Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
454/22.4T8MNC-A.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
REMOÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/04/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Não tendo sido requerida a substituição ou a remoção do cabeça de casal anteriormente designado, nem tendo este apresentado escusa, e sem que tenha havido recurso do despacho de nomeação, não pode o juiz nomear um novo cabeça de casal por se ter entretanto apercebido que não havia nomeado o herdeiro mais velho dentre os três filhos dos inventariados, apesar de se encontrarem juntas aos autos as certidões dos assentos de nascimento dos três interessados.
2 – Após o proferimento de uma decisão judicial, verifica-se a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria decidida, pelo que não pode o juiz, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada, seja para alterar o sentido da decisão ou algum dos seus fundamentos.
3 – Do esgotamento do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um efeito negativo, que é a insuscetibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; - um positivo, que é a vinculação desse tribunal à decisão por ele proferida.
4 – Não litiga de má fé o requerente do inventário que indica que deve ser a sua «irmã mais velha», das duas que são também interessadas diretas na partilha, a exercer o cargo de cabeça de casal por ser ela a única que reside em Portugal e que «conhece melhor os bens das heranças a partilhar».
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. No inventário instaurado por óbito de AA e de BB, no qual intervêm como interessados CC (requerente), DD e DD, foi em 07.03.2023 proferido despacho com o seguinte teor:
«Das certidões de nascimento resulta ser o Requerente o irmão mais velho – contrariamente ao por si alegado no artigo 6.º do requerimento inicial.
Pelo exposto, nomeia-se este para exercer as funções de cabeça de casal, dando-se sem efeito a anterior nomeação.
Mais se condena o Requerente em multa processual que se fixa em 4 (quatro) unidades de conta por, com negligência grave, ter alterado a verdade dos factos, induzindo o Tribunal em erro e contribuindo para entorpecer o andamento do processo (arts. 7.º e 542.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Cód. Proc. Civil e 27.º, n.º 3, do R.C.P.).»
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1.2. Inconformado, o requerente CC, interpôs recurso de apelação daquele despacho, formulando as seguintes conclusões:
«A. Pelo despacho recorrido, proferido nos autos, em 07/03/2023, o apelante é condenado em multa processual por ter alterado a verdade dos factos, induzindo o Tribunal em erro e contribuindo para entorpecer o andamento do processo.
B. Com o devido respeito, o apelante na sua petição, junta certidões dos assentos de nascimento dos interessados na partilha, não negando ser o mais velho dos interessados, o que era posto em causa, por contraditório com os documentos autênticos que, ele mesmo, junta.
C. Alegando, apenas, circunstâncias próprias e da irmã mais nova, que dificultavam o exercício das funções de cabeça de casal, por viverem ambos em ....
D. Razão que o levou, de boa fé, pois teria-se escusado devido à idade (75 anos), a indicar a irmã mais velha, por residir em Portugal, para exercer as funções de cabeça de casal.
E. É isto que ficou expresso na petição do apelante, para iniciar o inventário, para partilha dos bens da herança de seus falecidos pais.
F. Pois, caso residisse em Portugal, mesmo assistindo-lhe a faculdade de escusa, devido à idade, não se importaria do exercício de funções de cabeça de casal.
G. Daí ter indicado a irmã mais velha, que após despacho liminar, sendo nomeada, aceitou tais funções.
H. Conforme jurisprudência expressa no douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo n.º 539/14.0T8VFR-K.P1, em 13/07/2022, sendo Desembargador Relator a Dra. Judite Pires, in www.dgsi.pt, afirma em resumo:
“I - O artigo 2080.º do Código Civil estabelece a ordem do deferimento do cargo de cabeça de casal, mas as regras nele contidas não têm natureza imperativa.
II - Se todas as pessoas referidas nos artigos anteriores se escusarem ou forem removidas, é o cabeça de casal designado pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, de acordo com o artigo 2083.º do Código Civil.”
I. O apelante com tudo o que expressa na petição do inventário, não alterou a verdade dos factos, nem, muito menos, pretendeu induzir o Tribunal recorrido em erro, contribuindo para entorpecer o andamento do processo.
J. O despacho recorrido, ao decidir como decidiu, infringiu, entre outros dispositivos legais, os dos art.os 7º, 542º, n.º 1 e 2, al. h), 1099º e 1100º, do C.P.C. e 2080º e 2083º, do Código Civil.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, reformando-a, em parte, quanto à multa aplicada ao apelante;
Fazendo-se, assim, JUSTIÇA.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.3. Questões a decidir

