Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
783/15.3T8FAF.G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
PROTECÇÃO DO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
CADUCIDADE
ABUSO DE DIREITO
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Ao contrato de compra e venda de bem de consumo são aplicáveis, em primeira linha, as regras jurídicas previstas no D.L. n.º 67/2003, de 08.04. (na redação dada pelo D.L. n.º 84/2008, de 21.05), e na Lei n.º 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor) e, subsidiariamente, o regime jurídico geral previsto para o mesmo tipo contratual no Código Civil.

II- Sob pena de verificação de “abuso de direito” (art. 334º, do C. Civil), mormente na modalidade de “venire contra factum proprium”, não pode o vendedor de bem alegadamente defeituoso aceitar corrigir, por diversas vezes, o mesmo bem que vendera, admitindo como possível a existência do defeito denunciado, para, de seguida, vir invocar a exceção de caducidade do exercício dos direitos do comprador lesado, com base no início do prazo para o exercício daqueles direitos em denúncias de defeitos ocorridas antes de se conhecer o resultado da última tentativa de reparação.

III- Em prol do direito de proteção do consumidor, conferido pelo D.L. n.º 67/2003, de 08.04, os meios que o comprador consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um bem defeituoso, previstos no art. 4º, n.º 1, do citado diploma legal, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha, estando apenas esta escolha limitada pela impossibilidade do meio ou pelo “abuso de direito” (art. 4º, n.º 5, do D.L. n.º 67/2003, de 08.04, e art. 334º, do C. Civil).

IV- Em caso de compra e venda de veículo automóvel, a devolução integral do preço contratual liquidado pelo comprador e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolveria um enriquecimento sem causa (art. 473º, do C. Civil) por parte do comprador, violador da boa fé contratual.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Domingos C. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra José C., pedindo que:

a) Seja declarado resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre autor e réu;
b) Seja o réu condenado no pagamento da quantia de € 109,20, a título de dano patrimonial suportado pelo autor;
c) Seja o réu condenado no pagamento da quantia de € 1.000,00, a título de danos não patrimoniais.

Subsidiariamente, pede que:

d) Seja o réu condenado a proceder à reparação de todos os defeitos apresentados e entregar o veículo em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, tudo sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados;

Caso ainda assim não se entenda, pede que:

e) Seja reduzido o preço acordado, compensando o autor no montante necessário para proceder à reparação dos defeitos alegados, para que o veículo fique em condições de normal funcionamento e apto a circular em segurança, tudo sem prejuízo do pagamento dos danos reclamados.

Para o efeito, alega o autor, em suma, que, o réu, enquanto proprietário do stand “RC Automóveis”, este vendeu ao autor o veículo marca Mercedes, modelo S320 CDI, com matrícula MM, pelo valor de € 15.500,00, o qual foi entregue ao autor no dia 08.02.2013; sucedendo, porém, que, desde então, o mesmo veículo revelou apresentar um conjunto de problemas, melhor identificados no art. 9º da petição inicial, os quais foram prontamente e por diversas vezes comunicados ao réu, que, na sequência, o levou à Mercedes e onde lhe foram detetados ainda os problemas elencados no art. 16º da petição inicial, problemas esses que põem em causa a segurança do mesmo e impedem a sua circulação, o que tudo causou ao autor despesas com deslocações e inspeções para reparação, assim como transtornos, insatisfação e desgosto, por ter adquirido um veículo com o qual não pode circular, necessitando de utilizar um outro veículo cedido por um familiar.

O réu apresentou contestação, começando por excecionar a sua ilegitimidade passiva para figurar na ação, afirmando que não é nem era em 2013, proprietário do stand “RC Automóveis”, onde o autor adquiriu o veículo em causa, invocando ainda a caducidade do direito do autor, atendendo à data em que o autor afirma ter tomado conhecimento dos defeitos (26-12-2013) e a data da entrada dos presentes autos. Além de tudo, impugna o réu a matéria descrita na petição inicial, afirmando que o autor adquiriu um veículo usado, com 198.000 Km e que, ao contrário do que alega, andou com ele mais de 200 km e não apenas curtas distâncias; alega ainda que o autor recebeu o veículo em condições e conforme as características publicitadas, sendo que todas as situações que foram reportadas foram solucionadas. Afirma, por último, que os problemas ora descritos não são de molde a por em causa a segurança do veículo, sendo isso sim situações de desgaste normal de um veículo com aquelas características e quilometragem. Termina, pugnando a procedência das exceções invocadas e, em qualquer caso, a improcedência da ação.
O autor respondeu às exceções invocadas pelo réu, tendo concluído pela improcedência das mesmas.
Realizou-se uma audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedente a exceção de ilegitimidade passiva suscitada pelo réu e relegando-se para a sentença final o conhecimento da invocada exceção perentória de caducidade. Na sequência, fixou-se o objeto do litígio, selecionando-se os temas de prova.
Após produção de prova pericial, procedeu-se à realização da audiência de julgamento.

Na sequência, por sentença de 21 de setembro de 2017, veio a julgar-se integralmente procedente a ação e, em consequência, foi declarado resolvido o contrato de compra e venda do veículo de marca Mercedes S320 CDI, matrícula MM, celebrado entre o autor e o réu, determinando-se consequentemente que o réu restitua ao autor a quantia de € 15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros) e que o autor, por seu turno, restitua ao réu o referido veículo.
Mais foi condenado o réu a pagar ao autor a quantia de € 109,20 (cento e nove euros e vinte cêntimos), a título de danos patrimoniais sofridos pelo autor; e ainda no pagamento da quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos morais.

Inconformada com o assim decidido, veio o réu José C. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

1. No caso vertente deverá aplicar-se o regime jurídico previsto no art.º 917 do Código Civil, e nessa conformidade tem de considerar-se verificada a caducidade do direito da resolução do contrato invocado pelo A.
2. Se assim doutamente se não entender, e considerar-se aplicável o regime jurídico constante do Dec. Lei 67/2003, atenta a factualidade dada como provada relativamente à data de aquisição do veículo e a denúncia dos defeitos (Fevereiro/Março de 2013); o prazo em que o veículo esteve para reparar, tem de considerar-se que decorreu o prazo de dois anos acrescido dos quatro meses de paralisação, e nessa conformidade tendo a ação sido instaurada em Dezembro de 2015, tem pois também de verificar-se a caducidade do direito do A. à resolução do contrato.
3. Os defeitos invocados pelo A. na petição inicial, e que determinam o seu pedido de resolução do contrato, são substancialmente diferentes daqueles que estão vertidos no relatório pericial efetuado três anos após a entrega do veículo, pelo que não pode afirmar-se que os defeitos existentes na inspeção já existiam à data da venda.
4. Nesta conformidade, não estão reunidos os requisitos legais que possam determinar a resolução do contrato, atendendo a que os defeitos invocados pelo A., visíveis à data da aquisição do veículo não eram de molde a pôr em causa as características e segurança do veículo.
5. Atenta a factualidade referida pelo A. na sua petição inicial, deveria pois ser determinada a reparação dos defeitos ou a redução adequada do preço da aquisição.
6. Tendo o tribunal entendido estarem reunidos os requisitos para a resolução do contrato, não se afigura adequado e proporcional que o R. tenha de devolver ao A. na íntegra o valor recebido de € 15.500,00.
7. Tal restituição configura um enriquecimento injustificado, porquanto o A. circulou com o veículo e deu-lhe destino que se desconhece durante cerca de 3 anos, pelo que é evidente a desvalorização do mesmo, sendo o seu valor situado em montante não superior a € 9.500,00.
8. Atento ao tipo de defeitos visíveis invocados pelo A. não se afigura razoável, considerar-se o A. desgostoso por o veículo lhe ser entregue sempre nas mesmas condições, revelando no mínimo uma conduta negligente da sua parte, porquanto não lhe era exigido receber o veículo sem que tais defeitos visíveis fossem corrigidos.
9. Nesta conformidade, não deve assim ser considerado o comportamento do R. gerador de responsabilidade a título de danos morais.
10. A presente decisão violou o disposto no art.º 917 do C.C., arts. 3º, 4º e 5º da Lei 67/2003, e arts. 433º e 473º e 496º e 494º todos do Código Civil.

Finaliza, pugnando pela revogação da sentença recorrida, julgando-se procedente a exceção de caducidade do direito de resolução do contrato; ou, se assim não se entender, pela falta de fundamento para a resolução do contrato e tudo com as legais consequências.
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O autor não apresentou contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, as questões decidendas traduzem-se nas seguintes:

Ø Saber se cumpre julgar procedente a exceção perentória de caducidade do direito de resolução do contrato por parte do autor.
Ø Em caso negativo, saber se estão reunidos os requisitos legais que possam determinar a resolução do contrato, atendendo a que os defeitos invocados pelo A., visíveis à data da aquisição do veículo, não eram de molde a pôr em causa as características e segurança do veículo.
Ø Saber se, em vez da resolução do contrato, cumpre antes determinar a reparação dos defeitos ou a redução adequada do preço da aquisição.
Ø Saber se cumpre proceder ao cálculo da desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse do autor.
Ø Saber se o apurado comportamento do réu é gerador de responsabilidade a título de danos patrimoniais sofridos pelo autor.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. Factos Provados

O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1.1. O réu é proprietário de um Stand denominado “RC Automóveis”, com sede na Av. de …, Fafe;
1.2. Dedicando-se ao comércio de veículos automóveis, com caracter habitual e lucrativo.
1.3. No âmbito das suas funções, vendeu ao autor o veículo automóvel marca Mercedes modelo S320 CDI, com a matrícula MM;
1.4. O preço de compra acordado foi de € 15.500,00;
1.5. No dia 17 de Janeiro de 2013, o autor pagou, a título de sinal, a quantia de € 500,00 que efetuou por transferência para o NIB que lhe foi indicado pelo réu para esse efeito;
1.6. Tendo o réu emitido uma declaração de entrega de sinal;
1.7. No dia 8 de Fevereiro de 2013, o autor procedeu ao pagamento do restante preço acordado, através da emissão do cheque n.º … do BANCO A;
1.8. Na data de entrega do respetivo cheque de pagamento, o réu procedeu à entrega do veículo ao autor;
1.9. Foram detetados, de imediato, inúmeros problemas que, no próprio dia da entrega, foram comunicados ao réu;
1.10. Dadas as referidas anomalias, o referido veículo foi para reparação, no Stand do Réu, três vezes;
1.11. A 22.08.2013, o veículo foi para reparação, pela última vez, através de reboque, dada a impossibilidade de circular;
1.12. Tendo o Autor suportado a despesa do reboque no montante de € 60,00;
1.13. Em 09 de Setembro de 2013, o Autor reclamou por escrito a resolução dos problemas que o mesmo apresentava, nomeadamente:

a) Não funcionamento do ar condicionado;
b) Não aquecimento do banco do condutor;
c) Mau funcionamento da buzina;
d) Mau funcionamento do sistema de regulação do banco do condutor;
e) Falta do isqueiro do lado direito da parte de trás;
f) Ausência de farol da frente do lado direito;
g) Regulador do volume do rádio partido;
h) Não funcionamento do regulador de ar da parte de trás;
i) Ruído constante na panela do lado direito e do lado direito frente;
j) Ausência da tampa de água do limpa vidros,
k) Acusa constantemente falta de água,
l) Anomalia grave na suspensão que impossibilita a mudança de direção.
1.14. O autor procedeu ao levantamento do referido veículo no dia 26/12/2013.
1.15. No dia em que procedeu ao seu levantamento, o autor, levou-o, diretamente da oficina do réu à oficina da Mercedes a fim de apurar da reparação dos defeitos denunciados;
1.16. O autor pagou pela referida inspeção a quantia de € 49,20;
1.17. O veículo em causa está no seguinte estado:

· o banco do condutor vai eletricamente para a frente mas não recua; · o aquecimento/arrefecimento dos bancos não funciona;
· o aquecimento ambiente não funciona;
· o ar condicionado não funciona;
· falta um botão do rádio:
· está ligada a luz de aviso de problemas com os airbags;
· uma grelha de ventilação está partida;
· o controlador do motor mostra várias avarias;
· amortecedores do capot sem força;
· há óleo no circuito de arrefecimento (que indica haver junta da colaça queimada e/ou colaça rachada);
· folgas na suspensão (rotulas/braços suspensão/casquilhos);
· ralenti incerto em frio;
· perda de gasóleo;
· produção de muito fumo pelo escape;
· esguicho de limpeza do para-brisas não funciona;
· limpa para-brisas não funciona em posição automática;
· falta blindagem interior da frente;
· os escapes fazem barulhos mecânicos indiciando estarem com os miolos estragados;
· o espelho retrovisor faz barulhos e vibrações ao ser ligado;
· tampa da mala não fecha automaticamente;
· o comando não abre nem fecha as portas e a mala;
· pneus da frente gastos;
· fechando a porta da frente com a chave manual as demais não fecham automaticamente;
1.18. O autor adquiriu o referido veículo tendo em conta as características publicitados na internet, pelo referido Stand, sentindo-se defraudado pois que parte delas não funciona;
1.19. Ora, dados os inúmeros problemas que afetam o veículo, sobretudo os que põem em causa a segurança, fazem com que o autor não possa circular com o veículo, pois tem receio que algo de grave aconteça;
1.20. Razão pela qual, desde que procedeu ao seu levantamento e foi alertado para o perigo de circulação com o veículo no estado em que encontra, que o tem estacionado numa garagem;
1.21. Tal situação implica para o autor além insatisfação e desgosto, graves transtornos;
1.22. Além da revolta de o referido veículo lhe ser entregue sempre nas mesmas condições;
1.23. Vendo-se o autor forçado a utilizar um veículo cedido por um familiar, o que o obriga a sujeitar-se a favores quando precisa de fazer viagens mais longas ou se for necessário transportar outros familiares.

2. Factos Não Provados
2.1. Que o veículo em causa tivesse à data da venda 198.000 quilómetros
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Mais se consignou que os demais factos alegados pelas partes não foram objeto de resposta por conterem matéria conclusiva, irrelevante, instrumental e/ou de direito.
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A) Da caducidade

Começando por analisar o regime jurídico aplicável ao contrato de compra e venda de veículo automóvel em apreço, o tribunal a quo concluiu que se deverá aplicar o regime jurídico específico da venda de bens de consumo, previsto no D.L. n.º 67/2003, de 08.04, na redação dada pelo D.L. n.º 84/2008, de 21.05, em conjugação com a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.07).

Consideramos que com razão.

O regime jurídico da venda de coisas defeituosas tem assento legal nos arts. 913º e segs. do C. Civil, onde são especificados os direitos que, nessa situação, assistem ao comprador e onde se determina o modo e o prazo de exercício desses direitos.
No que toca aos prazos, ali se dispõe que, ressalvando o caso de existência de dolo por parte do vendedor, o comprador, tratando-se de coisa móvel (como aqui acontece) deve denunciar o vício ou defeito ao vendedor no prazo de trinta dias após o respetivo conhecimento e dentro de seis meses após a entrega da coisa (art. 916º), sendo que, como dispõe o art. 917º, a ação de anulação por simples erro caduca se a denúncia não for efetuada dentro dos prazos fixados no artigo anterior ou se a ação não for instaurada no prazo de seis meses após a denúncia.
Essa matéria veio, porém, a ser objeto de regulação própria no âmbito das relações de consumo, de acordo com a legislação de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.07 e, em especial, D.L. n.º 67/03, de 08.04, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 84/2008, de 21.05,) normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de compra e venda, derrogando aquelas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação – o da relação de consumo.
Cumpre salientar que o identificado D.L. n.º 67/2003 foi publicado para proceder à “transposição para o direito interno da Directiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativo a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores.” – art. 1º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
No fundo, a razão de ser da introdução desta regulamentação, claramente mais protetora do comprador consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador – que seja consumidor – a parte mais fraca no respetivo negócio de compra e venda.

Face à factualidade apurada, estamos, de facto, perante um contrato de compra e venda de bem de consumo (automóvel – art. 1º-B, al. b), do D.L. 67/2003), celebrado entre e um consumidor ou comprador não profissional (autor comprador – art. 1º-B, al. a), do D.L. n.º 67/2003) e um profissional (réu vendedor – art. 1º-B, al. c), do D.L. n.º 67/2003), ou seja entre uma pessoa singular que adquire a fornecedor profissional bens para uso não profissional (cfr. art. 2º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor).

Nesta medida, havendo regime jurídico específico aplicável ao contrato de compra e venda em apreço, é este regime específico que deverá ser aplicado em primeira linha e só subsidiariamente as regras previstas no Código Civil para o mesmo tipo contratual. (1)

Sendo assim, conforme decorre do disposto no art. 2º, n.º 1, do D.L. n.º 67/2003, de 08.04, o vendedor profissional está obrigado a entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda celebrado (cfr. ainda arts. 3º e 4º da LDC), presumindo-se (presunção iuris tantum) essa mesma falta de conformidade, em qualquer um dos casos previstos nas diversas alíneas do n.º 2 daquele art. 2º.

O vendedor profissional é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem; sendo que, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato (art. 3º, n.º 1 e 4º, nº 1, do D.L. n.º 67/2003).

Por outro lado, de acordo com o disposto no art. 12º, n.º 1, da LDC (Lei nº 24/96), o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.

Quanto aos prazos para o consumidor exercer os seus referidos direitos prescreve o artigo 5º-A, do D.L. n.º 67/2003, de 08.04 (na redação introduzida pelo D.L. n.º 84/2008, de 21.05), que:

1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detetado.
3 - Caso o consumidor tenha efetuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.
4 - O prazo referido no número anterior suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objetivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com exceção da arbitragem.

No caso em apreço, com relevância para exceção perentória de caducidade em presença, temos como provado a seguinte factualidade:

1.1. No dia 8 de Fevereiro de 2013, o autor procedeu ao pagamento do restante preço acordado, através da emissão do cheque n.º … do BANCO A;
1.2. Na data de entrega do respetivo cheque de pagamento, o réu procedeu à entrega do veículo ao autor;
1.3. Foram detetados, de imediato, inúmeros problemas que, no próprio dia da entrega, foram comunicados ao réu;
1.4. Dadas as referidas anomalias, o referido veículo foi para reparação, no Stand do réu, três vezes;
1.5. A 22.08.2013, o veículo foi para reparação, pela última vez, através de reboque, dada a impossibilidade de circular;
1.7. Em 09 de Setembro de 2013, o Autor reclamou por escrito a resolução dos problemas que o mesmo apresentava, nomeadamente:

a) Não funcionamento do ar condicionado;
b) Não aquecimento do banco do condutor;
c) Mau funcionamento da buzina;
d) Mau funcionamento do sistema de regulação do banco do condutor;
e) Falta do isqueiro do lado direito da parte de trás;
f) Ausência de farol da frente do lado direito;
g) Regulador do volume do rádio partido;
h) Não funcionamento do regulador de ar da parte de trás;
i) Ruído constante na panela do lado direito e do lado direito frente;
j) Ausência da tampa de água do limpa vidros,
k) Acusa constantemente falta de água,
l) Anomalia grave na suspensão que impossibilita a mudança de direção.
1.8. O autor procedeu ao levantamento do referido veículo no dia 26/12/2013.

1.15. No dia em que procedeu ao seu levantamento, o autor, levou-o, diretamente da oficina do réu à oficina da Mercedes a fim de apurar da reparação dos defeitos denunciados.

O veículo possui os defeitos enunciados no ponto 1.10. dos factos provados, sendo que, desde que procedeu ao levantamento da viatura (deduz-se pela última vez do Stand do réu), e foi alertado para o perigo de circulação com o veículo no estado em que encontra, que o tem estacionado numa garagem (cfr. ponto 1.20. dos factos provados)

Nesta medida, temos como demonstrado que o veículo adquirido pelo autor apresentou problemas e defeitos, desde o momento em que o mesmo foi entregue ao autor (08.02.2013), tendo o réu denunciado de imediato tais defeitos.
Ora, podemos assim concluir que o autor denunciou dentro do respetivo prazo legal de dois meses (cfr. art. 5º-A, n.º 2, do D.L. n.º 67/2003), os defeitos que o veículo apresentava.
Perante esta denúncia de anomalias da viatura, o vendedor encetou várias diligências para reparação dos mesmos vícios no seu Stand, o que aconteceu por três vezes, a última das quais em 22.08.2013, tendo o veículo ficado no Stand do réu, para reparação, até 26.12.2013.
Por sua vez, o autor comprador realizou a ultima denúncia – desta vez por escrito –, em 9 de Setembro de 2013, dando conta das diversas anomalias que a viatura ainda possuía.
Não obstante ter ficado até ao dia 26.12.2013 no Stand do réu, tendo em vista a sua reparação, o veículo continua a apresentar as anomalias acima identificadas.

Por conseguinte, numa primeira análise, temos como assente que a primeira denúncia dos defeitos da viatura ocorreu em 08.02.2013 e a última em 09.09.2013.
O réu entende que o prazo para o exercício do direito à resolução do contrato por parte do autor começou a contar logo a partir da primeira denúncia.

Consideramos, porém, sem razão.

De facto, foi o próprio réu vendedor que, procurando resolver a situação dos defeitos denunciados, aceitou que o mesmo veículo fosse sujeito a diversas intervenções técnicas, tendo em vista a reparação dos defeitos denunciados, sendo certo que a última vez que tal aconteceu ocorreu em 22.08.2013, estando inclusivamente o veículo vendido no Stand do réu, para reparação, até 26.12.2013.
Nesta medida, o autor, só a partir de 26.12.2013, quando procedeu pela última vez ao levantamento do veículo do Stand do réu, é que logrou conhecer em que medida é que a última reparação intentada pelo réu vendedor havia superado ou não os vícios que a viatura apresentava, anteriormente denunciados atempadamente.
Podemos assim, concluir que, só a partir desta última data (26.12.2013), é que começou a correr o prazo para o autor intentar a respetiva ação de resolução do contrato celebrado (cfr. art. 329º, do C. Civil).
Ademais, de acordo com o disposto no art. 5º-A, n.º 4, do D.L. n.º 67/2003, de 08.04 (na redação introduzida pelo D.L. n.º 84/2008, de 21.05) o referido prazo para o autor exercer os seus direitos que lhe são conferidos pelo art. 4º do mesmo diploma legal, suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objetivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com exceção da arbitragem.

Dos factos dados como assentes, resulta manifesto que quer o autor quer o réu, durante o período que mediou entre 08.02.2013 e 26.12.2013 encetaram diversas diligências tendentes à resolução extrajudicial do conflito existente entre as partes, provenientes das diversas desconformidades que o veículo apresentava, mormente através das diversas tentativas de reparação da viatura, motivo pelo qual também com base neste preceito legal, não podemos considerar que se iniciara o prazo para o autor exercer os seus direitos antes de 26.12.2013.

Por último, cumpre salientar que, sob pena de verificação de abuso de direito (art. 334º, do C. Civil), mormente na modalidade de venire contra factum proprium, não pode o réu vendedor aceitar reparar, por três vezes, o veículo que vendera ao autor, detendo o mesmo veículo, pela última vez, até 26.12.2013 no seu Stand para reparação, que não logrou alcançar, para, de seguida, vir invocar a exceção de caducidade do exercício dos direitos do autor comprador, com base no início do prazo para o exercício daqueles direitos em denúncias de defeitos ocorridas antes de se conhecer o resultado da última tentativa de reparação.

No mesmo sentido, conforme é salientado no Ac. STJ de 18.09.2014 (2), “integra violação das cláusulas gerais da boa fé e do abuso de direito o comportamento do vendedor de coisa alegadamente defeituosa que – embora sem reconhecer inequívoca e expressamente o vício ou defeito denunciado – admitiu como possível a sua existência e tentou, por várias vezes, corrigi-lo, vindo ulteriormente contra facto próprio, invocar a caducidade, em consequência de o comprador – confiando justificadamente na seriedade do propósito de correção do vício ou defeito da coisa manifestado pela conduta do vendedor – não ter atuado em juízo antes de se ter revelado na prática o resultado final de tais tentativas de resolução do problema, de modo a excluir quaisquer perspetivas de solução consensual do litígio.

Pelo que fica dito, tendo-se iniciado apenas em 26.12.2013 o prazo legal de dois anos para o autor exercer judicialmente os seus direitos, emergentes do disposto no art. 4º do citado D.L. n.º 67/2003, de 08.04, entre os quais o direito à resolução do contrato, forçoso é concluir que, à data da propositura da presente ação (21.12.2015), ainda não havia decorrido aquele prazo, pelo que é de manter a decisão recorrida que julgou improcedente a exceção de caducidade deduzida.

Soçobra, pois, neste segmento a apelação apresentada.
*
B) Da resolução do contrato

Invoca o réu recorrente que não se mostram reunidos os requisitos legais necessários à resolução do contrato em presença, uma vez que os defeitos invocados pelo autor, visíveis à data da aquisição do veículo, não eram de molde a pôr em causa as características e segurança do veículo.
Na mesma sequência, alega igualmente o réu recorrente que, em vez da resolução do contrato, cumpre antes determinar a reparação dos defeitos ou a redução adequada do preço da aquisição.
Na medida em que estas duas questões decidendas estão interligadas, iremos analisá-las em conjunto.

Neste particular, partilhamos, no essencial, a argumentação jurídica utilizada pela decisão recorrida, que, para melhor esclarecimento, passamos a transcrever:

«Continuando a analisar o regime previsto no art. 4º, do Decreto-Lei n.º 67/2003, temos que, relativamente à aparente alternativa de direitos estabelecida no n.º 1 do referido artigo, observa J. Calvão da Silva (Venda de Bens de Consumo, 2º ed., págs. 82 e 83) que “o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida (pela reparação ou substituição da coisa) sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato”.
Ponderou-se, a propósito, no Acórdão do STJ de 30/09/2010 “(…) por outro, os nºs 1 e 5 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 admitem expressamente que o consumidor possa exercer, quer o direito de exigir a reparação, quer o de resolver o contrato, sem estabelecer qualquer precedência entre eles. Com efeito, a lei portuguesa optou por consagrar no Decreto-Lei nº 67/2003, que a transpôs, um regime de princípio mais favorável ao consumidor do que o que lhe era imposto pela directiva nº 1999/94/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, cujo artigo 3º define uma hierarquia entre o direito à reparação e à substituição, por um lado, e o direito à redução do preço ou à rescisão (resolução) do contrato, por outro. No entanto, há que não esquecer que a opção do consumidor está sempre limitada, no que ao direito de resolução se refere, quer pelo abuso de direito – artigos 4º, nº 5 do Decreto-Lei nº 67/2003 e 334º do Código Civil –, quer pelas exigências gerais relativas ao exercício deste direito (nomeadamente, pelo nº 2 do artigo 432º, pelo nº 2 do artigo 793º e pelo nº 2 do artigo 802º); neste sentido, expressamente, João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, comentário, 3ª edição, Coimbra, 2006, pág.79 e segs.)” – Ver, também, o Ac. do mesmo Supremo Tribunal, de 21/10/2010, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Visa o referido diploma legal a protecção do consumidor relativamente à aquisição de bens de consumo (móveis ou imóveis), em que o bem entregue padece de desconformidade face ao contrato de compra e venda.

Haverá, presuntivamente, desconformidade com o contrato nas seguintes situações:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem (art. 2º, nºs 1 e 2, que não diverge, no essencial, do conceito reflectido no artº 913º, do CC – ver Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo-Comentário, 2ª ed., pág. 95).

No caso em apreço, ficou, além do mais, provado que o veículo adquirido pelo autor apresenta os seguintes defeitos: o banco do condutor vai electricamente para a frente mas não recua; o aquecimento/arrefecimento dos bancos não funciona; o aquecimento ambiente não funciona; o ar condicionado não funciona; falta um botão do rádio; está ligada a luz de aviso de problemas com os airbags; uma grelha de ventilação está partida; o controlador do motor mostra várias avarias; amortecedores do capot sem força; há óleo no circuito de arrefecimento (que indica haver junta da colaça queimada e/ou colaça rachada); folgas na suspensão (rotulas/braços suspensão/casquilhos); ralenti incerto em frio; perda de gasóleo; produção de muito fumo pelo escape; esguicho de limpeza do para-brisas não funciona; limpa para-brisas não funciona em posição automática; falta blindagem interior da frente; os escapes fazem barulhos mecânicos indiciando estarem com os miolos estragados; o espelho retrovisor faz barulhos e vibrações ao ser ligado; tampa da mala não fecha automaticamente; o comando não abre nem fecha as portas e a mala; pneus da frente gastos; fechando a porta da frente com a chave manual as demais não fecham automaticamente.
Da longa lista supra referida, temos defeitos que, isoladamente seriam considerados insignificantes e incapazes de desencadear a pedida resolução do contrato – a falta de um botão de rádio ou falta de força do amortecedor do capot, são exemplos disso – mas que todos juntos, num veículo que custou € 15.500,00, não podem deixar de ser graves. Existem ainda defeitos que são efectivamente e por si só graves, como seja, o facto de haver óleo no circuito de arrefecimento, que indicia a existência de um problema na junta da colaça e a perda de gasóleo que, segundo o senhor perito, poderá até originar um incêndio no veículo.
Acresce que, o veículo em causa foi já para reparação, no stand do Réu, por 3 vezes, sem que tenham ficado resolvidos os problemas que o mesmo apresenta.
Dúvidas não restam que o veículo vendido ao autor pelo réu não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o autor podia razoavelmente esperar.
Cremos ainda que, atento o facto de o veículo ter sido reparado por 3 vezes, tendo uma das vezes a reparação demorado 4 meses, sendo certo ainda que os vícios apontados são muitos – demasiados, cremos – e alguns deles graves e impeditivos de que o veículo circule em segurança, assiste definitivamente ao autor a resolução do contrato de compra e venda que celebrou com o Réu.»

Tal como se alude na sentença recorrida, o veículo em causa padece de defeitos graves que, aliás, desaconselham a sua circulação (cfr. pontos 1.19. e 1.20. dos factos provados).
O facto de existir óleo no circuito de arrefecimento, que indicia a existência de um problema na junta da colaça e a perda de gasóleo traduzem-se em defeitos graves, que desaconselham a circulação do veículo.
Por conseguinte, os apontados defeitos que o veículo sofre põem realmente em causa as caraterísticas habituais do mesmo e que razoavelmente era expetável para o autor que possuísse, designadamente tendo em conta as caraterísticas publicitadas pelo réu vendedor no que se refere ao mesmo veículo (cfr. ponto 1.18. dos factos assentes).
Outrossim, como salienta a decisão recorrida, partilhamos a posição de que, em prol do direito de proteção do consumidor, conferido pelo D.L. n.º 67/2003, de 08.04, este possa optar imediatamente por qualquer um dos direitos que lhe são conferidos pelo disposto no n.º 1 do art. 4º, do citado diploma legal, designadamente pela resolução do contrato, salvo se tal se revelar impossível ou constituir abuso de direito (cfr. art. 4º, n.º 5, do D.L. n.º 67/2003, e art. 334º do C. Civil).
No fundo, podemos dizer que os meios conferidos pelo D.L. n.º 67/2003, de 08.04, ao comprador consumidor, para reagir contra a venda de uma coisa defeituosa, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha; esta apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pelo abuso de direito. (3)
No caso em presença, consideramos que não existe qualquer impossibilidade do meio utilizado nem a pretendida resolução do contrato se nos afigura que colida com o princípio da boa fé contratual ou se traduza em abuso de direito (art. 334º, do C. Civil).
Na realidade, temos como demonstrado que a viatura esteve para reparar no Stand do réu por três vezes, sem que se conseguisse corrigir as desconformidades que a mesma apresentava, algumas delas graves, como já salientámos, pondo definitivamente em causa a circulação, em segurança, do referido veículo.
Estão, pois, reunidos todos os pressupostos para a imediata resolução do contrato de compra e venda de bem de consumo, sendo certo que igualmente não resulta dos autos que o réu vendedor tenha manifestado vontade em proceder à substituição do veículo em causa por outro de caraterísticas similares ou, mesmo até, que tenha aceitado reduzir o preço que o autor pagou pelo referido veículo.
*
C) Da desvalorização do veículo durante o período em que o mesmo esteve na posse do autor

Neste âmbito, entende o recorrente que a decretada restituição integral do preço pago pelo autor (€ 15.500,00) configura um enriquecimento injustificado, porquanto o autor ainda circulou com o veículo e deu-lhe destino que se desconhece durante cerca de 3 anos, pelo que, em face da desvalorização do mesmo, o seu valor comercial ascende a quantia não superior a € 9.500,00.

Ora, manda o disposto no art. 433º, do C. Civil que a resolução do contrato, na falta de disposição especial, tem como efeito legal a aplicação do regime da nulidade e da anulabilidade, salvo o disposto nos artigos seguintes.

Por seu lado, o n.º 1 do art. 434º do C. Civil, prescreve que a resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução. E o n.º 2 do mesmo preceito legal, prescreve que nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.

O art. 289º, n.º 1, do C. Civil, estipula que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

Em face destes preceitos, numa primeira análise, o autor teria de devolver o veículo comprado e o réu teria de devolver o preço contratual daquele.
Todavia, muito ou pouco, o autor acabou por beneficiar do uso do referido veículo, circulando e utilizando o mesmo (pelo menos até finais de Dezembro de 2013), e essa utilidade decorreu e foi proporcionada pela compra e venda em causa, pelo que deveria devolver o veículo no estado da aquisição (art. 289º, n.º 1, do C. Civil), designadamente com o mesmo número de quilómetros e sem qualquer desgaste adicional, o que não se pode verificar, como é óbvio.
Desta forma, a devolução integral do preço contratual liquidado pelo autor e a correspondente devolução do veículo por este, com o uso e desgaste entretanto sofrido, envolveria, de facto, um enriquecimento sem causa (art. 473º, do C. Civil) por parte do autor e, outrossim, violador da boa fé contratual. (4)
Também Calvão da Silva (5) defende que, “no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir (cfr. o espirito do art. 434º, n.º 2, do Código Civil).
Nesta medida, não acompanhamos a argumentação que, neste particular, é realizada na sentença recorrida, quando designadamente concluiu que o réu teria de devolver integralmente o preço pago pelo autor, por conta da aquisição do veículo em apreço.
Pelo que fica dito, e tal como o decido pela jurisprudência em casos análogos (6), em termos habituais, conquanto o comprador continuaria com o uso e fruição do respetivo veículo, o vendedor apenas estaria vinculado a restituir o valor do veículo reportado à data do trânsito em julgado da competente decisão judicial que determine tal restituição.
Contudo, no nosso caso, temos como assente que, após ter procedido ao levantamento do veículo, na última vez que este esteve no Stand do réu para reparação, o autor, alertado para o perigo de circulação do veículo no estado em que se encontra, em grande medida derivado dos apontados defeitos graves que comprometem a sua circulação em segurança, receando que algo de grave aconteça, viu-se na necessidade de manter tal veículo estacionado numa garagem (cfr. pontos 1.19. e 1.20. dos factos assentes).
Daqui se conclui que o autor deixou, por facto que não lhe é imputável e por razões de segurança, de poder usar e fruir do veículo em causa, sensivelmente em finais de Dezembro de 2013, sendo certo que levantou o referido veículo do Stand do réu em 26.12.2013, sendo certo que ainda circulou com o mesmo para o levar a uma oficina da marca Mercedes, a fim de ser submetido a uma inspeção (cfr. pontos 1.14. a 1.16. dos factos provados).
Por conseguinte, entendemos que assiste parcial razão ao recorrente, neste segmento do seu recurso, pelo que importará apenas condenar o réu vendedor, em consequência da resolução do contrato de compra e venda em apreço, a restituir o valor que o veículo detinha em Janeiro de 2014, a fixar (liquidar) nos termos do disposto no art. 609º, n.º 2, do C. P. Civil, ainda que sempre limitado ao valor inicialmente pago pelo autor de € 15.500,00.
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D) Da indemnização por danos não patrimoniais

Por último, defende o recorrente que, atento aos defeitos visíveis invocados pelo autor, não se afigura razoável considerar-se o autor desgostoso por o veículo lhe ser entregue nas mesmas condições, revelando no mínimo uma conduta negligente da sua parte, porquanto não lhe era exigido receber o veículo sem que tais defeitos visíveis fossem corrigidos, pelo que não deve assim ser considerado o comportamento do réu gerador de responsabilidade a título de danos morais.

Como já vimos, de acordo com o disposto no art. 12º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31.07), o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.

A responsabilidade do vendedor de bem de consumo, assim configurada, trata-se de responsabilidade contratual, sendo aplicável o disposto nos arts. 798º, 799º e 563º, todos do C. Civil.
No caso em apreço, temos como assente que o autor adquiriu o referido veículo tendo em conta as características publicitadas na internet pelo referido Stand do réu, sentindo-se defraudado, pois parte delas não funcionam (cfr. ponto 1.18. dos factos assentes).

Assim, em resultado das anomalias da referida viatura e da impossibilidade de poder circular em segurança com o referido veículo, o autor sente-se insatisfeito e desgostoso, o que lhe causa igualmente graves transtornos (cfr. ponto 1.21. dos factos provados).
Sente-se ainda revoltado com o facto de o veículo lhe ter sido entregue pelo réu sempre nas mesmas condições (cfr. ponto 1.22. dos factos provados).
E forçado a utilizar um veículo cedido por um familiar, o que o obriga a sujeitar-se a favores quando precisa de fazer viagens mais longas ou se for necessário transportar outros familiares (cfr. ponto 1.23. dos factos assentes).

O réu vendedor cumpriu pois defeituosamente o contrato de compra e venda em causa, vendendo ao autor um veículo que cedo começou a apresentar defeitos, que inclusivamente impedem a sua circulação em segurança, causando por esta via graves transtornos ao autor, deixando-o insatisfeito e revoltado com toda esta situação.
Nesta medida, não tendo o réu recorrente ilidido a presunção de culpa que sobre si pendia (art. 799º, n.º 1, do C. Civil), resultante do cumprimento defeituoso do contrato, deverá o mesmo ser responsabilizado pelos apontados danos morais causados ao autor, os quais, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (cfr. arts. 496º, n.º 1, do C. Civil).
Nesta medida, concluímos que se deverá manter a condenação do réu no pagamento da indemnização fixada na sentença recorrida a título de danos morais.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando-se o réu a restituir ao autor, em consequência da resolução do contrato de compra e venda, o valor que o identificado veículo possuía em Janeiro de 2014, a liquidar, nos termos do disposto no art. 609º, n.º 2, do C. P. Civil, até ao montante de € 15.500,00.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.

Custas em ambas as instâncias pelo apelante e apelado na proporção de 4/5 e 1/5 respetivamente (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do C. P. Civil).
Guimarães, 01.02.2018

Relator António José Saúde Barroca Penha
Des. Eugénia Marinho da Cunha
Des. José Manuel Alves Flores

1. No mesmo sentido, cfr., por todos, Ac. STJ de 01.10.2015, proc. n.º 279/10.0TBSTR.E1.S1, relator Abrantes Geraldes; e Ac. STJ de 31.05.2016, proc. n.º 721/12.5TCFUN.L1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
2. Proc. n.º 1857/09.9TJVNF.S1.P1, relator Lopes do Rego, acessível em www.dgsi.pt.
3. No mesmo sentido, cfr. Ac. do STJ de 05.05.2015, proc. n.º 1725/12.3TBBRG.G1.S1, relator João Camilo, disponível em www.dgsi.pt.
4. No mesmo sentido, cfr. Ac. STJ de 30.09.2010 e Ac. STJ de 05.05.2010, ambos já citados.
5. In Venda de Bens de Consumo, 4ª edição, pág. 109.
6. No mesmo sentido, cfr. Ac. do STJ de 05.05.2015, antes citado; assim como Ac. STJ de 30.09.2010, proc. n.º 822/06.9TBVCT.G1.S1, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.