Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
422/13.7TBBGC-A.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: INVENTÁRIO JUDICIAL
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
VALOR DOS BENS
AVALIAÇÃO DOS BENS
LICITAÇÕES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O Decreto-Lei 227/94, publicado no DR. n.º 208/1994, Série I-A de 8.9.1994, introduziu importantes alterações ao regime de inventário no anterior Código de Processo Civil, ainda aplicável aos inventários a correr termos nos Tribunais. Assim, nos termos do art.º 1346.º o cabeça-de-casal, ao relacionar os bens, no tocante aos prédios inscritos na matriz, deixou de poder indicar o valor que no seu entender correspondia ao valor real do bem, tendo forçosamente de lhes atribuir o respectivo valor matricial. Por outro lado a reclamação contra o valor atribuído aos bens passou a poder ser feita até ao início das licitações – art.º 1362º – e, por isso, na própria conferência de interessados, cujo objecto passou a incluir, na falta de acordo sobre a composição dos quinhões, valores e sua adjudicação – nº1 do art.º 1353º – a deliberação sobre as reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados – nº 4 al. a).

II - Não estava assim o Cabeça de Casal, pelo facto de ser ele que, nos termos da lei, atribui o valor aos bens que relaciona, impedido de reclamar contra esse valor, pois, não era livre de indicar aquele que considerava ser o valor real, tinha forçosamente de indicar o valor matricial.

III - Podia e devia fazê-lo na Conferência de Interessados, gorado que foi o acordo a que se refere o nº1 do art.º 1353º do CC, imediatamente antes do início das licitações, com vista a estabelecer o seu valor base, como fez e como expressamente previsto no nº 5 do art.º 1362º – “As reclamações contra o valor atribuído aos bens podem ser feitas verbalmente na conferência”.

IV - Tendo o Cabeça de Casal, relativamente à verba nº 4, reclamado no sentido de lhe ser atribuído um valor superior ao indicado na relação de bens e declarado que aceitava ficar com o bem pelo valor superior que propunha, tal equivale a licitação e como tal tinha de ser interpretado.

V - Os demais interessados só poderiam requerer a avaliação desta verba caso o reclamante, aqui apelante, não tivesse declarado aceitá-la pelo valor que propôs na sua reclamação – isto é, licitado a verba, como resulta claramente do nº 4 do citado art.º 1362º. Poderiam sim ter aceitado esse valor, abrindo-se licitação entre eles (isto é, oferecer valor superior).

VI - O juiz só pode ordenar oficiosamente a avaliação de tal imóvel no âmbito e para efeitos do acordo previsto no nº 1 do art.º 1353º do CPC.

VII - Ultrapassada que está essa fase quando se apreciam as reclamações contra o valor atribuído aos bens, está vedado ao juiz determinar essa avaliação, especialmente se tal contraria manifestamente o disposto nos nºs 3 e 4 do art.º 1362º.

VIII - “Assim o impõe o princípio da confiança [Ac. nº 313/95 do Tribunal Constitucional (ACS. TC 31º - 461)], que deflui do princípio do Estado de Direito democrático consagrado no art.º 2º da Constituição, que postula “uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado”, implicando “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Na Conferência de Interessados realizada no dia 16.01.2018, foi proferido o seguinte despacho:

– «Pese embora os valores indicados pelo Cabeça-de-Casal não tenham sido aceites por qualquer Interessado presente e representado, o que implicaria que a declaração daquele quanto à verba n.º 4 valesse como única licitação e consequente adjudicação pelo valor indicado, deparamo-nos com a necessidade de se proceder previamente à avaliação também de tal verba – já que quanto à verba n.º 3, porque ninguém declarou que aceita a mesma pelo valor declarado na reclamação, dar-se-á cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 1362.º do C.P.C. –, face ao teor das notas n.ºs 2 e 3 que se seguem à descrição que dela é feita na relação de bens no sentido de que o prédio rústico composto de terreno de cultura tem nele implantada uma edificação composta de cave, rés-do-chão e 1.º andar e encontra-se atravessado pela Rua …, o que suscita dúvida sobre a conformidade da descrição constante da certidão matricial com a realidade, pois há-de ser bem diferente o valor de um prédio composto por terreno que nele tem implantada uma construção que não tem qualquer autonomia económica em relação a um prédio onde existe uma construção com autonomia económica, a saber um edifício destinado a habitação, sendo essa a diferença entre um prédio rústico e um prédio urbano (cfr. artigo 204.º, n.º 2, do Código Civil).

Por essa razão, não se admitirá a declaração de licitação feita pelo Cabeça-de- Casal quanto à verba n.º 4 para efeitos do disposto no artigo 1362.º, n.º 3, 1.ª parte, do C.P.C., atenta a necessidade de prévia avaliação da mesma, deferindo-se ao pedido de avaliação em relação a ambas as verbas, tendo em vista averiguar da actual composição do prédio rústico relacionado sob a verba n.º 4 e do valor real quer dessa verba quer da verba n.º 3 para alcançar o desiderato da repartição igualitária e equitativa dos bens pelos herdeiros.

Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 1353.º, n.º 2, e 1362.º, n.º 4, do C.P.C., defere-se à requerida avaliação, devendo a Secção indicar o nome de perito idóneo para a realização da perícia, que desde já se nomeia, devendo ser dado conhecimento ao Interessados para no prazo de dois dias se pronunciarem e efectuarem o pagamento dos encargos, após o que deve ser notificado o Sr. Perito para, no prazo de trinta dias juntar aos autos o relatório pericial e prestar compromisso de honra por escrito.
Para esses efeitos, suspende-se a presente diligência e, oportunamente, junto o relatório pericial, será designada data para continuação da Conferência de Interessados.»
*
Inconformado com o decidido, João, Cabeça de Casal e interessado nos autos, interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

- Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido na Conferência de interessados que incidiu sobre a reclamação que o recorrente deduziu quanto ao valor constantes da VERBA QUATRO da Relação de Bens, o qual indeferiu o requerido pelo aqui recorrente, com as inerentes consequências;
- Os interessados podem reclamar contra o valor atribuído (no caso dos imóveis do matricial) aos bens relacionados, por defeito ou por excesso, indicando logo qual é o valor que reputam de exacto, reclamação esta que consubstancia questão a submeter a deliberação da conferência de interessados, por aplicação do disposto no artº.1353º nº 4 al. a) do CPC;
- O recorrente apresentou uma reclamação incidente sobre os valores das Verbas nºs 3 e 4, indicou os valores que reputava de exactos para essas verbas, E DECLAROU ACEITAR O BEM RELACIONADO SOB A VERBA QUATRO DA RELAÇÃO DE BENS PELO VALOR DA SUA RECLAMAÇÃO, no uso do direito consignado no art. 1353º nº 4 al. a) do CPC, e também exercitando a faculdade prevista no art. 1362º nº 3 do CPC;
- Face à referida reclamação, os recorridos pronunciaram-se no sentido de se opor aos valores indicados pelo recorrente na sua reclamação para as Verbas em questão, pelo que não houve unanimidade na deliberação da conferência e quanto a esta questão;
- Nessa mesma pronúncia sobre o requerimento do recorrente, os recorridos não exercitaram, por sua vez, a faculdade consignada no art. 1362º nº 3 do CPC, pois que não declararam também aceitar a VERBA QUATRO pelo valor da reclamação ou por outros superiores;
- A avaliação do bem nunca poderia ter lugar, face à declaração de aceitação supra referida exarada pelo recorrente, no sentido de aceitar a VERBA QUATRO pelo valor que indicou na mesma reclamação, equivalente a acto de licitação;
- Daí que, o douto despacho em crise, constante da Acta de Conferência de interessados, que ordena a avaliação do bem, não retirou as consequências legais da sobredita reclamação e declaração de aceitação da VERBA QUATRO pelo valor constante daquela reclamação pois que a sua declaração de aceitação equivale à licitação, como consignado no art. 1362º nº 3 do CPC.
- Desta forma, o douto despacho em crise não deve ser mantido, outrossim revogado, e substituído por douta decisão que declare que o bem da VERBA QUATRO da Relação de Bens tem o valor que consta da reclamação do recorrente, e que essa Verba está por ele licitada por esse mesmo valor e consequentemente ser-lhe adjudicada;
- Foram, pois, violadas as disposições do art. 1362º nº 3 do CPC e ainda do art. 1689º nº 1 do CC.

