Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
635/17.2T8FAF.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR OMISSÃO
DANOS CAUSADOS POR COISAS
CULPA IN VIGILANDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A responsabilidade civil por omissão pressupõe o dever específico de praticar um ato que, pelo menos, muito provavelmente teria impedido a consumação do dano, dever de agir esse que resulte da lei, de negócio jurídico ou de um dever de segurança no tráfego.
II- Num caso em que, em circunstâncias concretas não apuradas e com um objeto não apurado, a autora se magoou num olho ao entrar num provador existente junto a uma banca de venda de roupa numa feira, os danos por esta sofridos não são suscetíveis de ser imputados aos réus feirantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

E. C. instaurou a presente acção declarativa de processo comum contra J. F. e M. F., pedindo a condenação destes:

a) pagarem à autora a quantia de € 4.959,00 a título de lucros cessantes;
b) pagarem à autora o que vier a apurar-se a título de lucros cessantes, pela perda de rendimentos futura;
c) pagarem à autora a quantia de € 5.950,08 pelas despesas suportadas pela autora desde a data do acidente até à presente data;
d) pagarem à autora a quantia de € 15.000,00 a título de danos morais;
perfazendo um total de € 25.909,08, acrescido de juros legais, contados da citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tanto, e em síntese, ter-se deslocado, em 26/10/2016, à banca dos réus na feira semanal de Fafe onde escolheu umas calças e para as experimentar dirigiu-se ao provador improvisado que aqueles tinham no local para o efeito.
Este provador estava cheio de roupas e cabides. Ao entrar teve de se agachar e ao levantar-se um gancho dos vários cabides que aí se encontravam ficou espetado no olho direito da autora.
Na sequência do sucedido foi submetida a intervenções cirúrgicas, consultas e tratamentos, mas perdeu uma parte significativa da visão.
Sofreu também danos patrimoniais, estes advenientes da perda de rendimento em virtude da incapacidade para desempenhar cabalmente a sua actividade profissional de cabeleireira, bem como as despesas em que incorreu.
Responsabiliza os réus pelo acidente causado por não terem providenciado pelas condições mínimas de segurança daquele espaço por si explorado.
Refere que o acidente sofrido ficou a dever-se exclusivamente à actuação imprudente e descuidada dos réus que “construíram” um provador improvisado junto ao seu espaço de venda sem as condições mínimas de segurança e assim não providenciaram pela segurança dos utilizadores, sabendo que poderiam advir danos para estes. Mais referiu que a conduta ilícita dos réus fê-los incorrer em responsabilidade civil com o consequente dever de indemnizar a autora nos termos dos art. 483º, 563º, 564º, 565º e 566º do C.C..
*
Os réus contestaram a acção defendendo-se por impugnação e pugnando pela absolvição do pedido.
*
Foi dispensada a realização da audiência prévia.
Foi fixado o valor da acção, proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, foram enunciados os temas de prova, foram admitidos os requerimentos probatórios e foi designada data para audiência final.
*
Ordenou-se a realização de perícia médico-legal.
A autora apresentou articulado superveniente com ampliação do pedido passando o valor do pedido para € 66.982,08, acrescida de juros vencidos sobre a totalidade do valor desde a citação e sobre o valor ampliado desde a data da notificação do presente até integral e efectivo pagamento.
Na audiência de julgamento de 15/06/2020 foi admitida a ampliação do pedido, foram aditados temas da prova e procedeu-se à produção de prova, a qual continuou em 10/07/2020.
*
Após a qual foi proferida sentença, cuja parte decisória, na parte que interessa, reproduzimos:

“Face ao exposto, nos termos e com os fundamentos supra, julgo a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvo os Réus dos pedidos contra si formulados. (…)”
*
Não se conformando com esta sentença veio a autora dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“A - Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls. em que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus dos pedidos contra eles formulados.
B - Entende a recorrente que tal decisão não está conforme à lei e aos factos que se podem extrair da prova documental junta aos autos bem como da prova produzida em audiência de julgamento, pois, ao decidir como decidiu, a douta sentença fez errada apreciação e interpretação dos factos e, consequentemente, errada aplicação do direito.
C – A douta sentença proferida conclui que não obstante os danos inequivocamente sofridos pela Autora,
a verdade é que não estão verificados os pressupostos da procedência de qualquer pretensão indemnizatória contra os Réus, pois ficou por demonstrar nos autos qualquer atuação dos Réus, por ação ou omissão, que fosse causal do dano sofrido pela Autora.
D - Decisão esta que não se concebe nem pode conceber-se, atendendo desde logo à factualidade dada como provada, e ao facto de o tribunal a quo reconhecer inequivocamente os danos sofridos pela Autora.
E - Ao contrário do que se conclui na douta sentença recorrida, da prova documental junta aos presentes autos e das regras da experiência, facilmente se chega à conclusão que estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos dos Réus.
F – No modesto entendimento da Autora/Recorrente, o Tribunal a quo não valorizou devidamente os documentos juntos aos autos, desde logo os diversos relatórios clínicos que atestam a incapacidade da Autora e as lesões por si sofridas.
G - O Tribunal a quo deu como provado que “em virtude do sucedido, a Autora perdeu uma parte significativa da visão, que não sabe se recuperará”, dando também como provado que “a Autora apresenta diplopia vertical na posição primária, na levo e infraversão com torcicolo compensador com consequentes queixas músculo-esqueléticas a nível cervical”.
H - Deu ainda como provado que, em consequência do acidente sofrido, “a Autora sofreu, assim, um período de défice funcional temporário total de 8 dias; período de défice funcional temporário parcial de 1100 dias; período de repercussão temporária na atividade profissional total de 180 dias; período de repercussão temporária na atividade profissional parcial de 928 dias; quantum doloris fixável no grau 4/7” e que “a Autora apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 22 pontos; repercussão permanente na atividade profissional; dano estético permanente fixável no grau 3/7; repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 1/7”, dando também como provado que “a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 7.11.2019”.
I - Tudo isto resulta do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, junto aos autos em 13 de dezembro de 2019, que reforçou toda a prova pericial anteriormente junta a propósito da situação clínica da Autora/Apelante, e dos danos e lesões por si sofridas.
J - A Autora/Recorrente sofreu um acidente na banca de venda dos Réus, quando, de forma a experimentar uma peça de roupa e ao entrar num provador improvisado que os Réus lá tinham espetou, um cabide no olho.
K - E pese embora o tribunal a quo tenha entendido que não foi possível apurar em que objeto se feriu a Autora, reconhece sem margem para dúvidas que a Autora efetivamente sofreu um acidente e que o sofreu no interior do provador da banca de venda dos Réus.
L - Não releva a nosso ver, nem pode revelar, o argumento do tribunal a quo de que a Autora se possa ter ferido ao manusear ela própria descuidadamente algum objeto – como um cabide – ou algum acessório que trouxesse, desde logo porque não é sequer concebível que a Autora trouxesse consigo um cabide ou outro qualquer objeto suscetível de lhe causar as lesões sofridas e, muito menos que se ferisse propositadamente no olho.
M - Não pode relevar também o argumento do tribunal a quo de que a Autora, em sede de declarações prestadas em audiência de julgamento, não sabia afinal como ocorrera o acidente que a vitimou nem que objeto a atingiu, embora acreditasse ser um cabide.
N - A Autora não tem dúvidas sobre o acidente que a vitimou nem sobre as circunstâncias em que o mesmo ocorreu, mas como o tribunal a quo bem referiu encontra- se ainda visivelmente fragilizada em termos emocionais, desde logo por estarmos perante um evento traumático, que alterou toda a vida da Autora, e que ocorreu já há quatro anos, pelo que não pode o tribunal a quo afirmar que a Autora não sabia como ocorrera o acidente, quando na verdade a hesitação da Autora se prende única e exclusivamente com o lapso temporal decorrido e com o trauma que a Autora sofreu, em que após ferir o olho e em pânico devido às dores excruciantes que sentia, pensando que ia ficar cega, só quis retirar do olho o objeto que lá se tinha espetado e pedir socorro.
O – Não pode a Autora aceitar que o Tribunal a quo considere que resultaram provados danos patrimoniais e não patrimoniais da Autora, para depois entender que não foram os Réus responsáveis por esses danos.
P - Entendeu o tribunal a quo que “os pressupostos da responsabilidade civil (subjetiva, que aqui importa considerar), extracontratual, por factos ilícitos, consagrada nos arts. 483º e ss., Cód. Civil, são: a prática de um facto voluntário pelo agente - isto é, a ocorrência de um facto positivo (ação) ou negativo (omissão), dominável pela vontade humana; que seja ilícito - ou seja, que viole um direito de outrem, uma norma de protecção de interesses alheios ou que consubstancie um abuso de direito; culposo - que tenha sido praticado com dolo ou mera culpa, isto é, que seja censurável em virtude de o agente poder e dever atuar em conformidade com o direito, naquelas concretas circunstâncias e à luz da diligência exigível ao homem-médio, não o tendo feito – artigo 487º, n.º 2, Código Civil; cause danos ou prejuízos - que cause danos ou a perda de bens juridicamente tutelados, de natureza patrimonial ou extrapatrimonial; com nexo de causalidade - que, em concreto, o facto seja condição “sine qua non” do dano e, em abstrato, seja adequado a produzir aquele tipo de dano, de acordo com um critério de normalidade, à luz da teoria da causalidade adequada – art. 563º do Cód. Civil (ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral” , I, 10.ª ed., Almedina, p. 525 e ss., 887 e ss.). Como resulta dos factos provados – e não provados – ficou por demonstrar nos autos qualquer atuação dos Réus, por ação ou omissão, que fosse causal do dano sofrido pela Autora. Os danos, patrimoniais e não patrimoniais, são, aliás, a única coisa que resultou provada.”
Q - O que não corresponde, de todo, à realidade.
R - No que respeita aos pressupostos facto voluntário, ilícito e culposo, como já referimos, e o Tribunal a quo deu como provado, “a Autora entrou no provador e experimentou a peça de roupa, saindo para se ver no espelho, e, quando voltou a entrar no provador, em circunstâncias não concretamente apuradas, a Autora feriu o olho direito em objeto igualmente não concretamente apurado”.
S - Ora, não resta qualquer dúvida de que a Autora sofreu o acidente dentro do provador da banca de venda dos Réus. E sofreu esse acidente porque os Réus, por ação ou omissão, não criaram todas as condições de segurança a quem utilizava aquele espaço, devendo por isso ser responsabilizados. Foram os Réus, ao não atuarem com a diligência e cautela que lhes eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, que deram causa ao acidente sofrido pela Autora.
T - Os Réus não providenciaram pelas condições mínimas de segurança do espaço que utilizavam como provador, nem pela segurança dos seus utilizadores, bem sabendo que a sua conduta podia causar danos a terceiros, como causou à aqui Autora, e que resulta inequívoca da prova documental junta aos autos.
U - Ao não atuarem com a diligência devido, os Réus violaram as normas de segurança que visam proteger as pessoas que utilizavam o provador, pelo que a sua atuação omissiva é ilícita.
V - Estão por isso preenchidos os pressupostos do facto voluntário (por omissão) ilícito e culposo (por mera culpa, uma vez que não atuaram com a diligência devida) dos Réus.
X - No que respeita ao pressuposto dano, o tribunal a quo foi perentório a afirmar que os mesmos resultaram provados, e quanto a isso não resta qualquer dúvida.
Y - E no que respeita ao pressuposto nexo de causalidade, não nos resta também qualquer dúvida de que existe nexo causal entre o acidente sofrido pela Autora (facto) e o dano que lhe foi provocado, afirmando o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, junto aos autos em 13 de dezembro de 2019, que “os elementos disponíveis permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência de dano corporal.”
Z - Partindo da factualidade provada, resulta sem qualquer dúvida provado a ocorrência de facto, ilícito e culposo, imputável à conduta dos Réus, que teve uma relação de causa-efeito relativamente à lesão sofrida pela Autora no olho.
AA - A lesão sofrida pela Autora podia ter sido evitada pelos Réus, pelo que, não o tendo sido, é a estes que cabe o dever de indemnizar os prejuízos sofridos, como impõe o artigo 483º, nº1 do Código Civil, nos montantes peticionados aquando da propositura da ação e posteriormente ampliados, mediante ampliação do pedido formulada e admitida.
BB – Por tudo o que alegado fica, deve a sentença recorrida ser revogada e em sua substituição proferido douto acórdão decidindo consoante o acima exposto.
Pugna pela revogação da recorrida que deve ser substituída por outra que condene os réus nos termos requeridos.
*
Foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

a) Apurar se se mostram reunidos os requisitos de que depende a reapreciação da matéria de facto;
b) E/ou se ocorreu erro na subsunção jurídica.
*
II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos: .

1. A autora exercia a profissão de cabeleireira, em estabelecimento arrendado, trabalhando por conta própria.
2. Os réus são feirantes, exercendo a profissão por conta própria, comercializando vários artigos de vestuário, o que fazem na feira semanal de Fafe.
3. No dia 26 de Outubro de 2016, à hora de almoço, a autora deslocou-se à feira semanal, dirigindo-se à banca de venda dos aqui réus.
4. Tendo visto umas leggings de que gostou perguntou se poderia experimentar as mesmas.
5. Ao que a ré mulher respondeu que sim indicando à autora um provador para o efeito.
6. A autora entrou no provador e experimentou a peça de roupa, saindo para se ver no espelho, e, quando voltou a entrar no provador, em circunstâncias não concretamente apuradas, a autora feriu o olho direito em objecto igualmente não concretamente apurado.
7. A autora entrou em pânico devido às dores excruciantes que sentia e começou a gritar por socorro tendo pensado que ia ficar cega.
8. Foram chamados os Bombeiros Voluntários de Fafe que lhe prestaram os primeiros cuidados no local.
9. Encaminhando-a de seguida para o Hospital de Braga, onde foi internada.
10. Foi submetida a uma cirurgia no dia seguinte, a 27 de Outubro de 2016, em que foi realizada uma excisão de lesão do olho, tendo alta médica no dia seguinte, a 28 de Outubro de 2016.
11. Sendo seguida desde então no serviço de Oftalmologia do Hospital de Braga, veio a ser submetida a mais quatro cirurgias, em 29 de Setembro de 2017, 14 de Fevereiro de 2018, 6 de Junho de 2018 e 6 de Março de 2020, as quais visaram restabelecer, ainda que parcialmente, a visão da autora.
12. Em virtude do sucedido a autora perdeu uma parte significativa da visão, que não sabe se recuperará.
13. A autora apresenta diplopia vertical na posição primária, na levo e infraversão com torcicolo compensador com consequentes queixas músculo-esqueléticas a nível cervical.
14. Em consequência do descrito em 6, a autora sofreu, assim, um período de défice funcional temporário total de 8 dias; período de défice funcional temporário parcial de 1100 dias; período de repercussão temporária na actividade profissional total de 180 dias; período de repercussão temporária na actividade profissional parcial de 928 dias; quantum doloris fixável no grau 4/7.
15. Em consequência do descrito em 6, a autora apresenta um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 22 pontos; repercussão permanente na actividade profissional; dano estético permanente fixável no grau 3/7; repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 1/7.
16. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 07/11/2019.
17. Em consequência dos factos supra descritos a autora teve de deixar de trabalhar, retomando a sua actividade em Setembro de 2019.
18. Aquando do acidente, a autora auferia mensalmente um valor em torno do salário mínimo nacional, mediante o qual suportava todas as suas despesas.
19. A autora manteve o pagamento da renda devida pela ocupação do espaço comercial, no valor de € 113,70 por mês, entre Outubro de 2016 e Junho de 2017.
20. Manteve o pagamento das contribuições à Segurança Social no valor de € 62,04 por mês.
21. Bem como a renda de cada, no valor de € 300,00 mensais, a que acrescem despesas de condomínio, no valor de € 18,38 mensais, despesas de luz, água e gás, que rondam os € 150,00 mensais.
22. Para fazer face às despesas a autora teve que vender bens pessoais e isolou-se em casa.
23. Em virtude do sucedido a autora teve e tem momentos de profunda angústia e tristeza, padecendo de síndrome depressiva, manifestada sobretudo por choro fácil e fragilidade emocional, para o que se encontra actualmente medicada.
*
Não se provou:

a. O provador estava cheio de roupas e cabides.
b. A autora teve de se agachar para entrar no provador e, ao levantar-se, um gancho de um dos vários cabides que se encontravam no interior do mesmo ficou espetado no olho direito da autora – tendo-se provado apenas o descrito em 6.
c. Aquando do descrito em 7, ninguém foi em auxílio da autora, até que um senhor que ia a passar se apercebeu do sucedido e foi em seu auxílio.
d. A autora tentou retirar o gancho do cabide do olho, o que conseguiu.
e. A autora não tem qualquer meio de subsistência desde a data do acidente porquanto mantém o seu estabelecimento comercial fechado.
f. O descrito em 6 deveu-se à actuação dos réus, que “construíram” um provador improvisado junto ao seu espaço de venda, sem quaisquer condições de segurança, sem prever as consequências que poderiam advir desta sua conduta.
*
A) Reapreciação da matéria de facto

A autora confunde erro na apreciação da matéria de facto com erro na subsunção jurídica.
Começa por referir que “visa atacar a decisão proferida tanto no que se refere à decisão sobre a matéria de factos como sobre a matéria de direito.” Mas, mais adiante diz que “Ao contrário do que se conclui na douta sentença recorrida, da prova documental junta aos presentes autos e das regras da experiência, facilmente se chega à conclusão que estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos dos Réus.”

Dispõe o art. 640º do C.P.C., sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugna a matéria de facto”:

1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2– No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: (…).
Ora, uma vez que a apelante não indicou um único ponto da matéria de facto provada ou não provada como tendo sido incorrectamente julgado, é manifesto o incumprimento deste ónus, o que conduz à rejeição da reapreciação da matéria de facto.
Com efeito, conforme se lê no Acórdão desta Relação de 28/06/2018 (Jorge Teixeira), in www.dgsi.pt, “Deverá ser rejeitado o recurso genérico da decisão da matéria de facto apresentado pelo Recorrente quando, para além de não se delimitar com precisão os concretos pontos que se pretendem questionar, não se deixa expressa a decisão que, no entender do mesmo, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
*
B) Subsunção jurídica

Afigura-se-nos que, nesta sede, o inconformismo da apelante face à sentença recorrida também é genérico.
A mesma entra em contradição, pois, por um lado, refere que o “facto”, enquanto pressuposto de responsabilidade civil por facto ilícito, é o “acidente”, como por outro, refere que os réus “não providenciaram pelas condições mínimas de segurança do espaço que utilizavam como provador, nem pela segurança dos seus utilizadores, bem sabendo que a sua conduta podia causar danos a terceiros, como causou à aqui Autora” (mas não concretiza).

Vejamos.
A autora pede a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização, a título de responsabilidade civil por facto ilícito, alegando para tanto ter sofrido danos na sequência da lesão sofrida no seu olho direito causada por um gancho de um cabide existente no provador improvisado na banca dos réus na feira semanal de Fafe de 26/10/2016.
Antes de mais, os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito retiram-se do nº 1 do art. 483º do C.C., a saber, o facto, a ilicitude, culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No que concerne às omissões prevê o art. 486º do C.C.:

As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.
Por facto entende-se o facto voluntário do lesante ou a conduta objectivamente controlável ou dominável pela vontade humana.
“Este facto consiste, em regra, (…) numa acção, ou seja, um facto positivo (…) que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera de acção do titular do direito absoluto. Mas pode traduzir-se num facto negativo, numa abstenção ou numa omissão (art. 486º) (…). A omissão, como pura atitude negativa, não pode gerar física ou materialmente o dano sofrido pelo lesado, mas entende-se que a omissão é causa do dano, sempre que haja o dever jurídico especial de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano.” – Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª ed., Almedina, p. 517-518.
A este propósito, e no que respeita ao facto omissivo, refere Luís Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, 4ª ed., Almedina, p. 272-273: “Tratando-se de uma acção, a imputação da conduta ao agente apresenta-se como simples. Já no caso da omissão essa imputação ao agente exige algo mais: a sua oneração com um dever específico de praticar o acto omitido. (…) Conforme resulta do art. 486º, esse dever específico de garante pode ser criado por contrato (…) ou pode mesmo ser imposto por lei (…). No direito alemão, a partir de disposições semelhantes (…) tem-se vindo a desenvolver a doutrina dos “deveres de segurança no tráfego” ou “deveres de prevenção do perigo delituais”, que permitiu alargar bastante a responsabilidade delitual por omissão, para além dos casos legalmente típicos, tendo essa doutrina sido posteriormente recebida entre nós. De acordo com essa doutrina, sempre que alguém possui coisas ou exerce uma actividade que se apresentam como potencialmente susceptíveis de causar danos a outrem, tem igualmente o dever de tomar as providências adequadas a evitar a ocorrência de danos, podendo responder por omissão se o não fizer. As coisas ou actividades perigosas, que se encontram no âmbito do controle do sujeito, delimitam assim um campo específico de imputação, onde a ocorrência de danos o sujeita à responsabilidade por omissão.”
A ilicitude consiste na violação de um direito (subjectivo) de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Neste segundo caso “Trata-se da infracção das leis que, embora protejam interesses particulares, não conferem aos respectivos titulares um direito subjectivo a essa tutela; e de leis que, tendo também ou até principalmente em vista a protecção de interesses colectivos, não deixam de atender aos interesses particulares subjacentes (…). Além disso, a previsão da lei abrange ainda a violação das normas que visam prevenir, não a produção do dano em concreto, mas o simples perigo de dano, em abstracto.” – Antunes Varela, ob.cit., p. 526-527. Exemplos destas leis são a generalidade das leis penais, as contra-ordenações, o art. 1371º do C.C.. Exige-se nesta sede que a lesão dos interesses do particular corresponda à violação de um norma legal, que a tutela dos interesses particulares figure entre os fins da norma violada e que o dano se verifique no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.
Há ainda o abuso de direito como forma de ilicitude capaz de determinar a obrigação de indemnizar caso não haja causa especial de exclusão da ilicitude.
A culpa traduz-se num juízo de reprovabilidade da conduta de alguém que, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo e assenta no nexo psicológico que existe entre o facto e a vontade do agente. Pode revestir a forma de dolo (directo, necessário ou eventual) ou de negligência (consciente ou inconsciente).
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487º nº 2 do C.C.).
Incumbe ao lesado o ónus da prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (nº 1 do mesmo preceito).
“O dano é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (…) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.” (sublinhado nosso) – Antunes Varela, ob. cit, p. 591.
Uma das distinções possíveis é entre dano patrimonial (susceptível de avaliação pecuniária, podendo ser reparado através de restauração natural ou por meio de equivalente) e não patrimonial (insusceptível de avaliação pecuniária apenas pode ser compensado com uma obrigação pecuniária).
Por fim, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O art. 563º do C.C. tem subjacente a doutrina da causalidade adequada.
Galvão Teles in Manual do Direito das Obrigações, nº 229 refere: “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar”.
*
Revertendo ao caso em apreço subscrevemos o referido na decisão recorrida quanto à não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil pela culpa, à excepção do dano.
Com efeito, e desde logo, não logrou a autora provar qualquer facto voluntário por parte dos réus que fosse ilícito.
Da matéria de facto dada como provada resulta apenas que a autora, no dia 26/10/2016, à hora de almoço, num provador existente junto à banca dos réus, feriu o olho direito. Não se apuraram as circunstâncias em que se deu tal lesão, nem qual o objecto que esteve na sua origem, pois a autora não logrou provar o alegado, i.e., que o provador estivesse cheio de roupas e de cabides, que se magoou com um gancho de um cabide quando entrou no mesmo provador porque teve que se agachar para o fazer.
Embora a autora impute aos réus um comportamento omissivo não o concretiza.
E nós não vislumbramos qual o possível acto omitido pelos réus e, muito menos, que conteúdo teria o dever de agir que fosse de molde a impedir o dano.
Vejamos.
Sempre se dirá que da lei não resulta o dever dos réus praticarem qualquer acto que fosse adequado a evitar os danos sofridos pela autora.
A actividade desenvolvida pelos réus, a saber, a actividade de comércio a retalho não sedentário exercida por feirantes, encontra-se regulada pelo Dec.-Lei nº 10/2015 de 16 de Janeiro (alterada pelo Dec.-Lei nº 102/2017 de 23/08 e Lei nº 15/2018, de 27/03), que aprovou o regime jurídico de acesso e exercício de actividades de comércio, serviços e restauração (art. 1º i)).
Este diploma define a actividade de comércio a retalho não sedentária como sendo “a atividade de comércio a retalho em que a presença do comerciante nos locais de venda, em feiras ou de modo ambulante, não reveste um caráter fixo e permanente, realizada nomeadamente em unidades móveis ou amovíveis”; a feira como “o evento que congrega periódica ou ocasionalmente, no mesmo recinto, vários retalhistas ou grossistas que exercem a atividade com carácter não sedentário, na sua maioria em unidades móveis ou amovíveis, excetuados os arraiais, romarias, bailes, provas desportivas e outros divertimentos públicos, os mercados municipais e os mercados abastecedores, não se incluindo as feiras dedicadas de forma exclusiva à exposição de armas” e o feirante como sendo “a pessoa singular ou coletiva que exerce de forma habitual a atividade de comércio por grosso ou a retalho não sedentária em feiras” - art. 2º j), v) e w) respectivamente.
O acesso a tal actividade está sujeito à apresentação de uma mera comunicação prévia (art. 4º nº 1 e)) ao município territorialmente competente (7º nº 1).
Em sede de requisitos gerais, e no que diz respeito a obrigações previstas noutros diplomas, dispõe o art. 21º que os operadores económicos estão, nomeadamente, sujeitos às obrigações constantes, da Portaria nº 987/93, de 6 de Outubro, relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde nos locais de trabalho, entre outros. Este diploma, pensado para os trabalhadores, dispõe no 23º, nº 1 que os locais de trabalho ao ar livre devem, na medida do possível, ser concebidos de forma que os trabalhadores fiquem protegidos, designadamente, se for caso disso, contra a queda de materiais e objectos.
No que concerne aos requisitos especiais, o exercício da actividade de comércio a retalho não sedentário por feirantes está sujeito às disposições previstas em 74º a 80º, sendo que, nos termos do art. 79º nº 1, compete à assembleia municipal, sob proposta das câmaras municipais, aprovar o regulamento que regule a referida actividade do respectivo município, do qual deve constar as regras de funcionamento das feiras.
O regulamento municipal de actividade de comércio a retalho não sedentário e venda ambulante do Município de Fafe foi publicado no Diário da República, 2ª Série, de 17 de Julho de 2018. Deste regulamento resulta, além do mais, como um dever geral dos feirantes o de “Manter em boas condições de higiene, utilização e aspeto, os utensílios ou quaisquer outros meios que possuam para o exercício da actividade” (art. 29º nº 1 l)), competindo à Câmara Municipal fiscalizar e aplicar sanções previstas na lei e no presente regulamento (art. 31º e)).

No caso sub judice, da matéria de facto dada como provada não resulta a descrição do provador, mas das fotos juntas aos autos pelos réus com a contestação, as quais não foram impugnadas pela autora, percebe-se que é uma estrutura muito simples cujo maior perigo para os clientes poderá ser poder não estar bem assente no chão e com um encontrão poder cair-lhes em cima. De modo algum, se pode concluir a violação pelos réus do acima referido art. 29º, nº 1 l) do regulamento municipal de Fafe ou de um dever de manutenção daquela estrutura.
Acresce que não se vislumbra a omissão por parte dos réus de um qualquer dever de agir que fosse de molde a impedir o dano. Ainda que se tivesse provado que a coisa que terá estado na origem da lesão da autora tenha sido um cabide este não é subsumível ao disposto no art. 493º nº 1 do C.C. na medida em que não existe o dever de o vigiar.
*
Da matéria de facto provada não resulta que autora e réus tenham chegado a celebrar um contrato de compra e venda que tivesse por objecto a peça de roupa que a autora experimentou, nem qualquer outro negócio jurídico do qual pudesse resultar, directa ou indirectamente (enquanto dever acessório), um dever específico de agir de molde a impedir o dano sofrido pela autora.
*
Aplicando ao caso concreto a teoria dos denominados “deveres de prevenção do perigo” ou “deveres de segurança no tráfego” ou, simplesmente “deveres de tráfego”, aceite quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, concluímos que, em tese, o provador em causa e os cabides podem ser vistos como coisas com potencial de causar danos a terceiro pelo que os réus, como seus proprietários ou meros detentores, tinham o dever de tomar as providências adequadas a evitar a ocorrência de danos com os mesmos, podendo, assim, responder por omissão caso não o fizessem.
Contudo, in casu, não se apurando como se deu o acidente, designadamente se o mesmo se produziu com o provador (pouco provável) ou com um cabide (mais provável), não é possível assacar aos réus um dever de tomar uma concreta providência que fosse de molde a que a autora não se tivesse magoado. Ainda que se tivesse provado que o acidente se deu com um cabide, uma vez que o mesmo estava a ser manuseado pela autora, o dever de prevenir o perigo da sua utilização transferiu-se para esta.
Também com este fundamento não se apurar uma omissão ilícita dos réus.
*
Os danos sofridos pela autora também não são imputáveis aos réus a título de responsabilidade civil pré-contratual ou culpa in contrahendo prevista no art. 227º do C.C..
Este preceito, sob a epígrafe “Culpa na formação do contrato”, dispõe “1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras de boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte. (…).”
É um instituto situado entre a responsabilidade contratual e a delitual, pois não deriva do incumprimento de uma obrigação em sentido técnico-jurídico previamente assumida, nem da violação de um dever genérico de respeito, resultando antes da violação de deveres surgidos numa relação entre as partes que impõem a tutela da boa-fé.
O mesmo encerra os deveres de protecção, de informação e de lealdade.
No caso em apreço, não se provou o facto ilícito, i.e., a violação de um dever de protecção dos réus para com a autora assente na boa-fé.
*
Pelo exposto, a apelação improcede.
*
As custas da apelação são da responsabilidade da autora apelante face ao seu decaimento (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
*
Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – A responsabilidade civil por omissão pressupõe o dever específico de praticar um acto que, pelo menos, muito provavelmente teria impedido a consumação do dano, dever de agir esse que resulte da lei, de negócio jurídico ou de um dever de segurança no tráfego.
II – Num caso em que, em circunstâncias concretas não apuradas e com um objecto não apurado, a autora se magoou num olho ao entrar num provador existente junto a uma banca de venda de roupa numa feira, os danos por esta sofridos não são susceptíveis de ser imputados aos réus feirantes.
*
III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
**
Guimarães, 25/02/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade