Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
24/21.4T8GMR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA DO ARRENDATÁRIO
ARRENDAMENTO COMERCIAL
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário comercial de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal na venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.
2 – Tal interpretação não viola os princípios constitucionais da igualdade e da segurança jurídica.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. M. C. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra M. F. e M. R. e marido, T. J., deduzindo os seguintes pedidos:

«a) Seja reconhecido ao Autor o seu direito de preferir na venda efetuada pela 1ª Ré aos 2os Réus do prédio urbano sito na Avenida ..., n.º …, freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, melhor identificado no artigo 1.º da P.I.,
b) Seja declarado que o Autor é titular do direito de propriedade sobre o identificado prédio, pelo valor pelo qual foi alienado aos 2os Réus, ordenando-se o registo da aquisição a favor do Autor;
c) Que seja ordenado o cancelamento de todos e quaisquer registos que os 2os Réus compradores, hajam feito a seu favor em consequência da compra do supra referido prédio, designadamente o constante da inscrição AP. 1103 de 2020/08/04 (cfr. doc. n.º 02) e de outras que estes venham a fazer».
Para fundamentar a sua pretensão, alega que em 01.05.1980 celebrou contrato de arrendamento, para fins não habitacionais, do rés-do-chão daquele prédio, onde explora uma loja de venda de vestuário e acessórios, sendo o único arrendatário do imóvel, e que a 1ª Ré vendeu aos 2ºs Réus a propriedade do prédio, sem que tenha sido dada oportunidade ao Autor de exercer o direito legal de preferência de que se arroga titular.
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Os 2ºs Réus contestaram, alegando que foi dado de arrendamento ao Autor apenas “uma divisão do rés-do-chão do prédio”, destinada a comércio, a qual está permanentemente fechada há vários anos, e que ao Autor não assiste o direito legal de preferência na alienação da totalidade do prédio.
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1.2. Por se entender que o estado dos autos permitia o conhecimento antecipado do mérito da causa, foram as partes notificadas para exercer a faculdade de se pronunciarem sobre essa matéria, tendo o Autor manifestado o entendimento de que se mostra consagrado o direito legal de preferência a favor do arrendatário comercial de parte de um prédio não sujeito a propriedade horizontal.
Seguidamente, foi proferida a decisão recorrida – saneador-sentença –, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu os Réus do pedido.
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação do saneador-sentença, formulando as seguintes conclusões:

«I. Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o recorrente conformar-se com a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu que o Autor, enquanto arrendatário de parte não autónoma de um prédio não constituído em propriedade horizontal não goza de direito de preferência na alienação da totalidade do prédio.
II. Salvo erudito entendimento em contrário, o aresto decisório do Tribunal a quo patenteia uma incorreta aplicação e interpretação do Direito.
III. Dos factos, importa reter, que em 1 de Maio de 1980, o Autor celebrou contrato de arrendamento, para fins não habitacionais, do rés do chão do prédio urbano sito na Avenida ..., n.º …, freguesia de ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o n.º .../20080414 e inscrito na matriz predial urbana da citada freguesia sob o artigo ....
IV. Contrato de arrendamento que dura, ininterruptamente, há mais de 40 (quarenta) anos, no rés do chão dado de arrendamento, com utilização independente, onde o Recorrente exerceu, como continua a exercer, a sua atividade de empresário em nome individual, explorando uma loja de venda de vestuário e acessórios.
V. Sendo o único arrendatário daquele imóvel, pois o primeiro andar está desabitado desde a morte do primitivo senhorio, há mais de oito anos!
VI. Acontece que, no dia 4 de agosto 2020, por escritura pública de compra e venda, a senhoria/ 1ª Ré, vendeu o imóvel aos 2os Réus, sem dar a oportunidade ao Recorrente, na qualidade de arrendatário, de exercer o seu direito legal de preferência.
VII. A 1ª Ré bem sabia que assistia direito de preferência ao arrendatário na venda do seu imóvel a terceiros e sabia, também, que o recorrente pretendia adquirir aquele prédio para nele investir e melhorar o seu negócio, pois este já lhe tinha informado disso pessoalmente e informado o agente imobiliário encarregue da venda, com quem, aliás, negociou o preço da aquisição do imóvel.
VIII. Dispõe o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a) do CC que “1 - O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;”
IX. Porém, a interpretação desta norma tem originado diferentes entendimentos jurisprudenciais e doutrinais. E se é consabido que num prédio em propriedade horizontal, o arrendatário apenas tem direito de preferência na alienação da fração autónoma por si arrendada e não na alienação de outras frações autónomas do mesmo prédio pertencentes ao senhorio; o problema é bem diferente quando não existe autonomização jurídica do local arrendado, dado não haver propriedade horizontal, aqui há quem entenda que o arrendatário tem direito a preferir na venda da totalidade do imóvel, outros entendem que não lhe assiste qualquer direito de preferência. X. O Autor, pretende exercer o seu direito de preferência em relação à alienação da totalidade do prédio alienado!
XI. Refere o Tribunal a quo que no artigo 1091.º do CC o legislador deixou de fazer referência a “prédio urbano” e a “fração autónoma”, substituindo-a pela expressão “local arrendado”, e que isso é demostrativo da vontade do legislador limitar a preferência do arrendatário ao local contratualmente definido. Porém, tal fundamento não merece acolhimento!
XII. Desde logo porque nem no preâmbulo do Decreto-lei, nem da análise dos trabalhos preparatórios decorre ter o legislador tido a intenção de afastar o direito de preferência do locatário na compra e venda de todo o imóvel. Assim, a expressão “local arrendado” não é nem pode ser entendida como sinónimo, apenas, de andar arrendado mas de todo o imóvel onde o arrendamento se situa. Se o legislador tivesse a intenção de restringir a preferência aos casos de compra e venda de prédio constituído em propriedade horizontal devia tê-lo escrito de forma clara e específica, por isso, não o tendo feito não pode a interpretação restringir com base em expressões de alcance dúbio (favorabilia amplianda, odiosa restringenda).
XIII. Seguindo o entendimento do Recorrente, vejamos os acórdãos: a. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-06-2015, processo n.º 1275/12.8TBCBR.C1, (disponível para consulta em www.dgsi.pt), que decidiu “II – O arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no artº 1091º nº1 al.a) do CC, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do prédio.”
b. E ainda, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-12-2017, processo n.º 1130/15.0T8VNF-F.G1, (disponível para consulta em www.dgsi.pt) o qual decidiu: “O direito de preferência do arrendatário ou incide sobre a totalidade do prédio ou, estando este sujeito ao regime de propriedade horizontal, sobre a respectiva fracção ou fracções.”
XIV. Seguindo o mesmo entendimento, JORGE HENRIQUE FURTADO concluiu, em situações como a do caso concreto, que a preferência caberá, indistintamente, a cada um dos arrendatários, não apenas relativamente à sua unidade locada, embora a lei a reporte expressamente ao “local arrendado”, mas a todo o prédio (Cfr. Jorge Henrique Da Cruz Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Vol. II, 5.ª Ed. atual., Almedina, 2011, pp. 816-819)
XV. Assim como outros Autores, como LUÍS MIGUEL MONTEIRO que defende que o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal pode exercer o seu direito de preferência em relação ao prédio na sua totalidade uma vez que o argumento literal não justifica a posição defendida pelo Tribunal a quo (cfr. Luís Miguel Monteiro, “Direitos e Obrigações Legais de Preferência no Novo Regime do Arrendamento Urbano (RAU)”, in Revista da Associação Académica da Faculdade de Lisboa, Lisboa, AAFDL, p. 51.)
XVI. E seguindo o mesmo entendimento, os Professores PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, asseveram que «de a alienação projetada ou realizada se referir à totalidade do imóvel, não subordinado ao regime da propriedade horizontal, a preferência competirá a todos os coarrendatários das partes do mesmo imóvel, cujo contrato perdure há mais de um ano». Portanto, a preferência, a ser exercida pelo arrendatário, não incidia sobre a parte do prédio que era objeto de locação - na medida em que não foi juridicamente autonomizado -, mas sobre a totalidade do prédio» (cfr. Pires De Lima E Antunes Varela, em “Código Civil Anotado”, Volume II, 4ª ed., pág. 568).
XVII. E ainda, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, PEDRO ROMANO MARTINEZ e JORGE ARAGÃO SEIA defendem que o artigo 47.º n.º1 do RAU e o artigo 1091.º do CC não quiseram modificar, quanto ao objeto material da preferência, o regime do direito anterior, devendo, por conseguinte, entender-se que o arrendatário de parte de um prédio urbano, tem o direito de preferir na venda de todo o prédio, sempre que este se não encontre subordinado ao regime de propriedade horizontal (cfr. José De Oliveira Ascensão, em “Direito de Preferência do Arrendatário”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. III – Direito do Arrendamento Urbano, Coimbra, Almedina, 2002, p. 255; Pedro Romano Martinez, em “Direito das Obrigações”, pág. 266 e Jorge Aragão Seia, em “Arrendamento Urbano”, 7ª ed., p. 327).
XVIII. Existe, pois, uma corrente largamente maioritária na jurisprudência e na doutrina que continua a defender a tese expansionista e a seguir o entendimento anterior de que o arrendatário de apenas parte de prédio urbano indiviso tem direito de preferência na venda da totalidade do prédio urbano, alicerçada numa teleologia ampla do direito de preferência a favor dos arrendatários.
XIX. Doutrina maioritária que o recorrente defende aplicar-se a si, por ser aquela que permite assegurar a estabilidade do seu negócio e a possibilidade de facilitar o acesso à propriedade do prédio por parte do arrendatário que vem beneficiando do seu gozo, fatores estes que estiveram na base da consagração legal do direito de preferência do arrendatário habitacional e que são extensíveis ao arrendatário para fins não habitacionais que usufrui daquele imóvel e que nele exerce a sua vida profissional, in casu, há mais de quarenta anos, sendo o único arrendatário do mesmo há mais de oito anos (estando o primeiro andar devoluto).
XX. Ademais, a existência de um direito de preferência na aquisição de todo o prédio não onera mais gravemente a situação do senhorio uma vez que o interesse do proprietário é alienar o prédio em igualdade de condições ajustadas com terceiro e o interesse do arrendatário é adquirir a propriedade do local arrendado, com prioridade sobre terceiro! O obrigado tem inteira liberdade para dispor da coisa objeto de preferência, nos termos que bem entender, sobretudo quanto ao preço e às condições de pagamento e, à partida, é-lhe indiferente, em termos económicos, vender a coisa ao preferente ou a qualquer terceiro.
XXI. Seguindo o entendimento do Recorrente, vejamos o acórdão n.º 225/2000, do Tribunal Constitucional, no qual foi decidido que o arrendatário de prédio não constituído em propriedade horizontal tem direito de preferência sobre a totalidade de prédio indiviso e que tal direito de preferência não é inconstitucional porque não põe em causa a liberdade de alienação do senhorio.
XXII. E ainda, vejamos o corpo do próprio Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 16.06, que refere, de forma muito clara, no seu parágrafo 11., que: “Destes acórdãos ressai a ideia de "neutralidade da Constituição" quanto à exigência da coincidência entre os limites do objeto do arrendamento e os limites do objeto em relação ao qual se exerce a preferência. Não existe uma imposição constitucional da teoria expansionista ou da teoria do local, gozando assim o legislador de ampla margem de conformação do direito à habitação e do conteúdo e limites do direito de propriedade. E daí que a opção por se estender ou não o direito de preferência do arrendatário para além da dimensão física do local arrendado dependa do equilíbrio de interesses que o legislador pretenda salvaguardar com a atribuição do direito de preferência.”
XXIII. Pretende o recorrente preferir na venda realizada pela 1ª Ré aos 2os Réus sendo-lhe conferida a faculdade de, em igualdade e condições se substituir a qualquer adquirente que nenhuma relação tem com o imóvel, muito menos o seu gozo. Sendo evidente que estando o resto do prédio devoluto e sem qualquer uso ou fruição, mais anómala é a decisão a quo, porquanto não conflitua o exercício do direito de preferência com outros, sendo evidente que, para o ora Recorrente poder ter o seu estabelecimento e a sua habitação no mesmo local é importante, deve ser tido em conta e protegido. (neste sentido, cfr. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, “A transmissão da posição de arrendatário por efeito do trespasse do estabelecimento comercial”, in Lusíada… cit., p. 253.).
XXIV. Atento todo o exposto, ao recorrente deve ser reconhecido o seu direito de preferir na venda efetuada pela 1ª Ré aos 2os Réus do prédio urbano sito na Avenida ..., n.º …, freguesia de ..., concelho de ..., melhor identificado nos autos.
XXV. Caso assim se não entenda estamos perante uma grave violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.º. 13.º, n.º 1, da CRP, por tratar de forma diferente o arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica e o arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada, mas cujo resto do imóvel está devoluto e sem qualquer uso ou fruição há anos, sendo evidente que os arrendatários não têm qualquer influência na constituição da propriedade horizontal por parte do senhorio.
XXVI. Não é lógico e fere o sentido de justiça do cidadão comum, uns tenham direito a adquirir o imóvel que gozam e outros não. Nestes casos estar-se-á, aliás, a beneficiar o senhorio que não constitui propriedade horizontal do seu prédio que assim deixa o arrendatário desprotegido.
XXVII. Assim como também se verifica a violação do princípio constitucional ínsito no art.º. 65.° da CRP, de acesso à habitação própria e também viola o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do estado de direito democrático consagrado no art.º. 20.º da CRP; porquanto o recorrente tinha expectativas dignas de tutela do seu direito de preferência consagrado no artigo 1091.º, n.º 1, do CC.
XXVIII. Pois, a finalidade da preferência é o acesso à habitação própria ou ao espaço próprio para o exercício da atividade comercial e só assim é que se proporciona aos arrendatários, a aquisição da sua propriedade plena, prevenindo-se potenciais conflitos entre senhorio e inquilino.
XXIX. Pelo vindo de expor, a sentença recorrida violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: artigos 13.º, 20.º e 65.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.
XXX. Nessa conformidade, o Tribunal ad quem, revogando o aresto recorrido e subsituando-o por decisão que julgue procedente, por provada, a ação, e, consequentemente, condene a Ré nos pedidos formulados pelo Autor fará inteira e sã justiça».
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Os Réus não apresentaram contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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1.4. Questões a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, constituem questões a decidir:
i) Se o arrendatário comercial de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal é titular de direito legal de preferência na alienação da totalidade do prédio – conclusões I a XXIV;
ii) Caso se responda negativamente à primeira questão, se esse entendimento é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nº 1, da CRP, por tratar de forma diferente o arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica e o arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada, assim como por violação dos princípios da segurança e do «acesso
à habitação própria
» – conclusões XXV a XXVIII.
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II – Fundamentação

2.1. Fundamentos de facto

Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
a) Por escritura pública de compra e venda, celebrada no dia 04.08.2020, no Cartório Notarial sito na rua …, edifício …, lojas .. e .., em Vila Nova de Famalicão, A. G., na qualidade de procurador de M. F., declarou vender, em nome da sua representada, a T. J. e M. R., pelo preço já recebido de € 77.500,00 (setenta e sete mil e quinhentos euros), o prédio urbano, composto de casa de habitação e comércio, de rés-do-chão e andar, com quintal, sito na avenida ..., n.º …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... – cfr. certidão de fls. 18/verso a 20.
b) Por escrito de 01.05.1980, A. M. deu de arrendamento a M. C., pelo prazo de 1 (um) ano, a começar no dia 01.05.1980, pela renda anual de ESC. 36.000$00, prorrogado por períodos sucessivos de 1 (um) ano, uma divisão do rés-do-chão do prédio sito no lugar de …, freguesia de ..., destinando-se essa divisão a comércio – cfr. documento de fls. 12/verso a 13.
c) A aquisição do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20080414 encontra-se inscrita a favor de M. R., casada com T. J. – cfr. certidão da descrição predial de fls. 34.
d) O prédio descrito sob o .../20080414 corresponde a uma casa de habitação e de comércio, de rés-do-chão e andar, com quintal – certidão da descrição predial de fls. 34.
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Do direito legal de preferência

Tendo o Autor intentado esta acção para exercer o direito a preferir na venda do prédio urbano supra identificado (al. a), entendeu-se na sentença que o arrendatário de parte não autónoma de um prédio não constituído em propriedade horizontal não goza direito de preferência na alienação da totalidade do prédio.
O Recorrente sustenta precisamente o inverso: enquanto arrendatário de uma parte juridicamente não autónoma, assiste-lhe o direito legal de preferência que pretendeu exercer através da presente ação.

Os elementos factuais relevantes para a apreciação da questão a decidir são essencialmente os seguintes:
i) Desde 01.05.1980, o Autor é arrendatário comercial de parte de um prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal;
ii) Em 04.08.2020, o prédio urbano foi vendido pela 1ª Ré aos 2ºs Réus.

A base da discórdia assenta no facto de o objecto da venda corresponder a um prédio não submetido a propriedade horizontal e de ao local arrendado não corresponder qualquer fracção autónoma, propondo-se o Autor exercer o direito de preferência relativamente a todo o prédio.

Em conformidade com o disposto no artigo 12º, nº 2, 2ª parte, do Código Civil (CCiv.), a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de transmissão, por o direito legal de preferência configurar uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que apenas se transforma em direito potestativo quando o senhorio não lhe ofereceu a preferência.
À data da celebração do contrato de compra e venda entre a 1ª Ré e os 2ºs Réus encontrava-se em vigor o artigo 1091º do CCiv., na redacção introduzida pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, que é, por isso, a lei aplicável. Será à luz deste normativo que será apreciado se assiste ao Autor, como defendido na apelação, o direito de preferir, na qualidade de arrendatário comercial, na venda do prédio.

Dispõe o aludido preceito:
«1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053º.
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535º.
4 - A comunicação prevista no nº 1 do artigo 416º é expedida por carta registada com aviso de recepção, sendo o prazo de resposta de 30 dias a contar da data da recepção.
5 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, sem prejuízo das especificidades, em caso de arrendamento para fins habitacionais, previstas nos números seguintes.
6 - No caso de venda de coisa juntamente com outras, nos termos do artigo 417º, o obrigado indica na comunicação o preço que é atribuído ao locado bem como os demais valores atribuídos aos imóveis vendidos em conjunto.
7 - Quando seja aplicável o disposto na parte final do nº 1 do artigo 417º, a comunicação referida no número anterior deve incluir a demonstração da existência de prejuízo apreciável, não podendo ser invocada a mera contratualização da não redução do negócio como fundamento para esse prejuízo.
8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fracção autónoma, a exercer nas seguintes condições:
a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão;
b) A comunicação prevista no nº 1 do artigo 416º deve indicar os valores referidos na alínea anterior;
c) A aquisição pelo preferente é efectuada com afectação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado.
9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade».

Em síntese, a Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, que deu nova redacção ao artigo 1091º, introduziu as seguintes alterações:
i) Reduziu a dois anos o período mínimo de duração do arrendamento, enquanto pressuposto temporal para adquirir a titularidade do direito de preferência (alínea a) do nº 1);
ii) Passou a ser exigida a forma escrita para a comunicação da preferência ao arrendatário (nºs 4 e 7);
iii) Alargou para 30 dias o prazo para a declaração de preferência pelo arrendatário (nº 4);
iv) Densificou o conteúdo da comunicação para preferência na venda de coisas conjuntamente com outras (nºs. 6 e 7);
v) Estendeu o objeto de preferência a prédios não constituídos em propriedade horizontal, mas somente em caso de arrendamento para fins habitacionais (nºs. 8 e 9).
Porém, importa reter que a norma constante do nº 8 do artigo 1091º do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/2020, de 16 de Junho, publicado no Diário da República nº 183/2020, Série I, de 18.09.2020, com a consequência prevista no artigo 282º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP). Deste modo, produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, mas não determina a repristinação de qualquer norma, pois a norma declarada inconstitucional era inovadora, não tendo paralelo na anterior redacção do artigo 1091º do CCiv., dada pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro. Foi o mencionado nº 8 que consagrou, pela primeira vez, o direito de preferência do arrendatário habitacional de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, quanto à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão.
Além disso, conforme resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º do CCiv., os nºs 6 a 9 deste preceito legal apenas são aplicáveis ao arrendamento para fins habitacionais, que não é a situação dos autos, que respeita a um arrendamento comercial.
No recurso, conforme se vê nas suas conclusões VIII e XXIX, a norma fundamental invocada pelo Recorrente é a do artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv..
Como a resolução do litígio está essencialmente dependente da interpretação que se faça daquela norma, na redacção aplicável, importa, em conformidade com o disposto no artigo 9° do CCiv., reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Nesta tarefa interpretativa, é indispensável abordar os antecedentes históricos do direito legal de preferência do arrendatário consagrado no artigo 1091° do CCiv., a fim de delinear os contornos da questão a decidir.
No que respeita ao arrendamento urbano, o direito de preferência do arrendatário na venda do prédio arrendado foi consagrado pela primeira vez na Lei nº 1662, de 04.09.1924, mas apenas no arrendamento para comércio e indústria (v. artigo 11º).
Posteriormente, a Lei nº 2030, de 22.06.1948, estendeu a preferência ao titular de arrendamento para o exercício de profissão liberal (artigo 66º). Esse regime transitou para os artigos 1117º (2) e 1119º do CCiv., que manteve o direito de preferência do arrendatário urbano em termos semelhantes aos previstos naquela Lei.
A Lei nº 63/77, de 25 de Agosto, reconheceu o direito de preferência ao arrendatário para habitação, na compra e venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado (artigo 1º (3)) e instituiu o direito de preferência na alienação de fracções autónomas de prédios constituídos em propriedade horizontal. Embora sem relevância para o caso dos autos, o artigo 6º do Decreto-Lei nº 328/81, de 4 de Dezembro, dispondo para o arrendamento habitacional, alargou o direito de preferência a outras pessoas, regime que transitou para o artigo 30º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro.
No apontado quadro normativo, era predominante, tanto na doutrina como na jurisprudência, o entendimento de que, em prédios não submetidos ao regime de propriedade horizontal, o direito de preferência estabelecido a favor dos arrendatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, podia ser exercido em relação à totalidade do prédio vendido onde se situava o local arrendado; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fracção respectiva (assim o refere o acórdão do STJ, de 21.01.2016, relatado por Tavares de Paiva, proferido no proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1, no qual é indicada a jurisprudência que concretiza as correntes então existentes (4)).

No Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 (5), de 15 de Outubro, o instituto do direito de preferência foi regulado no artigo 47º, com o seguinte teor:

«1 - O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
2 - Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante».

O artigo 49º do mencionado diploma mandava aplicar, «com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º do Código Civil».
A norma do artigo nº 1 do artigo 47º do RAU suscitou várias dúvidas, designadamente quanto a saber se a expressão “local arrendado” fazia ou não supor a autonomização jurídica deste e se, não estando constituída a propriedade horizontal sobre o prédio, o direito de preferência do arrendatário podia ser exercido em caso de venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.
No âmbito deste regime legal, duas teorias foram defendidas (6): a teoria do local postulava que o arrendatário apenas poderia exercer o seu direito de preferência em relação ao local arrendando, o que pressupõe a sua autonomização, caso contrário, não poderia ser transacionado; por sua vez, a teoria expansionista sustentava que, incidindo a transacção sobre a totalidade de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência caberia a todos o co-arrendatários que preenchessem o requisito temporal (ser arrendatário há mais de um ano), mas sendo só um seria apenas exercido por este em relação à globalidade do prédio.
Apesar de ser discutível a interpretação a extrair das mencionadas normas, continuou a ser prevalecente o entendimento de que, na alienação da totalidade do prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal, era admissível o exercício da preferência, em relação a todo o prédio, pelo arrendatário de apenas parte do mesmo, e que sendo vários os arrendatários competiria ao conjunto dos co-arrendatários de partes do mesmo imóvel, abrindo-se licitação entre eles.
Portanto, era entendimento maioritário que, não estando o prédio onde se insere o locado constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência incidia sobre a totalidade do prédio (7).

O RAU foi substituído pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que tornou a colocar o regime substantivo do arrendamento urbano no Código Civil, prevendo o direito de preferência do arrendatário urbano no artigo 1091º, mas com redacção diferente do seu antecessor:

«1. O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053º.
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535º.
4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º».

O transcrito preceito deixou de se referir ao sujeito da preferência como o arrendatário de prédio ou fracção autónoma, passando apenas a referir a venda ou dação em cumprimento do «local arrendado»; elevou de um para três anos o prazo mínimo de permanência como arrendatário; passou a abranger os arrendamentos com prazo certo; e não acolheu a solução, que anteriormente se encontrava no nº 2 do artigo 47º do RAU, de mandar abrir licitação na hipótese de serem dois ou mais preferentes.
Em virtude dessas alterações, passou então a ser prevalecente o entendimento de que o arrendatário de parte não autónoma de prédio urbano não sujeito ao regime de propriedade horizontal não dispõe de direito de preferência na alienação da totalidade do prédio.
Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.01.2016 - proc. n° 9065/12.1TCLRS.L1.S1 (relator Tavares de Paiva), de 24.05.18 - proc. 1832/15.0T8GFMR.G1.S2 (Maria do Rosário Morgado), de 18.10.2018 - proc. 3131/16.1T8LSB.L1.S1 (Abrantes Geraldes), de 11.07.2019 - proc. 3818/17.1T8VNG.G1.S2 (Tomé Gomes), de 26.02.2019 - proc. 9/13.4TBFAF.G1.S1 (Graça Amaral), de 07.11.2019 – proc. 14276/18.3T8PRT.P1.S2 (Maria do Rosário Morgado); da Relação de Lisboa, de 08.02.2018 - proc. 3131/16.1T8LSB.L1 (Jorge Leal), de 26.03.2015 - proc. 9065/12.1TCLRS.L1 (Tomé Ramião), de 15.11.2018 - proc. 13101.17.7T8LSB.L1 (Cristina Neves), de 18.06.2020 - proc. 13412/15.6T8LSB.L2-8 (Teresa Prazeres Pais); da Relação de Guimarães, de 19.10.2017 - proc. 1832/15.0T8GMR.G1 (Maria João Matos), de 26.11.2020 - proc. 8/18.0T8BCL.G1 (Paulo Reis); da Relação do Porto, de 12.04.2021 - proc. 8950/20.1T8PRT.P1 (Pedro Damião e Cunha), de 10.12.2019 - proc. 2311/18.0T8PNF.P1 (Paulo Dias da Silva), de 21.03.2019 - proc. 14276/18.3T8PRT.P1 (Francisca Mota Vieira). Na doutrina defendem este entendimento, entre outros, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 3ª edição, Quid Juris Sociedade Editora, 2009, págs. 430 e 432, em anotação ao artigo 1091º do CCiv., José Pedro Carneiro Cadete, Da preferência do arrendatário habitacional, 2011, págs. 7-8, Menezes Cordeiro, Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, pág. 262 (8), Januário Gomes, Vida Judiciária, nº 108, 2007, pág. 9 (v., ainda, a sua posição em Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, Coimbra, pág. 204), Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural - Quadro Normativo e Natureza Jurídica, Almedina, pág. 163 (9).

Entre vários outros argumentos, a corrente agora dominante sustenta, em apertada síntese:

- A preferência consagrada no artigo 1091º do CCiv., por ser legal, reveste-se de natureza excepcional e injuntiva, obrigando a confiná-la imperativamente aos casos expressamente contemplados na lei. Existe uma tendencial coincidência entre o objecto do direito de preferência com o do direito que a justifica. Por isso, o arrendatário de locado que apenas ocupa parte do imóvel não constituído em propriedade horizontal não tem preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio, já que tal direito não cabe na letra da alínea a) do nº 1 do artigo 1091º do CCiv., a qual se refere unicamente ao “local arrendado”, nem satisfaz o apontado princípio da coincidência.
- O artigo 1091° do CCiv., então em vigor, face ao anterior artigo 47° do RAU, deixou de fazer referência a «prédio urbano» e a «fracção autónoma» (focando-se agora apenas no «local arrendado») (10),sendo ainda eliminada qualquer referência a licitação entre os diversos arrendatários interessados em exercer concorrentes direitos de preferência. Nesta conformidade, conhecendo o legislador a controvérsia gerada pelo artigo 47° do RAU e devendo presumir-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (cf. art. 9° do CCiv.), ao remover - voluntária e conscientemente - do artigo 1091, n° 1, al. a), do CCiv. as expressões que permitiam justificar, segundo alguns, a possibilidade do exercício da preferência sobre todo o imóvel, deixou bem clara a sua intenção de restringir a preferência do arrendatário na venda ou dação do local objecto do contrato de arrendamento («local arrendado») aos casos em que o mesmo seja autonomamente transacionável, o que implica necessariamente a prévia submissão do prédio ao regime da propriedade horizontal (11).
- O interesse protegido pelo direito de preferência do arrendatário é o acesso à habitação ou instalações próprias, permitindo-lhe a continuação da estabilidade jurídica ao dar como findo o arrendamento. Admitir a preferência para além do local efetivamente arrendado, traduzir-se-ia numa vantagem dada ao arrendatário que transcende o fim visado pela lei então em vigor.
Sublinhe-se que o acórdão do Tribunal Constitucional nº 583/2016, relatado por Teles Pereira, não julgou inconstitucional a norma extraída da alínea a) do nº 1 do artigo 1091º do CCiv., na redação introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio.
Feito este excurso, enfatiza-se que, conforme resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º do CCiv., na sua actual redacção, os nºs 6 a 9 deste preceito legal apenas são aplicáveis ao arrendamento para fins habitacionais, que não é a situação dos autos, que respeita a um arrendamento comercial.
Por outro lado, os nºs 1 a 3 mantêm a redacção anterior e o nº 5 corresponde, na sua primeira parte, ao anterior nº 4, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 6/2006, de 20 de Fevereiro, apenas se ressalvando a menção às especificidades previstas nos números seguintes em caso de arrendamento habitacional.
Somente o actual nº 4 é inovador, mas incide apenas sobre a forma como se dá conhecimento ao preferente da venda da coisa e o prazo de resposta deste, matéria que nenhum relevo tem para o caso dos autos.
Portanto, das alterações produzidas no artigo 1091º do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, não se retira qualquer argumento novo abonatório para a tese defendida pelo Recorrente, pelo que a questão suscitada deve merecer a mesma resposta que já era dada no âmbito da anterior redacção do aludido preceito legal (12).

Sendo assim, analisada a argumentação do Recorrente, concluímos que a resposta à primeira questão suscitada no recurso passa pela confirmação da sentença recorrida. Também nós entendemos que, em face do artigo 1091º do CCiv., o arrendatário comercial de uma parte não autónoma de prédio urbano não goza do direito legal de preferência na venda de todo o prédio (fora do âmbito de aplicação do artigo 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14 de Junho).

Em primeiro lugar, na interpretação da norma nem sequer o elemento literal é favorável à tese de que o arrendatário de parte do prédio urbano não constituído em propriedade horizontal goza de direito de preferência na alienação do prédio inteiro.
O que a norma consagra, expressa e literalmente, é o “direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado”. O direito de preferência tem inequivocamente por referência o «local arrendado» e não qualquer outra realidade.
Portanto, o objecto da preferência é o «local arrendado» e não o prédio onde se insere o arrendado.
Mais, a expressão “local arrendado” não é sinónimo de “todo o imóvel onde o arrendado se situa”. A parte não se confunde com o todo. Nem a fracção autónoma, enquanto local arrendado, corresponde ao prédio onde a mesma se insere, nem a parte especificada de um prédio se confunde com todo o prédio.
Também não constitui uma expressão de alcance dúbio ou susceptível de polissemia: local arrendado é o espaço físico, elemento físico e espacial, que foi dado de arrendamento pelo senhorio ao locatário.

Em segundo lugar, para efeitos de fixação do sentido e alcance da lei, não é compatível com o critério de interpretação previsto no artigo 9º, nº 3, do CCiv. considerar que o legislador utilizou a mesma expressão, no âmbito do mesmo capítulo daquele diploma, com significados diferentes. O que se deve presumir é precisamente que o legislador quis utilizar a expressão “local arrendado” de forma uniforme e com o apontado sentido literal e gramatical. Esse sentido é bem nítido no artigo 1067º do CCiv., na parte em que, a propósito do “fim do contrato”, estabeleceu, no seu nº 2, que «quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões». Deixou aí bem claro que o “local arrendado” é o objeto físico do contrato de arrendamento.

Em terceiro lugar, sendo o apontado sentido inequívoco, há que relembrar que o artigo 1091º, nº 1, é uma norma de natureza excepcional, pelo que não comporta aplicação analógica (artigo 11º do CCiv.). Portanto, mesmo que se considerasse que havia uma lacuna e que procediam as razões justificativas da regulamentação do caso análogo (v. art. 10º, nºs 1 e 2, do CCiv.), não se poderia recorrer à analogia.
No nosso entender, a letra da norma – a al. c) do nº 1 do artigo 1091º, cuja interpretação o Recorrente questiona – não contempla a situação do arrendatário de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal e, como desenvolveremos mais à frente, tal hipótese não está compreendida no espírito da lei, como facilmente se depreende do confronto do nº 1 com os nºs 8 e 9 do artigo 1091º do CCiv.. O legislador não contemplou a situação no nº 1 do artigo 1091º por ter optado conscientemente por aí não a formular; o que pretendeu criar, inovando, consta dos nºs 6 a 9 (além da inovação plasmada no nº 4, que respeita exclusivamente a matéria procedimental).
A criação de um direito legal de preferência restringe o comércio jurídico e a liberdade de contratar, valores fundamentais do nosso ordenamento. Facultando a aquisição de uma propriedade, mesmo contra a vontade do próprio titular, o instituto assume natureza excepcional.
Como melhor se refere no acórdão do STJ, de 18.10.2018, proferido no processo 3131/16.1T8LSB.L1.S1, relatado por Abrantes Geraldes, «os preceitos que consagram direitos de preferência legal, atento o seu caráter excecional, não consentem o seu alargamento a situações que dela não resultem claramente, tanto mais que se trata de direito real de aquisição, com eficácia erga omnes e que nem sequer está sujeito a registo.
O facto de o arrendamento urbano, designadamente o arrendamento para o exercício de comércio ou de profissão liberal, ter vindo a perder paulatinamente os aspetos vinculísticos que o caracterizaram durante as precedentes décadas, com os efeitos que se mostraram bem visíveis no abandono do parque imobiliário e no financiamento de atividades privadas à custa das restrições dos direitos dos proprietários, é coerente com a restrição ao direito de preferência em casos, como o presente, em que o contrato de arrendamento apenas incide sobre uma parte não autónoma de prédio não constituído no regime de propriedade horizontal.
Ainda que o direito de preferência se exerça tanto por tanto relativamente às condições em que o proprietário se propõe vender a terceiro o prédio, a proliferação de direitos legais de preferência como aquele que é reivindicado pelo A. não deixa de perturbar o livre funcionamento do mercado.
Ora, não é compatível com aquela evolução legislativa que vem na senda da maior liberalização do mercado de arrendamento a manutenção de vínculos de natureza real como o direito legal de preferência em tais situações que, levadas ao extremo, levariam a que, por exemplo, o arrendatário de uma garagem ou até de um espaço de parqueamento de veículo (tipo box) num prédio urbano não constituído em propriedade horizontal pudesse, por esse simples facto, interferir na liberdade de comercialização do direito de propriedade de todo o prédio.
E se porventura não devem ser merecedores de proteção especial os objetivos de natureza especulativa que muitas vezes estão subjacentes a este tipo de negócios (tendo, ainda assim, como contributo positivo a recuperação de imóveis degradados que, na sequência da Lei nº 6/06, se mostra bem visível nos centros urbanos das principais cidades), também devem ser desconsiderados com o mesmo ênfase objetivos de natureza semelhante que estão frequentemente associados a situações em que arrendatários de prédios urbanos no sentido se apresentam a exercer a preferência como passo necessário para a posterior revenda a terceiros, como as circunstâncias do caso bem o demonstram».

Em quarto lugar, os elementos introduzidos no artigo 1091º do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, permitem a conclusão de que o arrendatário comercial de uma parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal não goza de preferência na alienação do prédio como um todo.
Desde logo, se na alienação do prédio urbano indiviso todo e qualquer arrendatário de parte deste pudesse exercer a preferência decorrente do disposto na alínea a) do nº 1 do dito artigo, seja relativamente a todo o prédio ou apenas quanto à parte que lhe está arrendada, o estabelecido nos nºs 8 e 9 seria tecnicamente desadequado e substancialmente incompreensível. Dificilmente se pode entender que a lei permite a aquisição de todo o prédio pelo arrendatário urbano não habitacional de apenas uma sua parte, quando apenas admite, como inovação (v. o processo legislativo, incluindo o veto presidencial), a aquisição de uma quota-parte ou proporção do todo pelos arrendatários habitacionais de uma parte não autónoma, deixando por regular a situação dos arrendamentos para outros fins de partes não autónomas. Para quê estabelecer um regime restritivo e burocrático para os arrendatários habitacionais, cujo objectivo declarado da lei foi protegê-los, e deixar para os arrendatários não habitacionais, devido à ausência de regulação, um direito mais amplo do que o daqueles? Será que faz sentido obrigar uns a entrar pela janela e permitir aos demais entrar pela porta?
Depois, o legislador, quanto ao âmbito e termos do exercício do direito de preferência, pretendeu equiparar o arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal ao arrendatário de fracção autónoma. É verdade que esse propósito acabou por ser supervenientemente inutilizado pela declaração de inconstitucionalidade do nº 8 do artigo 1091º, mas não deixam de ser bem explicitas a intenção do legislador e as razões que lhe subjazem.
E a realidade é que nunca na jurisprudência (13) se defendeu, no âmbito do artigo 1091º do CCiv., desde que foi reposto pela Lei nº 6/2006, de 20 de Fevereiro, que o arrendatário de uma fracção autónoma pode exercer o seu direito de preferência relativamente a todo o prédio, adquirindo todas ou algumas das fracções autónomas que o integram, para além da que lhe está arrendada.
Ora, tendo o legislador sentido necessidade de proceder à aludida equiparação, isso só pode querer significar que, desde que o regime do arrendamento urbano foi reposto no Código Civil, reconhecia que o arrendatário de parte de prédio indiviso não tinha direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio ou de uma parte alíquota deste, pois que uma parte especificada deste, por exemplo a correspondente ao local arrendado, não era susceptível de ser alienada e, consequentemente, não possibilitava o exercício de qualquer preferência.
Acresce que o nº 9, que subsiste por não se mostrar afectado pela referida declaração de inconstitucionalidade do nº 8, reconhece aos arrendatários do imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal o direito de preferência sobre a totalidade do imóvel, o qual, sendo exercido na venda do prédio, implica a aquisição do mesmo em compropriedade, na respectiva proporção.
O problema é que tal regime apenas é aplicável, tal como resulta expressamente do nº 5 do artigo 1091º, «em caso de arrendamento para fins habitacionais». Não só isso resulta expressamente da letra do preceito, como foi intenção do legislador proteger o direito à habitação. O âmbito de aplicação dos nºs 6 a 9 restringe-se aos arrendamentos habitacionais.
Portanto, o artigo 1091º do CCiv. não atribui ao arrendatário comercial de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência na alienação de todo o prédio, independentemente de saber se, no caso dos arrendamentos habitacionais, opera a aquisição apenas da sua quota-parte, em compropriedade, ou a totalidade do direito de propriedade se for apenas um deles a querer exercer a preferência ou só existir um arrendatário (questão interessante que não desenvolveremos por exorbitar do âmbito do presente recurso).
O legislador distinguiu entre os arrendamentos para fins habitacionais e os arrendamentos para outros fins, por entender que só aqueles são merecedores de tutela (14).

Em quinto lugar, em reforço argumentativo do atrás exposto, verifica-se que o artigo 7º, nº 3, da Lei nº 42/17, de 14 de Junho, veio estabelecer que «os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontrem instalados, nos termos da legislação em vigor».
O regime estabelecido neste diploma permite extrair duas ilações.
Por um lado, que havia a necessidade de assegurar uma tutela própria para os arrendamentos que apresentam as especificidades previstas na citada norma, diferenciando-a da tutela geral que é alcançada pelo regime do direito legal de preferência regulado no artigo 1091º do CCiv. (15). Como bem se refere no citado acórdão do STJ, de 18.10.2018, «com tal medida o legislador procurou prosseguir o objetivo de tutelar especificamente as chamadas “lojas históricas” que naturalmente, na maior parte dos casos, estão instaladas em edifícios situados nos grandes centros urbanos sobre os quais ainda não incide ou não pode incidir (por falta dos requisitos legais mínimos) o regime da propriedade horizontal».
Ora, se o legislador sentiu a necessidade de acautelar a situação dessas específicas lojas (além dos estabelecimentos, ainda beneficiam do regime as entidades arrendatárias reconhecidas como de interesse histórico e cultural ou social, o que alarga substancialmente o âmbito da norma), regra geral arrendamentos para fins de comércio ou indústria inseridos em prédios não constituídos em propriedade horizontal, então a conclusão lógica é que não estavam a coberto pelo direito de preferência consagrado no artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv.. De outro modo, não faria sentido estar a legislar relativamente a uma situação que já estava legalmente contemplada e prevenida.
Isto evidencia que antes da redacção dada ao artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não tinha direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada.
Por outro lado, se assim era na vigência da anterior redação do artigo 1091º, por maioria de razão o é, relativamente aos arrendamentos para fins diferentes da habitação, em face da actual redacção do aludido preceito.
Uma vez que a intervenção legislativa apenas inovou no que respeita aos arrendatários habitacionais de imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, reconhecendo-lhes o direito de preferência a exercer nos termos do nº 9 do artigo 1091º, e tendo já anteriormente acautelado o direito de preferência dos arrendatários «de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidade reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social local», naturalmente que isso permite concluir que ficaram, propositadamente, fora do âmbito daquela norma do Código Civil todos os demais arrendamentos de partes de prédio não constituído em propriedade horizontal.

Em sexto lugar, parecendo-nos evidente que a anterior redacção do artigo 1091º do CCiv., já consagrava o princípio da coincidência entre os limites do objecto do arrendamento e os limites do objecto em relação ao qual se exerce a preferência, que havia sido defendida por Oliveira Ascensão ainda no âmbito do RAU (16), a Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, ao dar nova redacção àquele preceito, não pretendeu propriamente afastar tal consagração no seu nº 1. Limitou-se a plasmar, no que respeita aos arrendamentos habitacionais (nºs 6 a 9), uma peculiar expressão daquele princípio, ao falar em aquisição de «quota-parte» e «na proporção», querendo com isso significar que balizava a aquisição em função da dimensão relativa do local arrendado.

Em suma: o arrendatário comercial de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal não assiste direito de preferência na venda do prédio, que apenas é reconhecido ao arrendatário de fracção autónoma ou da totalidade do prédio.
Como o prédio urbano dos autos não se encontra constituído em propriedade horizontal e o Autor apenas é arrendatário de uma parte desse edifício, não goza de direito de preferência na venda de todo o prédio.
Termos em que improcedem as conclusões.
**

2.2.2. Da inconstitucionalidade

Nas conclusões XXV a XXVIII, a Recorrente insurge-se contra a decisão recorrida, argumentando que «estamos perante uma grave violação do princípio constitucional da igualdade, consagrado no art.º. 13.º, n.º 1, da CRP, por tratar de forma diferente o arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica e o arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada», uma vez que o primeiro tem direito a adquirir a fracção autónoma e o segundo não tem direito a adquirir o prédio. Mais alega que «também se verifica a violação do princípio constitucional ínsito no art.º. 65.º da CRP, de acesso à habitação própria e também viola o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do estado de direito democrático consagrado no art.º. 20.º da CRP; porquanto o recorrente tinha expectativas dignas de tutela do seu direito de preferência consagrado no artigo 1091.º, n.º 1, do CC».
Vejamos, pois, se ocorre aquela violação dos apontados princípios constitucionais.

Iniciando a nossa análise pelo princípio que o Recorrente denomina «de acesso à habitação própria», cremos que só por lapso invocou a sua violação.
Isto porque o Recorrente é arrendatário comercial e, segundo o alegado no artigo 7º da petição inicial, explora no locado «uma loja de venda de vestuário e acessórios», realidade bem distinta de uma habitação.
Portanto, o arrendamento de que é titular não visa satisfazer as suas necessidades de habitação. Se tem arrendada para fins de exercício do comércio uma parte não autonomizada de um prédio urbano, obviamente que nenhumas «expectativas dignas de tutela» tinha de vir a habitar no locado ou na restante parte do prédio.
Além disso, em lado algum da petição alegou qualquer correlação entre o local arrendado e o «acesso à habitação própria». Não alegou, por exemplo, que não tem habitação própria e que precisa do local arrendado para nele habitar. Pelo contrário, alegou no artigo 16º «que o Autor há muito que pretendia adquirir aquele prédio para nele investir e melhorar o seu negócio» e no artigo 36º que estava em causa «a oportunidade de adquirir para si o imóvel para nele continuar a exercer a sua atividade comercial».
Nesta conformidade, nenhum substrato factual ou contratual tem a alegação do Recorrente, a qual só surge pela primeira vez no âmbito do recurso.

Também melhor sorte não merece a alegação de violação do princípio da segurança jurídica, enquanto realidade diferente do princípio da igualdade.
O Recorrente não suscita de forma adequada uma questão de constitucionalidade normativa com base no princípio da segurança jurídica: limita-se a afirmar, sem aduzir qualquer motivação, que «também viola o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do estado de direito democrático consagrado no art.º. 20.º da CRP; porquanto o recorrente tinha expectativas dignas de tutela do seu direito de preferência consagrado no artigo 1091.º, n.º 1, do CC».
Na motivação das alegações não consta qualquer fundamentação autónoma que permita alicerçar aquela conclusão.
Para que uma questão de constitucionalidade se considere suscitada em termos adequados perante o tribunal não é suficiente referir que a decisão viola a Constituição, tornando-se outrossim necessário que seja discernível a autonomização da questão de constitucionalidade da norma relativamente ao conteúdo da própria decisão em causa.
Portanto, temos de nos circunscrever à relação que o Recorrente estabelece na conclusão XXVII, entre o princípio da segurança jurídica e as expectativas dignas de tutela que alegadamente tinha de poder exercer a preferência.
O princípio da segurança jurídica é um componente do princípio do Estado de Direito. Através do princípio da segurança jurídica procura-se genericamente garantir que a ordem jurídica fornece uma base fiável para o comportamento dos cidadãos, assegurando que a atuação dos poderes públicos, para além de acessível e cognoscível, respeita índices de previsibilidade quanto ao direito aplicável a uma dada situação.

Como se refere no acórdão nº 156/95 do Tribunal Constitucional, de 14.03.1995 (Bravo Serra):
«Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a proteção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte.
Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta [não] vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que atue o subprincípio da proteção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos têm de respeitar.
Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas "que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável" (cfr. Acórdão n.º 365/91 no Diário da República, 2ª Série, de 27 de agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida proteção em nome do primado do Estado de direito democrático».
Partindo da situação objectiva do Recorrente, facilmente verificamos que a legítima expectativa que adquiriu através da celebração do contrato de arrendamento foi a de poder exercer de modo estável o comércio no local arrendado. Arrenda-se para se exercer o comércio e não para se poder comprar o objecto arrendado: é esse o direito conferido pelo contrato, o qual está em consonância com a finalidade, função social e natureza do arrendamento. Tudo o que excede essa expectativa é susceptível de ser regulado pelo legislador, desde que observados determinados limites, os quais respeitam, designadamente, à introdução de alterações desrazoáveis e que era legítimo esperar que não viessem a ocorrer (previsibilidade do direito por forma a proteger a confiança que o cidadão haja razoavelmente depositado na manutenção de uma situação que lhe era favorável) no quadro de direitos conferidos ao arrendatário, enquanto tal.
Sendo assim, a redacção dada ao artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv. pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, interpretada nos termos em que o fez o Tribunal a quo, além de ser cognoscível, inteligível, previsível e justificada, não afecta direitos adquiridos; tanto a lei como a interpretação que se faz da mesma não atinge o núcleo fundamental dos direitos do arrendatário nem incide sobre um aspecto essencial do arrendamento urbano.
Ao longo das últimas décadas sempre se discutiu se o nosso ordenamento acolhia a interpretação que o Recorrente questiona e se estava ou não consagrado o direito de preferência do arrendatário de uma parte não autónoma do prédio na alienação deste.
Havendo posições diferentes, o legislador consagrou a solução a que temos vindo a fazer referência e isso é inteiramente razoável pelo valor intrínseco da mesma e nem sequer se pode argumentar que não era expectável (princípio da protecção da confiança, enquanto dimensão subjetiva da segurança jurídica), pois já era maioritariamente defendido, pela doutrina e a jurisprudência, face à anterior redacção do artigo 1091º do CCiv.. Nem foram encetados comportamentos capazes de gerar expectativas de que seria acolhida determinada solução legislativa ou que estava garantida a continuidade ou exclusividade de uma determinada interpretação do alcance da preferência atribuída ao arrendatário, nem os tribunais geraram nos destinatários das normas uma expectativa de manutenção ou de prevalência de uma ou outra das correntes interpretativas que estiveram em jogo.

Finalmente, importa apreciar a única questão de constitucionalidade normativa devidamente suscitada pelo Recorrente: se a distinção de tratamento entre o arrendatário de fracção autónoma e arrendatário de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP.
Segundo o mencionado preceito da nossa Constituição, todos «os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei», não podendo ninguém «ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual».
Como já hoje é dado por adquirido por qualquer pessoa, a Constituição impõe que se trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual.
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias.
O Tribunal Constitucional tem repetidamente definido o princípio da igualdade como uma proibição geral de arbítrio. O que se impõe é que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que for essencialmente diferente; não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas, mas sim as distinções de tratamento discriminatórias, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional. Desde que exista um fundamento material bastante, o mesmo é dizer uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes, é admissível uma diferenciação de tratamento de situações que se afigurem, sob um ou mais aspectos, idênticas.
O problema reside em saber quando estamos perante situações idênticas, no sentido de exigirem tratamento igual à luz do artigo 13º da CRP. Não se trata propriamente de procurar casos em que existe uma identidade absoluta entre situações, em que todos os aspectos são semelhantes e por isso facilmente se conclui pela inobservância do preceito constitucional, mas sim de verificar se os elementos normativa e socialmente relevantes são idênticos. Uma vez verificada a identidade, uma distinção de tratamento constitui uma violação do princípio da igualdade.
Nem sempre é fácil a apreciação quando nos deparamos com situações que têm objectivamente pontos comuns e outros diferenciadores. A linha que permitirá uma conclusão será esta: existe violação do princípio da igualdade quando não se consegue produzir uma fundamentação justificativa do tratamento diferenciado ou desigual.

Posto isto, verifica-se que os tribunais superiores têm sistematicamente considerado não desconforme com a Constituição o entendimento defendido na sentença recorrida, sobre a inexistência de direito de preferência por parte do arrendatário de parte não autónoma do prédio na alienação deste, conforme se pode ver nos acórdãos que atrás citamos.
Desde logo, estando em causa o direito de preferência em relação à totalidade do prédio, não se vê como se possa considerar que existe identidade relativamente ao arrendatário de fracção autónoma, pois nenhuma norma concede a este um direito de preferência sobre a totalidade do prédio.
Estamos, isso sim, perante realidades distintas. No caso do arrendamento de parte de um prédio não sujeito ao regime de propriedade horizontal apenas existe autonomia económica; já no arrendamento de fracção autónoma, a coisa é ainda juridicamente autónoma, qualificação e constituição que dependeu da verificação de um conjunto de requisitos que a lei enuncia. Nesse quadro, a função económico-social do direito de preferência legal do arrendatário urbano não implica necessariamente que os dois tipos de situação tenham de ser tutelados com o mesmo alcance, nomeadamente que deva ser conferido ao arrendatário de apenas parte de prédio não submetido ao regime de propriedade horizontal o direito de preferir pela totalidade na alienação do prédio, que extravasa o objecto locado (17).
Por outro lado, noutra perspectiva, se alguém arrenda uma fracção autónoma pode até formular uma expectativa de vir a preferir numa futura e eventual venda ou dação em cumprimento desta, preferência que desde há muito tem consagração legislativa (em especial, à data em que o Recorrente se tornou arrendatário – 01.05.1980), enquanto o arrendatário de parte não autónoma não pode esperar vir a adquirir, mediante o exercício de preferência legalmente estabelecida, a propriedade do locado ou do prédio em que este se insere, precisamente por não ter arrendado uma fracção autónoma. Por isso, nenhuma expectativa é frustrada pelo facto de não lhe ser reconhecido o direito de preferência.
Trata-se, por isso, de matéria que se insere na tendencial liberdade de o legislador ordinário conformar o direito de preferência do arrendatário urbano, na medida em que a Constituição não impõe um modelo de intervenção concreto.

Aliás, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 583/2016, de 03.11.2016 (18) (Teles Pereira), decidiu não julgar inconstitucional a alínea a) do nº 1 do artigo 1091º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, quando interpretada no sentido de que o arrendatário de parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência na aquisição dessa parte, com base na seguinte argumentação:
«Expostos, em termos gerais, os parâmetros em que a apreciação da alegada violação do princípio da igualdade deve aqui mover-se, observa-se, antes de mais, que não pode afirmar-se igual a situação do arrendatário de uma parte de um imóvel com autonomia jurídica – designadamente, uma fração autónoma – e a do arrendatário de uma parte de um imóvel não autonomizada.
Desde logo, a igualdade não pode aferir-se por referência ao mais simplificado plano de facto, mas à situação global complexa de facto e de direito, já que é de efeitos jurídicos decorrentes da relação de arrendamento que tratamos. Ora, neste plano, é evidente que não estamos perante a mesma situação num qualquer caso em que o arrendamento incida sobre um objeto cujo domínio pode ser autonomamente transacionado e num outro caso em que incida sobre parte não autonomizada de um imóvel. Basta pensar que, no primeiro caso, a natureza da coisa dada em locação permite que a realidade física objeto do negócio sobre o domínio coincida com a realidade física do objeto do arrendamento e, no segundo caso, essa coincidência não é possível. Neste conspecto, o tratamento diferenciado de uma e outra situação não é arbitrário, parecendo razoável que o legislador tenha entendido que a autonomia negocial dos sujeitos (na dimensão de liberdade de escolha da contraparte negocial) não devia ser sacrificada no caso de o objeto do arrendamento não coincidir com o objeto do negócio real de aquisição, até mesmo porque, desse modo, se proporcionaria ao arrendatário a aquisição de mais do que o locado em função do qual a preferência é atribuída.
É certo que esta atribuição do direito de preferência a favor do arrendatário visa proporcionar o acesso à propriedade a quem beneficia já de um direito de gozo prolongado sobre o imóvel, com o que daí vem implicado de estabilidade na habitação, mas – até a essa luz – não pode dizer-se que há igualdade na situação de aquisição do espaço de habitação e na situação de aquisição de maior superfície, incluindo área que não correspondia à anterior habitação (que, aliás, até pode corresponder à habitação de terceiros).
Por outro lado, o objeto da propriedade não tem, forçosamente, que coincidir com o objeto do arrendamento, tratando-se de direitos de natureza diferente, podendo o legislador – por razões de segurança jurídica, ordenação do território, publicidade e boa gestão do registo predial e da realidade cadastral, entre outras – exigir que a propriedade tenha por objeto uma realidade física e jurídica unitária com certas características, não se fazendo sentir as mesmas exigências no caso de locação. Assim sendo, mostrando-se razoável a exigência da autonomia jurídica da coisa para que possa constituir objeto de um negócio translativo da propriedade, é também razoável que o direito de preferência a partir do arrendamento se projete por referência à mesma unidade jurídica, sendo ele tendente à aquisição do direito real. Este ponto é determinante, uma vez que a afirmação da igualdade entre situações que os Recorrentes procuram sustentar reduz os termos da questão à realidade puramente física da locação, esquecendo que o direito de preferência interfere com os termos do negócio real de compra e venda ou de dação em cumprimento.
Em suma, não estando vedada ao legislador a previsão, como objeto da preferência, de um direito tão amplo como aquele que resulta da atuação da dita teoria expansionista (disse-o este Tribunal no citado Acórdão n.º 225/2000), a circunscrição desse objeto nos termos resultantes da chamada teoria do local, também não está vedada, pois a distinção de regimes envolvida nesta última opção não se apresenta arbitrária ou carecida de fundamento racional na diferenciação das situações envolvidas: as que, no quadro de uma pretensão de exercício da preferência pelo arrendatário habitacional, podem conduzir a um tratamento diferenciado de quem é confrontado com a venda, exclusivamente, do seu “local arrendado” e quem é confrontado com um negócio abrangendo um espaço mais amplo do qual não é juridicamente destacável o espaço correspondente ao objeto do arrendamento.
Como tal, não se mostra violado o princípio da igualdade».

Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.01.2016, proferido no proc. n° 9065/12.1TCLRS.L1.S1 (Tavares de Paiva) se pronunciou sobre a constitucionalidade da interpretação da al. a) do nº 1 do artigo 1091º do CCiv. que vimos seguindo, nos seguintes termos:
«Em concreto, ainda que possa haver coincidência entre a parte do prédio indiviso e a fracção autónoma do prédio constituído em propriedade horizontal, que, quando arrendadas, não facultarão, no primeiro caso, e, facultarão, no segundo caso, direito de preferência na venda, tal coincidência é meramente física e não jurídica.
Com efeito, no primeiro caso, aquela parte não é, no mundo do direito, e mais propriamente por força do disposto nos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC, uma coisa, e, por consequência, não tem autonomia jurídica, pelo que não pode por si ser objecto autónomo de relações juridicamente válidas, invalidando, por força do disposto no artigo 1090.º, n.º1 e 417.º, ambos do CC, o exercício do direito de preferência; já no segundo caso, inversamente, a fracção autónoma decorrente da opção voluntária de constituição do prédio em propriedade horizontal tomado pelo proprietário, é uma coisa, que o sistema reputa de juridicamente autónoma, e do que faz decorrer a possibilidade de poder destacar-se de todo o prédio e ser, apenas ela, objecto de negócios jurídicos e fonte, por isso do direito de preferência a favor do arrendatário – artigos 1416.º e 1417.º, ambos do CC.
Sendo os objectos do arrendamento, no caso de um andar de um prédio não constituído e de uma fracção de um prédio constituído em propriedade horizontal, realidades jurídicas diferentes, existe, na base, uma situação que o sistema diversifica e que legitima o tratamento diferenciado, e coerente, na negação e na atribuição, respectiva, do direito de preferência.
As situações não são, pois, iguais, legitimando a desigualdade jurídica do objecto o tratamento diferenciado do feixe de direitos que se lhes associam.
Por aqui, então, não existe qualquer afronta do direito de igualdade.
Também não haverá quando esteja em causa o direito de preferência em relação à totalidade do prédio, visto que, e desde já, em passo algum se afirma a existência do direito de preferência do arrendatário de fracção autónoma sobre a totalidade do prédio, antes tendo, pela nossa parte, concluído que o direito de preferência se circunscreve, originariamente, ao “local arrendado”, se passível de autonomização.
Ora, somente do reconhecimento do direito de preferência do arrendatário da fracção autónoma relativamente a todo o prédio, poderia decorrer a interrogação sobre o tratamento desigualitário do arrendatário de parte do prédio indiviso, o que se negou.
Também por aqui, não ocorre qualquer inconstitucionalidade».
Em conclusão, a norma do artigo 1091º, nº 1, al. a), do CCiv., na interpretação aqui adoptada, não viola quaisquer princípios constitucionais, mormente os assinalados pelo Recorrente.
Nesta conformidade, improcede totalmente a apelação.
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2.3. Sumário

1 – O artigo 1091º, nº 1, alínea a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 64/2018, de 29 de Outubro, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário comercial de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal na venda ou dação em cumprimento da totalidade do prédio.
2 – Tal interpretação não viola os princípios constitucionais da igualdade e da segurança jurídica.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelo Recorrente.
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Guimarães, 16.12.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. «1 – Na venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio arrendado, os arrendatários que nele exerçam o comércio ou indústria há mais de um ano têm direito de preferência, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas».
3. O seu nº 1 estabelecia que «o locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo».
4. Disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais acórdãos que se citarem de ora em diante sem indicação da respectiva fonte.
5. O seu artigo 3º, nº 1, al. a), revogou «os artigos 1083º a 1120º do Código Civil».
6. Oliveira Ascensão, Direito de preferência do arrendatário, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, Almedina, vol. III, 2002, págs. 254 e segs.
7. No sentido prevalecente, Aragão Seia, Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 7ª edição, Almedina, pág. 308; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 568; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3ª edição, Almedina, págs. 639-640 e Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, 2ª edição, Almedina, pág. 266; Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Teses, Univ. Católica, Porto 2006, págs. 184 e segs. Em sentido oposto, Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de preferência no RAU, in ROA, ano 51, pág. 68 e Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, Coimbra, pág. 204. Na jurisprudência, podem consultar-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 28.01.1997, CJ/STJ, V, 1º, pág. 77, de 13.02.1997, CJ/STJ, V, 1º, pág. 104, de 02.06.1999, CJ/STJ, VII, 2º, 129, e de 22.10.2009, proc. 446/09, disponível in www.dgsi.pt.
8. «Transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal, que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários».
9. Para esta autora o legislador consagrou o princípio da coincidência entre os limites do objecto do arrendamento e os limites do objecto em relação ao qual se exerce a preferência. De acordo com este entendimento, os arrendatários da parte de um prédio indiviso não têm a faculdade de exercer a preferência sobre a totalidade do edifício, na medida em que o seu reconhecimento implicaria a violação daquele princípio. Mais sustenta a autora, na pág. 163 da obra citada que o caminho seguido pelo actual regime do arrendamento foi aquele defendido, no âmbito do RAU, pelo Prof. Oliveira Ascensão.
10. Como se salientou no acórdão desta Relação, de 19.10.2017, proferido no processo 1832/15.0T8GFMR.G1: «Se na «fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento em termo adequados» (art. 9º, nº 3 do C.C.), não é crível que haja - leviana ou imponderadamente - substituído duas expressões com sentidos jurídicos precisos («prédio urbano» e «fracção autónoma»), por uma outra, também técnico-juridicamente precisa («local arrendado»), eliminando ainda a referência à eventual licitação entre arrendatários preferentes, sem que subjacente a essa sua acção estivesse a intenção de consagrar um novo regime».
11. José Pedro Carneiro Cadete, ob. cit., pág. 12, enfatizava: «se o legislador tinha pleno conhecimento de cada uma das posições doutrinais perfilhadas e respectivas argumentações», ao «remover, voluntária e conscientemente, os principais fundamentos legais que justificavam a possibilidade do exercício da preferência sobre todo o imóvel, parece-nos que deixou claro que não deverá ser esse o rumo a tomar em decisões futuras sobre a questão».
12. Mesmo autores que sempre defenderam, no âmbito dos preceitos anteriormente vigentes, que o arrendatário de parte não autónoma de prédio não constituído em propriedade horizontal beneficiava de direito de preferência na alienação de todo o prédio, parecem agora surpreendidos pela actual solução legal emergente da reforma de 2018, que não dá acolhimento à possibilidade de exercício de um direito de preferência sobre todo o prédio; quando muito, concedem que pode ser exercida a preferência na proporção do seu direito e apenas pelo arrendatário habitacional. Por exemplo, Pinto Furtado, in Comentário ao regime do arrendamento urbano, págs. 513 e 514, afirma que «temos, portanto, hoje em dia, três distintas preferências de arrendatário: a) o do arrendatário habitacional ou não habitacional na celebração do novo contrato (…); b) a do arrendatário não habitacional ou habitacional na compra e venda ou na dação em cumprimento da mera fracção arrendada; c) a do arrendatário habitacional na compra e venda ou dação em cumprimento de prédio não constituído em propriedade horizontal» (acrescentamos que mesmo o referido enunciado de preferências ainda sofre a restrição emergente da declaração de inconstitucionalidade do art. 1091º/1-c). Este autor critica a nova solução legal: «Que interesse pode ter um arrendatário em comprar certa porção da superfície de um prédio que não está constituído em propriedade horizontal e em cuja administração não tem cabimento nem voz?» (pág. 514). Sobre o regime decorrente da Lei nº 64/2018, em tom igualmente muito crítico, cf. Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, Almedina, 9ª edição, págs. 86-89.
13. Embora sem ter a pretensão de conhecer toda a doutrina, não é do nosso conhecimento que algum autor tenha defendido o contrário.
14. O próprio acórdão nº 299/2020, do Tribunal Constitucional, que citamos no texto, expressa bem que foi essa a intenção do legislador: «O decreto que inicialmente resultou da iniciativa legislativa que esteve na base da Lei n.º 64/2018 - Decreto da Assembleia da República n.º 233/XIII - previa a aplicação do regime especial de preferência previsto no n.º 8 do artigo 1091.º aos arrendamentos para outros fins, designadamente comerciais e industriais. Porém, foi objeto de veto político do Presidente da República, com alerta de que “a proteção do direito à habitação, justificação cimeira do novo regime legal, tem cabimento no caso de o arrendamento ser para tal uso, mas não se for para uso empresarial”. Na sequência do veto, foi então aprovada a Lei n.º 64/2018, que introduziu no artigo 1091.º do Código Civil a norma que limita expressamente a sua aplicação aos casos de arrendamento para fins habitacionais, confirmando assim que a ratio da medida se prende com a proteção do interesse do arrendatário em manter o gozo do imóvel destinado à sua habitação».
15. Neste exacto sentido, v. o acórdão do STJ, de 18.10.2018, proferido no processo 3131/16.1T8LSB.L1.S1, relatado por Abrantes Geraldes, já citado no texto.
16. V.g., in Direito de preferência do arrendatário, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles, Almedina, vol. III, 2002, págs. 254 e segs..
17. Neste exacto sentido, o acórdão do STJ, de 11.07.2019, proferido no proc. 3818/17.1T8VNG.G1.S2 (Tomé Gomes).
18. Publicado no DR nº 235/2016, II Série, de 09.06.2016.