Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
188/12.8TMBRG-F.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: RELATÓRIO PERICIAL
RECLAMAÇÃO
SEGUNDA PERÍCIA
FUNDAMENTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) São mecanismos processuais completamente distintos e inconfundíveis, quanto aos respectivos pressupostos e finalidades, a reclamação contra o relatório pericial e o pedido de realização de segunda perícia.
2) A segunda perícia referida nos artºs 487º e sgs, CPC, pressupõe que sejam alegadas fundadamente razões de discordância quanto ao relatório, tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir eventual inexactidão.
3) Tal alegação consiste na invocação, clara e explícita, de sérias razões de discordância da parte, não porque o resultado alcançado contraria ou não satisfaz os seus interesses, mas por, nele e no relatório em que assenta, existir inexactidão (insuficiência, incoerência e incorrecção) dos respectivos termos, maxime quanto à forma como operaram os conhecimentos especiais requeridos sobre os factos inspeccionados e ilações daí extraídas, de modo a convencer que, podendo haver lugar à sua correcção técnica, esta implicará resultado susceptível de diversa e útil valoração para a boa decisão da causa.
4) A segunda perícia coexiste validamente com a primeira, devendo ser-lhe fixada livremente a força probatória do respectivo resultado.
5) Embora o critério de decisão sobre a indicação e produção de meios de prova seja essencialmente o da própria parte, pode vedar-se a sua iniciativa no caso de impertinência, desnecessidade ou irrelevância ou da natureza meramente dilatória do oferecido ou requerido.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

B intentou contra C acção especial de jurisdição voluntária para fixação (em 250,00€/mês) do valor da renda que pretende que esta lhe pague em contrapartida da casa de morada de família que lhe foi atribuída.

Na contestação, esta – patrocinada pelo regime de apoio judiciário – pugnou pela fixação do valor mensal a pagar em 75,00€/mês, correspondente a metade da devida, alegando que o imóvel é bem comum.

Tendo tal questão sido enunciada como tema de prova no saneador, foi requerida e admitida a produção de prova pericial, fixando-se como objecto desta a resposta às seguintes questões:

“Em caso de arrendamento qual o valor da renda mensal para utilização do mesmo imóvel?” (proposta pelo requerente);
“Determinado o valor locativo do imóvel em mérito (na sua totalidade, incluindo a casa e o terreno), qual a percentagem que, dentro desse montante, deve ser imputada à casa (1) e ao terreno que circunda (2), para efeitos de determinação da renda?” (proposta pela requerida).

Foi, então, apresentado o Laudo pelo Perito nomeado, conforme fls. 32 a 36, para que se remete, no qual respondeu:

-À primeira questão: “O valor da renda mensal que o Perito atribui ao imóvel objecto da presente peritagem é de €420,00”;
-À segunda questão: “A percentagem da renda mensal atribuída ao imóvel correspondente à construção da casa (incluindo custos diretos e indiretos) é de 78,3%, a percentagem atribuída ao terreno onde a casa se encontra implantada (incluído logradouro) é de 21,7%”.

Fundamentando tais respostas, foi apresentado relatório de avaliação, composto de vários itens relativos, nomeadamente, à envolvente do imóvel, sua caracterização (construção, compartimentação, estado de conservação, ocupação, mercado, preços praticados na zona e métodos de avaliação utilizados, acerca de cada um tendo sido referidos dados e tecidas considerações e apresentados os respectivos cálculos, designadamente em função das áreas da moradia, garagem e logradouro, neles se vendo que foi levada em conta uma percentagem de depreciação), bem como fotos e outras imagens ilustrativas.

Notificadas as partes, a requerida veio “…a) apresentar reclamação do relatório de peritagem, requerendo a prestação de esclarecimentos por parte do perito nomeado, nos seguintes termos:
O prédio em mérito nos presentes autos é uma habitação unifamiliar térrea e isolada, de tipologia T3.
O perito atribuiu ao imóvel (na sua globalidade) um valor de renda mensal de €420,OO.
No âmbito da avaliação efectuada, porém, são destacados os seguintes aspectos negativos concretos da habitação:
- inexistência de rede de saneamento;
- a fachada não se encontra pintada;
- os muros de vedação estão erigidos em blocos de argamassa sem revestimento;
- os muros não contêm portões;
- os tectos dos alpendres não têm acabamento;
- são visíveis manchas de condensação em praticamente toda a extensão dos tectos;
- manchas de humidade em algumas paredes.
Acresce que, a habitação, de um só piso e sem jardim, se encontra num mau estado geral de conservação, para além de estar situada num local rural e ermo, longe da estrada nacional e do centro da aldeia e do concelho de …, aspectos que o perito certamente confirmará.
Por outro lado, não existe nas redondezas e na região nenhuma habitação, com características idênticas à avaliada, à qual tenha sido atribuído um preço de mercado de arrendamento similar, ou tão pouco parecido, com que ora foi indicado pelo perito.
Daqui resulta que, no entender da Requerida, o preço de renda calculado é manifestamente exagerado, estando aquela plenamente convicta de que não conseguiria arrendar o imóvel por sequer metade daquele valor.
Em conformidade, requer-se seja o perito notificado para esclarecer se, aquando da determinação do preço adequado de renda, teve em consideração os aspectos que supra se destacam, enquanto factores de desvalorização do imóvel.
Por outro lado, deverá igualmente o perito esclarecer a que mediadoras, promotores ou sites especializados recorreu, devendo juntar aos autos algum exemplo de habitação que, com aquelas características, tenha aquele preço de mercado, que, repete-se, é absurdamente elevado para as características do imóvel.
b) em conformidade com o exposto, e com os mesmos fundamentos, a Requerida vem, nos termos do disposto no art. 487º ss. CPC, requerer a realização de segunda perícia, que deverá ser ordenada para esclarecimento da verdade, tendo por objecto os mesmos quesitos sobre os quais incidiu a primeira.” [sublinhados nossos]

Sobre tal reclamação foi proferido o seguinte despacho:

“Reclamação ao resultado da perícia:
A requerida, notificada do resultado da perícia ordenada e realizada nos autos, vem dela reclamar, mais pedindo a realização de segunda perícia.
Ora, nos termos do artigo 485º do CPC, as partes podem reclamar do relatório quando aleguem a existência de “deficiência, obscuridade ou contradição”.
Manifestamente, este não é o caso da reclamante que, tão só, discorda do resultado da perícia (por considerar “manifestamente exagerado” o preço da renda calculado).
A segunda perícia claramente não se destina a uma “nova tentativa” da parte encontrar um resultado que melhor satisfaça a sua pretensão: por isso a nomeação do perito foi feita pelo tribunal, de entre uma lista de técnicos identificados para o efeito, com reconhecida capacidade, idoneidade e isenção.
Destarte, por desnecessária, indefiro a segunda perícia (por nenhuma relevante razão de discorrência ter sido invocada para a sua realização).
Não obstante, para cabal compreensão do relatório pericial junto, onde em 8.7 é alegado o recurso a prospeção e estudo comparativo de mercado, notifique o Exm.º Perito para, tão só, prestar os esclarecimentos solicitados a fls. 81.”

A requerida C não se conformou com tal decisão e dela interpôs recurso para esta Relação, alegando e formulando as seguintes conclusões:

“1. O douto tribunal recorrido admitiu a realização de prova pericial, com o objectivo de determinar o valor de mercado arrendatício da casa de morada de família em mérito nos autos.
2. Uma vez apresentado o relatório pericial, dele veio a ora Recorrente apresentar reclamação, e, concomitantemente, requerer a realização de segunda perícia, cfr. requerimento apresentado pela Recorrente, com a Ref.: 21213478, para o qual se remete.
3. Como fundamento para apresentação da reclamação e simultânea realização de segunda perícia, a Recorrente alegou sumariamente os seguintes aspectos:
- localização e mau estado geral de conservação, que não foram tidos em consideração no perícia efectuada, nomeadamente desvalorizando o imóvel;
- inexistência de habitações similares nas redondezas e na região às quais tenha sido imputado idêntico preço de mercado;
- falta de indicação das mediadoras, promotoras ou sites especializados a que o Perito alega ter recorrido para aferir do preço de arrendamento do imóvel.
4. Deste modo, a Recorrente não se limitou a discordar do relatório por considerar “manifestamente exagerado” o preço da renda calculado, tal como refere a douta decisão em mérito.
5. Pelo contrário, indicou concretas questões que pretende ver esclarecidas, mais fundamentando as razões de discordância com o relatório apresentado.
6. Deste modo, alegou a existência de deficiências, para além de pôr em causa a fundamentação das conclusões obtidas,
7. alegando fundadamente as razões da discordância relativamente às conclusões da perícia.
8. Nos termos descritos, a Recorrente motivou devidamente a reclamação e o pedido de realização de segunda perícia, ao abrigo do disposto nos arts. 485º, nº 2 e 487º, nº 1, ambos do CPC.
9. O douto tribunal recorrido, porém, indeferiu os pedidos da Recorrente (com excepção da prestação dos esclarecimentos referidos na douta decisão).
10. No entanto, nos termos legais, impunha-se o deferimento integral do peticionado, ordenando a prestação dos requeridos esclarecimentos e a realização da segunda perícia, o que se propugna através da instauração do presente recurso.
11. Assim decidindo, violou o despacho recorrido o disposto nos arts. 485º, nº 2 e 487º, nº 1, ambos do CPC.
NESTES TERMOS, julgando o presente recurso procedente, revogando o douto despacho recorrido, ordenando a notificação do perito para que preste os requeridos esclarecimentos, e ordenando a realização de segunda perícia, farão V. Exas a habitual JUSTIÇA!”

Em contra-alegações, o requerente defendeu a confirmação do despacho.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

É pelas conclusões que, sem prejuízo dos poderes oficiosos, se fixa o thema decidendum e se definem os limites cognitivos deste tribunal – como era e continua a ser de lei e pacificamente entendido na jurisprudência (artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC).

No caso, a única questão consiste em saber se, quanto ao relatório e conclusões periciais, há fundamentos legais para deferir a segunda perícia requerida.

III. FUNDAMENTAÇÃO

Relevam os factos relatados, emergentes do autos.

IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

São expedientes processuais completamente distintos e inconfundíveis a reclamação contra o relatório pericial e o pedido de realização de segunda perícia.

A reclamação está prevista no artº 485º, CPC, e pressupõe a existência de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório, ou, ainda, falta de fundamentação devida das conclusões.

Se for atendida, dá lugar a que o juiz ordene que o perito complete, esclareça ou fundamente o relatório.

A segunda perícia vem referida no artº 487º e sgs, pressupõe que sejam alegadas fundadamente razões de discordância quanto ao relatório, tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir eventual inexactidão.

Sendo deferida, segue o regime e tem o valor referidos nos artºs 488º e 489º.

No seu requerimento, dominado, como é óbvio, pela alegação de que o preço arbitrado “é manifestamente exagerado” ou “absurdamente elevado”, a apelante lançou mão, primeiro e ao que parece a título principal, da reclamação, sugerindo dois esclarecimentos (se o perito teve em consideração aspectos por ele próprio destacados no relatório e quais as fontes a que recorreu para averiguar preços congéneres) e pedindo que o perito os preste.

Além disso, cumulou, “com os mesmos fundamentos”, o pedido de realização de segunda perícia, “para esclarecimento da verdade”.

Pressupondo cada um dos mecanismos fundamentos e regimes diferentes, é óbvio que “os mesmos” não podem fundamentar ambos nem aqueles podem ser pedidos cumulativamente.

Como logo por aí era e é bom de ver, a segunda perícia só podia ter sido, como foi e bem, indeferida, o que significa que o presente apelo é manifestamente improcedente.

Conquanto o despacho recorrido refute a existência de qualquer obscuridade, deficiência ou contradição e, no entanto, tenha acabado por deferir e ordenar a prestação dos esclarecimentos solicitados – a fls. 81, como detalhou, evidentemente se referindo aos únicos pretendidos pela requerida e aqui apelante –, o certo é que ele se baseou na consideração de que esta se limitou a discordar da primeira perícia sem nenhuma razão relevante ter invocado em fundamentação da segunda para, consequentemente, a negar.

Só, portanto, este segmento do despacho pode ser e é objecto do recurso.

Do mais, não há que tomar conhecimento.

Com efeito, uma vez que o pedido de esclarecimentos foi, afinal, deferido e ordenado quanto aos solicitados a fls. 81, está satisfeita a pretensão quanto a isso formulada pela apelante.

É que outros não existem, na medida em que querer saber se o perito teve em consideração aspectos reconhecidamente por ele próprio destacados no relatório elaborado em justificação das respostas dadas, é algo de paradoxal. Não exprime logicamente qualquer obscuridade, deficiência, contradição ou falta de fundamentação que careça de “esclarecimentos” complementares, pois se, como de facto se constata, destacou os elementos referidos, é claro que os repercutiu – nada constituindo indício do contrário – nas conclusões tiradas e valores referidos não sendo para tal necessário qualquer esclarecimento.

Não se percebe, pois, por que motivo a apelante persiste em dizer que tal foi indeferido e que deve este Tribunal ordená-los.

Centremo-nos, então, no problema da segunda perícia.

1. Como é sabido, de acordo com o artº 2º, nº 2, do actual Código de Processo Civil (CPC) a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde uma acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo.

Tal reconhecimento pressupõe a demonstração, pelo respectivo titular, dos respectivos pressupostos de facto.

Daí o estabelecimento de regras do ónus da prova, através das quais o sistema repartiu, entre os vários intervenientes no conflito, o risco da não demonstração daqueles ou dos integrantes de excepções oponíveis (artºs 342º, e sgs, do Código Civil).

Neles se compreende também o chamado ónus da contraprova (artº 346º, CC), emanação do princípio do contraditório, consagrado no artº 415º, CPC.

Desses ónus resulta, sobretudo em relação à parte onerada com o dever de provar os factos mas também quanto à que tem a possibilidade de os contraprovar e de, na produção dos respectivos meios exercer cabalmente o direito ao contraditório, que as limitações em tal domínio devem restringir-se ao mínimo fundamentalmente admissível e alicerçar-se em fortes e precisas razões materiais justificadas em vista do objectivo de realização da justiça mediante processo equitativo.

A tal propósito refere-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 530/2008:

“Conforme tem sido afirmado em diversas ocasiões pelo Tribunal Constitucional, o direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras (acórdão n.º 86/1988, reiterado em jurisprudência posterior e, por último, no acórdão n.º 157/2008).”

Assim, o critério de decisão sobre a indicação e produção de meios de prova é essencialmente o da própria parte, só podendo cercear-se a sua iniciativa em casos absolutamente limitados, designadamente os fundados na impertinência, desnecessidade ou irrelevância do meio de prova oferecido ou requerido (por si mesmo ou pela matéria de facto que com ele se visa demonstrar) ou na sua natureza meramente dilatória.

2. O artº 609º, nº 1, na primitiva versão do Código de Processo Civil, dispensava a fundamentação do pedido de segundo arbitramento (assim se designava, então, a prova pericial). Era “lícito” a qualquer das partes requerê-lo “desde que o julgue necessário”.

Na versão do artº 589º, nº 1, do Código revogado pela Lei 41/20013, de 26 de Junho, que se manteve igual na do artº 487º do novo actualmente em vigor, tal possibilidade depende de a parte o requerer “alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.”

O artº 609º, nº 2, na versão primitiva, já estabelecia, como finalidade, a correcção da eventual inexactidão dos resultados obtidos.

O posterior artº 589º, nº3, e o actual artº 487º, nº 3, proclamam o mesmo desígnio, em iguais termos: a parte deve alegar fundadamente as razões da sua discordância quanto ao relatório (não prová-las, nem convencer o tribunal do seu mérito); o objectivo em vista deve ser o de corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira perícia; o tribunal deve pautar-se pelo objectivo de apuramento da verdade e, portanto, a sua intervenção deve limitar-se, neste ensejo, a verificar a eventualidade de existirem as inexactidões apresentadas.

3. No domínio do Código primitivo, diferentemente do que precedeu o actual, não havia segundo arbitramento, no caso de o primeiro ter sido realizado por estabelecimentos oficiais e não podiam participar neste peritos de categoria inferior aos daquele.

Já então, Antunes Varela ensinava que “A finalidade do segundo arbitramento abrange a possibilidade, não só de corrigir a eventual inexactidão (ou deficiência) das percepções dos peritos ou das conclusões, baseadas nos seus conhecimentos especializados, mas também de obter uma apreciação ou justificação diferente da emitida pelos intervenientes na perícia anterior”. (1)

E acrescentava: “A parte interessada no segundo arbitramento pode discordar do resultado da perícia efectuada, como pode apenas considerar insuficiente a fundamentação ou justificação do laudo emitido, receando que ela não seja capaz de persuadir o tribunal”(2).

Tanto mais que, concluía ele, nunca se sabe antecipadamente o valor probatório que lhe será atribuído.

4. No regime precedente, já assim entendia a Jurisprudência:

“III. A expressão adverbial "fundadamente", significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. IV. Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.”(3)

“Do preceito transcrito resulta que: 1) a segunda perícia pode ser requerida por qualquer das partes ou pode ser ordenada oficiosamente pelo tribunal; 2) tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira; 3) e destina-se a corrigir eventuais inexactidões, insuficiências ou contradições de que padeça a primeira. Sendo requerida por alguma das partes, a lei impõe que alegue "fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial" da primeira perícia. O que se deve entender pela expressão normativa "alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado"? Cremos que o seu alcance não pode deixar de estar conexionado com o objecto e a finalidade da segunda perícia, tal como são definidos no n.º 3 do mesmo artigo, ou seja, que a segunda perícia tem por base os mesmos factos da primeira e destina-se a corrigir eventuais inexactidões (latu sensu) da primeira, em que também se incluem, como parece óbvio, quaisquer contradições ou insuficiências com relevância nas respectivas conclusões. Isto porque o que a lei pretende com a realização da segunda perícia é que sejam dissipadas quaisquer dúvidas sérias que tenham ficado a subsistir da primeira perícia sobre a percepção ou apreciação dos factos investigados, que possam ter relevância na decisão sobre o mérito da causa. É este conceito mais abrangente que vem sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência. LEBRE DE FREITAS (em Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 554-555), diz que, quando a iniciativa da segunda perícia é da parte, "não lhe basta requerê-la: é-lhe exigido que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com apresentação das razões por que entende que esse resultado devia ser diferente", acrescentando que tais razões podem reportar-se a factos "que a primeira perícia devesse ter considerado" e haja omitido ou não tenha esclarecido suficientemente. Também a jurisprudência tem vindo a entender que esta exigência de fundamentação imposta às partes que requeiram a segunda perícia decorre de duas ordens de razões: a primeira, de natureza processual, impedir que seja utilizada como "mero expediente dilatório" ou "mera chicana processual"; a segunda, de natureza substantiva, apontar e precisar as razões da discordância com o resultado da primeira perícia, as quais não podem deixar de incidir sobre eventuais inexactidões, insuficiências ou contradições de que padeça a primeira perícia, atento o disposto no n.º 3 do art. 589.º do Código de Processo Civil. Neste sentido se pronunciam os acórdãos STJ de 25-11-2004, em www.dgsi.pt/jstj,nsf/ proc. n.º 04B3648, e da Relação do Porto de 23-11-2006 e 07-10-2008, ambos em www.dgsi.pt/jtrp.nsf/ procs. n.º 0636189 e 0821979, e da Relação de Lisboa de 28-09-2006, em www.dgsi.pt/jtrl.nsf/ proc. n.º 6592/2006-6” (4).

“1 - Nos termos do artigo 587.º do Código de Processo Civil a segunda perícia só terá lugar se o requerente alegar «fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado». 2 - Esta exigência há-de cumprir critérios materiais que vão além da forma, pois se bastasse qualquer justificação, fosse ela qual fosse, então não se compreenderia a alteração da lei, pois no regime processual anterior o pedido de segunda perícia era livre. 3- Porém, dada a natureza da matéria, o juiz só poderá considerar a fundamentação insuficiente quando mostrar, sem margem para dúvidas, que o pedido não se justifica. 4 - Se os fundamentos alegados suscitam um estado de dúvida na mente do juiz, este estado é suficiente para justificar a segunda perícia, pois a existência da dúvida mostra que a perícia já feita não a dissipa.” (5)

“A prova pericial destina-se, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos enunciados de facto produzidos pelas partes (artº 341º do Código Civil). Aquilo que a singulariza é o seu peculiar objecto: a percepção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (artº 388º do Código Civil). A apresentação do relatório da perícia é notificada às partes, que podem reclamar, se entenderem que há nele qualquer deficiência, obscuridade ou contradição ou que as conclusões não se mostrarem devidamente fundamentadas (artº 587º, nºs 1 e 2 do CPC). A reclamação consiste em apontar a deficiência e pedir que a resposta seja completada, ou em denunciar a obscuridade e solicitar que o ponto obscuro seja esclarecido, ou em notar a contradição e exprimir o desejo de que ela seja desfeita, ou em acusar a falta de fundamentação das conclusões e pedir que sejam motivadas. Qualquer das partes pode, também, requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias, a contar do conhecimento do resultado da primeira (artº 589º, nº 1 do CPC). A segunda perícia não é uma nova perícia. A segunda perícia, dado que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e por finalidade a correcção da eventual inexactidão dos resultados desta, é, simplesmente, a repetição da primeira (artº 589º, nº 3 do CPC). O que justifica a segunda perícia é a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação de outro perito ou peritos os factos que já foram apreciados. Parte-se do princípio que o primeiro perito ou os primeiros peritos viram mal os factos ou emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque não se considera convincente o parecer obtido na primeira perícia é que se lança mão da segunda. No tocante ao valor da perícia, quer se trate da primeira perícia quer da segunda, vale, por inteiro, de harmonia com a máxima segundo a qual o juiz é o perito dos peritos o princípio da livre a apreciação da prova, e, portanto, o princípio da liberdade de apreciação do juiz (artº 389º do Código Civil). A avaliação médico-legal do dano corporal, i. e., de alterações na integridade psico-física de uma pessoa, constitui uma matéria de particular complexidade. Até à Reforma do processo civil – instrumentalizada através dos DL nºs 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro – o requerente de realização da segunda perícia não precisava de justificar o pedido; não carecia de apontar defeitos ou vícios ocorridos na primeira perícia; não tinha de apontar as razões por que julgava pouco satisfatório ou pouco convincente o resultado da primeira perícia. Numa palavra: qualquer das partes podia requerer segunda perícia sem que tivesse que dizer as razões por que a requeria, regime de que decorria esta consequência lógica: o juiz não podia indeferir o requerimento com o fundamento de considerar impertinente ou dilatória a diligência (artº 578º, nº 1 do CPC). Aquela Reforma, porém, orientou-se em sentido nitidamente diverso, passando a exigir, como condição primeira do deferimento do requerimento de realização de segunda perícia, a sua fundamentação, através, naturalmente, da alegação, pelo requerente, das razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado (artº 589º, nº 1 do CPC)”. (6)

O mesmo caminho de argumentação e decisão vinha sendo já percorrido noutros arestos, a ponto de se entender que, caso falte a alegação das razões de discordância, deve a parte requerente ser convidada a indicá-las (7) e que tal constitui uma faculdade, o requerimento só deve ser tempestivo e explicitar as ditas razões (8).

5. Mais recentemente e apesar do novo CPC, como decorre da persistente redacção do artº 487º, mantém a mesma orientação.

“I - Nos termos do art.º 587º, do CPC [antigo], a segunda perícia só terá lugar se o requerente alegar fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. II - A parte deverá indicar os pontos de discordância (as inexactidões a corrigir, na terminologia do art.º 589º, n.º 3, in fine, do CPC) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica. III - Não cabe ao Tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação apresentada, embora já possa indeferir o requerimento com fundamento no carácter impertinente ou dilatório da segunda perícia. IV - A reclamação contra o relatório e o requerimento de segunda perícia têm objectivos diversos. A reclamação é o meio de reacção contra qualquer deficiência, obscuridade ou contradição detectadas no relatório e visa levar o(s) perito(s) que o elaborou(raram) a completá-lo, esclarecê-lo ou dar-lhe coerência (art.º 587º, do CPC); a segunda perícia é o meio de reacção contra inexactidão do resultado da primeira e procura que outros peritos confirmem essa inexactidão e a corrijam (art.º 589º, n.º 3, do CPC).” (9)

“I - O juiz só poderá indeferir a realização da segunda perícia por considerar a fundamentação insuficiente quando se mostrar, sem margem para dúvidas, que o pedido não se justifica. II - Saber se os fundamentos e razões invocados têm razão de ser, é assunto que só depois da realização da nova perícia se pode colocar.” (10)

“1. O direito à prova constitucionalmente reconhecido (art.º 20 da CRP) faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como também para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios. 2. O exposto não significa que todas as diligências requeridas devam ser deferidas. Apenas o deverão ser desde que legalmente admissíveis, pertinentes e não tenham cariz dilatório. 3. Pelo que se terá sempre de considerar impertinente a prova pericial que aponte à demonstração de factos que, de uma maneira ou de outra, não constem da controvérsia do processo, pois seriam pura e simplesmente inúteis para dirimir tal controvérsia e, portanto, não úteis à boa decisão da causa.”(11)

6.Ora, atenta a simplicidade e clareza das questões sobre que incidiu a perícia e os termos precisos e objectivos com que, correspondentemente, o Sr. Perito lhes respondeu, não se vislumbra em tais resultados qualquer hipotética inexactidão, nem a apelante a aponta, que deva ser corrigida.

Confinando-se aqueles ao âmbito do juízo pericial formulado e dependendo este de conhecimentos especiais do perito não é na possibilidade de, em função destes ou da sua aplicação, aquele variar de um perito para outro (quiçá em sentido mais favorável) que reside a eventual inexactidão dos resultados prevista na lei como fundamento de nova perícia destinada a corrigi-la.

Se assim fosse, o número de perícias admissíveis multiplicar-se-ia em razão de se não tratar de questão respondível apenas em termos e segundo critérios matemáticos e de, por isso mesmo, na determinação dos valores alcançados poderem confluir díspares factores neles interferentes conforme a percepção, apreciação e avaliação de cada perito.

Aquela (eventual inexactidão) deve configurar-se e apresentar-se antes como possível resultado de uma falha ou deficiência ocorrida no percurso que vai desde a inspecção até à conclusão do relatório e reflectida nas diversas premissas concorrentes ao longo dele utilizadas susceptíveis de alterar e desvalorizar o juízo pericial ou torná-lo até errado e que constitua séria e justificada razão de discordância relativamente à fundamentação exarada, merecedora de correcção.

Pode tratar-se de erradas percepções dos peritos ou de desconfiança sobre o modo como analisaram, apreciaram e se pronunciaram tecnicamente sobre o objecto da perícia.

Tal não sucede quando, como no caso, a apelante, no seu requerimento, se limitou a enfatizar que o preço calculado é manifestamente exagerado ou absurdo e, além disso, a simplesmente indicar aspectos depreciativos daquele, clara e efectivamente também destacados no relatório e nos cálculos, para, com tal pretexto, pretender que o perito esclareça se os teve em consideração, sem que, contudo, fundamente que tal não terá sucedido ou a existência de qualquer dúvida razoável ou patente obscuridade sobre isso, mas apenas um evidente inconformismo com o valor alcançado.

Assim como não sucede quando pretende que este revele informações que diz ter utilizado como critério de cálculo e que, afinal, podem sê-lo mediante simples prestação de esclarecimentos, aliás já deferidos em sede de reclamação.

Note-se, quanto a isto, que jamais, no requerimento, a apelante alegou que tais aspectos depreciativos não foram considerados, só agora nas alegações tal sugerindo.

Não se vê, pois, que tenham sido alegadas deficiências no relatório, maxime na sua fundamentação, nem nas inerentes conclusões, muito menos sérias e atendíveis razões de discordância quanto à perícia realizada (ancoradas, por exemplo, na invocação de falta de credibilidade de qualquer dos parâmetros utilizados), que perspectivem a eventualidade de ele comportar qualquer inexactidão susceptível e merecedora de correcção.

Patenteia-se, sim, inconformismo com o resultado, todavia não definitivo nem constituinte de prova tabelada, uma vez que competirá ainda ao Tribunal fixar livremente o valor probatório da perícia (artº 389º, CC).

Pretender assim a realização de nova perícia revela-se impertinente, desnecessário e irrelevante. Por isso, do seu indeferimento não resulta a violação das normas legais respectivas, nem prejuízo para o exercício do direito à contraprova pela apelante.

Deve, pois, julgar-se improcedente a apelação e manter-se o despacho recorrido na parte relativa ao indeferimento da segunda perícia.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

Notifique.

Guimarães, 19 de Maio de 2016



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José Fernando Cardoso Amaral




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Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo




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Maria Isabel Sousa Ribeiro Silva



Sumário:

1) São mecanismos processuais completamente distintos e inconfundíveis, quanto aos respectivos pressupostos e finalidades, a reclamação contra o relatório pericial e o pedido de realização de segunda perícia.
2) A segunda perícia referida nos artºs 487º e sgs, CPC, pressupõe que sejam alegadas fundadamente razões de discordância quanto ao relatório, tem por objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir eventual inexactidão.
3) Tal alegação consiste na invocação, clara e explícita, de sérias razões de discordância da parte, não porque o resultado alcançado contraria ou não satisfaz os seus interesses, mas por, nele e no relatório em que assenta, existir inexactidão (insuficiência, incoerência e incorrecção) dos respectivos termos, maxime quanto à forma como operaram os conhecimentos especiais requeridos sobre os factos inspeccionados e ilações daí extraídas, de modo a convencer que, podendo haver lugar à sua correcção técnica, esta implicará resultado susceptível de diversa e útil valoração para a boa decisão da causa.
4) A segunda perícia coexiste validamente com a primeira, devendo ser-lhe fixada livremente a força probatória do respectivo resultado.
5) Embora o critério de decisão sobre a indicação e produção de meios de prova seja essencialmente o da própria parte, pode vedar-se a sua iniciativa no caso de impertinência, desnecessidade ou irrelevância ou da natureza meramente dilatória do oferecido ou requerido.

Notas:
(1) Manual de Processo Civil, 2ª. edição, revista, Coimbra Editora 1985, páginas 598 e 599.
(2) Idem, página 599.
(3) Acórdão do STJ, de 25-11-2004, relatado pelo Exmº. Conselheiro Ferreira de Almeida.
(4) Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 20-04-2009, relatado pelo Exmº. Desembargador Guerra Banha.
(5) Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 28-06-2011, proc. nº 1/10.0TBSPS-A.C1, relatado pelo Exmº Desemb. Alberto Ruço.
(6) Acórdão da Relação de Coimbra, de 24-04-2012, relatado pelo Exmº. Desemb. Henrique Antunes.
(7) Acórdão da Relação do Porto, de 27-10-2009, relatado pelo Exmº Desemb. Henrique Antunes.
(8) Acórdão da Relação do Porto, de 10-11-2009, relatado pela Exmª. Desembª Sílvia Pires.
(9) Acórdão da Relação do Porto, de 10-07-2013, processo 1357/12.6TBMAI-A.P1, relatado pelo Desemb. Fonte Ramos.
(10) Acórdão da Relação de Guimarães, de 06-02-2014, processo nº 2847/05.2TBFAF-A.G1, relatado pela Desemb. Conceição Bucho.
(11) Acórdão da Relação de Guimarães, de 16-01-2014, relatado pela Desemb. Maria da Purificação Carvalho.