Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6610/16.7T8GMR.G1
Relator: MARGARIDA FERNANDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
ACIDENTE DE VIAÇÃO IMPUTÁVEL À VITIMA
RISCOS DO VEÍCULO
SEGURO OBRIGATÓRIO
DANOS EXCLUÍDOS DA GARANTIA DO SEGURO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS PRÓPRIOS SOFRIDOS PELA VÍTIMA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS PRÓPRIOS SOFRIDOS PELOS DESCENDENTES DA VÍTIMA
DANOS PATRIMONIAIS DESTES A TÍTULO DE PERDA DE ALIMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Num caso em que o condutor imobilizou uma carrinha carregada de areia num local com uma inclinação descendente de 9%, acionou apenas o travão de mão, deixou o motor a trabalhar, saiu da cabine para abrir os fechos do taipal da lateral direita e em que o veículo, a dada altura, rodou descaindo para a frente e sua esquerda na direção de um muro, onde veio a esmagar o condutor, é de considerar este acidente de viação imputável exclusivamente ao comportamento da vítima e não aos riscos próprios do veículo.

II - Estão excluídos da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel os danos não patrimoniais próprios sofridos pela vítima, os danos não patrimoniais próprios sofridos pelos descendentes da vítima, bem como os danos patrimoniais destes a título de perda de alimentos.

III – Estas exclusões não se mostram contrárias às Directivas Automóveis, nem às interpretações que têm vindo a ser feitas pelo T.J.U.E..
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

D. F. e A. C., menores, representados por sua mãe, S. M., instauraram acção declarativa com processo comum contra X Seguros, S.A. pedindo que a sua condenação no pagamento:

a) a cada um, pelo dano da morte do falecido, € 35.000,00;
b) a ambos, na medida da proporção que lhes cabe por herança, a quantia global de € 60.000,00, a título de compensação pelo sofrimentos (danos próprios da vítima) por que passou o falecido entre o embate e o momento da morte;
c) à autora A. C. a quantia de € 50.000,00 como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela perda do pai;
d) ao autor D. F. a quantia de € 50.000,00 como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela perda do pai;
e) à autora A. C. a quantia de € 61.950,00 como compensação pela perda de alimentos;
f) ao autor D. F. a quantia de € 46.950,00 como compensação pela perda de alimentos, tudo acrescido de juros legais a contar da citação e até efectivo e integral pagamento.

Alegam, em síntese, que são filhos e únicos herdeiros de C. C., falecido a ../../2014, cerca das 19h30, o qual, nessa data, por instruções da sua entidade patronal, transportou no veículo de matrícula FT, que conduziu, uma carga de areia para a Rua …, Fafe, tendo em vista a construção de um muro. Aí chegado, travou o veículo, saiu da cabine, deixando-o a trabalhar e accionou o mecanismo que faz levantar a báscula para descarregar a areia; nesses instantes o veículo descaiu para a esquerda em sentido descendente, esmagando-o com o taipal lateral da caixa de carga contra um muro que se encontrava à esquerda.

Referem que o traçado da via é recto, com inclinação descendente de cerca de 9%, considerando a orientação da frente do veículo, não existem bermas, nem passeios, sendo ladeada de edificações e o muro em construção do lado direito, com largura aproximada de 4 metros. No momento chuviscava e o piso encontrava-se molhado.

Em consequência do acidente, o pai sofreu lesões que lhe determinaram a morte.

O pai proporcionava-lhes momentos de grande felicidade, companhia e orientação, era muito carinhoso, passava a maior parte do tempo livre com eles. O autor D. F. admirava muito o pai e acompanhava-o sempre que podia.

O pai tinha 30 anos, era robusto, saudável, dinâmico, empreendedor, com grande energia e gosto pela vida, dedicado à família e amigos, muito querido e socialmente considerado.

No interregno que mediou entre o embate e a morte, cerca de 30 minutos, o progenitor visualizou e apercebeu-se da iminência da morte, sentiu dores físicas decorrentes das lesões e o esmagamento que impediu a sua libertação e pedido de ajuda. No momento do acidente e após a sua ocorrência conservou a consciência e a lucidez e viveu o desespero de deixar os filhos.

Acrescentam que o progenitor exercia actividade profissional na sociedade Construções D. C. & M. C., Lda., como pré-oficial da indústria da construção civil, auferindo o salário mensal de € 505,00 acrescido de € 116,84 de subsídio de alimentação mensal, no valor anual de € 7.070,00. Entregava à ex-cônjuge aproximadamente € 300/mês. Tinha expectativa de vir a auferir, a breve trecho, salário superior, a integrar a gerência da empresa em 2024 e de ficar proprietário de 50% das quotas da sociedade, sendo expectável que os rendimentos duplicassem nessa ocasião e que, no intervalo, o salário aumentasse, no mínimo, € 30/mês. Assim, contribuiria com metade para a educação e alimentos dos filhos no valor global de € 22.950,00 para cada um entre 2014 e 2024, momento em que teriam 17 e 12 anos. Estes esperavam receber € 500,00 por mês até perfazerem 25 anos, o que corresponde a € 24.000,00 e € 39.000,00 respectivamente.
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A ré ofereceu contestação contrapondo que tomou conhecimento do sinistro no âmbito da apólice dos acidentes de trabalho e, do que foi possível apurar quanto às causas do sinistro, o malogrado pai dos autores conduzia o veículo, parou e saiu da respectiva cabine e, quando se encontrava a proceder a uma operação de descarga de areia, a viatura descaiu e esmagou-o com a parte lateral da caixa de carga, provocando de imediato o seu óbito. Entende que se trata de um acidente de trabalho e não de viação e que o mesmo não tem conexão com os riscos específicos do veículo. Acrescenta que, na hipótese de se tratar de um acidente de viação, não poderia ser responsabilizada, pois o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel exclui do mesmo a garantia pelos danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável, assim como os danos decorrentes daqueles, bem como os danos materiais causados ao condutor, entre outros, aos seus descendentes e às pessoas identificadas nos artigos 495º, 496º e 499º do C.C. que beneficiem de pretensão indemnizatória decorrentes dos vínculos com aquele.

Acrescenta que o acidente ficou a dever-se ao facto do pai dos autores não ter accionado correctamente os meios de retenção do veículo, nem ter tomado as medidas necessárias para que não se deslocasse enquanto estava parado, já que os calços dos travões tinham sido mudados, o sistema de travagem estava a funcionar em perfeitas condições. Acrescenta que o falecido não tinha experiência na condução da viatura, estava com excesso de peso, colocou-se numa posição com pouco espaço, ficando entre a viatura e o muro, denotando falta de cuidado nas medidas de segurança para precaver qualquer imprevisto.

Refere ainda que o valor da pensão mensal que liquidava para as despesas dos filhos era de € 150,00 e que não podem peticionar um valor já atribuído em sede de acidente de trabalho.
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No exercício do contraditório quanto às excepções os autores argumentaram que o acidente se deveu ao risco inerente à circulação do veículo, designadamente por destravamento, não podendo o seu pai considerar-se condutor, pois não se encontrava ao volante do veículo no momento do acidente. Entendem ainda que o motorista de um veículo aproveita, como terceiro, da responsabilidade objectiva estabelecida na lei desde que sofra acidente relacionado com os perigos próprios do mesmo.
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Foi dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto da causa e foram enunciados os temas da prova.
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Após realização de julgamento foi proferida sentença, cuja parte decisória reproduzimos na íntegra:

“Em face do exposto, o Tribunal, julgando a ação não provada e improcedente, absolve a Ré X Seguros, S.A. dos pedidos formulados pelos Autores D. F. e A. C., representados por sua mãe S. M..
Custas da ação a cargo dos Autores.
Registe e notifique.”
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Não se conformando com esta sentença vieram os autores dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“i. Devem ser alteradas as respostas dadas à matéria de facto no sentido da impugnação feita em A. supra, quanto aos pontos 10, 11, 13, 14, 15 e 16 dos factos provados, cujas provas concretas que o impõem vêm indicadas na análise impugnatória das respostas dadas pelo Tribunal a cada um desses facto, concretamente, análise dos depoimentos e documentos lá identificados (de pag. 7 a 12 desta motivação).
ii. Devem também ser alteradas as respostas dadas à matéria de facto no sentido da impugnação feita em A. supra, quanto aos pontos 31, 32 e 80 a 82 dos factos não provados por referência aos artigos da p.i., cujas provas concretas que o impõem vêm indicadas na análise impugnatória das respostas dadas pelo Tribunal a cada um desses facto, concretamente, análise dos depoimentos e documentos lá identificados (de pag. 12 a 14 desta motivação).
iii. O Tribunal errou ao concluir que o acidente de viação em causa nos autos é imputável ao lesado, como se evidenciou supra em B., concretamente a partir de pag. 15 desta motivação.
iv. E fê-lo também porque decidiu erradamente da matéria de facto como exposto, sendo certo que, no modesto entender dos recorrentes, mesmo que não se alterasse as respostas à matéria de facto, sempre se teria de entender que a morte do falecido pai dos AA. ocorreu em virtude apenas dos riscos específicos da viatura.
v. Todos os argumentos que o Tribunal tirou no sentido da imputação do acidente ao lesado não têm solidez, nem sequer ocorrem, como também se julga ter demonstrado, concretamente de fls. 24 a 27 da presente motivação, sempre conjugada e por referência à impugnação dos referidos pontos da matéria de facto.
vi. Não restam dúvidas que o acidente é apenas atribuível aos riscos próprios da viatura, porque não se conseguiu apurar uma sua efectiva e verdadeira causa, sendo certo que se encontram preenchidos todos os requisitos de que dependia a sua subsunção ao instituto da responsabilidade pelo risco.
vii. O Tribunal errou, assim, na interpretação que fez do art. 503º a 505º do C.C.
viii. Por fim e por cautela, como se evidenciou a fls. 30 e 31 supra, a propósito do Ac. do TJUE, de 14/09/2017, disponível no sítio da internet deste Tribunal, e atendendo ao primado do direito comunitário, a decisão recorrida violou a 1ª e 3ª directiva lá melhor identificadas, que se opõem a uma regulamentação nacional que exclua o condutor enquanto beneficiário da responsabilidade pelo risco.”

Pugnam pela revogação da sentença condenando a ré X no peticionado.
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A ré apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do/a recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Apurar se houve erro na apreciação da matéria de facto;
B) E apurar se houve erro na subsunção jurídica.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. O autor D. F. é filho de C. C. (al. A) do despacho de 22/09/2017 e doc. de fls. 22/23).
2. O autor D. F. nasceu a ../../2007 (al. B) do despacho em referência e doc. de fls. 22/23).
3. A autora A. C. é filha de C. C. (al. C) do despacho em referência e doc. de fls. 23V/24].
4. A autora A. C. nasceu a ../../2012 (al. D) do despacho em referência e doc. de fls. 23V/24).
5. C. C., filho de M. C. e de M. F., faleceu a ../../2014 (al. E) do despacho em referência e doc. de fls. 12V/13).
6. Na data referida em 5 C. C. tinha 30 anos de idade (al. F) do despacho em referência e doc. de fls. 12V/13).
7. Por contrato de seguro titulado pela apólice nº 34/… Construções D. C. e M. C., Lda. transferiu para a ré a responsabilidade pela circulação rodoviária do veículo marca Mitsubishi, modelo Canter, versão FE331EELEA, com a matrícula FT (al. G) do despacho em referência e doc. de fls. 100).
8. No dia ../../2014 C. C., por instruções da sua entidade patronal, Construções D. C. & M. C., Lda., dirigiu-se à Rua das …, da freguesia de …, concelho de Fafe, onde estavam a ser executados trabalhos em vista da construção de um muro, transportando uma carga de areia (al. H) do despacho em referência).
9. Fê-lo ao volante do veículo automóvel ligeiro de mercadorias identificado em 7 chegando ao local pelas 19h30 (al. I) do despacho em referência).
10. Chegado ao local, C. C. accionou o travão de mão e, deixando o veículo a trabalhar, saiu da cabine para abrir os fechos dos taipais situados na lateral direita do FT a fim de proceder à descarga da areia que transportava, operação que realizou quanto ao fecho traseiro (resposta aos art. 12º, 29º da p.i., 7º, 11º da cont.).
11. C. C. não tomou outra medida para evitar a deslocação do FT enquanto estava parado, designadamente engrenar a mudança de marcha atrás ou colocar pedras junto aos pneus (resposta ao art. 31º da cont.).
12. O FT tinha sido submetido a inspecção periódica em 02/10/2014 e, uma a duas semanas antes da data aludida em 5, os calços dos travões haviam sido mudados (resposta ao art. 32º da cont.).
13. Após o sinistro, os órgãos de travagem do FT foram verificados concluindo-se que se encontravam em boas condições de funcionamento (resposta ao art. 32º da cont.).
14. C. C. conduzia o FT com pouca frequência (resposta ao art. 33º da cont.).
15. O FT transportava cerca de 1.500 kg de areia (resposta ao art. 33º da cont.).
16. O FT tem tara de 2.650 Kg e o peso bruto de 3.500 kg (resposta ao art. 33º da cont.).
17. O FT descaiu para a esquerda em sentido descendente esmagando C. C. com o taipal lateral da caixa de carga contra um muro que se encontrava à esquerda da viatura (al. J) do despacho em referência).
18. C. C. ficou entalado e esmagado, em pé, entre a viatura e o muro até à chegada de seu pai ao local (al. K) do despacho em referência).
19. Estranhando o atraso de C. C. para jantar, o respectivo progenitor deslocou-se ao local onde decorria a obra e, lá chegado, verificou que o seu filho se encontrava sozinho, inanimado e apertado entre o muro e o veículo [resposta ao art. 15º da p.i.).
20. Tendo em vista libertá-lo o pai de C. C. entrou na viatura, engrenou a mudança de marcha atrás, conduzindo-a para a retaguarda (resposta ao art. 16º da p.i.).
21. No momento referido em 20 o pai de C. C. constatou que o travão de mão estava accionado (resposta ao art. 30º da p.i.).
22. O pai do falecido moveu o veículo ficando este pendurado na caixa de carga (al. L) do despacho em referência).
23. Após imobilizar o FT, o pai do falecido retirou-o da caixa de carga e pousou-o no chão, onde permaneceu até à chegada do INEM e da GNR (al. M) do despacho em referência).
24. O traçado da via é recto (al. N) do despacho em referência).
25. Considerando a orientação da frente do veículo, a via tem inclinação descendente de 9% (resposta ao art. 21º da p.i.).
26. O pavimento é composto por terra batida (al. O) do despacho em referência).
27. No local a via não é provida de bermas, nem passeios (al. P) do despacho em referência).
28. A via é ladeada por edificações e por um muro em construção do lado direito, considerando a orientação do veículo (al. O) do despacho em referência).
29. A faixa de rodagem tem a largura de, aproximadamente, 4 metros (al. R) do despacho em referência).
30. No momento do acidente chuviscava (al. S) do despacho em referência).
31. Devido ao referido em 30 o pavimento encontrava-se molhado (resposta ao art. 28º da p.i.).
32. No momento referido em 9 era noite (resposta ao art. 26º da p.i.). 33. C. C. foi socorrido pelo INEM, que adoptou manobras de suporte básico de vida, que não lograram sucesso (al. Z) do despacho em referência).
34. De seguida, foi transportado para a morgue (al. AA) do despacho em referência).
35. Na sequência de autópsia foi considerado que a morte de C. C. foi devida a lesões traumáticas torácicas e pélvicas em resultado de traumatismo de natureza contundente ou actuando como tal (al. T) do despacho em referência e doc. de fls. 14 a 17).
36. Na tentativa de conciliação realizada a 07/10/2015, no processo nº 3217/14.7T8GMR, que correu termos na Procuradoria da Instância Central – Trabalho de Guimarães, a ré aceitou a existência do acidente ocorrido na data e local referidos em H) e a sua caracterização como de trabalho, a existência das lesões e do nexo causal com a morte de C. C., a transferência da responsabilidade infortunística relativamente ao sinistrado pelo retribuição de € 500 x 14 meses/ano, acrescido de € 116,84 x 11 meses/ano de subsídio de alimentação e pagar aos autores a pensão anual de € 3.342,10, com início em 27/11/2014 (€ 1.671,05 para cada um), a quantia de € 5.533,70 a título de subsídio por morte, sendo metade para cada um, bem como despesas de transporte e com o funeral (al. X) do despacho em referência e doc. de fls. 33 a 35).
37. O acordo referido em 36 foi homologado por sentença proferida a 26/10/2015 (al. Y) do despacho em referência e doc. de fls. 33 a 35). 38. O falecido C. C. era carinhoso para com os autores, brincava e passava com eles a maior parte do seu tempo livre (resposta ao art. 44º da p.i.).
39. O autor D. F. acompanhava o pai com frequência (resposta ao art. 47º da p.i.).
40. O autor admirava muito o pai, via-o como seu parceiro e tomava-o como exemplo, experimentando momentos de felicidade (resposta aos art. 43º, 45º, 46º, 48º da p.i.).
41. Os autores ficaram privados da possibilidade de conviverem, de serem acompanhados, acarinhados e educados pelo pai, de cuja presença e influência já tinham percepção (resposta ao art. 49º da p.i.).
42. A privação referida em 41 tem e terá repercussões negativas do ponto de vista afectivo e emocional (resposta ao art. 50º da p.i.).
43. C. C. era um homem robusto e aparentemente saudável, dinâmico, trabalhador, afectuoso, com gosto pela vida e grande amor pelos filhos (resposta ao art. 53º da p.i.).
44. Era dedicado à família e aos amigos (resposta ao art. 54º da p.i.).
45. Era querido por familiares e amigos, estimado por vizinhos e conhecidos (resposta ao art. 56º da p.i.).
46. No período que mediou o momento em que foi comprimido entre a lateral esquerda do FT e o muro e o falecimento, de duração que não foi possível apurar, C. C. sofreu dores intensas provocadas por fracturas de diversas costelas, do membro superior direito e da bacia, contusões pulmonares e hemorragias nas regiões adjacentes às fracturas (resposta aos art. 60º, 61º, 65º da p.i.).
47. O esmagamento, a impossibilidade de se libertar e a não existência de socorro tornaram perceptível a inevitabilidade da sua morte, agravando o seu sofrimento (resposta aos art. 62º, 63º da p.i.).
48. A sua idade e a circunstância de ter filhos de si dependentes causaram-lhe angústia perante a eminência da morte (resposta aos art. 67º, 68º da p.i.).
49. C. C. exercia a actividade de pré-oficial na indústria de construção civil, auferindo um salário mensal no valor de € 505,00 acrescido do subsídio de alimentação de cerca de € 116,84/mês (al. AB) do despacho em referência).
50. C. C. entregava à ex-cônjuge a quantia de € 150,00 a título de prestação de alimentos dos autores, bem como roupas e brinquedos, com regularidade que não foi possível apurar (resposta aos art. 74º, 86º da p.i., 82º da cont.).
51. Na data referida em 8 a sociedade Construções D. C. & M. C., Lda. tinha por objecto a indústria de construção civil e empreitadas de obras públicas, preparação de locais de construção civil, nomeadamente de demolições e terraplanagens; perfuração e construção de poços (al. U) do despacho em referência e doc. de fls. 27V a 30).
52. Na mesma data o capital da sociedade no montante de € 5.000,00 estava distribuído por três quotas, de € 2.000,00, € 1.000,00 e € 2.000,00, pertencentes respectivamente a C. C., M. C. e S. R. (al. V) do despacho em referência e doc. de fls. 27V a 30).
53. A sociedade obrigava-se com a intervenção de um gerente estando designado o sócio M. C. (al. W) do despacho em referência e doc. de fls. 27V a 30).
54. C. C. tinha a expectativa de vir a auferir um salário superior ao referido em 49 e de, eventualmente, integrar a gerência da sociedade (resposta ao art. 76º da p.i.).
55. A sociedade identificada em 51 tinha trabalho e gerava lucros, havendo expectativas da sua continuidade (resposta aos art. 77º, 78º da p.i.).
56. Após o falecimento do pai os autores passaram a receber o montante mensal de € 119,36 resultante do acordo aludido em 36 (resposta ao art. 83º da p.i.).
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Foram considerados não provados os seguintes factos:

- nos art. 12º (segmento “acionado o mecanismo que faz levantar a báscula”), 55º, 77º, 80º a 82º, 87º a 90º da p.i.;
- nos art. 7º (quanto à morte imediata), 62º a 65º da cont..

A alegação contida nos art. 9º, 31º, 32º, 34º, 51º, 57º a 59º, 69º, 84º a 86º, 93º a 101º da petição inicial, 8º, 10º, 12º a 30º, 34º a 59º, 69º a 75º, 77º a 80º, 83º a 85º da contestação, 1º a 21º do articulado de exercício do contraditório constitui matéria conclusiva ou de direito.
A alegação contida nos art. 1º, 2º, 60º, 61º, 67º, 68º, 76º da contestação, 22º e 23º do articulado de exercício do contraditório diz respeito ao cumprimento do ónus da impugnação especificada.
Os demais factos alegados apenas foram julgados provados na exacta medida do conteúdo da fundamentação de facto no seu conjunto.
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A) Reapreciação da matéria de facto

Insurgem-se os apelantes contra os factos provados nº 10, 11, 13, 14, 15, 16 e os factos não provados correspondente aos art. 31º, 32º, 80º a 82º da p.i..
Os apelados pronunciaram-se pela correcta apreciação da matéria de facto pelo tribunal recorrido.

Vejamos.

O Tribunal da 1ª Instância, ao proferir sentença, deve, em sede de fundamentação “(…) declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” (art. 607º nº 4 do C.P.C.) e “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (art. 607º nº 5 do C.P.C.).

Sendo certo que o julgador aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção, salvo algumas limitações, a análise crítica da prova é da maior importância do ponto de vista da fundamentação de facto da decisão. Com efeito, esta deve ser elaborada por forma a que, através da sua leitura, qualquer pessoa possa perceber quais os concretos meios de prova em que o Tribunal se baseou para considerar determinado facto provado ou não provado e a razão pela qual tais meios de prova foram considerados credíveis e idóneos para sustentar tal facto. Esta justificação terá de obedecer a critérios de racionalidade, de lógica, objectivos e assentes nas regras da experiência.

A exigência de análise crítica da prova nos termos supra referidos permite à parte não convencida quanto à bondade da decisão de facto tomada pelo tribunal da 1ª instância interpor recurso contrapondo os seus argumentos e justificar as razões da sua discordância.

Caso seja requerida a reapreciação da matéria de facto incumbe, desde logo, ao Tribunal da Relação verificar se os ónus previstos no acima art. 640º do C.P.C. se mostram cumpridos, sob pena de rejeição do recurso.

Não havendo motivo de rejeição procede este tribunal à reapreciação da prova nos exactos termos requeridos. Incumbe a este Tribunal controlar a convicção do julgador da primeira instância verificando se esta se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos e sindicar a formação da sua convicção. i.e., o processo lógico. Assim sendo, nada impede que, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, o tribunal superior conclua de forma diversa da do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.
Tendo por base estas considerações e ouvida a prova importa analisar um a um os factos acerca dos quais os apelantes discordam.

- ponto 10 dos factos provados

Antes de mais, o julgador, não obstante inexistirem testemunhas da dinâmica do sinistro, pode e deve, em face da mais prova existente, convencer-se que os factos se passaram de um certo modo. Incumbe a este Tribunal verificar se essa convicção se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.

Atento o depoimento da testemunha M. C. é inquestionável que a vítima, chegada ao local, accionou o travão de mão, deixou o veículo a trabalhar (“ralenti”) e saiu da cabine da carrinha.

Atendendo que a carrinha estava carregada de areia, que a vítima era o responsável pela obra existente no local de construção de um muro, também não oferece dúvidas que o objectivo era proceder à descarga da mesma adiantado trabalho para o dia seguinte.

Em face dos depoimentos das testemunhas M. C., J. M. e P. R. esta descarga passava primeiro por abrir o taipal do lado direito da carrinha (fecho traseiro e dianteiro direito), pois era para esse lado que se pretendia descarregar, depois entrar na cabine para accionar a báscula sendo que para isto o motor tem que estar a trabalhar e há que acelerar. No caso em apreço apurou-se que o fecho traseiro direito do taipal estava aberto pelo que se pode concluir que foi a vítima que o abriu, pois não é nada credível que se carregue uma carrinha de areia, que se deixe esse fecho aberto e que se circule assim (haveria certamente um rasto de areia que ficaria pelo percurso).

Pelo exposto, é de manter este facto como provado.

- ponto 11 dos factos provados

Entendemos que é de manter este facto.

Com efeito, afigura-se-nos que do depoimento da testemunha M. C. resulta que a carrinha não tinha a mudança de marcha atrás engatada, nem pedras junto aos pneus. Disse expressamente que a carrinha estava em “ralenti” ou noutras palavras em “ponto morto”. Nenhuma testemunha fez qualquer referência à colocação de pedras junto aos pneus, mas se as mesmas tivessem sido colocadas certamente que o teriam feito uma vez que estas não teriam passado despercebidas (duas ou quatro pedras com capacidade de travar uma carrinha carregada de areia não poderiam ter um tamanho insignificante).

- ponto 13 dos factos provados

Também é de manter este facto.

A testemunha M. C. referiu que a carrinha “não tinha qualquer problema”. A testemunha J. M., que se deslocou ao local na noite do sinistro, referiu ter “puxado o travão” e ele travava. A testemunha P. R., em 11/12/2014, deslocou-se ao estaleiro, experimentou a carrinha e verificou que os travões funcionavam correctamente pelo que aconselhou o pai do sinistrado a pedir a uma oficina uma declaração que o atestasse, o que este fez tendo obtido o documento de fls. 60V. Neste declarou-se que, em 18/12/2014, o sistema de travagem da viatura estava em perfeito funcionamento, não necessitando de afinação, acrescentando que assim se concluiu depois de se ter verificado visualmente os travões da frente, de trás e o travão de mão. Naturalmente que a “verificação visual” não pode ter sido o mero olhar para os travões, mas a observação da carrinha a travar com os vários travões. Acresce que a inspecção periódica ao veículo ocorrida em 02/10/2014 não detectou deficiências nos travões cfr. doc. de fls. 60 e 159.

- ponto 14 dos factos provados

A testemunha M. C., em 13/02/2015, em sede em processo de inquérito, afirmou à G.N.R. que o filho raramente conduzia aquela carrinha. Mas na sessão de julgamento de 16/02/2018, na sequência de uma pergunta, disse primeiro que usava a carrinha “sempre que precisasse”, mas a seguir referiu que “tinha dias e dias que andava sempre com ela”. Ora, afigura-se-nos mais credível o afirmado em primeiro lugar, num momento mais próximo do sinistro e ainda sem litígio com a seguradora, que apenas mais tarde se terá recusado a pagar indemnização alegando que o acidente se deveu a culpa do sinistrado.

Assim, é de manter este facto provado.

- ponto 15 dos factos provados

É de manter o ponto 15 uma vez que o peso de areia estimado em 1.500 kg resulta do depoimento da testemunha M. C., sócio da empresa de construções, e homem experiente em carrinhas de trabalho como aquela que interveio no sinistro, quer em 13/02/2015, em sede de inquérito crime, quer em julgamento (onde admitiu um peso entre 1500 kg e 2000 kg).

- ponto 16 dos factos provados

Neste ponto entendemos que assiste razão aos apelantes.

Ora, a tara total do veículo em causa apresenta valores diferentes em dois dos documentos aparentemente anexos à “consulta da última ficha de inspecção do veículo com a matrícula “FT”” (fls. 159) junta ao relatório da GNR apresentado no processo-crime. Assim, enquanto que, na “consulta do veículo”, consta como a tara da frente 1170, da retaguarda 700 e total 2650 (fls. 159V), na “consulta da homologação” consta como a tara da frente 1170, da retaguarda 700 e total 1870 (fls. 160).

A este respeito é irrelevante o depoimento da testemunha J. M., autor do referido relatório, bem como o que a mesma testemunha fez constar no mencionado relatório, uma vez que se baseou num destes documentos. O valor correcto desta apenas se pode retirar do livrete da viatura que não se mostra junto aos autos.

De qualquer modo, afigura-se-nos que o valor correcto será 1870 por se tratar da soma dos valores da frente e da retaguarda pelo que há que corrigir este ponto dos factos provados nesses termos.

- art. 31º e 32º da petição inicial

Desde logo, quanto ao art. 31º da p.i., a expressão “condições normais de segurança” e a afirmação de que a vida acabou por perecer “por qualquer e indeterminado motivo do veículo” são conclusivas pelo que pura e simplesmente deviam ter sido expurgadas da matéria de facto.

O alegado no art. 32º da p.i é igualmente conclusivo. Com efeito, é do conjunto de factos apurados que se poderá retirar a conclusão da existência ou não de explicação para o sucedido. De qualquer modo, sempre se dirá que da prova produzida não resulta, quanto a nós, que a viatura tenha descaído inexplicavelmente contra o corpo do pai dos autores.

Assim, é de manter o alegado nestes artigos como não provado.

- art. 80º a 82º da petição inicial

É de manter estes factos como não provados na medida em que o referido pelas testemunhas M. C. e S. R. corresponde a meras suposições desacompanhadas de documentos contabilísticos. Acresce que a actividade da construção civil não é muito estável, sendo que o melhor ou pior estado da economia nela tem consequências (não estando afastado um cenário de uma nova grave crise).
É assim de manter o alegado nestes artigos como não provado.
*
B) Subsunção jurídica

Insurgem-se igualmente os autores contra a subsunção jurídica efectuada pelo tribunal recorrido dizendo que, ainda que não se alterasse a matéria de facto ter-se-ia que entender que a morte de C. C. ocorreu apenas em virtude dos riscos próprios da viatura. Mais referem que, por força do direito da união, designadamente das 1ª e 3ª Directivas Automóveis, não se pode excluir o condutor enquanto beneficiário da responsabilidade pelo risco.