Termos em que e naqueles que V.Exªs mui doutamente hão-de suprir, deve o recurso merecer provimento, e por via dele, revogar-se o despacho constante da acta da Conferência de Interessados que indeferiu a licitação do bem da VERBA QUATRO da Relação de bens pelo valor da reclamação e consequente adjudicação da mesma ao recorrente por tal valor (€ 25 000,00).
*
António e outros, bem como Maria, todos interessados nos autos, apresentaram contra-alegações.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Factos com interesse para a decisão do recurso:

Nos presentes autos de inventário foi relacionado sob a verba nº 4 um prédio rústico composto por terreno de cultura (…) inscrito na matriz sob o art.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial no nº ..., com o valor patrimonial de €284,70
Em anotação a tal verba nº 4 fez-se constar (nota 1), que dela foram destacados os prédios (lotes de terreno destinados a construção) relacionados nas verbas 5 e 6, bem como (notas 2 e 3) que nessa verba está implantada uma construção (…) e que o prédio é atravessado por uma rua, sendo que do lado norte tem 3184m2 e do lado sul 2306m2.
Na Conferência de interessados realizada em 16.1.2018, João, Interessado e Cabeça de Casal nos autos, reclamou do valor dos bens relacionados nas verbas n.ºs 3 e 4 da Relação de Bens nos termos do Art.º 1362.º do C.P.C. então em vigor, reclamando, por defeito, do valor indicado relativamente à verba n.º 3 (três), por entender que o seu valor é de 100.000,00 € (cem mil euros), e do valor da verba n.º 4 (quatro), por entender que o seu valor é de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros).
Relativamente à verba n.º 4 (quatro) o requerente declarou que “aceita a verba pelo valor da reclamação, o faz que nos termos e para os efeitos do acima aludido art.º 1362.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.C”. então em vigor.
Seguidamente, foi dada a palavra aos Interessados presentes e representados, tendo pelos mesmos sido dito: “Não aceitam os valores constantes da reclamação em virtude de os mesmos estarem muito aquém do seu valor real, embora desconheçam o seu valor real, requerendo a avaliação de ambas as verbas, por perito a nomear pelo Tribunal, assumindo os encargos da avaliação apenas os Interessados representados pelos Ilustres Mandatários Dr. J. S., Dr.ª Maria e Dr.ª Anabela”.
Foi de seguida proferida a decisão ora em crise, já reproduzida no relatório supra.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

O Decreto-Lei 227/94, publicado no DR. n.º 208/1994, Série I-A de 8.9.1994, introduziu importantes alterações ao regime de inventário, referindo-se seu preâmbulo, a propósito da questão que ora nos ocupa:

– «No que respeita ao relacionamento dos bens objecto do inventário, eliminou-se a primeira avaliação, bem como a descrição de bens.

Ao cabeça-de-casal incumbe indicar o valor que atribui aos bens relacionados, não havendo qualquer razão para confiar no seu critério quanto a alguns bens eventualmente de elevado valor e não quanto a outros: no sistema adoptado, apenas se procede à avaliação quando se frustrar o acordo acerca da partilha, surgindo as avaliações como forma de evitar que a base de partida das licitações se apresente falseada, permitindo aos herdeiros mais abonados pecuniariamente apropriar-se da totalidade do património hereditário.

(…)
No entanto, relativamente à indicação do valor dos imóveis relacionados, optou-se por manter, como regra, a sua avaliação inicial baseada no valor matricial e não no respectivo valor «real» - de modo a obstar a drásticos agravamentos, em todos os processos, do montante de valor do inventário e, reflexamente, das custas e do imposto sucessório devido -, sendo certo que a possibilidade conferida aos interessados de reclamar contra o valor atribuído aos bens os defende satisfatoriamente da não coincidência entre a matriz e o valor «real» ou de mercado dos imóveis.

(…)
Por outro lado - e trata-se de uma das mais relevantes alterações à disciplina do inventário -, admite-se, quando o acordo sobre a partilha se frustrar irremediavelmente, que possa ser questionado o valor de quaisquer bens relacionados, com vista a obstar a que a base de partida das licitações possa estar gravemente falseada, permitindo aos interessados mais abonados apropriarem-se, com base num valor não real, dos bens da herança.
Derroga-se, pois, claramente a regra de que a «segunda avaliação» só pode ter lugar nos casos especialmente previstos na lei, uma vez que é sabido que a solução actualmente vigente - que confia quase exclusivamente nas licitações como forma de chegar ao apuramento do valor dos bens descritos - sempre mereceu reparos da doutrina.

No que respeita às avaliações, prevê-se a sua realização, em regra, por um único perito, designado pelo tribunal, já que a estrutura do processo de inventário torna particularmente complexa a designação de peritos pelas partes - uma vez que no inventário não existem, com frequência, partes em directo contraditório - e sendo certo que as possibilidades de contraditório face aos resultados da avaliação pelo perito judicialmente designado serão suficientes para assegurar os legítimos direitos dos interessados na partilha.»

Nesse sentido introduziram-se alterações, que, no que tange à questão que aqui se debate especificamente, correspondem aos seguintes artigos do anterior CPC, ainda aplicável aos inventários a correr termos nos Tribunais:

Artigo 1346.º (Indicação do valor)

1 - Além de os relacionar, o cabeça-de-casal indicará o valor que atribui a cada um dos bens.
2 - O valor dos prédios inscritos na matriz é o respectivo valor matricial, devendo o cabeça-de-casal exibir a caderneta predial actualizada ou apresentar a respectiva certidão.
(…)

Artigo 1353.º Assuntos a submeter à conferência de interessados

1 - Na conferência podem os interessados acordar, por unanimidade, e ainda com a concordância do Ministério Público quando tiver intervenção principal no processo, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes:

a) Designando as verbas que hão-de compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um deles e os valores por que devem ser adjudicados;
b) Indicando as verbas ou lotes e respectivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objecto de sorteio pelos interessados;
c) Acordando na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados.
2 - As diligências referidas nas alíneas a) e b) do número anterior podem ser precedidas de arbitramento, requerido pelos interessados ou oficiosamente determinado pelo juiz, destinado a possibilitar a repartição igualitária e equitativa dos bens pelos vários interessados.
3 - À conferência compete ainda deliberar sobre a aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados e demais encargos da herança.
4 - Na falta do acordo previsto no n.º 1, incumbe ainda à conferência deliberar sobre:
a) As reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados;
b) Quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha.
5 - A deliberação dos interessados presentes, relativa às matérias contidas no n.º 4, vincula os que não comparecerem, salvo se não tiverem sido devidamente notificados.
6 - O inventário pode findar na conferência, por acordo dos interessados e do Ministério Público, quando tenha intervenção principal, desde que o juiz considere que a simplicidade da partilha o consente; a partilha efectuada é, neste caso, judicialmente homologada em acta, da qual constarão todos os elementos relativos à composição dos quinhões e a forma da partilha.

Artigo 1362.º (Reclamação contra o valor atribuído aos bens)

1 - Até ao início das licitações, podem os interessados e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal no inventário, reclamar contra o valor atribuído a quaisquer bens relacionados, por defeito ou por excesso, indicando logo qual o valor que reputam exacto.
2 - A conferência delibera, por unanimidade, sobre o valor em que se devem computar os bens a que a reclamação se refere.
3 - Não se altera, porém, o valor se algum dos interessados declarar que aceita a coisa pelo valor declarado na relação de bens ou na reclamação apresentada, consoante esta se baseie no excesso ou no insuficiente valor constante da relação, equivalendo tal declaração à licitação; se mais de um interessado aceitar, abre-se logo licitação entre eles, sendo a coisa adjudicada ao que oferecer maior lanço.
4 - Não havendo unanimidade na apreciação da reclamação deduzida, nem se verificando a hipótese prevista no número anterior, poderá requerer-se a avaliação dos bens cujo valor foi questionado, a qual será efectuada nos termos do artigo 1369.º
5 - As reclamações contra o valor atribuído aos bens podem ser feitas verbalmente na conferência.
(Sublinhado nosso)

Assim, o art.º Artigo 1346.º prevê a obrigação de o cabeça-de-casal, ao relacionar os bens, indicar o valor que atribui a cada um dos bens, sendo que, tratando-se de prédios inscritos na matriz, o valor a atribuir será, inelutavelmente, o respectivo valor matricial.

Por outro lado a reclamação contra o valor atribuído aos bens passou a poder ser feita até ao início das licitações – art.º 1362º – e, por isso, na própria conferência de interessados, cujo objecto passou a incluir, na falta de acordo sobre a composição dos quinhões, valores e sua adjudicação – nº1 do art.º 1353º – a deliberação sobre as reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados – nº 4 al. a).

Contrariamente ao que se sugere nas contra-alegações não está o Cabeça de Casal, pelo facto de ser ele que nos termos da lei atribui o valor aos bens que relaciona, impedido de reclamar contra esse valor, pois, como vimos, não é livre de indicar aquele que considera ser o valor real, tem forçosamente de indicar o valor matricial.

Podia e devia fazê-lo na Conferência de Interessados, gorado que foi o acordo a que se refere o nº1 do art.º 1353º do CC, imediatamente antes do início das licitações, com vista a estabelecer o seu valor base, como fez e como expressamente previsto no nº 5 do art.º 1362º – “As reclamações contra o valor atribuído aos bens podem ser feitas verbalmente na conferência”.

Tendo o Cabeça de Casal, relativamente à verba nº 4, reclamado no sentido de lhe ser atribuído um valor superior ao indicado na relação de bens e declarado que aceitava ficar com o bem pelo valor superior que propunha, tal equivale a licitação e como tal tinha de ser interpretado.

Efectivamente o nº 3 do art.º 1362º estabelece:

Não se altera, porém, o valor se algum dos interessados declarar que aceita a coisa pelo valor declarado na relação de bens ou na reclamação apresentada, consoante esta se baseie no excesso ou no insuficiente valor constante da relação, equivalendo tal declaração à licitação; se mais de um interessado aceitar, abre-se logo licitação entre eles, sendo a coisa adjudicada ao que oferecer maior lanço.

Como mais nenhum interessado aceitou esse valor, não haveria que abrir licitação entre eles, considerando a verba nº 4 licitada pelo reclamante, neste caso o Cabeça de Casal que reclamou contra o valor da relação por insuficiência, propondo um valor superior e declarando, como consta da acta “relativamente à verba nº 4 (quatro) o requerente desde já declara que aceita a verba pelo valor da reclamação, o que nos termos e para os efeitos do acima aludido art.º 1362º nºs 2 e 3 do CPC então em vigor”.
Ora, se relativamente à reclamação do Cabeça de Casal contra o valor atribuído na relação de bens à verba nº 3, sem a declaração de que aceita este valor, na falta de acordo dos interessados e tendo estes requerido a avaliação, o despacho que deferiu o requerido e a determinou é acertado, já não o é relativamente à verba nº4, como atrás exposto.

Ciente disso mesmo, a Mmª juiz “a quo” justificou que se estendesse a avaliação também a esta verba pelo facto de na Relação de Bens, em anotação/esclarecimento ao relacionamento desta verba, se referir que neste prédio rústico existe uma construção urbana e que o mesmo é actualmente atravessado pela Rua …, assim resultando a sua eventual desconformidade com o que consta da descrição predial e também eventualmente, caso a construção tenha autonomia económica um valor diferente, ou seja superior.

Sucede que a eventual não correspondência entre a descrição do prédio na relação de bens e a que resulta do Registo Predial, ou mesmo da inscrição matricial, não é através de uma avaliação que é dirimida, nem é por isso ou para esse efeito que o citado normativo prevê a avaliação.

O “arbitramento” oficiosamente determinado só está previsto no nº 2 do art.º 1353º do CC e visa especificamente o acordo previsto nas alíneas a) e b) do seu nº1 (acordo sobre a composição dos quinhões), questão já ultrapassada quando se apreciam as reclamações contra o valor atribuído aos bens:

«nº 4 - Na falta do acordo previsto no n.º 1, incumbe ainda à conferência deliberar sobre:

a) As reclamações deduzidas sobre o valor atribuído aos bens relacionados;»

Como se refere sumário do douto acórdão do TRP de 16.3.2006 (proc. 0630959), publicado in dgsi.pt: “Após a junção da relação de bens, de que fazem parte imóveis com os seus respectivos valores matriciais, o juiz não pode ordenar a avaliação de tais imóveis, mediante arbitramento, por entender que aqueles valores matriciais estão desfasados da realidade”.

Acrescentamos nós, nem, oficiosamente, em qualquer outro momento – salvo o caso específico acima referido para efeitos do acordo previsto no nº 1 do art.º 1353ª – especialmente se tal avaliação contraria manifestamente o disposto nos nºs 3 e 4 do art.º 1362º.

«Com efeito, assim o impõe o princípio da confiança [Ac. nº 313/95 do Tribunal Constitucional (ACS. TC 31º - 461)], que deflui do princípio do Estado de Direito democrático consagrado no art. 2º da Constituição, que postula “uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado”, implicando “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”. Tal princípio inculca que deva o cidadão prever as intervenções que o Estado possa “levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas”, devendo, assim, confiar “que a sua actuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e, deste modo, permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes”, que conduz a que aquele princípio imponha ao Estado que, sem que com isso signifique que não possa levar a cabo modificações da ordem jurídica existente, e não edição de normação que, repercutindo-se acentuada, onerosa e intoleravelmente nas situações já existentes e criadas á sombra da anterior legislação, as vá alterar, no seu conteúdo e consequências, com as quais os cidadão razoavelmente não contariam. É pois um princípio cuja imposição, em via de regra, se dirige ao próprio legislador”, e, diremos nós, por maioria de razão aos tribunais que administram a Lei» – acórdão do TRP acima citado.

Os interessados conhecem os bens a partilhar, oportunamente relacionados, sendo que o Cabeça de Casal, na relação que apresentou, esclareceu que do prédio relacionado sob o nº 4 tinham sido desanexados dois outros prédios (nota nº1 e verbas nºs 5 e 6), que neste prédio existia uma construção muito antiga benfeitorizada, composta por rés-do-chão, primeiro andar e cave e que o prédio, para além dos referidos destaques é atravessado pela rua …, sendo que do lado norte tem 3184 m2 e do lado sul 2306 m2 (nota nº 2º).

Na relação de bens o Cabeça de Casal indicou, como valor desse prédio, o respectivo valor matricial, como a lei lhe impunha (art.º 1346º nº2).
Reclamou oralmente na conferência de interessados, como a lei lhe permite (art.º 1362º nºs 1 e 5), contra esse valor, por insuficiência, propondo um valor superior.
Declarou expressamente que aceitava a verba pelo valor reclamado (art.º 1362º nº 3 primeira parte).
A lei (nº 3 do art.º 1362º) é explícita no sentido de que tal declaração equivale a licitação.
Mais nenhum interessado declarou aceitar o prédio por esse valor, não havendo por isso que abrir entre eles licitação, considerando-se assim tal verba licitada pelo reclamante Cabeça de Casal, aqui apelante.
Os interessados – que nem sequer deduziram reclamação contra o valor atribuído à verba – só poderiam requerer a avaliação desta verba, caso o reclamante, aqui apelante não tivesse declarado aceitar a verba pelo valor que propôs na sua reclamação – isto é, licitado a verba, como resulta claramente do nº 4 do citado art.º 1362º.

Poderiam sim ter aceitado esse valor, abrindo-se licitação entre eles (isto é, oferecer valor superior), mas não o fizeram.

Consequentemente, a verba nº4 considera-se licitada pelo reclamante Cabeça de Casal e, por isso, não é objecto da avaliação requerida pelos demais interessados, que só pode ter por objecto as verbas cujo valor foi reclamado, mas que ninguém declarou aceitar pelo valor reclamado (superior ao da relação de bens).

Também não pode ser ordenada oficiosamente a avaliação dessa verba, pois que ultrapassada a fase de acordo sobre a partilha (nºs 1 e 2 e 4 do art.º 1353º) – pelo menos deve considerar-se ultrapassada, já que a questão do valor foi apreciada, ouvindo-se os demais interessados e proferindo-se decisão, o que só pode suceder depois de gorado o acordo – considerando-se tal verba licitada pelo ora recorrente (nºs 3 e 4 do art.º 1362º).

Pelo exposto acolhemos as conclusões do apelante, impondo-se revogar o despacho recorrido, na parte em que não admitiu a declaração de licitação feita pelo Cabeça de Casal quanto à verba nº 4 e determinou a avaliação desta verba.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, proferida na acta da conferência de interessados de 16.1.2018, na parte em que não admitiu a declaração de licitação feita pelo Cabeça-de- Casal, quanto à verba n.º 4, para efeitos do disposto no artigo 1362.º, n.º 3, 1.ª parte, do C.P.C e determinou a avaliação dessa verba.
Em sua substituição declaram licitada pelo Cabeça de Casal a verba nº 4 da Relação de Bens, pelo valor da reclamação que apresentou e que aceitou (€25.000). Ficando sem efeito a avaliação ordenada relativamente à verba nº4.
Custas da apelação pelos apelados.
Guimarães, 7-6-2018

Eva Almeida
António Beça Pereira
Maria Amália Santos