Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
162/17.8PBGMR.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONDENAÇÃO ILÍCITO DO ARTº 40º
2
DO DL 15/93
FIXAÇÃO DE PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/11/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Quando decorre da própria sentença que o julgador errou quanto ao número de doses médias diárias de haxixe que determinada quantidade do mesmo pode gerar, ocorre "erro notório na apreciação da prova".

II - Podendo-se decidir-se do recurso interposto, não há necessidade de renovação da prova, nem de reenvio do processo para novo julgamento, devendo o Tribunal de Recurso alterar os factos provados e não provados.

III - Depois do A.U.J. de 21/1/2 016, é claro que pode haver absolvição em 1.ª instância e condenação no Tribunal da Relação, sem que fique prejudicado o princípio do duplo grau de jurisdição, quanto à decisão final.

IV - Tendo o arguido antecedentes criminais, mas não cometendo outros crimes desde 2 004, estando inserido familiarmente e trabalhando, ainda que esporadicamente, a pena de multa surge ainda como adequada e proporcionada.
Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Nestes autos em que é arguido C. M., foi o mesmo absolvido, nos seguintes termos:

- como autor de um crime de detenção para consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 40º/2 D.L. n.º 15/93, 22/1.

Mais, foi determinada a extração de certidão para procedimento contraordenacional, contra o arguido.

Discordando desta decisão, da mesma interpôs recurso o M.P. Apresenta, no mesmo, as seguintes conclusões:

“1. Nos termos da douta sentença, ora em crise, o exame realizado ao produto estupefaciente apreendido nos autos, canábis-resina, padece de um erro. Assim, a sentença põe em causa a validade do juízo técnico-científico reproduzido no relatório pericial de fls. 99 dos autos.
2. Sendo considerada como prova pericial, o resultado do exame realizado pelo laboratório da Polícia Judiciária, só poderá ser rebatido pelo julgador por outra prova divergente, mas igualmente científica, nos termos o artigo 163º do Código de Processo Penal, em conjugação com o artigo 71.º, nº 3, do Decreto-Lei 15/93.
3. De acordo com o artigo 10.º, n.º 1, da Portaria 94/96, “Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, …, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respectivo princípio activo ou substância de referência”.
4. No mapa anexo à Portaria n.º 94/96 e no que respeita à canábis (resina) é indicado o valor de 0,5 g, com uma concentração média de 10% de A9THC – o tetrahidrocanabinol – que é o princípio activo da canábis (resina), (anotação 3 c e e, remissiva da tabela anexa à portaria).
5. In casu, o arguido detinha canábis com o peso líquido de 21,420 gramas, com a substância ativa presente (THC) e com um grau de pureza de 8,8%. A dose média individual é de 0,5 gramas, para um grau de concertação média de 10%. Pelo que apuramos que tinha 37 doses diárias com a seguinte fórmula: [21,420 gramas do produto apreendido x (8,8% de THC: 10% de THC fixado na portaria): 0,5 gramas dose média individual].
6. Conclui-se que o relatório pericial não padece de nenhum erro, nem de nenhuma errada validade juízo técnico-científico, conforme afirma o Tribunal a quo.
7. Em contrapartida, o juízo técnico adotado pelo Tribunal a quo, reproduzido na sentença para contraditar a prova pericial constante dos autos, está errado.
8. O Tribunal a quo assenta o seu raciocínio numa premissa errada, fixando as doses diárias de canábis resina, 0,5 gramas, com base numa concentração de 100% de A9THC, e não com base em 10% de A9THC, fixado e indicado na anotação 3 c e e, remissiva da tabela anexa à portaria 94/96.
9. Perante o errado juízo técnico-científico do Tribunal a quo, e não existindo mais nenhum facto científico na douta sentença que ponha em causa o resultado técnico do exame reproduzido no relatório pericial de fls. 99, deverá o resultado apresentado no referido relatório ser plenamente dado como provado, e revogado na douta sentença o fundamento apresentado para que rejeitar tal resultado.
10. Revogando-se, nessa parte, a sentença, dando como assente o resultado do mencionado relatório pericial, o facto 1 dos factos provados terá que ter a seguinte redação: “1. No dia 20 de Fevereiro de 2017, pelas 9 h30, na rua d…, área do município de …, o arguido encontrava-se na posse de 21,420 gramas (peso líquido) de canábis resina, com grau de pureza de 8,8%, correspondente a 37 doses individuais diárias.”, assim como revogar os factos dados como não provados;
11. Tendo em conta que o arguido detinha canábis-resina com o peso líquido de 21,420 gramas, com a substância ativa presente (THC) e com um grau de pureza de 8,8%, e que a dose média individual é de 0,5 gramas, para um grau de concertação média de 10%, apuramos que tinha 37 doses diárias.
12. Neste sentido, temos de concluir que, efetivamente, o arguido detinha quantidade de estupefaciente que excede a necessária ao seu consumo individual, pelo período de 10 dias, pelo que a sua conduta se subsume na previsão do artigo 40º, nº 2, do Decreto-Lei nº 15/93.
13. Estão, assim, preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime em análise, devendo o arguido ser condenado pela prática, na forma consumada, do crime de consumo de produtos estupefacientes.
14. Afigura-se-nos ser de aplicar ao arguido uma pena de multa, a graduar em 80 dias, fixando-se próxima do mínimo legal a sua razão diária (6 euros), nos termos do artigo 47º nº 2 do Código Penal.

Nestes termos e nos demais de Direito, que doutamente se suprirão, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que condene o arguido pela prática do crime de consumo de estupefacientes, numa pena de multa, que se julga ser adequada se fixada nos 80 dias à razão diária de € 6,00.”
O arguido não contra-alegou.
A Dignm.ª Procuradora Geral Adjunta junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer em que afirma que o relatório pericial de onde consta o exame à droga apreendida não errou e que quem errou foi o Tribunal, ao retificar o que dele constava. Refere assim que a base de trabalho da tabela anexa à Port. 94/96, 26/3, ao definir 0,5 gramas como o limite quantitativo máximo, por cada dose média individual de Canabis (resina), o faz por referência a uma taxa de THC de 10%, o que deve ser ajustado no caso dos autos, pois a referida taxa era de apenas 8,8% (anotação 3, als. c) e e), da tabela anexa à Portaria. Sustenta pois, a procedência do recurso, no sentido de o arguido ser condenado pelo crime de detenção de estupefacientes para consumo, p. e p. pelo art.º 40º/2 D.L. n.º 15/93, 22/1, sendo assim condenado na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 6€ (seis euros), tal como defendido pelo M.P., em 1ª instância.
Notificado nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido não respondeu ao parecer emitido.
O recurso vai ser julgado em conferência, como o impõe o art.º 419º/3, c), C.P.P:

2 – Fundamentos

Com vista a uma melhor compreensão das questões controvertidas, transcrever-se-á de seguida o Acórdão recorrido, na íntegra:

“I. Relatório.

Para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra:

C. M., solteiro, nascido a -.12.1973, natural de Guimarães, filho de … e de …, residente na Rua …, …;

Imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de consumo de produtos estupefacientes, previsto e punível pelo art. 40º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C e o disposto no art. 2º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000 de 29 de Novembro e no seguimento da jurisprudência fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008 de 05.08.2008, e com base nos fundamentos de facto exarados a fls. 155 a 157, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
*
O arguido não apresentou contestação escrita.
*
Procedeu-se a julgamento que decorreu com observância do pertinente formalismo legal.
*
Não existem questões prévias ou incidentais que cumpre conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
II. Fundamentação.

1. De facto.
1.1. Factos provados.

Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 20 de Fevereiro de 2017, pelas 09H30m, na Rua …, área do município de Guimarães, o arguido encontrava-se na posse de 21,420 gramas (peso líquido) de Canabis resina, com grau de pureza de 8.8%.
2. O produto em causa destina-se ao consumo próprio e exclusivo do arguido.
3. Ao actuar desta forma, o arguido agiu livre, voluntária e consciente, sabendo que não podia adquirir para seu consumo, nem deter, na quantidade apurada nos autos, tal produto estupefaciente, cujas características bem conhecia.
4. Contudo não se absteve de o fazer, bem sabendo que tal conduta é proibida e punida.
5. Só por força da descrita intervenção policial e contra a vontade do arguido, não se manteve tal detenção para seu consumo, nem se concretizou o seu consumo integral.
6. O arguido é consumidor de canábis resina há vários anos, consumindo diariamente quantidade não concretamente apurada e variável.
7. O arguido é solteiro e não tem filhos;
8. Reside numa casa da Câmara Municipal, com a mãe, que é doméstica, e dois irmãos, estes, com 44 e 42 anos de idade, respectivamente; e de renda mensal pela casa onde residem pagam 150,00 euros,
9. O arguido tem a 4ª classe de escolaridade que concluiu com 17 anos de idade; presta esporadicamente trabalhos na área de construção civil, auferindo cerca de 250,00 euros/mês; e entrega à mãe, para ajuda nas despesas com a electricidade e água, a quantia de cerca de 25,00 euros/mês;
10. O arguido, em juízo, confessou de forma livre, espontânea, integral e sem reservas os factos como os mesmos vieram a ser dados como provados;
11. O arguido sofreu as seguintes condenações:
a) por decisão datada de 6.7.1992, já transitada, foi condenado pela prática, aos 24.4.1992, de um crime de introdução em casa alheia e furto, p. e p. pelos arts. 176º, n.ºs 1 e 2, 298º, 296º, 297º, n.ºs 1 e 2, al. h), do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão substituídos por pena de multa;
b) por decisão datada de 28.1.1999, já transitada, foi condenado pela prática, aos 28.1.1999, de um crime de condução ilegal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de 200$00;
c) por decisão datada de 21.5.1996, já transitada, foi condenado pela prática, aos 5.1.1995, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22.1, na pena de 20 dias de multa à taxa diária de 300$00;
d) por decisão datada de 11.12.1996, já transitada, foi condenado pela prática, aos 29.12.1993, de um crime de furto, p. e p. pelos arts. 296º e 297º, do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão substituídos;
e) por decisão datada de 29.5.1998, transitada, foi condenado pela prática, aos 10.6.1996, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo art. 40º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22.1, na pena de 50 dias de prisão;
f) por decisão datada de 30.6.2005, transitada aos 12.12.2005, foi condenado pela prática, aos 13.5.2004, de um crime de sequestro e de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão;
g) por decisão datada de 12.6.2008, transitada aos 2.7.2008, foi condenado pela prática, aos 5.5.2004, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão substituídos por 480 horas de prestação de trabalho; h) por decisão datada de 17.2.2009, transitada aos 12.3.2009, foi condenado pela prática, aos 26.11.2003, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos; pena, esta, declarada extinta por despacho datado de 11.10.2011.
*
1.2. Factualidade não provada.

Com interesse para a causa resultaram “não provados” os seguintes factos:

1. Que o produto estupefaciente detido, à data e local dos factos, ao arguido fosse suficiente para mais de 10 doses individuais médias diárias;
2. Que o arguido soubesse que o produto estupefaciente que detinha excedia o consumo médio individual por um período de 10 dias.
*
1.3. Motivação.

A convicção do Tribunal formou-se com base nas declarações do arguido que, em juízo, confessou de modo livre, espontâneo, isento, objectivo e credível, a prática dos factos em causa nos autos como os mesmos vieram a ser dados como assentes.
É certo que o arguido referiu, ainda, que a quantidade de estupefaciente que detinha, à data e local dos factos, se destinava ao seu consumo por cerca de “um mês e tal”, e que ainda não tinha consumido o que quer que fosse do mencionado produto que lhe foi apreendido.
Todavia, resulta do Relatório Pericial, de fls. 99, que a quantidade de produto activo presente no produto estupefaciente detido e apreendido ao arguido, e em causa nos autos, é de 8.8%, correspondente a 1,884 dose média individual diária.
Com efeito, de acordo com o preceituado no art. 71º do Decreto-Lei nº 15/93, a dose média individual diária é calculada com base na quantidade de produto activo presente no produto estupefaciente que esteja em causa (cfr. alínea c)); e a Portaria n.º 94/96 de 26 de Março, para que remete o citado art. 71º, indica no seu mapa a quantidade máxima de princípio activo para cada dose média individual diária, sendo que no caso de canabis-resina essa quantidade máxima é de 0,5.

Ora, resultando do Auto de Apreensão (de fls. 37) e do mencionado Relatório Pericial que o arguido detinha 21,420 gramas de canabis-resina com 8,8% de princípio activo, corresponde essa quantidade a (21,420 x 8,8%) 1,884 gramas de princípio activo e a (1,884 : 0,5 = 3,768) menos de dez doses médias individuais diárias, de acordo com a aludida Portaria – e como se deu por provado. Assim, a afirmação do arguido de que a quantidade de produto estupefaciente que lhe foi apreendida nos autos lhe daria para satisfazer o seu consumo por mais de um mês – sendo que o mesmo isso referiu sem que tivesse “experimentado” tal produto e assim avaliado a “qualidade” do mesmo -, não pode levar a concluir que essa afirmação corresponda à realidade.

Mais, essa afirmação é contrariada pelo teor do relatório pericial quando ali ficou consignado o grau de pureza do estupefaciente em crise e como acima demonstramos.

Igualmente, a afirmação factual alegada na acusação no sentido de que a quantidade de canábis apreendida ao arguido daria para mais de 10 doses e que por isso excedia o necessário para o consumo durante dez dias, padece de um erro, sendo igualmente errada a afirmação implícita da validade do juízo técnico-científico do exame efectuado nessa matéria.

É o que decorre do preceituado no art. 71º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro quando preceitua que os limites referidos na Portaria n.º 94/96 são apreciados nos termos do artigo 163º do Código de Processo Penal, ou seja, nos termos da prova pericial (cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional nº 534/98).

O juízo científico em que se funda a conclusão pericial não pode ser posto em causa pelo juiz a não ser pelo confronto com outra prova divergente igualmente com base científica. Com efeito, é atribuído valor de prova pericial ao consignado na Portaria porque os limites que fixa assentam em dados epidemiológicos relativos às concentrações médias usualmente consumidas, admitindo-se que esses limites possam ter alguma variação consoante o consumidor e, por isso, se admitindo contraprova (mas necessariamente com base científica) de que em relação a determinado consumidor a dose diária média individual possa ser superior.

Ou seja, a acusação seguiu o erro contido no exame ao produto estupefaciente sobre o número de doses médias diárias individuais para que daria o produto estupefaciente detido; e sendo a o exame em causa violou regra de prova vinculada a que estava adstrito.

Mesmo considerando o peso total do produto e não o peso do seu princípio activo, sempre o resultado apresentado no exame estaria errado porque 21,420 gramas a dividir por 0,5 gramas daria o resultado 42,84 e não de 37.

Ora, o Tribunal não está vinculado a um manifesto erro de cálculo que o exame ao produto estupefaciente contém, e estranho seria que os erros de cálculo contidos num exame, a pretexto de terem natureza técnico-cintífica, não pudessem ser rectificados.
Atendeu, ainda, o Tribunal ao teor do Auto de Busca (cfr. fls. 24 e 25) e ao Teste rápido (de fls. 38).
Relativamente às condições pessoais e económicas do arguido o Tribunal alicerçou-se, igualmente, nas declarações que o mesmo a propósito prestou e de modo que se evidenciou sincero e espontâneo e, por isso, crível.
Levou-se, ainda, em conta o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 187 a 192.
Relativamente aos factos não provados os mesmos resultaram da ausência de produção de prova que os corroborasse e como supra se deixou expendido.
*
2. De Direito.

2.1. Enquadramento jurídico.

O arguido vem acusado da prática de um crime de detenção de estupefacientes para consumo próprio, p. e p. pelo art. 40º, n.º 2, da lei n.º 15/93, de 22.1, com referência à Tabela I-C, anexa àquele diploma.

Como se refere no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 8/2008, DR, Iª, de 5 de Agosto de 2008 «Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao consumo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio de plantas (…) compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.».

Assim, e para o que ora nos interessa, comete o crime previsto no artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93 de 22.1 quem, nomeadamente, detiver para seu consumo canabis que exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, cometendo a contra-ordenação prevista no artigo 2º da Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, se a quantidade detida for inferior.

Importa, por consequência, precisar como se determina a quantidade de estupefaciente necessário para o consumo médio individual durante 10 dias.

Nos termos do artigo 71º do Decreto-Lei nº 15/93 a dose média individual diária é calculada com base na quantidade de produto activo presente no produto estupefaciente que esteja em causa (cfr. alínea c)).

A Portaria n.º 94/96 de 26 de Março, para que remete o corpo do citado artigo 71º, indica no seu mapa a quantidade máxima de princípio activo para cada dose média individual diária. No caso de canabis-resina essa quantidade máxima é de 0,5.

Assim, e tendo em conta o provado que o arguido detinha 21,420 gramas de canabis-resina com 8,8% de princípio activo, corresponde essa quantidade a (21,420 x 8,8%) 1,884 gramas de princípio activo e a (1,884 : 0,5 = 3,768) menos de dez doses médias individuais diárias.
Destarte, face ao quadro factual traçado em juízo, importa concluir que o arguido não cometeu o crime que lhe foi imputado, mas tão só a contra-ordenação prevista no art. 2º, n.º 1, da Lei nº 30/2000 de 29 de Novembro, cujo processamento deverá ter lugar na entidade referida no artigo 5º da mesma Lei, dadas as suas especificidades.
Assim sendo, será dado cumprimento ao disposto no art. 41º do Decreto-Lei n.º 130-A/2001, de 23.04, determinando-se a extracção de certidão para envio à comissão para a dissuasão da toxicodependência territorialmente competente.
Por consequência, deve o arguido ser absolvido do crime que lhe foi imputado pela acusação.
*
III. Decisão.

Pelo exposto, julgo a acusação improcedente, e em consequência:

1. Absolvo o arguido C. M. da imputada comissão de um crime de detenção para consumo de produto estupefaciente p. e p. pelo artigo 40º, nº 2 do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro;
2. Determino a oportuna extracção de certidão do processo para o pertinente procedimento por contra-ordenação contra o arguido;
3. Sem custas.
*
Determino de proceda à destruição da substância apreendida, após trânsito, nos termos do disposto no art. 62º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01.
*
*
Extraia, oportunamente, certidão da presente decisão, bem como de fls. 22 a 26, 31, 32, 37 a 40, 98 e 99 e remeta à comissão para a dissuasão da toxicodependência territorialmente competente, para os fins previstos no art. 41º do Decreto-Lei n.º 130-A/2001, de 23.04.
*
Notifique e deposite.”

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Do Erro Notório na Apreciação da Prova
2.1.2. - Da Absolvição em 1ª Instância e da Condenação no Tribunal da
Relação e do Princípio da Dupla Jurisdição em Matéria de Facto
2.1.3. – Da Escolha e Medida da Pena a Aplicar

2.2. Do Erro Notório na apreciação da Prova

De entre os vícios da sentença de que trata o art.º 410º/2 C.P.P. consta, na sua al. c), o “erro notório na apreciação da prova”. O vício tem porém de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência.
Quer isto dizer que o erro deve resultar da simples leitura da decisão recorrida.
Ou seja: da própria análise da decisão recorrida e sem recurso à utilização de outros meios de prova, deve resultar como óbvio o erro da decisão quanto à matéria de facto. Deve resultar da própria decisão que os factos extraídos dos meios de prova o foram erroneamente, por contrários à essencialidade dos mesmos ou às leis da lógica.

Como se diz no sumário do Ac. S.T.J. de 23/10/1 997, Dias Girão, constante de “Código de Processo Penal Notas e Comentários”, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1 911, pág. 1 245,

“O erro notório na apreciação da prova existe quando sendo usado um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras de experiência comum”.

É o que o M.P. recorrente imputa no caso dos autos, por na sentença recorrida não se ter tido em conta o que consta das als. c) e e), da tabela anexa à Port. N.º 94/96, 26/3, que determina que a quantidade máxima de droga, no caso, “canabis (resina)” é de 0,5 (zero vírgula cinco) gramas, , mas a uma concentração média de 10% de “THC”. No caso dos autos, o grau de pureza era de 8,8% (inferior ao que serve de parâmetro legal), pelo que não tinha o Tribunal de alterar o juízo científico constante do exame de toxicologia de fls. 99, no sentido de que o haxixe apreendido era suficiente para 37 (trinta e sete) doses de haxixe – na sentença recorrida deu-se como não provado que o haxixe apreendido fosse suficiente para mais de 10 (dez) doses individuais médias diárias (ponto 1.2.1. da matéria de facto não provada).

Na sentença recorrida fez-se o seguinte raciocínio, tal como consta da respetiva motivação da decisão de facto: 21,420 grs. de haxixe x 8,8% (grau de pureza) = 1,884 grs. de princípio ativo, o que dá apenas para cerca de 3,768 doses de 0,5 grs. de haxixe – logo, menos de 10 (dez) doses médias, por isso se tendo dado como não provado que a referida quantidade de haxixe fosse suficiente para mais de 10 (dez) doses médias diárias.

Este raciocínio parte porém do equívoco de que essas doses de 0,5 grs. se referem a um grau de pureza de 100%, quando nos termos das notas c) e e) anexas à tabela constante da referida Port. N.º 94/96, aquela quantidade média máxima de 0,5 grs se reporta a uma taxa de THC de 10%. (isto porque esta, que é a substância psicotrópica constante da canabis).

Como porém a referida taxa não é de 100% mas de 10%, como decorre das als. c) e e) que constam do mapa anexo à Port. n.º 94/96, a fórmula utilizada deveria efetivamente a referida pelo M.P. no seu recurso, qual seja 21,42 grs. de haxixe x (8,8% : 10% : 0,5 grs ou sejam 37,69 doses médias, que se arredondam para 37 (trinta e sete), como constava do exame.

Independentemente da discussão sobre o valor probatório da prova pericial, a verdade é que o referido número de doses médias nunca deveria ter sido retificado pelo Tribunal, porque o juízo em que se baseou está errado. Pelo contrário, estava correto o juízo feito no exame/perícia toxicológica.

Acresce que, como consta da sentença recorrida, o arguido referiu que a referida quantidade de haxixe se destinava ao seu consumo, por cerca de um mês e tal, pelo que saberia que a mesma quantidade superava em muito, o necessário ao consumo médio de 10 (dez) dias.

Não há pois necessidade de renovação da prova (art.º 430º C.P.P.), sendo possível desde já decidir, do recurso interposto, o que obsta também ao reenvio do processo para novo julgamento (art.º 426º C.P.P.).

Termos em que, os factos que constam dos pontos 1.2.1. e 1.2.2. da matéria de facto não provada, devem passar a constar da matéria de facto provada, quais sejam:

- que o produto estupefaciente apreendido, à data e local dos factos, ao arguido era suficiente para mais de 10 doses individuais médias diárias;
- que o arguido sabia que o produto estupefaciente que detinha excedia o consumo médio individual por um período de 10 (dez) dias.

Tal como, em sentido inverso deve resultar como não provada, a última parte do art.º 1º dos factos provados ou seja que:

- o haxixe apreendido correspondia a 1,884 dose média individual diária.

Procede pois e aqui o recurso interposto, com base em “erro notório na apreciação da prova” assim se devendo alterar a matéria de facto constante da sentença, nos termos referidos.

3.3. – Da Absolviçaõ em 1ª Instância e da Condenação no Tribunal da Relação e do Princípio da Dupla Jurisdição em Matéria de Facto

Resulta da alteração feita à matéria de facto provada, que o arguido detinha consigo, para seu consumo, haxixe, em quantidade superior à necessária para 10 (dez) dias de consumo, disso sabendo.
Agiu voluntariamente e ciente da ilicitude da sua conduta.
Cometeu pois, o crime de detenção de estupefacientes para consumo, p. e p. pelo art.º 40º/2 D.L. n.º 15/93, 22/1, na aceção do A.U.J. n.º 8/08, publicado na 1ª Série-A, do “D.R.”, de 5/8/2 008, nos termos do qual e não obstante a entrada em vigor do art.º 28º L. n.º 30/00, 29/11, este art.º se não deve considerar revogado, não só quanto ao cultivo para consumo, como também quanto à detenção para consumo próprio por mais de 10 (dez) dias.

Questão que se pode pôr é se, com uma absolvição em 1ª instância e condenação na Relação, ainda assim fica assegurado o princípio do duplo grau de jurisdição quanto à decisão final, pois não há uma dupla apreciação da condenação e até medida da pena.

Depois de ampla dissidência Jurisprudencial – uns no sentido de que o Tribunal da Relação só deveria conhecer da culpabilidade do arguido e outros no sentido de que o Tribunal de recurso deveria desde logo condenar, estabelecendo o tipo e a medida concreta da pena – a questão mostra-se hoje solucionada pelo A.U.J. de 21/1/2 016, Isabel Pais Martins, que por maioria decidiu que o Tribunal de Recurso deveria desde logo fixar a pena a aplicar, não colidindo isso, com o princípio da dupla jurisdição em Processo Penal sobre as decisões finais proferidas.
Vai-se assim e nos termos requeridos no recurso, fixar-se desde já a pena a aplicar ao arguido.

3.4. – Da Escolha e Medida da Pena a Aplicar

Importa, antes do mais, esclarecer os fins das penas e abordar o seu modo de aplicação.
Está hoje ultrapassada a visão retribucionista da pena, segundo a qual esta varia apenas em função da culpa do agente. Ela estabelece antes, o limite máximo da pena a aplicar.
Considerações de prevenção geral, devem determinar o seu limite mínimo; senão, a pena seria considerada laxista pela comunidade social, e serviria como foco impulsionador de outras condutas desviantes.
Dentro destes parâmetros, são as exigências de prevenção especial ou, dito de outra forma, a necessidade de reinserção social do agente que há-de determinar a medida da pena a aplicar (neste sentido, F. Dias, "Direito Penal Português", Ed. Notícias, 1993, págs. 214 e segs.; Robalo Cordeiro, "Escolha e Medida da Pena", em "Jornadas de Direito Criminal", págs. 235 e segs.; Anabela M. Rodrigues, "Rev. Port. Ciência Criminal", Ano1, Nº2, págs. 248 e segs.).

Na linguagem de Figueiredo Dias, op. cit., pág. 227,

“As finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.”

Como refere na mesma obra, pág. 230,
“A culpa traduz-se numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas”.

Ou ainda, a págs. 231,

“Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração (…) podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.”

Coadjuvante do Juíz na escolha e medida da pena é o art.º 71º C.P., que tipifica de forma não taxativa, alguns critérios a ter em conta.

São agravantes, no caso dos autos:

- os antecedentes criminais do arguido, com oito condenações até 2 009, factos de 2 003 (por introdução em casa alheia, condução ilegal, duas outras também por consumo de estupefacientes (art.º 40º/1 D.L. n.º 15/93, 22/1), duas por furto, uma por sequestro e três por roubo – art.º 71º/2, d), C.P.

E atenuantes:

- estar inserido familiarmente, já que vive com a Mãe e irmãos e contribui, para a vida em comum (art.º 71º/2, d), C.P.)
- ter uma atividade profissional, ainda que esporádica (art.º 71º/2, d), C.P.).

De há muito está arredada a dicotomia clássica entre “drogas duras” e “drogas leves”. Com efeito, o haxixe que era tradicionalmente uma “droga leve” tem sido responsável pela indução de muitas psicoses tóxicas, algumas semelhantes em termos de sintomas à esquizofrenia (com ideais de delírio e perseguição), que já levaram à prática de alguns crimes graves.

Por outro lado, pelo entorpecimento e dependência que provocam são também responsáveis por muitos casos desinserção social.

O arguido tem tido a sua vida pautada pela toxicodependência, que já terá levado à criminalidade normalmente associada (2 (dois) crimes de furto e 3 (três) de roubo) e ao cumprimento de penas de prisão; o último destes crimes data porém já de factos de 2 004.

O arguido não tem sido condenado criminalmente, mas mantém hábitos de trabalho esporádico e consumo de haxixe persistente.
Neste processo está apenas em causa o consumo de haxixe.

No seu caso, parecem ultrapassados os riscos que lhe estão associados, sendo porém de referir que o arguido já tem quase 46 (quarenta e seis) anos de idade e ainda não tem uma vida estruturada e independente. É caso para perguntar o que espera e o que fez por si. Com efeito, deve reconhecer-se que o Estado tem hoje um serviço nacional e gratuito de tratamento da toxicodependência, com muitos profissionais a dedicarem-se a ele de alma e coração. Está o arguido à espera de recair na prática de novos ilícitos mais graves? E, quando estruturará a sua vida?

São interrogações que ficam e a que só o arguido poderá responder. Apesar de tudo e atualmente, dado que não se pode dizer também que esteja num mau momento, considera-se que nos termos do disposto nos arts.º 40 e 70º C.P., deve optar-se pela aplicação de pena de multa.

O crime por que o arguido vai ser condenado é punível com pena de prisão até 1 (um) ano ou de multa, até 120 (cento e vinte) dias.

Optando-se pela pena menos grave, julga-se que a medida desta deve ser ligeiramente superior ao ponto médio da pena. Sendo esta de 65 (sessenta e cinco) dias, considera-se adequada a pena pedida pelo M.P. em 1ª instância, na 1ª instância e neste Tribunal da Relação, de 80 (oitenta) dias.

Quanto à taxa diária. Prevê a lei, que seja fixada entre os 5€ (cinco euros) e os 500€ (quinhentos euros) por dia, tendo em conta a situação económica e financeira do condenado e os seus encargos (art.º 47º/2 C.P.).

A pena de multa deve ser adaptada à situação pessoal do arguido, mas não pode deixar de ser sentida como pena, sob pena de não cumprir os seus objetivos de prevenção geral e especial.

No caso do arguido, este ganha cerca de 250€ (duzentos e cinquenta euros mês) por trabalhos esporádicos, vive com a Mãe e dois irmãos de 44 (quarenta e quatro) e 42 (quarenta e dois) anos de idade e mora com a Mãe, Doméstica, entregando à Mãe a quantia de 25€ (vinte e cinco) euros/mês, para ajudar no pagamento das despesas de água e eletricidade.

Apetece dizer que o arguido, ao invés de gastar dinheiro em droga devia ajudar mais a sua Mãe.

Mas, há que reconhecer que a sua condição socio-económica é marcadamente débil, justificando-se por isso, neste caso, a aplicação da taxa diária mínima de multa, que é de 5€ (cinco euros) – ao invés dos 6€ (seis euros) requeridos pelo M.P.

Termos em que,

3 – Decisão

a) se julga parcialmente procedente o recurso interposto pelo M.P. e, por via disso, os seguintes factos passarão dos factos não provados, para os factos provados:
a1) o produto estupefaciente apreendido, à data e local dos factos, ao arguido era suficiente para mais de 10 doses individuais médias diárias;
a2) o arguido sabia que o produto estupefaciente que detinha excedia o consumo médio individual por um período de 10 (dez) dias.
b) Do mesmo modo, a última parte do art.º 1º dos factos provados passará para os não provados, ou seja que:
b1) o haxixe apreendido correspondia a 1,884 dose média individual diária
c) Por via disso se altera a anterior decisão de absolvição do arguido recorrente C. M., que é agora condenado pela prática de um crime de consumo de estupecientes p. e p. pelo art.º 40º/2 D.L. n.º 15/93, 22/1, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à razão diária de 5€ (cinco euros).
d) Sem custas.
e) Notifique.

(Pedro Cunha Lopes)
(Ausenda Gonçalves) "Voto a decisão"