primeira instância, expresso na decisão sobre os factos provados e não provados, cabendo ao tribunal da relação confrontar esse juízo com a sua própria convicção.
Daí que não possa abranger factos que, no entender do recorrente, tenham resultado da discussão da causa e sejam relevantes para a mesma, mas sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou, não os dando nem como provados nem como não provados.
Neste sentido se pronunciou, nomeadamente, a Relação de Évora, nos acórdãos de 22-11-2011 e de 26-04-2016 [4].

Com efeito, nesse primeiro aresto pode ler-se o seguinte:

«Embora constituam objeto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis e ainda os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil (cf. art. 124.º do CPP) e em julgamento, sem embargo do regime aplicável à alteração dos factos (art. 358.º e 359.º), a discussão da causa tenha por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os art. 368.º e 369.º do CPP, a impugnação da matéria de facto não pode extravasar os limites vertidos na sentença ou acórdão e que, em obediência ao disposto no n.º 2 do art. 374.º do mesmo diploma, hão de ser enumerados na sentença, sob pena de nulidade.

Se a sentença não enumera factos, que eventualmente resultaram da discussão da causa e tinham relevância para a decisão, essa omissão não pode ser suprida por uma reapreciação da prova pelo tribunal de recurso. Não foi essa a solução processual querida pelo legislador. A motivação do recurso não é o meio adequado para introduzir factos novos no objeto da ação penal.

(…)
Assim, não se pode dizer que o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento da matéria de facto que o recorrente visa aditar, pois o tribunal só pode incorrer em erro de julgamento nesta matéria, quando julga mal factos concretos invocados por um dos sujeitos processuais e sobre os quais houve deliberação e votação, nos termos do art. 368.º do CPP.

A impugnação da matéria de facto pressupõe, pois, que os factos submetidos à apreciação do tribunal superior tenham sido apreciados na 1.ª instância e, como tal, tenham sido enumerados na decisão de que se recorre, seja nos factos provados, seja nos não provados.»

Este entendimento foi sancionado no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, em cujo acórdão, de 21-03-2012 [5], se aduziu, nomeadamente, o seguinte:

«Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada.

Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à “decisão proferida“, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjetiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.»

Assim, também o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que a impugnação ampla da matéria de facto se restringe à matéria vertida na fundamentação factual da sentença, nos termos previstos no art. 374º, n.º 2, só podendo incidir sobre os factos provados ou não provados.
Tendo essa interpretação normativa sido submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, com vista a aferir se a mesma punha em causa a garantia do direito de defesa, designadamente do direito ao recurso de uma sentença condenatória, foi então proferido o acórdão n.º 312/2012 [6], em que se decidiu:

«a) Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida; (…)».

Como se refere nesse aresto, «Isto não quer dizer que a falta de consideração pela sentença recorrida de factos abordados na discussão da causa, não fazendo recair sobre eles um juízo de prova, não deva ser passível de reação pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa (vide sobre a importância do tribunal incluir na lista dos factos provados e não provados os factos relevantes para a decisão da causa, mesmo que apenas tenham sido referidos em julgamento, SÉRGIO POÇAS, em “Da Sentença Penal – fundamentação de facto”, na Revista Julgar, Setembro-Dezembro 2007, págs. 24-25).

Mas o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessa­riamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento pelo tribunal de 1.ª instância.

Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não conte­nha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)».

Pelo exposto, conclui-se que a impugnação da matéria de facto apenas poderá incidir sobre os factos (provados e não provados) que constam da sentença recorrida e não sobre quaisquer outros.

Por conseguinte, no caso vertente, tendo o recorrente lançado mão da impugnação ampla da matéria de facto, improcede a sua pretensão de ver aditado à matéria provada um facto resultante da discussão da causa, em seu entender relevante para a decisão da mesma, mas sobre o qual o tribunal a quo não se pronunciou, não emitindo um juízo de prova.

Como vimos, o mecanismo processual adequado a alcançar tal desiderato seria a invocação da nulidade da sentença, prevista no art. 379º, n.º 1, al. a), traduzida na omissão das menções referidas no n.º 2 do art. 374º, ou seja, in casu, de determinado facto como provado com relevo para a decisão da causa e resultante da discussão da mesma.

Conquanto o recorrente não tenha invocado tal nulidade, de acordo com a jurisprudência largamente maioritária [7], que se nos afigura ser de seguir, as nulidades da sentença previstas no art. 379º, n.º 1, são de conhecimento oficioso.