Nas conclusões do recurso, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, o Recorrente suscita as seguintes questões:

a) Falta de fundamento para condenação do Requerente em multa, como litigante de má-fé.
b) Indevida alteração do anteriormente decidido quanto à nomeação de cabeça de casal.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de Facto

Os factos que relevam para a decisão das apontadas questões são os que resultam do precedente relatório e ainda os que a seguir se descrevem:

2.1.1. O interessado CC requereu que se proceda a inventário «pelos fundamentos seguintes:

a) Em 23/11/2001, na freguesia ..., concelho ..., onde tinha a sua residência habitual, faleceu AA, no estado de casado com BB, conforme consta da certidão de óbito que se junta como documento n.º ...; e
b) Em 16/03/2020, no Hospital ..., sito na União de Freguesias ..., ... e ..., faleceu BB, com última residência habitual, em ..., freguesia ..., concelho ..., no estado de viúva de AA, conforme consta da certidão de óbito que se junta como documento n.º ....

O Requerente é filho dos inventariados e casado com EE, conforme certidão de nascimento que se junta como documento n.º ....

Sendo herdeiro legitimário, tem, como é evidente, legitimidade, para requerer o presente inventário.

São, ainda, herdeiras legitimárias e, por isso, interessadas no presente inventário, suas irmãs:
a) DD, casada com FF (Doc. ...), residentes em Estrada ..., ..., ..., ... ...; e
b) DD, solteira, maior (Doc. ...); não existindo quaisquer outros herdeiros dos inventariados.

O requerente e a irmã DD, residem a maior parte do tempo em ...:
a) o requerente, em 17, ..., ... ...;
b) a irmã DD, em 79, Rue ..., ... ....

A irmã mais velha, DD, reside em Portugal, na residência, indicada em 4º - a), supra, e conhece melhor os bens das heranças a partilhar, pelo que deverá exercer as funções de cabeça de casal, devendo ser, por despacho liminar a proferir, nos termos do Art.º 1100º do C.P.C., nomeada, sendo ordenada a sua citação para os termos do Art.º 1102º, do C.P.C..
Nestes termos,
Requer, a V.ª Ex.ª, se digne, no exercício das competências conferidas no Art.º 1100º, do C.P.C., proferir despacho designando cabeça de casal, a interessada, DD, com a residência supra indicada, e ordenando a sua citação para os termos do Art.º 1102º do C.P.C., seguindo-se os demais termos até final.» (teor do requerimento inicial).»
2.1.3. CC nasceu a .../.../1947 (doc. nº ...).
2.1.4. DD nasceu a .../.../1950 (doc. nº ...).
2.1.5. DD nasceu a .../.../1956 (doc. nº ...).
2.1.6. Em 15.11.2022, foi proferido despacho liminar, onde consta, na parte relevante:
«Encontram-se juntos os documentos e elementos a que alude o artigo 1097º, n.º3, do CPC.
O cargo de cabeça de casal não compete ao(à) requerente, pelo que se nomeia para exercer as funções de cabeça-de-casal o(a) interessado(a) DD (artigo 2019.º e 2080.ºdo Cód. Civil).»
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2.2. Do objeto do recurso

2.2.1. Da litigância de má-fé

O Tribunal recorrido condenou o Requerente em multa no valor de 4 UC. Embora não tenha aludido expressamente à litigância de má-fé, consegue-se deduzir da invocação do artigo «542.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Cód. Proc. Civil» que a dita condenação se alicerça naquele instituto.
O Recorrente propugna pela revogação da decisão que o responsabilizou como litigante de má-fé.
Vejamos se procede tal alegação.
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efetiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de ação e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.
No que respeita ao processo civil, toda e qualquer intervenção das partes no processo deve obedecer ao ditame imposto no artigo 8º do CPC: «as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação» previstos no artigo 7º daquele código, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Para assegurar o aludido desiderato e um correto uso dos direitos processuais surge, a par de outros[1], o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correta administração da justiça, pois a atuação abusiva dos direitos processuais, traduzida na instrumentalização do direito processual, é suscetível de retardar a realização da justiça, de afetar a eficácia da intervenção judicial ou, em casos mais graves, de prejudicar até a justa composição do litígio.
 Portanto, estamos perante um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo[2].
É possível descortinar no seu recorte normativo uma vertente sancionatória (v. o artigo 542º, nº 1, do CPC e o artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. artigo 543º do CPC).
Nos termos do nº 2 do artigo 542º do CPC, litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou que o Requerente litigou de má-fé, invocando que «[d]as certidões de nascimento resulta ser o Requerente o irmão mais velho – contrariamente ao por si alegado no artigo 6.º do requerimento inicial». Com base exclusivamente nesse elemento, concluiu que o Requerente «alter[ou] a verdade dos factos, induzindo o Tribunal em erro e contribuindo para entorpecer o andamento do processo».
O Recorrente contrapõe que «não alterou a verdade dos factos, nem, muito menos, pretendeu induzir o Tribunal recorrido em erro».
Analisados os elementos dos autos, concluímos que assiste razão ao Recorrente.
O pressuposto factual em que se alicerça a decisão recorrida não se verifica: o Requerente não alegou no artigo 6º do requerimento inicial que não era o mais velho dos três interessados, todos irmãos e filhos dos inventariados. Nada do que aí consta é contrário ao inequívoco facto de ser o filho mais velho.
O Requerente tem duas irmãs: DD, nascida a .../.../1950 (doc. nº ...) e DD, nascida a .../.../1956 (doc. nº ...). Quando no artigo 6º do requerimento inicial se refere à “irmã mais velha” está a pretender dizer que a DD é a mais velha das duas irmãs e não que é mais velha do que ele. Das duas irmãs, a DD é a mais velha, isto é, a irmã mais velha do Requerente, sendo a DD, das duas, a mais nova. Foi isto, e nada mais do que isto, que o Requerente afirmou no requerimento inicial.
Se a DD fosse a mais velha dos três irmãos, o Requerente nem sequer tinha que justificar por que razão a indicou para desempenhar as funções de cabeça de casal, pois bastava invocar que ela era «o herdeiro mais velho», a quem incumbiria então o cargo nos termos do disposto no artigo 2080º, nº 4, do Código Civil. Ora, precisamente por ela não ser mais velha do que ele, o Requerente teve a necessidade de aduzir, expressamente, dois fundamentos para a nomeação da irmã DD: a) que apenas a DD «reside em Portugal» (art. 6º), pois o «requerente e a irmã DD, residem a maior parte do tempo em ...» (art. 5º); b) a DD «conhece melhor os bens das heranças a partilhar» (art. 6º).
Por outro lado, o Requerente instruiu o requerimento inicial, além do mais, com certidões dos assentos de nascimento dos três interessados e aludiu a esses documentos no requerimento inicial. Nos termos do artigo 1100º, nºs 1, al. b), e 2, al. b), do CPC, o requerimento é submetido a despacho liminar e incumbe ao juiz «verificar» (v. nº 2 do art. 1100º) a quem compete desempenhar o cargo de cabeça de casal, pois só assim pode proceder à «confirmação ou designação do cabeça de casal» (v. al. b) do nº 1 do art. 1100º). E tal “verificação” faz-se mediante análise dos documentos juntos (v. arts. 1097º, nº 3, al. a), e 1099º, al. d), ambos do CPC), confrontando o alegado com o teor das certidões («documentos comprovativos dos factos alegados»).
No caso dos autos, é manifesto que não foi designado como cabeça de casal o herdeiro mais velho e que isso ocorreu por erro do Tribunal. Esse erro ficou a dever-se à circunstância de não terem sido verificadas as certidões dos assentos de nascimento dos três únicos interessados, as quais encontravam-se juntas aos autos; se fossem consultadas dissipariam qualquer dúvida que porventura existisse face à leitura do requerimento inicial. É absolutamente irrelevante qual o elemento que induziu o Tribunal a quo em erro: a lei impõe ao juiz a “verificação”, afastando qualquer outra possibilidade, nomeadamente de alicerçar a designação de cabeça de casal apenas na análise do requerimento inicial, sem comprovação nos documentos cuja junção a lei impõe.
Pelo exposto, não tendo o Requerente alterado a verdade dos factos, deve ser revogada a decisão que o condenou em multa.
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2.2.2. Da nomeação de novo cabeça de casal

O Recorrente insurge-se contra a decisão proferida em 07.03.2023, que agora o designou para exercer o cargo de cabeça de casal, alegando que «o Tribunal recorrido, de acordo com o requerimento inicial, nomeou a irmã mais velha, DD, como cabeça de casal, por despacho de 15/11/2022» e que a «nomeada cabeça de casal, jamais pediu escusa», «funções que se presume ter assumido».
Mais alega que o despacho de 07.03.2023 foi proferido «contra o princípio da celeridade e economia processual» e que a irmã mais velha, tendo anteriormente sido «nomeada, aceitou tais funções».

Para apreciar se o despacho deve ser revogado ou mantido, a situação factual relevante é esta: por despacho de 15.11.2022, o Tribunal recorrido designou cabeça de casal a interessada DD, a qual foi citada e não invocou que não lhe incumbia o exercício do cargo (impugnação da sua designação), nem formulou pedido de escusa. Também não foi requerida a sua substituição ou remoção, nem o Tribunal proferiu a decisão ora impugnada no âmbito de um incidente de substituição, escusa ou remoção da cabeça de casal anteriormente nomeada. Mesmo que se admita, apesar da literalidade do artigo 1103º do CPC não a sugerir, a remoção por iniciativa do juiz, em lado algum da decisão recorrida se decidiu remover do cargo a cabeça de casal nomeada com base num concreto fundamento a ela respeitante, antes se tendo indicado, como motivo para a nova nomeação, um erro do Tribunal.
Não se pode perder de vista que a matéria da designação de cabeça de casal, bem como da sua substituição, escusa e remoção mostra-se regulada, em matéria substantiva, nos artigos 2084º, 2085º e 2086º do Código Civil e, em sede adjetiva, nos artigos 1100º, nºs 1, al. b), e 2, als. a) e b), e 1103º do CPC. Conforme expressamente estabelece o nº 2 do artigo 1103º do CPC, «a substituição, a escusa e a remoção do cabeça de casal constituem incidentes do processo de inventário, aos quais se aplicam as regras gerais dos incidentes da instância».
É ainda de destacar que a substituição do cabeça de casal pode ocorrer a todo o tempo, mas depende do acordo de todos os interessados na partilha (art. 1103º, nº 1, do CPC), situação que igualmente não se verifica no caso dos autos.
O Recorrente assenta a sua impugnação do despacho recorrido na circunstância de o Tribunal haver nomeado anteriormente a interessada DD como cabeça de casal e de esta ter aceitado o exercício de tais funções, porém, esta alegada última circunstância é irrelevante.
O que releva é o facto de o Tribunal recorrido, em 15.11.2022, ter designado cabeça de casal a interessada DD e agora, em 07.03.2023, sem que tenha havido a iniciativa de qualquer interessado e fora de um incidente de substituição, de escusa ou de remoção da cabeça de casal anteriormente designada, tenha nomeado um outro interessado por se ter apercebido que errou ao nomear aquela interessada.
Estamos perante uma situação em que o despacho de 07.03.2023 contrariou e modificou o decidido no despacho de 15.11.2022, sem a questão ter sido suscitada por qualquer interessado e fora do competente incidente. Portanto, o primeiro despacho foi revisto: a Sra. Juiz a quo tomou a iniciativa de no segundo despacho revogar tacitamente aquele que anteriormente havia proferido e designar um diferente cabeça de casal. Nenhum desses despachos pode ser considerado de mero expediente ou proferido no uso de um poder discricionário, sendo que essas duas espécies constituem decisões que o juiz pode modificar por sua iniciativa no decurso do processo, desde que existam fundamentos para o efeito.
Ora, após o proferimento de uma decisão judicial, seja ela um despacho ou uma sentença[3], verifica-se a extinção do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria decidida (artigo 613º, nºs 1 e 3, do CPC). Quer dizer: após o proferimento da decisão o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada, seja para alterar o sentido da decisão ou algum dos seus fundamentos.
O esgotamento do poder jurisdicional traduz-se na inadmissibilidade de o juiz que profere a decisão não a poder, em regra, rever, isto é, alterar o sentido do decidido ou algum dos seus fundamentos. Significa que a decisão, em regra, apenas poderá ser modificada por via de recurso, quando este seja admissível, ou mediante incidente de reforma ou arguição de nulidade. Portanto, do esgotamento do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um efeito negativo, que é a insuscetibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; - um positivo, que é a vinculação desse tribunal à decisão por ele proferida[4].
Embora seja lícito ao juiz retificar erros materiais (art. 614º do CPC), suprir nulidades (art. 615º) e reformar a decisão (art. 616º, onde se pressupõe um lapso manifesto), a situação dos autos não é de erro material no sentido expresso no nº 1 do artigo 614º do CPC e nenhum interessado suscitou a questão da nulidade ou reforma do despacho de 15.11.2022. Sendo certo que não se trata de um caso de nulidade, a reforma por lapso manifesto nem sequer seria admissível mediante reclamação da parte (e muito menos por iniciativa oficiosa do Tribunal): isto porque, cabendo apelação autónoma da decisão sobre a nomeação de cabeça de casal (art. 1123º, nº 2, al. a), do CPC), o vício só podia ser arguido no âmbito de eventual recurso do despacho proferido em 15.11.2022.
Em suma, o despacho que designou como cabeça de casal a interessada DD apenas poderia ser modificado, quanto à questão da nomeação, por via de recurso, uma vez que este era admissível.
Sendo assim, visto que não foi interposto recurso daquele despacho (o de 15.11.2022) e não foi deduzido incidente de substituição, escusa ou remoção da cabeça de casal DD, o Tribunal a quo, por se mostrar esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria daquela designação, não podia decidir de forma diferente – motu proprio – do que decidiu no despacho de 15.11.2022, mediante nomeação de um outro interessado para exercer o cargo de cabeça de casal.
Termos em que procede integralmente a apelação, o que implica a revogação do despacho recorrido e a repristinação da nomeação da interessada DD como cabeça de casal.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente procedente a apelação e, em consequência, decide-se revogar o despacho recorrido, tanto na parte em que nomeia novo cabeça de casal como no segmento em que condena o Requerente em multa.
Sem custas.
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Guimarães, 04.05.2023
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Paulo Reis
Maria Luísa Duarte Ramos


[1] V.g., o abuso do direito de ação.
[2] António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do direito de acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, pág. 28.
[3] Ou um acórdão – v. art. 666º, nº 1, do CPC.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, editora Lex, pág. 572.