Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
47/16.5T8VPA.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
ALTERAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
SUPRIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A falta de consentimento de um dos condóminos para a alteração do título constitutivo não pode ser suprido por decisão judicial uma vez que a lei substantiva não prevê a possibilidade do suprimento.

II - Deve entender-se que age com abuso do direito o proprietário que pratica actos emulativos, ou seja, aquele que tenha comportamentos que visam somente prejudicar outrem, sobretudo os proprietários dos prédios vizinhos.

III – Quem exerce um direito, para além de dever respeitar os direitos subjectivos alheios, deve ainda respeitar, no exercício do direito próprio, outras situações especiais, cuja preterição exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.º do C.C.).”
Decisão Texto Integral:
SUMÁRIO

I – A falta de consentimento de um dos condóminos para a alteração do título constitutivo não pode ser suprido por decisão judicial uma vez que a lei substantiva não prevê a possibilidade do suprimento.
II - Deve entender-se que age com abuso do direito o proprietário que pratica actos emulativos, ou seja, aquele que tenha comportamentos que visam somente prejudicar outrem, sobretudo os proprietários dos prédios vizinhos.
III – Quem exerce um direito, para além de dever respeitar os direitos subjectivos alheios, deve ainda respeitar, no exercício do direito próprio, outras situações especiais, cuja preterição exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.º do C.C.).
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ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- Maria e marido Manuel, residentes em Vila Pouca de Aguiar, intentaram a presente acção contra “X – Arrendamento de Imóveis e Aluguer de Equipamentos, Ld.ª”, pedindo a condenação desta “a ver o Tribunal” substituir-se-lhe, “proferindo autorização para a alteração do fim da fracção melhor identificada nos artigos 1 e 2 da petição inicial (P.I.).
Fundamentam este pedido alegando, em síntese, que são donos de uma fracção autónoma de um prédio em propriedade horizontal sito em Vila Pouca de Aguiar, fracção essa que correspondia a uma loja. Tal como quase todas as lojas do loteamento também a que lhes pertence se encontrava devoluta, não havendo interessados em as adquirir ou arrendar.
Como o A. marido sofre de uma deficiência numa perna, o que o obriga a deslocar-se sempre de muletas, e não tendo os Autores qualquer residência em Vila Pouca de Aguiar, transformaram a loja num apartamento de rés-do-chão, para o que solicitaram à Câmara Municipal as devidas licenças, que lhes foram atribuídas, ficando, assim, o referido Autor com a possibilidade de entrar e sair de casa sem dificuldades, sem ter de subir e descer escadas, sendo que em Vila Pouca de Aguiar a quase totalidade de apartamentos se situam no 1.º andar e seguintes.
Alertados pelo Notário para a necessidade de obter o consentimento de todos os condóminos convocaram uma assembleia à qual, porém, apenas a Ré não compareceu, nem se fez representar, apesar de um dos seus sócios ter antes demonstrado a disponibilidade para estar presente na assembleia e permitir a pretendida alteração do fim da fracção. Mais alegam terem sido, posteriormente à assembleia, “encaminhados” para outro sócio da Ré que pediu à Autora a importância de € 6.000 para “conseguir a autorização da empresa”.
A Ré contestou alegando ser falso o conteúdo da “acta” junta aos autos, afirmando não ter havido qualquer reunião de condóminos, e nem ela ter sido, sequer, convocada para qualquer reunião, impugnando todos os demais factos alegados pelos Autores. Admite apenas que quando foi contactada pelos Autores deu-lhes a conhecer que não autorizava a alteração do fim da fracção porque isso lhe causaria danos que teriam de ser ressarcidos, o que eles nunca aceitaram. Mais alega que a alteração do fim da fracção levaria à diminuição do interesse de potenciais interessados em comprar ou arrendar lojas na vizinhança do “pretendido apartamento”, o que conduz a uma desvalorização substancial da fracção dela, Ré.
Convocada uma audiência prévia e frustrada a conciliação das partes, foi proferido douto despacho saneador que, conhecendo das excepções arguidas pela Ré - de erro na forma do processo e ineptidão da petição inicial -, julgou-as improcedentes.
E conhecendo do mérito da causa julgou a pretensão dos Autores desprovida de fundamento legal, julgando a acção improcedente.
Inconformado, traz o Autor o presente recurso, pedindo que se altere a supra transcrita decisão.
Contra-alegou a Ré propugnando para que se mantenha a decisão impugnada.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- O Apelante/A. funda o recurso nas seguintes conclusões:

Um. O exercício de um direito não pode ultrapassar manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Dois. No caso em apreço o pedido de uma quantia monetária - € 6.000 – para dar a autorização para alteração de fim ultrapassa esses limites;
Três. O sentido e fim da norma – 1422º- A do C. Civil – visa proteger os condóminos de obras ou alteração de fim que os prejudique.
Quatro. Não pode visar que os condóminos possam lucrar financeiramente com a alteração.
Cinco. Inexiste, nem foi alegado, qualquer sacrífico ou que da alteração de fim possam a ré ser de qualquer forma prejudicada.
Seis. Permitir que se exerça este direito desta forma acarreta uma interpretação da norma claramente violadora do espírito da Lei e da Vontade do legislador.
Sete. Trazendo um sacrifício incontornável para o autor;
Oito. Que é deficiente, que procedeu às obras na convicção de estar por todos legitimado.
Nove. Só depois das obras realizadas lhe foi exigido dinheiro.
Dez. Deve assim considerar-se que estamos perante manifesto abuso de exercício de direito e, em consequência suprir a autorização da ré.
Consideram-se violados os art.os 1422º - A, 334º e 335º do C. Civil.
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III.- Por sua vez, a Apelada/Ré conclui assim:

- A douta decisão recorrida, ora em crise, não infringe qualquer preceito legal, enquadra-se perfeitamente na letra e no espírito da lei, é absolutamente legal e fundamentada, pelo que não existe motivo para a sua alteração.
- A jurisprudência e a doutrina têm sido unânimes no sentido de, tratando-se de alteração ou modificação do título constitutivo, o consentimento dos condóminos não é passível de suprimento judicial, não deixando a letra da lei, qualquer dúvida a esse respeito, tal como bem decidiu o Tribunal a quo.
- Vem o ora recorrente alegar que a não autorização para a alteração do fim a que se destina a fração “não se deveu a qualquer violação dos direitos dos condóminos e pelo facto de a alteração prejudicar a ré, esta viu esta autorização como forma de obter lucro”, o que é, desde já, falso, não tendo os autores feito qualquer prova desse facto, sendo que tal é, igualmente, irrelevante para a boa decisão da causa.
- Importa salientar, por uma questão de enquadramento fáctico, que a ora recorrida, através dos seus representantes legais, quando contactada para tal, sempre manifestou junto dos autores que não autorizava a alteração do fim da fração, porquanto tal lhe causaria danos, que teriam de ser ressarcidos, o que os autores nunca aceitaram assumir.
- Por respeito à letra e espírito da lei, bem andou o Tribunal a quo quando decidiu pela improcedência da ação, pois “como vem sendo jurisprudência constante dos tribunais superiores, por se destinar a proteger interesses comuns, não estando previsto que possa ser feito por via diferente de escritura pública ou documento particular autenticado e mediante acordo de todos os condóminos, a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por meio de sentença judicial não é legalmente admissível, mesmo em sede de ação de suprimento de consentimento, o qual está previsto a título excecional e especificadamente para os casos previstos no Cód. Processo Civil.”
- Nesse sentido, encontramos, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-05-2009.
- A ora recorrida acompanha a posição adotada pelo Tribunal a quo, sendo certo que a douta sentença ora recorrida em momento algum violou o preceito do artigo 1422º-A do Código Civil, que não se vislumbra em que sentido se aplica ao caso concreto em apreço.
- Acresce que, não é possível descortinar das alegações de recurso apresentadas pelo ora recorrente, quais os pontos em que o mesmo entende que a douta sentença decidiu de forma errada, limitando-se o mesmo a arguir novamente apenas os fundamentos que já havia mencionado em sede de petição inicial e de réplica.
- Nunca a mesma tentou obter uma vantagem monetária com a alteração do fim a que se destina a fração dos autores, não sendo da responsabilidade da ora recorrente que aqueles desconhecessem que teriam de ter a autorização de todos os condóminos para a alteração do fim a que se destina uma fração.
10º- É falso que a ora recorrida exigisse dinheiro para dar o seu consentimento, como se uma coação se tratasse.
11º- Como foi devidamente alegado pela ré, entende a mesma que a alteração do fim da fração levaria à diminuição do interesse de potenciais interessados em comprar ou arrendar lojas na vizinhança do pretendido apartamento, o que conduz a uma desvalorização substancial da fração da ré, saindo a mesma prejudicada, acarretando um prejuízo significativo, pelo que não autorizava a alteração do seu fim.
12º- Além do mais, como, aliás, refere o próprio recorrente “tal prejuízo pode inclusive ser prejuízo de mera comodidade. O que esse entende e deve ser salvaguarda”, sendo que não se coloca aqui a questão de desproporção manifesta entre o benefício deste e o sacrifício que se impõe, pois é evidente o alcance da lei.
13º- Assim, não se verificando o requisito de tal instituto jurídico (abuso de direito), não pode deixar de se dar como improcedente o presente recurso, pois a douta sentença não violou os artigos 334º e 335º do Código Civil, impondo-se a consequente absolvição da ré.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Como se extrai das conclusões acima transcritas, a questão a apreciar é, em primeira linha, a de saber se é admissível, com fundamento no abuso do direito, suprir o consentimento da Apelada para a alteração do fim da fracção autónoma pertencente ao Apelante.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

V.- Como resulta do que se deixou referido em I, o Apelante e a Apelada são condóminos num prédio urbano em propriedade horizontal, pretendendo o primeiro alterar o fim da fracção autónoma de que é proprietário, recusando a segunda consentir nessa alteração.

1.- Na propriedade horizontal cada um dos condóminos é proprietário exclusivo de uma (ou mais) fracções autónomas, e, simultaneamente, é comproprietário das partes comuns do edifício – cfr. art.º 1420.º, n.º 1 do Código Civil (C.C.).
No título constitutivo da propriedade horizontal devem ser especificadas as partes do edifício que correspondem às várias fracções, por forma a que fiquem devidamente individualizadas, podendo ainda ficar a constar do título a menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum, o regulamento do condomínio e a previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação do condomínio – art.º 1418.º do C.C..
Estando cada uma das fracções autónomas integrada na estrutura do prédio são inevitáveis as estreitas relações de interdependência entre os condóminos.
E por isso é que, para além das limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários no exercício do direito de propriedade, o art.º 1422.º do C.C. acrescenta outras, uma das quais é a da proibição de dar à sua fracção autónoma um fim diverso daquele a que foi destinado – cfr. alínea a) do n.º 2 do art.º 1422.º do C.C..
Havendo acordo unânime dos condóminos, pode ser modificado o título constitutivo, e, logo, alterado o fim aí previsto para cada uma das fracções autónomas, desde que seja observada a imposição constante do art.º 1415.º - cfr. art.º 1419.º do C.C..
O acordo está sujeito a forma, sendo obrigatório que seja celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado, sendo que a autenticação exige que as partes confirmem o conteúdo do documento perante o notário, nos termos do art.º 150.º do Cód. do Notariado.
Ainda nos termos do disposto no n.º 2 daquele art.º 1419.º, o administrador em representação do condomínio pode outorgar a escritura ou elaborar e subscrever o documento particular, desde que o acordo conste de acta assinada por todos os condóminos.
Desta imposição da assinatura da acta, que pressupõe a presença de todos os condóminos na assembleia (ou, ainda que a lei seja omissa, crê-se que, pelo menos, a representação com poderes específicos), extrai-se que o acordo não pode ser tácito, deduzido do silêncio dos condóminos não presentes, ao abrigo do disposto no n.º 8 do art.º 1432.º do C.C..
Como vem sendo decidido, o não consentimento de um dos condóminos para a alteração do título constitutivo não pode ser suprido por decisão judicial uma vez que a lei substantiva não prevê a possibilidade do suprimento – decidiram neste sentido, dentre outros, o Ac. da Rel. de Lisboa de 12/06/1984, (in C.J., ano IX, tomo 3, págs. 151/152); o Ac. da Rel. do Porto de 15/03/2001, (in C.J., ano XXVI, tomo II, págs. 170/172); o Ac. da Rel. de Coimbra de 11/06/1991, (in B.M.J. n.º 408º, pág. 663); e o Ac. da Rel. de Évora de 10/10/1991, (in B.M.J. n.º 410º, pág. 904).
ABÍLIO NETO defende, porém, a possibilidade de submissão a decisão judicial das situações de “manifesto abuso do direito, em que o interesse colectivo é sacrificado a determinado interesse singular, sem sustentação objectiva e razoável” (in “Manual da Propriedade Horizontal”, 3.ª ed., pág. 102).
2.- O Apelante invoca o abuso do direito e a preponderância do seu direito sobre o da Apelada, atendendo aos especiais motivos que estão subjacentes à alteração do fim da sua fracção autónoma (o direito a uma habitação com boas acessibilidades atenta a sua mobilidade reduzida).
Nos termos do art.º 334.º do C.C., é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
Só pode concluir-se ter havido abuso no exercício de um direito se o excesso cometido for manifesto, se houver “uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”, como referiu VAZ SERRA (in B.M.J., nº. 85º., pág. 253).
De acordo com o Ac. do S.T.J. de 9/04/2013, “O instituto do abuso do direito relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça” e prossegue ainda, citando o Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 28/11/1996, “O abuso do direito pressupõe a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito e casos em que se excede os limites impostos pela boa fé” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano IV, tomo III, págs. 118-121).
Refere o Ac. da Rel. do Porto de 31/05/1988 que na fundamentação do abuso do direito “releva um comportamento ético que se desdobra em dois sentidos: na formulação de um juízo de censura ao titular do direito por o exercer em termos de ofender o sentimento jurídico socialmente dominante, contradizendo o próprio direito em si” e “na protecção do direito de outrem, merecedor da tutela jurídica e que o ponha a salvo das ofensas quer legítimas quer ilegítimas” (in C.J., XIII-1988, tomo 3, pág. 234).
É o que, por outras palavras, refere o Ac. da Rel. de Coimbra de 19/07/1983, ao afirmar que o instituto do abuso do direito “não se destina a fazer extinguir direitos, antes se propõe manter o seu exercício em moldes conformes com um salutar equilíbrio de interesses em jogo, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico ou social do direito”, e prossegue referindo: “Daqui resulta que o abuso do direito seja frequentemente chamado a intervir no campo dos direitos reais e, nele, no que particularmente respeita às relações de vizinhança, onde a sua função correctiva tantas vezes propicia o encontro de soluções que, sem ele, seriam impensáveis, embora reconhecidamente reclamadas por uma equitativa, justa composição dos interesses em jogo” (in C.J., ano VIII, tomo 4, pág. 49).
Com efeito, deve entender-se que age com abuso do direito o proprietário que pratica actos emulativos, ou seja, aquele que tenha comportamentos que visam somente prejudicar outrem, sobretudo os proprietários dos prédios vizinhos.
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO refere-se à “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem”, aqui integrando “a actuação de direitos com lesão intolerável de outras pessoas” e “o exercício jurídico-subjectivo sem consideração por situações especiais” dando como exemplos o do proprietário que “com licitude formal, exerça o conteúdo do seu direito, provocando, contudo, danos desconformes aos vizinhos”, e afirmando ainda que “o exercício jurídico-subjectivo sem consideração por situações especiais integra, de algum modo, o desenvolvimento profundo do dispositivo consagrado, pelo artigo 335.º, à colisão de direitos”, pelo que “para além dos direitos subjectivos alheios, o titular-exercente deve respeitar, no exercício do direito próprio, outras situações especiais, cuja preterição contrarie o clausulado no art.º 334.º” (in “Tratado do Direito Civil, vol. V, págs. 346 e sgs.), ou seja, exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico desse direito.
A jurisprudência já por bastas vezes se pronunciou sobre a proibição de afectação a uma actividade comercial ou de prestação de serviços de uma fracção autónoma que no título constitutivo estava destinada a habitação, mas os fundamentos aí aduzidos não podem ser considerados na situação sub judicio que, nos seus contornos específicos, é singular.
Ora, as limitações ao exercício de posições jurídico-subjectivas só são passíveis de determinar in concreto.
A formulação de um juízo de actuação da Apelada com abuso do direito passa, na situação sub judicio, necessariamente, pelo apuramento dos factos que foram alegados, nomeadamente, quanto à deficiência física que o Apelante invoca, e à ausência ou extrema dificuldade de encontrar, em Vila Pouca de Aguiar, outra solução que possa ser adequada a obviar as limitações daquela deficiência; a invocada obtenção inicial da anuência de um dos sócios da Apelada; a invocada exigência de uma comparticipação financeira para a concessão do acordo, sobretudo se houver uma situação de desequilíbrio entre a primeira e o desvalor que o acordo poderá trazer para a fracção autónoma da Apelada (e que esta traduz na “diminuição do interesse de potenciais interessados em comprar ou arrendar lojas na vizinhança do pretendido apartamento”), factos estes que foram impugnados.
Sem embargo de o abuso do direito poder ser conhecido oficiosamente, o Apelante, ainda que de forma processualmente algo arrevesada, invoca-o quando se pronuncia sobre os documentos (que são fotografias do local) juntos pela Apelada.
Impondo-se, pois, sujeitar a veracidade daqueles factos ao crivo das provas, cumpre fazer prosseguir os autos para julgamento, anulando-se o douto despacho saneador-sentença, por insuficiência de matéria de facto.
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C) DECISÃO

Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em anular o despacho saneador-sentença, determinando que os autos prossigam para julgamento, se não houver nenhum obstáculo processual que o impeça.
Custas da apelação pela parte vencida a final.
Guimarães, 08/03/2018
(escrito em computador e revisto)

(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)