Com efeito, com a alteração do Código de Processo Penal operada em 1998, esse artigo foi reformulado, aditando-se a al. c) ao n.º 1 e o n.º 2, cujo teor atual é o seguinte: «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414º».
A expressão inovadora “ou conhecidas em recurso” deve ser entendida no sentido do conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime do processo civil, que diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes.
Esse n.º 2 do art. 379º veio consagrar para as nulidades da sentença um regime específico, sem necessidade de reporte ao art. 119º, que estabelece o elenco das nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento.
Compreende-se essa diferenciação de regimes, porquanto as nulidades da sentença distinguem-se claramente das nulidades do processo, uma vez que estas “são quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder - embora não de modo expresso - uma invalidade mais ou menos extensa de atos processuais” [8].
Em processo penal, as nulidades da sentença são as que constam do citado art. 379º, n.º 1, ao passo que as nulidades processuais se traduzem na violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal (cf. art. 118º).
Prescrevendo a lei em relação a alguns desses atos processuais o regime das nulidades insanáveis, mal se compreenderia que, em caso de incumprimento do estabelecido para o ato decisório por excelência, que é a sentença, o conhecimento da respetiva nulidade não fosse oficioso.
Acresce que também não se compreenderia a diferença de tratamento entre os vícios da decisão previstos no art. 410º, n.º 2, que são de conhecimento oficioso [9], e as nulidades da sentença previstas no art. 379º, n.º 1, sendo que a justificação para a defesa da posição de cognição oficiosa daqueles se aplica também a estas.

Com efeito, o cerne da fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, que consagrou o entendimento do conhecimento oficioso dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, é o de o ordenamento jurídico não aceitar, em princípio, que os tribunais criminais se contentem com uma verdade formal, dissociada da realidade, e tenham de, como é imperativo legal e de consciência, procurar, na medida do possível, averiguar a verdade material.
Porém, no caso vertente não se nos afigura possível concluir no sentido de a sentença recorrida padecer da referida nulidade.

Isto porque, a matéria que o recorrente pretende ver aditada aos factos provados, ou seja, que agiu sob “forte provocação do assistente”, não se traduz num facto, mas sim num mero juízo conclusivo, carecendo, pois, de concretização através da alegação dos comportamentos assumidos pelo assistente, em ordem a concluir-se se os mesmos se traduzem, efetivamente, numa provocação da subsequente conduta agressiva do arguido.

Perante a ausência de alegação de tais factos concretos, não dispomos de elementos bastantes para concluir pela relevância da matéria (não factual) que o recorrente pretende ver aditada aos factos provados, apresentando-se como manifestamente insuficiente para tal a alegação, no corpo da motivação, de que o arguido e o assistente se encontravam desavindos há mais de dez ou quinze anos e que o segundo se dirigiu ao estabelecimento do primeiro. Com efeito, essa deslocação, só por si, desacompanhada de outros elementos, tais como as circunstâncias e os motivos da mesma, e os concretos comportamentos ou atitudes do assistente, não permite caracterizar uma conduta provocatória por parte deste último em relação à conduta agressiva do arguido.

Indemonstrada fica, assim, a existência da apontada nulidade, na medida em que só se justifica que o tribunal se pronuncie, dando-os como provados ou como não provados, sobre factos que sejam relevantes para a decisão da causa.
Pelas razões expostas, improcede a questão da impugnação da matéria de facto.

3.2 - Da medida da pena

Em sede de recurso sobre matéria de direito, o recorrente insurge-se contra a medida da pena que lhe foi aplicada (200 dias de multa), considerando-a desproporcional, não equitativa e injusta, alegando, para tanto, que o tribunal a quo não considerou que, ao agredir fisicamente o assistente, agiu sob provocação deste, pugnando, assim, pela redução da pena para 100 dias de multa.

A argumentação desenvolvida pelo recorrente assenta na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, destinada a ser dada como provada a alegada provocação.
Perante a improcedência de tal questão, nos termos supra analisados, com a consequente manutenção da matéria provada, sem lhe ser aditada a “atuação sob provocação”, ficou por demonstrar o fundamento em que o recorrente baseia a pretendida redução da pena.
Não obstante, cumpre referir o seguinte, a propósito da justeza da pena aplicada.

De acordo com o disposto no art. 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança, tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, acrescentando o n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial. A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez.
Em consonância com estes princípios dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues [10], a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral.
A mesma autora apresenta, então, três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.

Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar [11].

Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do art. 71º do Código Penal elencam, a título exemplificativo, várias circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.

Tais circunstâncias podem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
No caso em apreço, o Exmo. Juiz a quo, de entre os critérios aí previstos, atendeu aos seguintes na determinação da pena concreta (transcrição):

«- grau de ilicitude do facto – afigura-se mediana; muito embora não se possa afirmar que o ato agredir alguém da forma descrita nos factos provados seja uma conduta gravíssima, não se pode dizer que a mesma seja de ilicitude reduzida ou desprezível;
- modo de execução deste – foi realizada de uma maneira tosca e algo bruta;
- gravidade das consequências – provocou as lesões corporais melhor descritas nos factos provados.
- conduta anterior ao facto e posterior a este – o arguido reconheceu que não agiu da melhor forma e colaborou para a descoberta da verdade.
- intensidade do dolo – agiu com dolo direto;
- condições pessoais ao gente e sua situação económica – trata-se de um indivíduo que se encontra a trabalhar, socialmente inserido, com uma vida modesta.»

Em conformidade, considerou que «(…) as exigências de prevenção geral afiguram-se, no caso concreto, medianas. Muito embora não se trate de factos dotados de um elevado grau de ilicitude, na medida em que as ofensas simples constituem ilícitos excessivamente frequentes, idóneos a perturbar a paz jurídica na comunidade, o Tribunal entende que deve punir estas condutas, sinalizando assim à comunidade que as mesmas são efetivamente ilícitas e que não passam impunes, de forma a restabelecer a paz jurídica».

Por seu lado, quanto às exigências de prevenção especial, referiu que «afiguram-se, no caso concreto, reduzidas. Com efeito, o arguido está socialmente integrado e não tem antecedentes criminais, tendo colaborado ativamente para a descoberta da verdade material, admitindo parcialmente os factos que lhe são imputados, pelo que não se verificam exigências particulares nesta matéria.»

O elenco destes fatores e a ponderação que deles foi feita pelo tribunal a quo não são merecedores de censura, sendo de destacar a forma bárbara como o arguido agrediu o assistente, já que, depois de o ter empurrado, fazendo-o cair ao chão, e de lhe ter desferido um número não apurado de pontapés no tronco, agarrou-lhe as pernas e puxou-o até ao passeio, numa extensão aproximada de dez metros, após o que ainda lhe desferiu um murro na face e dois pontapés na nádegas. Acresce a extensão das lesões causadas e respetivas consequências, concretamente múltiplas escoriações no tórax (uma com 8 x 6 cm e a outra com 13 x 1 cm), nos dois membros superiores e no membro inferior esquerdo, provocando um período de dez dias de doença, sete dos quais com afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional, tendo o assistente sentido dores e vergonha em virtude de os factos terem ocorrido no centro da cidade, diante dos que aí se encontravam e passavam.

Tais circunstâncias, aliadas à elevada intensidade do dolo, revelada pela forte determinação do arguido em agredir, de múltiplas formas, o assistente, e às acentuadas necessidades de prevenção geral que se fazem sentir relativamente a este tipo de crime, de verificação frequente, fazendo elevar o limite mínimo necessário para assegurar a proteção das expectativas na reposição da validade da norma violada, levam-nos a concluir, tal como fez o tribunal a quo, que uma pena de 200 dias de multa, situada ligeiramente acima do meio da moldura legal (que oscila entre 10 e 360 dias), se mostra adequada e proporcionada, do ponto de vista da prevenção geral, à defesa do ordenamento jurídico e corresponde às exigências de prevenção especial de socialização do arguido, sem exceder o limite da culpa, pelo que não merece censura, expressando uma correta e adequada valoração das circunstâncias atendíveis.

Resulta, pois, da sentença recorrida que o tribunal a quo seguiu corretamente o procedimento e as operações de determinação da pena concreta e observou os princípios gerais que lhe devem presidir, não tendo sido violados os arts. 40º e 71º do Código Penal.

Refira-se que estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada [12].

Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.

A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada, como é o caso em apreço.
Pelo exposto, improcede este segmento do recurso.

3.3 - Do montante da indemnização civil

O recorrente, mais uma vez invocando que o tribunal a quo devia ter considerado provado que agiu sob provocação do assistente e, consequentemente, ter tido tal "facto" em atenção ao fixar a indemnização atribuída ao mesmo, propugna pela redução desse montante para um valor compreendido entre € 750 e € 1.000.

Porém, também esta pretensão assenta exclusivamente na impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com vista ao aditamento da alegada provocação ao rol dos factos provados, questão esta que, como vimos, improcede.

Assim, não se verificando o fundamento invocado para o segmento do recurso agora em análise, mostra-se prejudicado, por esta via, o seu conhecimento.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, J. G., confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 07 de maio de 2018

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)


[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a formatação do texto e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
[2] - Conforme jurisprudência uniformizada pelo acórdão n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).
[3] - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[4] - Proferidos nos processos, respetivamente, 130/10.0JAFAR.E1 e 371/14.1TATVR.E1, pelo mesmo relator, mas com diferentes adjuntos, disponíveis em http//www.dgsi.pt.
[5] - Processo n.º 130/10.0JAFAR.F1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[6] - Proferido em de 20-06-2012, no processo n.º 268/12, 2ª Secção, disponível em http://www. tribunalconstitucional.pt /tc/acordaos/20120312.html.
[7] - Cf., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 12-09-2007 (processo n.º 2601/07), de 27-11-2007 (processo n.º 3862/07) e de 03-10-2012 (proc. n.º 900/05.1PRLSB.L1.S1) e o acórdão do TRP de 25-03-2009, todos disponíveis em http//www.dgsi.pt., bem como o acórdão do TRP de 21-01-2002, disponível em http//www.gde.mj.pt, e ainda os acórdãos do STJ de 04-07-2007 (processo n.º 2049/07), 11-01-2012 (proc. n.º 197/08.1GAMLD.C1.S1), e de 10-09-2008 (proc. n.º 1887/08), não publicados.
[8] - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, pág. 176.
[9] - Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão n.º 7/95 do STJ, de 19 de outubro, in Diário da República, I Série-A, de 28-12-1995.
[10] - “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss.
[11] - Vd. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..
[12] - Vd. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 196-197, e os acórdão do STJ de 04-07-2007 (processo n.º 07P1775) e do TRE de 22-04-2014 (processo n.º 291/13.7GEPTM.E1), ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.