Vejamos.

O Código Civil prevê a responsabilidade civil distinguindo a responsabilidade civil por facto ilícito (art. 483º nº 1 e ss.) e a responsabilidade pelo risco (art. 498º nº 2 e 499º e ss.).

Dispõe o nº 1 do art. 483º que Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. (sublinhado nosso). Exige este preceito a prática de um facto ilícito praticado por pessoa diversa do lesado, o que não ocorre no caso em apreço em que apenas o lesado esteve presente e adoptou determinados comportamentos.
Assim sendo, o caso tem que ser apreciado em sede de responsabilidade civil pelo risco.

Dispõe o art. 503º do C.C., sob a epígrafe “Acidentes causados por veículos”: Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terreste e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que não se encontre em circulação (nº 1) e Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte (…) (nº 3).

Por “direcção efectiva” entende-se o poder de facto sobre o veículo, independentemente da titularidade ou não de algum direito sobre o mesmo, quem de facto gozar e usufruir das vantagens do mesmo e quem, por tal razão, está incumbido de controlar o seu funcionamento.

A expressão “o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário” pretende apenas excluir da responsabilidade objectiva prevista no nº 1 do art. 503º os que conduzem o veículo por conta de outrem, i.e., os comissários, sendo que nestes casos a responsabilidade recai sobre os comitentes.

Por “danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que não se encontre em circulação” pretende-se abranger, além dos danos resultantes da circulação de veículos, quer na via pública, quer privada, também os danos causados pelo veículo imobilizado, como por ex. incêndio por curto-circuito do motor ou colocação do veículo em andamento por avaria do sistema de travões.

Neste sentido vide Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª ed., Almedina, p. 351 e 352.

No caso sub judice é a sociedade Construções D. C. e M. C., Lda., proprietária do veículo de matrícula FT, quem tem a direcção efectiva do mesmo e quem o utiliza no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, como o foi C. C., sendo que o dano ocorrido – óbito deste por esmagamento da referida viatura contra a parede – se inscreve nos riscos próprios do veículo. Assim, em princípio, incumbe àquela sociedade, ou melhor à seguradora ré para quem aquela transferiu a responsabilidade civil, a responsabilidade pelos danos provenientes de tais riscos próprios.
O acidente ocorrido deve ser qualificado como sendo de viação uma vez que existe um nexo causal entre o esmagamento de C. C. e o risco inerente ao funcionamento do veículo.

Como se lê no Ac. do S.T.J. de 12/06/1996 (Nascimento Costa), in www.dgsi.pt “Acidente de viação é toda a ocorrência lesiva de pessoas ou de bens verificada em consequência dos riscos especiais do veículo ainda que se encontre parado.”. Segundo o referido no Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, do mesmo relator, in www.dgsi.pt, “Tratava-se nesse processo de acidente ocorrido com um tractor, que num pinhal puxava madeiras para carregar em camiões, tendo acontecido que no momento o tractor descaiu um metro, entalando então um trabalhador contra um pinheiro.”. “Manifestaram-se aqui os riscos próprios de um veículo, que se desloca sobre rodas, podendo por isso adquirir rapidamente velocidade em plano inclinado, se não estiver devidamente travado e algumas vezes com as rodas calçadas (…).”. E ainda “Uma máquina sem rodas provavelmente não teria descaído.”. Como se refere neste Acórdão é irrelevante que que o veículo andasse a executar tarefas como de puxar ou rebocar madeira.
Também se não nos oferece dúvidas que o falecido C. C. tinha a qualidade de condutor não obstante no momento do sinistro se encontrar fora da viatura que tinha conduzido até ao local. Com efeito, vigora um conceito amplo de condutor de molde a abranger, quer a pessoa que está ao volante do veículo a conduzi-lo, quer a pessoa que desempenhou essa tarefa, mas que o imobilizou e/ou estacionou. Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 01/12/2015 (Gregório Silva Jesus) e de 10/01/2012 (Nuno Cameira), in www.dgsi.pt.

Regressando à responsabilidade civil pelo risco dispõe o art. 505º do C.C., sob a epígrafe “Exclusão da responsabilidade”: Sem prejuízo do disposto no art. 570º, a responsabilidade fixada pelo nº 1 do artigo 503º, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do vínculo.”

“A expressão “imputável” não significará neste caso que seja exigível a culpa do lesado, sendo, porém necessário que a sua conduta tenha sido a única causa do dano. Assim, os comportamentos automáticos, ditados por medo invencível ou por reacções instintivas, os actos de inimputáveis e os eventos fortuitos relativos ao lesado (desmaios ou quedas) serão também determinantes da exclusão da responsabilidade pelo risco, uma vez que nesse caso o acidente deixa de se poder considerar como um risco próprio do veículo e passa a ser devido exclusivamente a outros factores” (Menezes Leitão, ob. cit., p. 353).

E refere Antunes Varela, in Das Obrigações em geral, vol. I, 7ª ed., Almedina, p. 674: “Para a exacta compreensão do preceito, importa considerar que não é um problema de culpa que está em causa no artigo 505º, pois não se trata de saber se o lesado é responsável pelos danos provenientes do facto (ilícito) que haja praticado. Trata-se apenas de um problema de causalidade, que consiste em saber quando é que os danos verificados no acidente não devem ser juridicamente considerados como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima.”

Revertendo ao caso sub judice afigura-se-nos que ficou demonstrado que o acidente em causa é imputável exclusivamente ao comportamento da vítima C. C. e não aos riscos próprios do veículo.

Com efeito, a vítima imobilizou o veículo num local com uma inclinação descendente de 9%, accionou apenas o travão de mão (não se tendo apurado se a 100% ou não), deixou o motor a trabalhar e saiu da cabine para abrir os fechos do taipal da lateral direita tendo chegado a abrir o fecho traseiro. Ora, atentas as características do local (inclinação) e principalmente o facto do veículo estar carregado de areia (ainda que sem excesso de carga), conclui-se que o sistema de imobilização do veículo com o travão de mão revelou-se insuficiente, pois não impediu que o veículo, a dada altura, rodasse, descaindo para a frente e para a sua esquerda na direcção de um muro aí existente.

O procedimento correcto num caso como este seria, além de accionar o travão de mão, engrenar a marcha atrás e desligar o motor, pois nestas circunstâncias não se nos afigura possível que o veículo se pudesse mover. A seguir abrir o taipal lateral direito, reentrar na cabine, ligar o motor e accionar a báscula. Ao não adoptar este comportamento, a nosso ver, a vítima contribuiu exclusivamente para o acidente. Acresce que se presume a culpa da vítima enquanto comissário nos termos do art. 503º nº 3 do C.C..

Poder-se-á colocar agora a questão de saber se in casu não ocorrerá uma situação de concurso entre a culpa do lesado e o risco do veículo.

Segundo a tese tradicional ou clássica não é admissível esta concorrência sendo dados os seguintes argumentos:

- o elemento literal – o art. 505º do C.C. preceitua que a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo é excluída quando o acidente foi imputável ao lesado ou a terceiro. E o art. 570º do C.C. apenas prevê a concorrência de culpas;
- sendo a responsabilidade pelo risco uma situação de excepção, que apenas admite a indemnização de danos que estejam no círculo dos riscos inerentes ao funcionamento da viatura, não é possível a sua harmonização com a responsabilidade por facto ilícito;
- a necessidade de não agravar excessivamente a posição do proprietário ou do detentor do veículo em situações em que este não foi mais do que um elemento acidental, mas sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro causado por factores estranhos ao seu funcionamento.

Neste sentido Antunes Varela, ob. cit., p. 670-673; Ac. do S.T.J. de 14/01/2014 (Ana Paula Boularot), in www.dgsi.pt.

A doutrina e jurisprudência mais recente faz uma interpretação actualista dos art. 505º e 570º do C.C. e admite aquela concorrência desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, i.e., desde que o acidente não seja de imputar única e exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.
Neste sentido Calvão da Silva, R.L.J., 134º, p. 115 e ss.; Ac. do S.T.J. de 04/10/07 (Santos Bernardino), in www.dgsi.pt, acórdão precursor nesta matéria que veio a ser anotado por Calvão da Silva, R.L.J. 137º, p. 60 e ss.;

Dão os seguintes argumentos:

- é de extrair do art. 505º do C.C. um sentido que o torne compatível com o art. 570º, pois só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no nº 1 do art. 503º, norma que inequivocamente regula uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo;
- impõe-se ajustar as soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que existia aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, como ocorre com os peões ou com os ciclistas;
- ajustamento que também decorre do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que se inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência;
- o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsiderasse os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro.

Nesta sede temos acompanhado de perto o Ac. do S.T.J. de 01/06/2017 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt., onde se defende:

“I. O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura .
II. Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.”

Revertendo ao caso em apreço, mesmo admitindo esta tese actualista, afigura-se-nos que o acidente é de imputar única e exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado.

Com efeito, o mero facto de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, não pode ser, no caso em apreço, considerado como um risco próprio relevante e causalmente adequado ao acidente. Foi antes o comportamento da vítima, que não imobilizou correctamente a carrinha carregada de areia (accionando o travão de mão, engrenando a marcha a trás e desligando o morto), que foi a causa adequada da deslocação da viatura e esmagamento da vítima.

Importa agora subsumir o caso concreto ao Dec.-Lei nº 291/2007 de 21 de Agosto, diploma que aprovou o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (S.O.R.C.A.), que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de Maio (5ª Directiva Automóvel) e a Directiva nº 2000/26/CE (4ª Directiva Automóvel), e que revogou, entre outros, o Dec.-Lei nº 522/85 de 31 de Dezembro.

O art. 4º nº 1 daquele diploma prevê a obrigatoriedade de seguro que garanta a responsabilidade de pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros por veículo terreste a motor para cuja condução seja necessário um título específico.

O art. 11º prevê o âmbito material nos termos do qual, além do mais, aquele seguro obrigatório abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses bens.

O art. 14º prevê as exclusões nos seguintes termos:

“1 - Excluem-se da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.
2 - Excluem-se também da garantia do seguro quaisquer danos materiais causados às seguintes pessoas:
a) Condutor do veículo responsável pelo acidente;
(…)
e) Cônjuge, ascendentes, descendentes ou adoptados das pessoas referidas nas alíneas a) a c), assim como outros parentes ou afins até ao 3.º grau das mesmas pessoas, mas, neste último caso, só quando elas coabitem ou vivam a seu cargo;
f) Aqueles que, nos termos dos artigos 495.º, 496.º e 499.º do Código Civil, beneficiem de uma pretensão indemnizatória decorrente de vínculos com alguma das pessoas referidas nas alíneas anteriores;
(…) (sublinhado nosso).

Maria Manuela Sousa Chichorro, in O Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, p. 143-144, pronunciou-se, no que concerne ao nº 1 deste preceito, nos seguintes termos: “Esta norma foi alterada em relação ao que dispunha o diploma que regulava anteriormente esta matéria, tendo sido introduzida a responsabilidade pelo acidente como condição para excluir também os danos causados a terceiros em virtude das lesões corporais do condutor. (…) Assim, o legislador alargou o âmbito pessoal da exclusão ao excluir os danos de terceiro e restringiu o âmbito material pelo que a exclusão só opera quando o condutor seja responsável pelo acidente que esteve na origem dos seus próprios danos, sendo irrelevante se a sua responsabilidade é subjectiva ou objectiva. Ficam, portanto, excluídos todos os prejuízos decorrentes das lesões corporais sofridas pelo condutor causador do acidente. Quer significar esta disposição que estão abrangidos pelo contrato os danos indirectos sofridos por outrem como consequência das lesões corporais do condutor, nomeadamente pelo cônjuge e pelos descendentes ou ascendentes, mas apenas quando aquele não seja o responsável pelo acidente. Todavia esta exclusão está limitada aos danos decorrentes das lesões corporais.”

No que concerne ao nº 2 do mencionado preceito a mesma autora justifica a ratio deste modo: “Está subjacente a estas exclusões a ideia de compropriedade e co-responsabilidade traduzida em ambos os casos pelo interesse directo no seguro, embora este não seja aquele que é primeiramente tutelado pelo contrato, mas apenas de modo mediato. Dado que o referido interesse tem uma natureza patrimonial, não faria sentido que os danos patrimoniais sofridos pelas mencionadas pessoas pudessem ser ressarcidos por um contrato que visa ressarcir os danos de terceiros e não daqueles que, de alguma forma, poderão vir a ter que responder concomitante ou subsidiariamente com o condutor.”

Assim, nos termos do art. 14º nº 1 estão excluídos da garantia do seguro em causa os danos não patrimoniais próprios sofridos pela vítima, condutor responsável pelo acidente (dano morte e danos morais), pelo que inexiste qualquer indemnização a este título que integre a herança do falecido e que seja susceptível de ser transmitida aos autores.

O citado art. 14º nº 1 exclui igualmente os danos decorrentes daqueles danos corporais sofridos pelo condutor responsável pelo acidente aqui se incluindo os danos morais próprios sofridos pelos descendentes autores previstos no art. 495º nº 4 2ª parte do C.C..

Com efeito, como se lê no Ac. do S.T.J. de 01/12/2015 (Gregório Silva Jesus), in www.dgsi.pt, “O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um seguro de responsabilidade civil que cobre só os danos causados a terceiros pela conduta do sujeito responsável, e não os sofridos por este, designadamente os corporais e os que dele derivem. Esse responsável não pode ser considerado, simultaneamente, terceiro e beneficiário para efeito de ressarcimento de danos próprios”.

Ainda a este propósito refere-se no Ac. da R.C. de 15/11/2016 (Vítor Amaral), in www.dgsi.pt: “Compreende-se a razão de ser desta exclusão: trata-se de danos sofridos pelo próprio condutor do veículo seguro, isto é, o condutor responsável pelo acidente e pelos decorrentes danos. Ora, sendo o responsável pelo sinistro, não é terceiro. Os seus danos, a si próprio imputáveis, sendo da sua responsabilidade pessoal, não são passíveis de indemnização pelo seguro obrigatório automóvel.

É que o seguro obrigatório automóvel, como seguro de responsabilidade civil que é, encontra-se estabelecido sobre a ideia de relação de oposição irredutível entre responsável e lesado, entre causador do sinistro e vítima dele, sendo a proteção do seguro dirigida aos lesados/vítimas e não aos condutores/responsáveis, cujos danos a si próprios são imputáveis, não se podendo ser, como dito, responsável e vítima.

E a exclusão de todos os danos do responsável abrange os seus familiares, no que concerne a quaisquer danos decorrentes dos danos sofridos pelo responsável (art.º 14.º, n.º 1, citado). Quanto aos familiares, há que distinguir, assim, consoante sejam ou não transportados no veículo ou, melhor, sejam ou não vítimas (diretas) do acidente. Se são passageiros do veículo ou vítimas diretamente atingidas pelo acidente e, por isso, nele sofreram danos, impõe-se o disposto no art.º 14.º, n.º 2, al.ªs e) e f), da LSOA, inexistindo exclusão dos danos corporais próprios. Já no caso contrário, se não são vítimas do acidente, apenas sofrendo danos decorrentes dos danos sofridos pelo responsável, não terão, então, direito por isso a qualquer indemnização, como no caso, por exemplo, dos seus próprios danos morais decorrentes da morte do responsável seu familiar (neste caso não terão também, obviamente, direito indemnizatório pelos danos que o próprio responsável sofreu).

A questão da cobertura pelo seguro obrigatório automóvel dos danos morais pessoalmente sofridos pelos familiares do condutor responsável em consequência da morte deste por força de acidente de viação foi objeto de divergência na jurisprudência nacional à luz do DLei n.º 522/85, vindo a mostrar-se mais clara à luz da LSOA, cujo legislador, mantendo, embora, no essencial, a construção das exclusões do art.º 7.º do DLei n.º 522/85, começou logo por aditar ao n.º 1 do art.º 14.º da LSOA o segmento “assim como os danos decorrentes daqueles”, pelo que ficam expressamente excluídos, não só os danos de natureza corporal (incluindo a morte, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, da LSOA) sofridos pelo responsável, mas também todos os danos que sejam decorrência desses danos do responsável. Ora, os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do responsável em consequência da morte dele, mais não são do que danos decorrentes dos danos corporais (morte) sofridos por esse responsável, logo, são danos excluídos da garantia do seguro obrigatório automóvel.”

Como esta questão suscitou dúvidas de interpretação no que concerne ao Dec.-Lei nº 522/85 surgiu o A.U.J. de 05/06/2014 que decidiu que: “No caso de morte do condutor do veículo em acidente de viação por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no nº 2 do art. 496º do C.C. não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte”.

Nos termos do art. 14º nº 2 f) e a) mostram-se igualmente excluídos os danos patrimoniais a título de perda de alimentos previstos no art. 495º nº 3 do C.C. peticionados pelos autores.

Defendem os apelantes que o disposto no art. 14º nº 1 e 2 do S.O.R.C.A., ao excluir o condutor como beneficiário da responsabilidade pelo risco, viola as 1ª e 3ª Directivas Automóveis e a interpretação que tem vindo a ser feita pelo T.J.U.E..

Mas, sem razão.

A nível da União Europeia, centrada na ideia de protecção das vítimas, surgiu há muito a preocupação em aproximar as legislações dos Estados Membros no que respeita ao seguro obrigatório. Assim, foram aprovadas várias Directivas, designadamente cinco “directivas automóveis”, a saber:

- nº 72/166/CEE do Conselho de 24/04/1972 – Primeira Directiva Automóvel (prevê que cada Estado Membro tome as medidas necessárias para que qualquer veículo só possa circular se os riscos que resultam da sua circulação se encontrarem cobertos por um contrato de seguro efectuado de acordo com as condições fixadas por cada legislação nacional para o seguro obrigatório de responsabilidade civil);
- nº 84/5/CEE do Conselho de 30/12/1983 – Segunda Directiva Automóvel (alarga a obrigação de segurar aos danos materiais e concede aos membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de toda e qualquer pessoa responsável uma protecção equiparável à de outros terceiros vítimas pelo menos no que respeita aos danos corporais);
- nº 90/232/CEE do Conselho de 14.5.1990 – Terceira Directiva Automóvel (determina que se cubra a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo – art. 1º);
- nº 2000/26/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/05/2000 – Quarta Directiva Automóvel (não importa para o caso em apreço);
- nº 2005/14/CE do Conselho do Parlamento Europeu e do Conselho de 11/05/2005 – Quinta Directiva Automóvel (altera as anteriores Directivas – cada Estado Membro deve tomar medidas para que disposições legais ou cláusulas contratuais contidas numa apólice de seguro que exclua os passageiros dessa cobertura pelo facto de terem conhecimento ou deverem ter tido conhecimento de que o condutor do veículo estava sob a influência do álcool ou de qualquer outra substancia tóxica no momento do acidente sejam consideradas nulas no que se refere a esses passageiros – garante a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que tenham direito a indemnização de acordo com o direito civil nacional na sequência de acidente em que estejam envolvido).

Ora, se é certo que destas Directivas resulta a preocupação de protecção das vítimas dos acidentes de viação, como os passageiros, peões, ciclistas e utilizadores não motorizados das estradas, das mesmas não resulta, quanto a nós, a preocupação de proteger os condutores em todas as circunstâncias, designadamente quando são eles próprios os responsáveis pelo acidente.
As referidas Directivas deixaram dúvidas que foram sendo dissipadas pelo Tribunal de Justiça, mas das decisões deste tribunal não resulta a protecção do condutor responsável pelo acidente e/ou dos seus familiares.

Vejamos os Acórdãos proferidos que abordam as mencionadas Directivas e que possam ter interesse in casu:

- C-348/98 de 14/09/2000, Mendes Ferreira e Delgado Correia Ferreira - “O artigo 3º da Segunda Directiva (…) exige que o seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis cubra os danos causados aos passageiros membros da família do tomador do seguro, do condutor ou de qualquer outra pessoa cuja responsabilidade civil decorrente dum sinistro se encontre coberta pelo seguro obrigatório, transportadas gratuitamente, independentemente da existência de culpa por parte do condutor do veículo causador do acidente, unicamente no caso de o direito nacional do Estado-Membro em causa impor essa cobertura dos danos corporais causados nas mesmas condições a outros terceiros passageiros.” (sublinhado nosso);
- C-537/03 de 30/06/2005, Katia Candolin - “(…) os artigos 2º, nº 1 da Segunda Directiva (…) e 1º da Terceira Directiva (…) opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição dum passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro obrigatório. O facto de o passageiro em causa ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante.” (sublinhado nosso);
- C-356/05 de 19/04/2007, Elaine Farrel - “O artigo 1º da Terceira Directiva (…) deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte do veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros.” (sublinhado nosso);
- C- 409/09 de 09/06/2011, José Lavrador e Olival Maria Bonifácio - “A Directiva 72/166/CEE (…), a Segunda Directiva 84/5/CE (…) e a Terceira Directiva 90/232/CEE (…) devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do próprio dano.” (como vítima refere-se a um menor com uma bicicleta que foi atropelado);
- C-442/10 de 01/12/2011, Churchill Insurance Company e Evans – “1) O artigo 1°, primeiro parágrafo, da Terceira Directiva 90/232/CEE (…), e o artigo 2°, n° 1, da Segunda Directiva 84/5/CEE (…), devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação nacional que tenha por efeito exonerar automaticamente a seguradora da obrigação de indemnizar a vítima de um acidente de viação quando esse acidente tiver sido causado por um condutor não coberto pela apólice de seguro e essa vítima, que era passageiro do veículo no momento do acidente e segurado como condutor desse veículo, tenha autorizado o condutor a conduzi-lo. 2) A resposta à primeira questão submetida não será diferente se o segurado que é simultaneamente lesado tivesse conhecimento de que a pessoa que autorizou a conduzir o veículo não estava segurada para esse efeito, ou tivesse a convicção de que o estava ou ainda se se tivesse interrogado ou não a esse respeito.”;
- C-300/10 de 23/19/2012, Marques de Almeida – “Em circunstâncias como as do processo principal, o artigo 3°, n° 1, da Directiva 72/166/CEE (…), o artigo 2°, n° 1, da Segunda Directiva 84/5/CEE (…), e o artigo 1° da Terceira Directiva 90/232/CEE (…), devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a disposições nacionais que, no caso de colisão entre dois veículos automóveis que tenha causado danos corporais ao passageiro de um desses veículos, sem que seja possível imputar a culpa aos condutores dos referidos veículos, permitam limitar ou excluir a responsabilidade civil dos segurados.” (sublinhado nosso);
- C- 229/10 de 21/03/2013, Pendão Lapa Costa Ferreira e Pendão Lapa Ferreira – tem um sumário coincidente com o do Acórdão C-409/09 (como vítima refere-se a menor atropelada);
- C-22/12 de 24/10/2013, Haasová – “Os artigos 3°, n° 1, da Directiva 72/166/CEE (…), 1°, nº 1 e 2, da Segunda Directiva 84/5/CEE (…), conforme alterada pela Directiva 2005/14/CE (…), e 1°, primeiro parágrafo, da Terceira Directiva 90/232/CEE (…), devem ser interpretados no sentido de que o seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis deve cobrir a indemnização dos danos morais sofridos pelos próximos das vítimas falecidas num acidente de viação, na medida em que essa indemnização esteja prevista a título da responsabilidade civil do segurado pelo direito nacional aplicável ao litígio no processo principal.”;
- C-277/12 de 24/10/2013, Drozdovs – “1) Os artigos 3°, n° 1, da Directiva 72/166/CEE (…), e 1°, nº 1 e 2, da Segunda Directiva 84/5/CEE (…), devem ser interpretados no sentido de que o seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis deve cobrir a indemnização dos danos morais sofridos pelos próximos das vítimas falecidas num acidente de viação, na medida em que essa indemnização esteja prevista a título da responsabilidade civil do segurado pelo direito nacional aplicável ao litígio no processo principal. 2) Os artigos 3°, n° 1, da Directiva 72/166 e 1°, nº 1 e 2, da Segunda Directiva 84/5 devem ser interpretados no sentido de que se opõem a disposições nacionais nos termos das quais o seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis apenas cobre a indemnização devida, segundo o direito nacional de responsabilidade civil, pelos danos morais causados pela morte de membros da família próximos num acidente de viação até ao limite de um montante máximo inferior aos fixados no artigo 1°, n° 2, da Segunda Directiva 84/5.” (vítimas seguiam noutro veículo);
- C-371/12 de 23/01/2014, Petillo – “Os artigos 3°, n° 1, da Directiva 72/166/CEE (…), e 1.°, nº 1 e 2, da Segunda Directiva 84/5/CEE (…), conforme alterada pela Directiva 2005/14/CE (…), devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que prevê um regime especial de indemnização dos danos imateriais resultantes de lesões corporais pouco significativas causadas por acidentes de circulação rodoviária, que limita a indemnização desses danos relativamente ao que é admitido em matéria de reparação de danos idênticos resultantes de outras causas que não sejam esses acidentes.”;
- C-506/16 de 07/09/2017 Neto de Sousa - “A Directiva 72/166/CEE do Conselho (…), a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho (…), conforme alterada pela Directiva 2005/14/CE (…), e a Terceira Directiva 90/232/CEE (…), devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a uma legislação nacional que exclui o direito do condutor de um veículo automóvel, responsável, por culpa sua, por um acidente de viação em consequência do qual faleceu o seu cônjuge, passageiro desse veículo, de ser indemnizado pelos danos patrimoniais que sofreu em razão desse falecimento.” (sublinhado e bold nosso);
- C- 503/16 de 14/09/2017, Delgado Mendes – “O artigo 3º, n° 1, da Directiva 72/166/CEE (…), o artigo 1°, n° 1, e o artigo 2°, n° 1, da Segunda Directiva 84/5/CEE (…), conforme alterada pela Directiva 2005/14/CE (…), bem como o artigo 1°-A da Terceira Directiva 90/232/CEE (…), conforme alterada pela Directiva 2005/14, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que exclui da cobertura e, por conseguinte, da indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis os danos corporais e materiais sofridos por um peão vítima de um acidente de viação, apenas pelo facto de esse peão ser o tomador do seguro e o proprietário do veículo que causou esses danos.”

Inexiste qualquer acórdão que preveja a protecção do condutor responsável pelo acidente e/ou dos seus familiares.

A propósito desta jurisprudência Moitinho de Almeida, in Seguro Obrigatório Automóvel: o direito português face à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, Revista Revista do CEJ - Lisboa - nº 7, 2º Semestre (2007), p. 55-72, referiu: “O Tribunal de Justiça parece, assim, enveredar por uma solução que contraria a consagrada em vários Estados-membros ao entender que nunca, seja qual for a gravidade do comportamento do lesado, a indemnização pode ser excluída e só em casos excepcionais pode ser limitada. Observe-se que a indemnização de peões, ciclistas e de outros utentes não motorizados, independentemente da respectiva culpa, encontrava-se contemplada na proposta da 5ª directiva automóvel mas foi criticada no parecer do Comité Económico e Social sobre a referida proposta (…). Afigura-se, porém, que a jurisprudência comunitária deve ser precisada. Por um lado, não é claro se ela se aplica aos condutores de veículos motorizados. Quanto a estes pode entender-se que por terem criado o risco da circulação automóvel e dele serem beneficiários devem usufruir de regime menos favorável do que gozam os restantes utentes não motorizados das vias públicas. Observe-se que os condutores não estavam contemplados na proposta de directiva e que, como vimos, os efeitos sobre o custo dos seguros levou a que, na Lei Badinter, não fossem equiparados aos restantes lesados. Por outro lado, não é de excluir que, excepcionalmente, o Tribunal de Justiça mostre uma abertura a razões de prevenção e admita que, em casos limite, em que o comportamento imprevisível do lesado torne o dano inevitável, a indemnização possa ser excluída. Faltaria aqui um dos pressupostos da responsabilidade civil, que cabe aos Estados-membros definir, o nexo causal.”

Ora, este autor, não obstante admitir que o T.J.U.E. tendia para a indemnização nunca poder ser excluída e só em casos excepcionais poder ser limitada, fosse qual fosse a gravidade do comportamento do lesado, parece inclinar-se para a exclusão da indemnização no caso de condutor responsável pelo acidente.

Assim sendo, a apelação improcede.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I - Num caso em que o condutor imobilizou uma carrinha carregada de areia num local com uma inclinação descendente de 9%, accionou apenas o travão de mão, deixou o motor a trabalhar, saiu da cabine para abrir os fechos do taipal da lateral direita e em que o veículo, a dada altura, rodou descaindo para a frente e sua esquerda na direcção de um muro, onde veio a esmagar o condutor, é de considerar este acidente de viação imputável exclusivamente ao comportamento da vítima e não aos riscos próprios do veículo.
II - Estão excluídos da garantia do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel os danos não patrimoniais próprios sofridos pela vítima, os danos não patrimoniais próprios sofridos pelos descendentes da vítima, bem como os danos patrimoniais destes a título de perda de alimentos.
III – Estas exclusões não se mostram contrárias às Directivas Automóveis, nem às interpretações que têm vindo a ser feitas pelo T.J.U.E..
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e em confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
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Guimarães, 30/05/2019

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade