Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4090/12.5TBGMR.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NULIDADE
INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
FORMA LEGAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Na celebração de um contrato de arrendamento, redigido em português, entre uma sociedade portuguesa e um cidadão de Marrocos que, à data da celebração do contrato, não sabia ler um texto em português, constitui elemento integrante e essencial do contrato a confirmação perante notário (art. 373º, nº 3, do Código Civil).
II – A falta dessa exigência legal implica preterição de formalidade ad substantiam do documento, com a consequente nulidade da declaração negocial nele ínsita, de conhecimento oficioso nos termos dos artigos 220º e 286º do Código Civil.
III – A vertente do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que acontece quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
IV - O conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.
V - Com a declaração da nulidade de um contrato, dá-se início a uma relação da liquidação da situação de facto existente entre as partes, relação de liquidação que tem eficácia retroactiva, visando a repristinação da situação de facto anterior.
VI - Aquilo que o suposto arrendatário tem de restituir é o valor correspondente ao período de gozo pelo qual nada pagou e não já as quantias que, no caso de validade do contrato, seriam devidas pela inobservância do aviso prévio legalmente exigido para a denúncia do contrato e pela mora do locatário.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
AA…Ldª. instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra BB…, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 13.705,00, descriminada do seguinte modo:
a) € 1.620.00, a título de rendas vencidas [até à denúncia do contrato de arrendamento] e não pagas;
b) € 2.600.00 correspondente à denúncia do contrato sem o aviso prévio legalmente exigido (120 dias);
c) € 810.00 a título de indemnização pela mora do locatário, de quantitativo igual a 50% das rendas em dívida;
d) € 8.675.00 a título de despesas de reparação do arrendado.
Alegou, em síntese, ter dado de arrendamento ao réu a fracção autónoma que identifica no artigo 1º da petição inicial, nos termos do documento que juntou sob nº 1, pelo prazo de cinco anos, com início em 25.11.2011, tendo sido convencionada a renda mensal de € 650,00, sucedendo que o réu deixou de pagar as rendas desde o mês de Julho de 2012, mês relativamente ao qual apenas pagou a quantia de € 330,00, e sem que tenha denunciado o contrato, procedeu à entrega das chaves do locado em 08.08.2012, com os estragos que descreve no artigo 18º da petição, dos quais se quer ver ressarcida.
O réu contestou, excepcionando e impugnando.
Por excepção arguiu o erro na forma do processo e a inexistência do negócio jurídico (contrato celebrado com a Autora).
Por impugnação defendeu que quando entregou o locado, este não apresentava os danos enunciados pela autora.
Concluiu, desse modo, pela improcedência dos pedidos formulados pela autora sob as alíneas b), c) e d), e pela improcedência parcial do pedido formulado na alínea a) na parte respeitante a € 482, 24.
Houve resposta, pugnando a autora pela improcedência das excepções invocadas e concluindo, no mais, como na petição inicial.
Realizou-se a audiência preliminar, tendo sido proferido despacho no qual se considerou prejudicado o conhecimento da excepção do erro na forma de processo face à desistência do réu em ver apreciada a mesma, concluindo-se no mais pela validade e regularidade da instância, com subsequente selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, sem reclamação.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Por todo o previamente exposto, o Tribunal julga parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente acção e, em consequência, decide:
1. Condenar o Réu BB a pagar à Autora AA, Lda.” a quantia de € 5030,00 (cinco mil e trinta euros), assim descriminada: € 1.620.00 (mil seiscentos e vinte euros) a título de rendas vencidas [até à denúncia do contrato de arrendamento] e não pagas; € 2.600, 00 (dois mil e seiscentos) a título de incumprimento do aviso prévio legalmente exigido de 120 dias e € 810,00 (oitocentos e dez) euros a título de indemnização pela mora do locatário correspondente a 50% das rendas em dívida, nos exactos termos peticionados pela Autora.
2. Mais se condena o Réu BB a pagar à Autora “AA Lda.”, a quantia que se apurar em sede de liquidação de sentença a titulo de indemnização pela reparação dos danos julgados provados em 12), com o limite do pedido de € 8.675,00 acrescida de IVA.»
Inconformada com o assim decidido, apelou a requerente, que concluiu a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
«QUANTO À MATÉRIA DE FACTO
1ª Tendo ficado assente, na audiência preliminar e sem reclamações, na alínea A) dos factos assentes, que “Está junto aos autos o documento escrito (doe. 1), denominado contrato de arrendamento de duração limitada, assinado numa folha pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido”, não pode o tribunal alterar a redacção do facto, para mais sendo visível que o mesmo só está assinado pelo réu numa folha e estado também assente que o “réu sabe que colocou a sua assinatura numa folha” (facto provado n.º 5).
2ª Por outro lado, tendo a única testemunha que presenciou a assinatura do contrato, Fernando, declarado - de 4m35s a 5m16s e de 7m55s a 8m01s - que pensa que não foi junta nenhuma Lista de bens ao contrato de arrendamento, quando o contrato de fls. 13-18 tem uma lista anexa; e - de 11m28s a 11m47s - que foi explicado ao arrendatário que tinha que avisar com um mês de antecedência, quando o contrato de fls. 13-18 prevê um pré-aviso de quatro meses; é de concluir que o contrato de fls. 13-18 não é, com excepção da folha assinada, o contrato exibido ao réu, pelo que sempre seria de manter o que constava da alínea A) da matéria de facto assente, devendo rectificar-se a redacção do n.º 1, da matéria de facto provada, em conformidade e assim: “Está junto aos autos o documento escrito (doc. 1), denominado contrato de arrendamento de duração Limitada, assinado numa folha pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido.”
3ª Tendo a testemunha Domingos - de 05m45s a 06m25s - e a testemunha Sandra - 09m00s a 10m00s - declarado que o chão estava todo riscado, e que teve que ser todo polido e envernizado, sem que haja qualquer documento comprovativo do pagamento desses trabalhos; tendo as testemunhas Fernando, funcionário da imobiliária que fez o contrato e acompanhou a sua execução - de 16m25s a 16m40s -, José, que visitou a casa dos autos - de 06m20s a 06m35s - e Maria, funcionária que fez a primeira limpeza da casa antes da restituição ao senhorio - de 04m30s a 04m55s - declarado que não se aperceberam de um chão muito riscado; sendo notório que aquelas duas testemunhas, que são funcionários da autora e de empresa a ela ligada, tiveram a preocupação de trazer um retrato exagerado, referindo até - nas mesmas citadas passagens -, que os tectos tinham comida!, e que os sofás estavam cheios de comida!, sem que a autora tivesse reclamado nos autos o preço de um sofá novo, como fez com a cadeira, o frigorífico e o forno; não sendo crível que, perante um tal cenário, a autora, que é uma sociedade anónima, não fizesse uma fotografia que fosse, nem se tivesse assegurado com um comprovativo da reparação, deve a resposta ao artigo 7.º, alíneas a) e b), esta apenas no que respeita aos tectos, da Base Instrutória, ser alterada, passando a constar do ponto 12.a) da matéria de facto que: “Na data da entrega da fracção autónoma em causa nos autos pelo Réu à Autora, verificou-se que: a) o soalho apresentava-se com alguns riscos, não fundos.”
4.ª Tendo a testemunha Domingos uís - de 06m13s a 06m25s - e a testemunha Sandra - de 11m40s a 12m00s - declarado que as paredes se apresentavam completamente riscadas, com lápis de cor, lápis de carvão; tendo a testemunha Maria, funcionária que fez a primeira limpeza da casa antes da restituição ao senhorio - de 05m20s a 06m20s - declarado que as paredes tinham riscos mas que, depois de lavadas, ficaram apenas alguns, na sala, porque feitos com marcador; sendo notório que aquelas duas testemunhas, que são funcionários da autora e de empresa a ela ligada, tiveram a preocupação de trazer um retrato exagerado, referindo até - nas citadas passagens e nas passagens citadas na conclusão anterior -, que os tectos tinham comida!, e que os sofás estavam cheios de comida!, sem que a autora tivesse reclamado nos autos o preço de um sofá novo, como fez com a cadeira, o frigorífico e o forno, e que as paredes estavam todas riscadas; não sendo crível que, perante um tal cenário, a autora, que é uma sociedade anónima, não fizesse uma fotografia que fosse, nem se tivesse assegurado com um comprovativo da reparação, deve a resposta ao artigo 7.º, alínea b), esta apenas no que respeita às paredes, da Base Instrutória, ser alterada, passando a constar do ponto 12.b) da matéria de facto que: “Na data da entrega da fracção autónoma em causa nos autos pelo Réu à Autora, verificou-se que: b) as paredes da sala apresentavam-se riscadas com marcador.”
5ª Tendo a testemunha Sandra - de 12m12s a 12m50s - declarado que, em relação às madeiras das portas o que mais a marcou foi a sujidade, e que o chão, esse sabe que foi arranjado; tendo a testemunha Fernando - de 05m20s a 06m20s - declarado que, em relação às madeiras das portas, o que mais o chamou à atenção foi a sujidade; tendo a testemunha Maria, funcionária que fez a primeira limpeza da casa antes da restituição ao senhorio - de 04m55s a 05m10s - declarado que as portas, os rodapés, os aros das portas, não estavam riscados; não sendo crível que, perante um tal cenário, a autora, que é uma sociedade anónima, não fizesse uma fotografia que fosse, nem se tivesse assegurado com um comprovativo da reparação, deve a resposta ao artigo 7.º, alínea c), da Base Instrutória, ser alterada para “não provado”, eliminando-se o ponto 12.c) da matéria de facto provada, sendo o mesmo levado para o elenco dos factos não provados.
6.ª Tendo a testemunha Domingos - de 06m25s a 06m48s - declarado, em relação à mobília da sala, que tinha portas caídas e, depois, que tinha portas desfeitas, o que teve que ser reparado por um carpinteiro; tendo a testemunha Sandra - de 09m00s a 10m00s - declarado que o móvel da sala tinha uma porta partida; tendo a testemunha Fernando - de 15m40s a 15m50s - declarado que havia uma porta fora do sítio não tendo analisado se estava partida; tendo a testemunha Maria - de 12m30s a 12m40s - declarado que havia uma porta de vidro que estava pousada no chão; sendo notório que aquelas duas testemunhas, que são funcionários da autora e de empresa a ela ligada, tiveram a preocupação de trazer um retrato exagerado, referindo até - nas citadas passagens e nas passagens citadas nas conclusões anteriores -, que os tectos tinham comida!, e que os sofás estavam cheios de comida!, sem que a autora tivesse reclamado nos autos o preço de um sofá novo, como fez com a cadeira, o frigorífico e o forno, e que as paredes estavam todas riscadas e as portas desfeitas; não sendo crível que, perante um tal cenário, a autora, que é uma sociedade anónima, não fizesse uma fotografia que fosse, nem se tivesse assegurado com um comprovativo da reparação, deve a resposta ao artigo 7.º, alínea d). da Base Instrutória, ser alterada para “não provado”, eliminando-se o ponto 12. d) da matéria de facto provada, sendo o mesmo levado para o elenco dos factos não provados;
7.ª Tendo a testemunha Domingos - de 06m48s a 07m13s - declarado, em relação aos móveis de cozinha, que havia portas fora do sítio e, acrescentado que estavam estragadas, arranhadas e desfeitas; tendo a testemunha Sandra - de 11m00s a 11m20s - declarado que estava partida uma das portas e que havia algumas peças desmontadas e sujas; tendo a testemunha Maria, funcionária que fez a primeira limpeza da casa antes da restituição ao senhorio - de 12m40s a 12m55s - declarado que havia uma porta que estava fora do sítio, sem saber se estava partida porque não a tentou encaixar, não estando os móveis riscados; sendo notório que aquelas duas testemunhas, que são funcionários da autora e de empresa a ela ligada, tiveram a preocupação de trazer um retrato exagerado, referindo até - nas citadas passagens e nas passagens citadas na conclusão anterior -, que os tectos tinham comida!, e que os sofás estavam cheios de comida!, sem que a autora tivesse reclamado nos autos o preço de um sofá novo, como fez com a cadeira, o frigorífico e o forno, e que as paredes estavam todas riscadas e havia portas desfeitas; não sendo crível que, perante um tal cenário, a autora, que é uma sociedade anónima, não fizesse uma fotografia que fosse, nem se tivesse assegurado com um comprovativo da reparação, deve a resposta ao artigo 7.º. alínea e), da Base Instrutória, ser alterada, passando a constar do ponto 12.e) da matéria de facto que: “Na data da entrega da fracção autónoma em causa nos autos pelo Réu à Autora, verificou-se que: e) nos móveis de cozinha faltava um gavetão.”
8.ª Tendo a testemunha Domingos - de 07m20s a 07m25s - declarado, em relação forno de encastrar, que não se recorda de nada de especial; tendo a testemunha Fernando - de 19m15s a 19m30s - declarado que o forno estava sujo desconhecendo se estava sem funcionar; não sendo crível que, perante um tal cenário e sabendo-se que a casa foi reparada, a autora, que é uma sociedade anónima, não tivesse guardado a factura da reparação do forno ou da aquisição de um novo, deve a resposta ao artigo 7.º, alínea h), da Base Instrutória, ser alterada para “não provado”, eliminando-se o ponto 12.h) da matéria de facto provada, sendo o mesmo levado para o elenco dos factos não provados;
9.ª Tendo a testemunha Sandra - de 09m41s a 10m55s - declarado que uma das cadeiras da sala estava partida e que foi ela própria que foi à Moviflor para ver se arranjava uma cadeira nova; tendo a testemunha Maria - de 03m30s a 03m55s - declarado que não viu nenhuma cadeira partida; não havendo prova da aquisição de uma cadeira nova, nem de um conjunto de cadeiras novas, deve a resposta ao artigo 7.º, alínea i), da Base Instrutória, ser alterada para “não provado”, eliminando-se o ponto 12.i) da matéria de facto provada, sendo o mesmo levado para o elenco dos factos não provados;
10.ª Tendo a autora alegado que as pedras do fogão de sala estavam totalmente deterioradas, com lixo encrustado e sem possibilidade de reparação; tendo a testemunha Domingos - de 07m25s a 07m45s e de 15m15s a 15m50s - declarado que o fogão de sala foi mudado porque a pedra estava toda manchada, sendo certo que se tratava moca, uma pedra muito absorvente; tendo a testemunha Sandra - de 09m00s a 09m45s - declarado que a pedra do fogão de sala estava partida; tendo a testemunha Fernando - de 15m27s a 15m35s - declarado que não reparou em nada na pedra do fogão de sala; tendo a testemunha Maria, funcionária que fez a primeira limpeza da casa antes da restituição ao senhorio - de 03m55s a 04m30s - declarado que não se recorda de ter visto a pedra do fogão de sala partida; sendo notório que aquelas duas testemunhas, que são funcionários da autora e de empresa a ela ligada, tiveram a preocupação de trazer um retrato exagerado, referindo até - nas citadas passagens e nas passagens citadas nas conclusões anteriores -, que os tectos tinham comida!, e que os sofás estavam cheios de comida!, sem que a autora tivesse reclamado nos autos o preço de um sofá novo, como fez com a cadeira, o frigorífico e o forno, e que as paredes estavam todas riscadas e as portas desfeitas; não sendo crível que, perante um tal cenário, a autora, que é uma sociedade anónima, não fizesse uma fotografia que fosse; não se tendo feito a prova da aquisição de uma pedra nova, deve a resposta ao artigo 7.º, alínea j), da Base Instrutória, ser alterada para “não provado”, eliminando-se o ponto 12.j) da matéria de facto provada, sendo o mesmo levado para o elenco dos factos não provados;
QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO
11.ª Tendo ficado demonstrado que o recorrente, um cidadão marroquino, não sabia ler português, língua em que se achava redigido o contrato de arrendamento, quando o subscreveu numa folha, e não se achando a assinatura do réu naquela folha reconhecida, nos termos do disposto no n.º 3, do artigo 373.º, do Código Civil, nem atestada a intervenção de um intérprete, nos termos do disposto no artigo 65.º, do Código do Notariado, então esse contrato é inexistente ou, na pior das hipóteses, nulo por falta daquelas formalidades, com o que o tribunal recorrido concordou, embora tivesse paralisado a declaração de inexistência e nulidade por ter considerado que a sua alegação constituía um manifesto abuso do direito, por ter entendido que o n.º 3, do artigo 373.º, do Código Civil, é norma de protecção de “pessoas fragilizadas em termos negociais”, o que não seria o caso do réu, por ser jogador de futebol, de uma equipa da primeira divisão.
12.ª Com o devido respeito pela opinião expressa na sentença recorrida, nem todos os jogadores de futebol e nem todos os jogadores de futebol da primeira divisão são pessoas negocialmente fortes e abastadas. Aliás, o tribunal recorrido não pode desconhecer que o Vitória Sport Club, precisamente em 2012, apresentou um Processo de Revitalização, porque, entre outras manifestações de fragilidade, tinha salários de jogadores em atraso. O tribunal recorrido também não considerou as circunstâncias, essas sim a resultar da matéria provada, de o réu se encontrar noutro país que não o seu, em que se fala outra Língua, e a residir numa casa modesta (porque de seiscentos e cinquenta euros de renda), o que serve para concluir que não se acha minimamente fundamentada, na decisão recorrida, que o réu não fosse uma pessoa frágil.
13.ª Seguindo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Dezembro de 2012 - disponível no portal [www.dgsi.pt].com a Referência Processo116/07.2TBMCN.Pl.Sl-, que nos dá conta da doutrina e da jurisprudência conhecidas sobre o assunto, faltam, no nosso caso, todos os pressupostos do abuso do direito. De facto, falta a verificação de uma situação objectiva de confiança, apta a determinar a autora a esperar que o réu não invocaria a nulidade e que, em concreto, efectivamente gerasse tal convicção, ao ponto de influenciar a autora. Em que ponto da matéria de facto se sustentou o tribunal para concluir que a ré esperava que o réu não invocasse a nulidade? E em que ponto da matéria de facto se baseou o tribunal para concluir que a autora confiou nisso e que, por ter confiado, deixou-se influenciar? Por outro lado, falta a verificação do requisito do investimento da confiança, Que mudanças na vida da autora evidenciam a expectativa criada de que o réu não invocaria a nulidade? Que danos resultaram da frustração dessa expectativa? Ou, na formulação de Batista Machado será que a autora tomou disposições ou organizou planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada? Finalmente, falta a verificação do requisito de que a autora se encontrava de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, que agiu na suposição de que o réu estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico. Não seria de esperar da autora, isso sim, que cumprisse com as exigências de tradução?
14.ª Em resumo, em que ponto da matéria de facto sustenta o tribunal que a autora, no caso, tomou alguma atitude confiando que o réu não invocaria a nulidade. Teria feito cessar o contrato mais cedo? Não o teria celebrado sequer? Ou tê-lo-ia celebrado observando a formalidade da tradução e certificação notarial? E o que faria a autora se o réu logo a seguir à celebração do contrato invocasse a nulidade? Teria aceitado distratar o contrato sem observância de qualquer prazo? É que, se assim fosse, dava no mesmo.
15.ª Não há abuso de direito na invocação, por um cidadão estrangeiro que não conhece a Língua portuguesa, da nulidade, por vício de forma do contrato, por se achar em língua portuguesa e não traduzido, para sustentar que não é devido o pagamento da rendas pelo pré-aviso em falta, da indemnização de cinquenta por cento no que respeita a apenas duas rendas e da não exigibilidade do pagamento da renda pelo mês inteiro da entrega da casa quando a entrega ocorreu ao oitavo dia. Para mais sustentando essa invocação em jurisprudência e doutrina consensuais, no que respeita ao pagamento de retribuições para além da restituição do prédio num arrendamento nulo - cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de Fevereiro de 1995, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XX, 1995, Tomo I, página 115; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Maio de 1989, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo 3, página 136; Professor Henrique Mesquita, in Revista de Legislação e Jurisprudência, 125º, página 159.
16.ª Igual consequência deve aplicar-se à indemnização de 50%. É que esta indemnização é fixada pela lei para os casos de falta de pagamento da renda no prazo convencionado, em contratos de arrendamento válidos, o que não é o nosso caso. Da mesma sorte que aos "contratos de arrendamento" inexistentes ou nulos não se aplica a disposição que obriga o inquilino a pagar o pré-aviso em falta, também não se aplica a disposição que obriga ao pagamento da referida indemnização. É que ambas pressupõem um válido arrendamento.
l7.ª A possibilidade de condenação no que se Liquidar no incidente próprio deve restringir-se aos casos de em que não foi possível, por não se conhecerem com exactidão os danos (danos ainda não ocorridos) ou por a prova se apresentar deveras difícil (como nos casos da privação do uso do bem danificado) e não para os casos do fracasso da prova na acção declarativa ou de preguiça de prova, como é o caso dos autos, na medida em que a autora, que alegou que a reparação dos danos custou uma quantia determinada, se propôs provar esse facto com duas testemunhas, sem sequer pedir uma perícia -de avaliação do custo das reparações dos danos alegados. Merecerá a autora, neste enquadramento, uma nova oportunidade? Estará a autora em posição de fragilidade? Não nos parece.
18.ª Da aplicação das conclusões anteriores, retira-se que:
- é devido o pagamento de EUR 320.00 (trezentos e vinte euros) da parte em falta da renda de Junho de 2012;
- é devido o pagamento de EUR 650.00 (seiscentos e cinquenta euros), relativo à renda de Julho de 2012
- é devido o pagamento, mas de apenas EUR 167.74 (cento e sessenta e sete euros e setenta e quatro cêntimos), relativo aos oito dias do mês de Agosto de 2012, o que se achou dividindo o valor da renda mensal pelos trinta e um dias que tem o mês de Agosto, multiplicando pelos oito dias de gozo da fracção autónoma nesse mês;
- não é devido o resto da renda do mês de Agosto de 2012, no montante de EUR 482.26 (quatrocentos e oitenta e dois euros e vinte e seis cêntimos)
- não é devido o pagamento da quantia constante da alínea b), do pedido, pois que respeita à retribuição pelo pré-aviso em falta;
- não é devido o pagamento da quantia constante da alínea c), do pedido, pois que respeita a indemnização por rendas pagas para lá do prazo do vencimento.
- Não é devida qualquer importância a título de indemnização por danos causados, por falta de prova do seu montante ou, na pior das hipóteses, apenas no que respeita aos danos constantes do ponto 12 da matéria de facto, tendo em conta a pedida alteração daquela matéria.
19.ª A decisão recorrida violou ou não fez uma correcta interpretação e aplicação do disposto no artigo 334.º, do Código Civil, ao paralisar os efeitos do artigo 220.º, n.º 3, do artigo 373.º, do Código Civil, e artigo 65.º do Código do Notariado, e n.º 2, do artigo 609.º, do Código de Processo Civil.»
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que condene o réu a pagar à autora a quantia de € 1.137.74 (mil cento e trinta e sete euros e setenta e quatro cêntimos), absolvendo-o do demais pedido.

A autora contra-alegou, batendo-se pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objecto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se deve ser alterada a matéria de facto fixada na sentença, nos concretos pontos indicados pelo recorrente;
- se não configura uma situação de abuso de direito a invocação pelo recorrente – cidadão estrangeiro que desconhece a língua portuguesa -, da nulidade do contrato de arrendamento que não está traduzido;
- se é devida indemnização pelos danos ocorridos na fracção durante a sua utilização pelo réu.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Está junto aos autos o documento escrito, denominado contrato de arrendamento de duração limitada, assinado pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido.
2. O Réu deixou de pagar as rendas mensais à Autora desde o mês de Junho de 2012 (esta vencida em 25 de Maio de 2012), mês relativamente ao qual apenas pagou a quantia de 330,00 €, permanecendo em dívida, quanto a essa renda, o montante de 320,00 €.
3. Em 8 de Agosto de 2012 o Réu procedeu à entrega das chaves do arrendado.
4. O Réu é um cidadão marroquino.
5. O Réu sabe que colocou a sua assinatura numa folha.
6. A assinatura referida em 5) foi produzida na mesma ocasião em que lhe foram entregues umas chaves.
7. As chaves referidas em 6) eram da casa que habitou entre Dezembro de 2011 e Agosto de 2012.
8. A assinatura e entrega das chaves ao réu, referidas em 5) e 6), tiveram lugar na agência imobiliária denominada “Portas da Vila”.
9. A Autora é dona da fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente a um apartamento T3, no quarto andar direito, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Antero Henriques da Silva, nº 2…, freguesia da Costa, concelho de Guimarães.
10. A fracção referida em 9) está inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº 1… “L” e descrita na Conservatória do registo Predial de Guimarães sob o nº 4….
11. A fracção autónoma identificada em 9) e 10) foi objecto do contrato referido em 1).
12. Na data da entrega da fracção autónoma em causa nos autos pelo Réu à Autora, verificou-se que:
a. o soalho apresentava-se totalmente riscado/arranhado; o teto da cozinha sujo com comida;
b. as paredes apresentavam-se escritas, desenhadas e riscados.
c. as madeiras (rodapés, aros, portas e roupeiros) estavam arranhadas/riscadas;
d. na mobília da sala faltavam portas;
e. nos móveis de cozinha faltavam gavetões e as gavetas tinham os encaixes partidos; e apresentavam-se totalmente picados;
f. o frigorífico ficou inutilizável e sem possível reparação;
g. as romanetes das portas da frente da fracção estavam todos sujos sem possibilidade de limpeza e desfeitos;
h. o forno de encastrar estava queimado e sem funcionar;
i. uma cadeira da sala estava desfeita;
j. as pedras do fogão de sala estavam deterioradas, com lixo encrustado e sem possibilidade de reparação;
k. o estado de sujidade geral era “extremo”.
13.O Réu veio para Guimarães em Julho de 2011 para jogar na Vitória Sport Club.
14. Em Novembro de 2011 o Réu não sabia ler um texto em Português.

E foi dado como não provado que:
a. os tetos da fracção identificada em 9) dada de arrendamento ao réu, na data referida em 7) se apresentassem escritos;
b. a mobília da sala se apresentasse toda picada;
c. os rodapés, aros, portas e roupeiros estivessem totalmente esmurrados e picados.
d. O custo da reparação dos danos elencados em 12) ascenda a €8.675,00 € (acrescida de IVA).
e. O Réu tivesse denunciado o contrato de arrendamento à Autora (mormente, com observância do prazo de 120 dias).

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos e depoimentos testemunhais, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que o recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC, já que:
- indicou os concretos pontos da materialidade fáctica que considera incorrectamente julgados, com referência ao que foi decidido na sentença recorrida (que fixou também a matéria de facto provada e não provada);
- referiu os concretos meios de prova que, na sua óptica, impunham decisão diversa, in casu os depoimentos das testemunhas nos quais também o tribunal a quo alicerçou a sua convicção;
- indicou as passagens da gravação relativamente aos depoimentos prestados nos quais funda a sua discordância com a decisão sobre a matéria de facto, referindo os minutos da gravação, o que permite a este Tribunal ad quem identificar, de forma fácil e segura, os depoimentos visados;
- referiu a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta.
Feitas estas breves considerações, vejamos se são justificadas as críticas feitas pelo recorrente à decisão sobre a matéria de facto.
O recorrente começa as suas conclusões pedindo que seja rectificada a redacção do ponto 1 do elenco dos factos provados, pois constando tal matéria da alínea A) dos factos assentes aquando da selecção da matéria de facto efectuada na audiência preliminar, sem reclamação, não podia o tribunal a quo alterar o teor daquela alínea.
Vejamos.
Efectivamente, aquando da selecção da matéria de facto assente e da fixação da base instrutória logo após o despacho saneador, as quais tiveram lugar em sede de audiência preliminar, ficou a constar da alínea A) da “Matéria Assente” o seguinte:
«Está junto aos autos o documento escrito (doc. 1), denominado contrato de arrendamento de duração limitada, assinado numa folha pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido.»
Na sentença, sob o ponto 1 dos factos provados fez-se constar o seguinte:
«Está junto aos autos o documento escrito, denominado contrato de arrendamento de duração limitada, assinado pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido.»
Embora aparentemente igual, não é a mesma a redacção da alínea A) da “matéria assente” e o ponto 1 do elenco dos factos provados, pois enquanto na primeira se diz que o documento foi “assinado numa folha pelo réu”, no segundo afirma-se que o documento foi “assinado pelo réu”.
Por sua vez, na motivação da decisão de facto não está minimamente justificada a alteração da redacção operada. Antes pelo contrário, já que a Mm.ª Juíza se limitou a dizer “que os factos elencados nos nºs 1) a 8) estavam já assentes nos despacho saneador”, pelo que só pode concluir-se que a vontade da Mm.ª Juíza era a de que no ponto 1 do elenco dos factos provados, estivesse exactamente o que constava da alínea A) da “matéria assente”, sendo, ademais, isso que resulta da análise do documento em causa, o que confere direito à rectificação do aludido ponto (cfr. art. 249º do Código Civil).
Aliás, a aceitar-se a actual redacção do ponto 1 do elenco dos factos provados, a respectiva factualidade brigaria de algum modo com o que consta do ponto 5 daquele elenco, onde se deu como provado que «o réu sabe que colocou a sua assinatura numa folha».
Assim, ao abrigo do disposto no art. 614º do CPC, rectifica-se o ponto 1 do elenco dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção:
«Está junto aos autos o documento escrito (doc. 1), denominado contrato de arrendamento de duração limitada, assinado numa folha pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido».
Passemos agora a analisar a matéria dada como provada nas alíneas do ponto 12 do elenco dos factos provados, correspondente ao artigo 7º da base instrutória, posta em crise pelo recorrente.
Deu-se como provado no mencionado ponto 12 o seguinte:
«Na data da entrega da fracção autónoma em causa nos autos pelo réu à autora, verificou-se que:
a) o soalho apresentava-se totalmente riscado/arranhado; o teto da cozinha sujo com comida;
b) as paredes apresentavam-se escritas, desenhadas e riscadas;
c) as madeiras (rodapés, aros, portas e roupeiros) estavam arranhadas/riscadas;
d) na mobília da sala faltavam portas;
e) nos móveis de cozinha faltavam gavetões e as gavetas tinham os encaixes partidos; e apresentavam-se totalmente picados;
f) (…) ;
g) (…) ;
h) o forno de encastrar estava queimado e sem funcionar;
i) as pedras do fogão de sala estavam deterioradas, com lixo encrustado e sem possibilidade de reparação;
j) as pedras do fogão de sala estavam deterioradas, com lixo encrustado e sem possibilidade de reparação;
Segundo o recorrente, nas alíneas a) e b) deve constar apenas como provado que na data da referida entrega, verificou-se que:
a) o soalho apresentava-se com alguns riscos, não fundos;
b) as paredes da sala apresentavam-se riscadas com marcador.
Já quanto à matéria das alíneas c) e d) devia a mesma ser considerada não provada.
Relativamente à factualidade da alínea e), devia considerar-se provado unicamente que «nos móveis de cozinha faltava um gavetão».
E quanto à matéria das alíneas h), i) e j), devia a mesma ser considerada não provada.
Sobre esta concreta matéria dos estragos existentes no locado à data da sua entrega pelo réu, escreveu-se o seguinte na motivação da decisão de facto:
«Domingos funcionário da sociedade “… - Construções, S.A.” referiu ter trabalhado na execução dos trabalhos realizados na fracção objecto do contrato de arrendamento em discussão nos autos, após a saída do Réu, local onde já tinha estado uma vez no início do contrato. A duração dos trabalhos foi de um mês e foram executadas por duas ou três pessoas. O dano que verificou resume-se aos seguintes: o frigorífico apresentava-se inutilizável e foi deitado ao lixo; as cortinas apresentam-se riscadas e sujas com comida; o chão apresentava-se riscado; as paredes e os tetos estavam sujos de comida, riscados e sujos; na mobília de sala viu portas caídas, mais concretamente, desfeitas.
Sandra, funcionária da autora já à data dos factos, comercial, referiu conhecer a fracção objecto do contrato de arrendamento em causa nos autos por lá ter ido duas vezes. A primeira vez foi durante o primeiro mês de vigência do contrato de arrendamento, altura em que verificou uma generalizada falta de higiene na sala e a cozinha. A segunda ocorreu após a saída do Réu, altura em que verificou que a fracção se apresentava muito suja. Concretizou que nessa altura a casa já havia sido “limpa” por uma senhora a mando da imobiliária “Portas da Vila”, que além de ter intermediado o contrato de arrendamento identificado em 1), também intermediou o novo contrato de arrendamento celebrado pelo Réu. Recentrando este depoimento, a testemunha referiu ter verificado que a limpeza não estava bem-feita, tendo executado por si alguns actos de limpeza, designadamente, retirou com uma faca lixo das frestas dos azulejos da cozinha. Quanto aos danos que constatou, concretizou que uma porta da estante da sala estava partida, inclusive, estava colocada em cima do sofá; os sofás apresentavam-se sujos com comida; os estores estavam riscados; a pedra do forno de sala estava partida; o chão da fracção apresentava-se muito riscado (teve de ser polido); uma cadeira da sala estava partida (encontrou-a na garagem); o frigorífico estava podre e encontrava-se na varanda; no móvel da cozinha uma porta estava partida; o teto da cozinha estava sujo de comida, (pareciam salpicos de comida); as paredes apresentavam-se riscadas por lápis de carvão e de cor (o Réu vivia na fracção com a esposa e duas crianças) e as portas apresentavam um aspecto sujo.
Mais referiu que após a execução das obras de restauro o apartamento foi de novo limpo para poder ser arrendado aos actuais inquilinos. Quanto ao concreto valor despendido pela Autora na reparação não soube dizer.
Refere-se, desde já, que a Autora não provou o valor do dano, mormente, que o valor da reparação dos danos tivesse ascendido € 8.675,00 mais IVA. O único elemento provatório produzido restringiu-se à junção aos autos a fls. 152 a 153 da cópia da factura nº 96 emitida em 29.09.2012 pela sociedade “… – Construções S.A.” em nome da Autora. Este documento foi impugnado pelo Réu e não foi corroborado por qualquer outro meio de prova, mormente testemunhal nos termos referidos, razão pela qual o tribunal considerou-o inócuo. Com este fundamento, adianta-se já, o tribunal deu como não provado o facto referido em d).
Fernando …, professor, trabalha em part-time na imobiliária “P… da Vila” [referida em 8)] que tem relações comerciais com a Autora. (…).
Ajudou o Réu na mudança para a nova casa, altura em que viu que a fracção estava muito suja, “mais que suja”, sendo a sua maior preocupação mandar limpar a fracção para “dar alguma dignidade na entrega do apartamento “. Como concluiu, só celebrou novo contrato de arrendamento com o Réu sob a condição de ele contratar uma empregada de limpeza.
Ficou claro deste depoimento que o Réu entregou a fracção à autora mas continuou a residir na cidade de Guimarães e ao serviço da “Vitória Sport Club” até 2013.
Sobre os danos, referiu ter verificado que: as paredes estavam riscadas; nos móveis da cozinha estragadas uma ou outra gaveta e uma porta fora do sítio que podia estar partida; o frigorífico “é para esquecer” foi colocado na varanda atento o estado que apresentava (deteriorado); o forno da cozinha não soube se estava avariado ou apenas “muito sujo”; na mobília de sala viu uma ou outra porta fora do sítio, admitindo que podiam estar partidas; os sofás estavam fora do sítio; o chão estava sujo de gordura e viu uma ou outra cadeira partida.
Sobre a reparação admitiu que as paredes “à partida tinham de ser pintadas” e as mobílias consertadas, para a fracção poder ser arrendada de novo.
(…).
Maria foi a pessoa que a testemunha Fernando incumbiu de limpar a fracção da Autora arrendada ao Réu, bem assim “convidou” o Réu a contratar como condição da mediação do novo contrato de arrendamento. Na nova casa arrendada pelo Réu trabalhou apenas quatro horas por semana apesar do agregado familiar do Réu ser constituído pelo casal e três filhos.
Quanto à fracção em discussão nos autos diz ter despendido dez horas na limpeza. Por essa ocasião viu que as portas da mobília da cozinha estavam desprendidas; a uma gaveta faltavam as “rodinhas”; o forno muito sujo; as paredes riscadas (limpou-as mas a tinta de marcador não saiu); o frigorífico cheirava muito mal (cheiro forte a especiarias); o chão “não estava muito riscado”; as capas dos sofás estavam soltas e as cortinas/romanetes muito sujas, tinham de ser substituídas.
Referiu que as paredes tinham de ser pintadas. (…)».
Ouvidos na íntegra os depoimentos de todas estas testemunhas, podemos dizer que o trecho da motivação da decisão de facto acabado de transcrever reflecte com rigor o que no essencial disseram as mencionadas testemunhas, nas quais a Mm.ª Juíza alicerçou a sua convicção relativamente à verificação dos danos existentes na fracção em causa e que deu como provados.
E adiantamos, desde já, que se nos afigura correcta a decisão proferida quanto aos pontos da matéria de facto postos em crise pelo recorrente.
Concretizando.
Quanto à factualidade constante da alínea a), as testemunhas Domingos e Sandra afirmaram que o chão estava todo riscado, que havia sido lixado, polido e envernizado.
Já as testemunhas Fernando e José, limitaram-se a dizer que não se aperceberam do chão estar riscado, o primeiro alegando que a sua preocupação naquele momento era a limpeza do apartamento, e o segundo afirmando que só esteve na sala e durante a vigência do contrato e não depois, pelos que destes depoimentos nenhuma conclusão se pode tirar que retire credibilidade aos depoimentos das testemunhas Domingos e Sandra.
O mesmo se diga, aliás, quanto ao depoimento da testemunha Maria, que foi empregada doméstica do recorrente e que se limitou a dizer “pouco ou nada” ter visto de anormal.
O facto da testemunha Domingos ser funcionário da sociedade “Construções”, contratada pela autora/recorrida para efectuar os trabalhos de reparação da fracção em causa, e da testemunha Sandra ser funcionária da autora ora recorrida, em nada afecta a credibilidade destas testemunhas que, aliás, depuseram de forma clara e objectiva, com conhecimento directo dos factos, sem qualquer tipo de evasivas como sucedeu de alguma forma com a testemunha Maria.
Mantém-se, pois, sem qualquer alteração a factualidade constante da alínea a) do ponto 12 do elenco dos factos provados.
Sobre a matéria da alínea b) depuseram as já referidas testemunhas Domingos, Sandra e Maria, as quais referiram que as paredes estavam escritas e riscadas, tendo de ser reparadas.
Sobre esta matéria depôs também a testemunha José Oliveira, que nada soube esclarecer em concreto.
Deste modo, a verdade apurada em julgamento é a de que as paredes, à data da entrega da fracção, se encontravam escritas, desenhadas e riscadas, como foi bem considerado na alínea b) do ponto 12 dos factos provados que, por isso, se mantém intocada.
Quanto à alínea c), temos a considerar, por um lado, os depoimentos das testemunhas Domingos e Sandra, que afirmaram encontrarem-se os rodapés estragados e arranhados, tendo de ser tudo arranjado, e ainda que foram colocados aros novos nas portas e, por outro lado, o depoimento da testemunha Maria que afirmou não estarem as madeiras riscadas[1].
Apreciando crítica e conjugadamente estes depoimentos, não vemos razão para não dar como provado que as madeiras (rodapés, aros, portas e roupeiros) estavam arranhadas/ riscadas, pelo que se mantém nos seus precisos termos a factualidade vertida na alínea c) do ponto 12 do elenco dos factos provados.
O mesmo se diga em relação à alínea d) do ponto 12, a cuja matéria depuseram as testemunhas Sandra, Fernando e Maria, as quais referiram que uma das portas da estante da sala se encontrava partida e que uma ou outra porta da mesma estava fora do sítio, pelo que não merece qualquer censura ter-se dado como provado naquela alínea d) que “na mobília da sala faltavam portas”.
Sobre a matéria da alínea e), apreciando crítica e conjugadamente os depoimentos das testemunhas Domingos, Sandra e Maria, temos como seguro que nos móveis da cozinha existia, pelo menos, um gavetão partido, outros desencaixados ou desmontados, havia encaixes partidos, apresentando-se outros arranhados e alguns desfeitos.
Assim, nenhum reparo suscita a consideração como provado de que “nos móveis de cozinha faltavam gavetões e as gavetas tinham os encaixes partidos; e apresentavam-se totalmente picados”, mantendo-se inalterada a alínea e) do ponto 12 do elenco dos factos provados.
Quanto à matéria da alínea h), os depoimentos das testemunhas que sobre a mesma se pronunciaram e mencionadas pelo recorrente - Domingos e Fernando -, não sustentam efectivamente a matéria aí considerada como provada, isto é, que “o forno de encastrar estava queimado e sem funcionar”.
A testemunha Domingos referiu não se recordar de nada de especial em relação ao forno e a testemunha Fernando disse apenas que o forno estava sujo não sabendo dizer se funcionava ou não.
Por outro lado, a mera referência no orçamento de fls. 22 a um “forno de embutir, igual ou idêntico ao existente”, não pode fundamentar a realidade afirmada de que o forno se encontrava queimado e sem funcionar.
Impõe-se, consequentemente, eliminar do elenco dos factos provados a alínea h), a qual passará a constar do elenco dos factos não provados.
No que respeita à matéria constante da alínea i), onde se deu como provado que “uma cadeira da sala estava desfeita”, está a mesma devidamente sustentada nos depoimentos das testemunhas Domingos e Sandra, o que não pode ser abalado pelo depoimento da testemunha Maria que se limitou a afirmar nada ter visto, dispensando-nos aqui de repetir os argumentos aduzidos aquando da discussão da alínea a) sobre a credibilidade das testemunhas em causa.
Por último, no que respeita à alínea j), entendemos que a respectiva matéria deve continuar a fazer parte do elenco dos factos provados, sendo isso o que resulta dos depoimentos das testemunhas Domingos e Sandra, que afirmaram que o fogão de sala teve se ser mudado, visto a respectiva pedra apresentar nódoas e manchas que nunca mais sairiam.
De nada vale ao recorrente invocar a este propósito os depoimentos das testemunhas Fernando e Maria, pois o facto das mesmas não se recordarem ou não repararem se a pedra do fogão da sala estava irremediavelmente estragada não pode, evidentemente, “apagar” o depoimento das outras testemunhas que depuseram sobre tal matéria.
Não merece, pois, qualquer censura a consideração como provado na alínea j) do elenco dos factos provados de que “as pedras do fogão de sala estavam deterioradas, com lixo encrustado e sem possibilidade de reparação”.

MATÉRIA DE FACTO FINALMENTE FIXADA POR ESTA RELAÇÃO
Factos provados:
1. Está junto aos autos o documento escrito (doc. 1), denominado contrato de arrendamento de duração limitada, assinado numa folha pelo réu, que faz fls. 13 a 18 e que por brevidade se dá por reproduzido.
2. O Réu deixou de pagar as rendas mensais à Autora desde o mês de Junho de 2012 (esta vencida em 25 de Maio de 2012), mês relativamente ao qual apenas pagou a quantia de 330,00 €, permanecendo em dívida, quanto a essa renda, o montante de 320,00 €.
3. Em 8 de Agosto de 2012 o Réu procedeu à entrega das chaves do arrendado.
4. O Réu é um cidadão marroquino.
5. O Réu sabe que colocou a sua assinatura numa folha.
6. A assinatura referida em 5) foi produzida na mesma ocasião em que lhe foram entregues umas chaves.
7. As chaves referidas em 6) eram da casa que habitou entre Dezembro de 2011 e Agosto de 2012.
8. A assinatura e entrega das chaves ao réu, referidas em 5) e 6), tiveram lugar na agência imobiliária denominada “Portas da Vila”.
9. A Autora é dona da fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente a um apartamento T3, no quarto andar direito, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Antero Henriques da Silva, nº …, freguesia da Costa, concelho de Guimarães.
10. A fracção referida em 9) está inscrita na matriz predial urbana sob o artigo nº … “L” e descrita na Conservatória do registo Predial de Guimarães sob o nº ….
11. A fracção autónoma identificada em 9) e 10) foi objecto do contrato referido em 1).
12. Na data da entrega da fracção autónoma em causa nos autos pelo Réu à Autora, verificou-se que:
a. o soalho apresentava-se totalmente riscado/arranhado; o teto da cozinha sujo com comida;
b. as paredes apresentavam-se escritas, desenhadas e riscados.
c. as madeiras (rodapés, aros, portas e roupeiros) estavam arranhadas/riscadas;
d. na mobília da sala faltavam portas;
e. nos móveis de cozinha faltavam gavetões e as gavetas tinham os encaixes partidos; e apresentavam-se totalmente picados;
f. o frigorífico ficou inutilizável e sem possível reparação;
g. as romanetes das portas da frente da fracção estavam todos sujos sem possibilidade de limpeza e desfeitos;
h. uma cadeira da sala estava desfeita;
i. as pedras do fogão de sala estavam deterioradas, com lixo encrustado e sem possibilidade de reparação;
j. o estado de sujidade geral era “extremo”.
13.O Réu veio para Guimarães em Julho de 2011 para jogar na Vitória Sport Club.
14. Em Novembro de 2011 o Réu não sabia ler um texto em Português.

Factos não provados:
a) os tetos da fracção identificada em 9) dada de arrendamento ao réu, na data referida em 7) apresentavam-se escritos;
b) a mobília da sala apresentava-se toda picada;
c) os rodapés, aros, portas e roupeiros estavam totalmente esmurrados e picados.
d) o forno de encastrar estava queimado e sem funcionar;
e) O custo da reparação dos danos elencados em 12) ascendeu a € 8.675,00 € (acrescida de IVA).
f) O réu denunciou o contrato de arrendamento à autora (mormente, com observância do prazo de 120 dias).

B) O DIREITO
Da nulidade do contrato versus abuso do direito
Escreveu-se na sentença recorrida:
«No caso concreto o Réu não ataca a validade do documento/contrato com fundamento em qualquer erro ou vicio na formação da vontade, ataca a existência do negócio que celebrou com fundamento na falta de conhecimento da língua em que o documento está redigido, ou seja, português. Invocando o nº 3 do art.373º do Código Civil (CC) pugna pela declaração de inexistência do negócio ou declaração de nulidade.
O ratio do nº 3 do art. 373º do CC, de especial protecção às pessoas mais fragilizadas em termos negociais, aponta no sentido de que se pretende a intervenção externa e independente de pessoa com particular autoridade atribuída por lei, quer para a confirmação da subscrição, quer para a subscrição presencial, quer para a leitura do conteúdo do documento ao subscritor. Somente a leitura do conteúdo do documento feita por alguém dotado de poderes publicamente atribuídos permite garantir ao subscritor a certeza de que está a assinar uma declaração que pretende efectivamente emitir e que foi elaborada por outrem. Por isso, a leitura do documento ao subscritor, prevista no art. 373º-3 do CC tem de ser feita pelo notário ou solicitador que também confirma ou presencia a subscrição do documento por pessoa que não saiba ou não possa ler. Se tal não acontecer, tratando-se de formalidade ad substantiam, essa falta é geradora de nulidade da declaração negocial em causa, com os efeitos previstos no art. 289º do CC.
Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de protecção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que actue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium.
No caso em apreço, a arguição da nulidade prevista no nº 3 do art. 373º do CC, mostra-se manifestamente desajustada de facto e de direito à concreta situação que está subjacente ao objecto e aos pedidos formulados nos autos. O Réu é jogador profissional de futebol que veio para Guimarães em Julho de 2011, para jogar futebol na Vitória Sport Club, de onde saiu para jogar (onde ainda joga actualmente) na equipa principal do club “… UD” da primeira divisão de futebol espanhol (com quem tem contrato até 30.06.2015). O contrato que celebrou com a Vitória Sport Club, como referido pela testemunha José …foi em Português. Foi nessa língua que foi redigido o contrato identificado em 1), que assinou após ter ido ver a fracção (que veio a arrendar), com prévio conhecimento do valor da renda e da condição da celebração de um contrato de arrendamento para poder habitar nessa mesma fracção. Além de ter assinado um contrato, não um papel, ato que até praticou em triplicado, fê-lo com confiança na pessoa que mediou o negocio, patente no facto de ter com o mesmo celebrado um outro contrato de arrendamento tendo por objecto a fracção que passou a habitar depois de ter entregue a fracção identificada em 9) e 10) à Autora em Agosto de 2012. Tudo como referido pela testemunha Fernando … (nos termos mais desenvolvidos na motivação de facto). O contrato identificado em 1) foi assinado na imobiliária e após recebeu as chaves e passou a habitar a fracção dada de arrendamento.
À luz da experiencia comum, podemos afirmar que, aqui ou em Marrocos, qualquer cidadão que contrata com uma imobiliária sabe que o documento haverá de reger direitos e obrigações. O Réu pela profissão que exerce, presume-se, que saiba a relevância de assinar contratos. A presença do contrato assinado pressupõe que o Réu o entendeu e, a Autora através da imobiliária apenas teria que o informar dos aspectos cuja aclaração se justificasse e prestar os esclarecimentos solicitados.
Assim, atendendo à profissão do Réu e às circunstâncias que rodearam a sua celebração, designadamente de explicação do seu conteúdo, quando o Réu apôs a sua assinatura aceitou celebrar o contrato em questão. Uma pessoa de comum diligência não assina um documento, sem que previamente se certifique do respectivo teor, pelo que, se o Réu não sabia o que estava a assinar, tal apenas se deveu à sua falta de diligência por ter assinado um contrato sem ter a preocupação de saber qual era o seu conteúdo.
Mas não foi isto que se verificou no caso dos autos. O Réu quis celebrar o contrato em questão e dele extraiu consequências práticas, designadamente passou a habitar na fracção objecto desse contrato aí considerou ter a sua residência, como se vê da cópia do cartão de cidadão do Réu junto aos autos. (…)»
Insurge-se o recorrente contra este entendimento, sustentando que «nem todos os jogadores de futebol e nem todos os jogadores de futebol da primeira divisão são pessoas negocialmente fortes e abastadas”, e que o tribunal a quo não teve em consideração as circunstâncias resultantes da matéria de facto provada, nomeadamente o facto do «réu se encontrar noutro país que não o seu, em que se fala outra língua, e a residir numa casa modesta (…)», pelo que não está demonstrado que o réu não fosse uma pessoa frágil do ponto de vista negocial.
Acrescenta ainda que no caso faltam todos os pressupostos do abuso do direito, desde logo porque não se verifica uma situação objectiva de confiança, apta a determinar a autora a esperar que o réu não invocaria a nulidade do contrato.
Vejamos.
Não se questiona que quem celebra um determinado contrato sabe que do mesmo decorrem direitos e obrigações para ambos os contraentes. Porém, já não nos parece que o facto do réu ter aposto a sua assinatura no contrato sub judice, faça presumir que o entendeu e que a autora apenas estaria obrigada a informar o réu sobre aspectos cuja aclaração se justificasse e a prestar os esclarecimentos solicitados.
Se em tese geral podemos aceitar que assim possam acontecer as coisas em relação a alguém que saiba ler o documento que assina, já assim não é relativamente a quem não saiba.
Na verdade, está provado que em Novembro de 2011, ou seja, aquando da celebração do contrato, o réu não sabia ler um texto em português.
Ora, nesse caso, dispõe o artigo 373º, nº 1, do Código Civil que «os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder assinar», estabelecendo, ainda, o seu nº 3 que «se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor».
E porque a confirmação perante notário, no caso da pessoa não saber ler, é um elemento integrante e essencial do documento particular, a falta dessa exigência legal implica preterição de formalidade ad substantiam do documento, com a consequente nulidade da declaração negocial nele ínsita, de conhecimento oficioso nos termos dos artigos 220º e 286º do Código Civil[3].
Admitindo embora a existência desta nulidade no contrato dos autos, entendeu a Mm.ª Juíza a quo que a sua invocação pelo réu configura uma situação de abuso do direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium.
Quid juris?
De acordo com o estatuído no artigo 334º do CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O exercício abusivo do direito traduz-se no “comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica – por não contrariar a estrutura formal – definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde – e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto – materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[4].
O instituto do abuso do direito tutela, deste modo, situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante.
Tem como pressuposto e existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, excedendo os limites impostos pela boa fé[5]. A parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito[6].
O nosso sistema legal acolhe uma concepção objectiva do abuso de direito, não exigindo a consciência do “abusador” no sentido de se encontrar a exceder, com o exercício do direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que, objectivamente, se excedam tais limites[7]. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção.
Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder[8]. É preciso que o direito seja exercido, em termos clamorosamente ofensivos da justiça[9].
A doutrina tem decomposto o instituto do abuso do direito em várias figuras parcelares, cada uma delas traduzindo um conjunto específico (com características particulares que permitem o seu agrupamento e a sua destrinça dos demais) de comportamentos abusivos e, por isso, inadmissíveis.
Entre tais figuras, temos o venire contra factum proprium.
Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que acontece quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Dissertando sobre tal instituto, o Prof. Almeida Costa[10] ensina que «de acordo com o entendimento mais recente e quase uniforme da dogmática, a relevância da chamada conduta contraditória supõe a conjugação dos vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Entende-se que vedar, pura e simplesmente, a uma pessoa a prática de actos lícitos, embora opostos, redundaria numa teia de vinculações sistemáticas incompatível com o tráfico jurídico».
E, mais adiante:
«A concepção da tutela da confiança assenta no enunciado de um certo número de eventos ou circunstâncias que integram o chamado facto jurídico da confiança («Vertrauenstatbestand»). São eles: a situação objectiva de confiança (esta existe quando alguém pratica um acto – o factum proprium - que, em abstracto, é apto a determinar em outrem a expectativa de adopção, no futuro, de um comportamento coerente ou consequente com aquele primeiro e que, em concreto, efectivamente gera tal convicção. (…). E a situação objectiva de confiança também não surgirá se o factum proprium não influenciar o destinatário, como sucede quando se demonstra que este, independentemente da conduta de outrem, teria agido do mesmo modo».
Prosseguindo, escreve:
«O investimento da confiança («Vertrauensinvestition») corresponde às disposições ou mudanças na vida do destinatário do factum proprium que, não só evidenciam a expectativa nele criada, como revelam os danos que, irrefragavelmente, resultarão da falta de tutela eficaz para aquele. A dogmática alemã menciona, a propósito, a necessária irreversibilidade do investimento».
E, a finalizar:
«Finalmente, entende-se que a confiança apenas se mostra digna de protecção jurídica se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico».
Por seu turno, «a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura»[11].
É por isso que «para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação de confiança é preciso que ela, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro”[12].
Assim, o conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada[13].
Quanto à situação objectiva de confiança, nada na matéria de facto permite concluir que a autora esperasse que o réu não invocaria a nulidade do contrato, ou que a autora tenha confiado nisso e se tenha deixado influenciar por via disso.
O facto do réu só ao fim de cerca de sete meses após a celebração do contrato vir invocar a sua nulidade, não é de molde a suscitar na autora qualquer expectativa de que essa invocação não seria feita e em nada colide com o instituto do abuso de direito: não proclama o art. 286º do Código Civil a regra de que a nulidade é invocável a todo o tempo?
Por outro lado, a propósito do investimento da confiança, na matéria de facto apurada não se encontra qualquer alteração da actividade da autora que evidencie a expectativa criada de que o réu não invocaria a nulidade do contrato, não resultando provado um único dano decorrente da frustração dessa expectativa.
Por último, quanto ao requisito da boa fé em sentido subjectivo, não seria antes de esperar da autora que esta apresentasse ao réu um contrato devidamente traduzido para uma língua que este compreendesse?
Injustificada, pois, a invocação do abuso do direito na sentença recorrida para obstar às consequências da nulidade do contrato.

Das consequências da nulidade
Segundo dispõe o art. 289º, nº 1, do Código Civil, «tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.»
Escreveu-se no Acórdão Relação de Lisboa de 07.02.2013[14]:
«(…), com a declaração da nulidade de um contrato, dá-se início a uma relação da liquidação da situação de facto existente entre as partes, relação de liquidação que tem eficácia retroactiva, visando a repristinação da situação de facto anterior.
Por isso, cada uma das partes tem que restituir à outra aquilo que recebeu em consequência do contrato declarado nulo.
Aquilo que um suposto arrendatário recebe, com o início da execução de um contrato de arrendamento inválido e com a subsequente execução do mesmo, é o gozo do espaço durante esse período. Assim, o que ele tem de restituir é o espaço e o gozo do mesmo a partir daquele momento.
No caso dos autos não está em causa a restituição da coisa, a qual foi já efectuada. Assim, o que importa analisar, é, da parte do réu, a restituição do gozo da coisa durante o período em que esteve na posse dela. Como é impossível fazer essa restituição em espécie, o réu tem de restituir o valor correspondente.
Em relação ao período de tempo em que o suposto arrendatário pagou pelo gozo do espaço, dá-se a aplicação da compensação entre aquilo que pagou e aquilo que gozou. Em relação ao restante período, isto é, em relação ao período pelo qual nada pagou, não há qualquer compensação.
Por isso, aquilo que o suposto arrendatário tem de restituir é o valor correspondente ao período de gozo pelo qual nada pagou».
Ora, no caso em apreço, esse período corresponde à parte da renda do mês de Junho de 2012 em falta, no valor de € 320,00, a todo o mês de Agosto de 2012, no montante de € 650,00, e aos oito dias do mês de Agosto de 2012, no valor de € 167,74 (650 : 31 X 8) – cfr. pontos 2 e 3 do elenco dos factos provados.
Não é devida o pagamento de quaisquer outras quantias a título de rendas, nomeadamente por inobservância do pré-aviso em falta previsto no contrato, seja a título de indemnização pela mora do locatário correspondente a 50% das rendas em dívida.

Da indemnização pelos danos ocorridos na fracção durante a sua utilização pelo réu
Quanto a esta matéria, uma vez que a impugnação da matéria de facto foi, em grande parte, rejeitada, é devida uma indemnização pelos danos causados na fracção utilizada pelo réu, nos termos definidos na sentença, havendo apenas que ter em linha de conta a eliminação da alínea h) do elenco dos factos provados da mesma, que passou para os factos não provados, de acordo com a alteração da matéria de facto feita neste acórdão, pelo que no respectivo incidente de liquidação não poderá ser tido em consideração, para efeitos de indemnização, que “o forno de encastrar estava queimado e sem funcionar”.

Sumário:
I – Na celebração de um contrato de arrendamento, redigido em português, entre uma sociedade portuguesa e um cidadão de Marrocos que, à data da celebração do contrato, não sabia ler um texto em português, constitui elemento integrante e essencial do contrato a confirmação perante notário (art. 373º, nº 3, do Código Civil).
II – A falta dessa exigência legal implica preterição de formalidade ad substantiam do documento, com a consequente nulidade da declaração negocial nele ínsita, de conhecimento oficioso nos termos dos artigos 220º e 286º do Código Civil.
III – A vertente do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que acontece quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
IV - O conflito de interesses e a subsequente necessidade de tutela jurídica apenas surgem quando alguém, estando de boa fé, com base na situação de confiança criada pela contraparte, toma disposições ou organiza planos de vida de onde lhe resultarão danos se a sua legítima confiança vier a ser frustrada.
V - Com a declaração da nulidade de um contrato, dá-se início a uma relação da liquidação da situação de facto existente entre as partes, relação de liquidação que tem eficácia retroactiva, visando a repristinação da situação de facto anterior.
VI - Aquilo que o suposto arrendatário tem de restituir é o valor correspondente ao período de gozo pelo qual nada pagou e não já as quantias que, no caso de validade do contrato, seriam devidas pela inobservância do aviso prévio legalmente exigido para a denúncia do contrato e pela mora do locatário.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, decidem:
a) revogar a sentença na parte em que condenou o réu no pagamento da quantia de € 5.030,00, e em substituição do segmento ora revogado, condenar o réu a pagar à autora a quantia de € 1.137,74.
b) manter a sentença na parte em que condenou o réu no pagamento da quantia que se apurar no incidente de liquidação relativo aos danos descritos nas várias alíneas do ponto 12 do elenco dos factos provados, com a alteração da matéria de facto operada neste acórdão.
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Custas da acção e da apelação a cargo da autora e do réu, na proporção de vencido.
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Guimarães, 12 de Fevereiro de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
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[1] As testemunhas Fernando Manuel e José Oliveira, à semelhança dos factos constantes das alíneas a) e b) disseram não se ter apercebido, afirmando o primeiro que aquilo que lhe chamou a atenção “foi mesmo a sujidade”.
[2] Com a consequente reordenação nos factos provados das alíneas do ponto 12, a partir da alínea h) que foi eliminada, e nos factos não provados a partir da alínea d), com o aditamento do facto anteriormente provado na referida alínea h) dos factos provados.
[3] Cfr., inter alia, Ac. da RP de 17.02.2009 (Carlos Moreira), proc. 0827137, Ac. da RL de 27.11.2008 (Pereira Rodrigues), proc. 9044/2008-6 e Ac do STJ de 17.03.98 (Cardona Ferreira), proc. 98A167, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4] Castanheira Neves, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, p. 391.
[5] Ac. do STJ de 28.11.96, CJ/STJ, 3º, 117.
[6] Ac. do STJ de 13.01.2005 (Araújo Barros), proc. 04B4063, in www.dgsi.pt.
[7] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, p. 536.
[8] Antunes Varela, ob. cit. p. 536.
[9] Ac. do STJ de 7.01.93, BMJ, 423º-539.
[10] Revista de Legislação e de Jurisprudência, 129º, pp. 61-62.
[11] Baptista Machado, in Obra Dispersa, Braga, 1991, Vol. I, p. 416.
[12] Ibidem.
[13] Ac. STJ de 11.12.2012 (Fernandes do Vale), proc. 116/07.2TBMCN.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[14] Proc. 20507/10.0T2SNT.L1-2, relator Pedro Martins, in www.dgsi.pt.